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LEI MARIA DA PENHA: A HERMENÊUTICA DO (DES)AFETO


Autoria:

Sérgio Luiz Da Silva De Abreu


Advogado, Graduação - UFRJ, Mestre em Ciências Jurídicas- PUC-Rio, Especialista em Advocacia Trabalhista - OAB/UFRJ, e em Direito Processual Civil - UNESA, Membro Efetivo do IAB, Associação dos Constitucionalistas Democratas, Prêmio Jubileu de Roma.

Endereço: R. Cel.josé Justino , 229
Bairro: Centro

São Lourenço - MG
37470-000


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Resumo:

O texto trata da Hermenêutica aplicada a Lei Maria da Penha frente as interpretações que não consideram a Lei de Combate a Violência Doméstica como um dos instrumentos de política de ação afirmativa nas relações desiguais de gênero.

Texto enviado ao JurisWay em 11/08/2011.



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A Lei Maria da Penha completa este ano no dia 07 de agosto seu quinto aniversário. São cinco primaveras repletas de significados e simbolismos. O arco de interpretações compõe o mais abrangente entendimento do que seja relação doméstica. A hermenêutica do afeto, titulo deste artigo, margeia, tangencia a relação entre ódio e amor, afeto e brutalidade, violência e opressão.

Foi preciso a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos para que medidas fossem tomadas para conter a violência doméstica. A Lei é uma affirmative action de defesa da mulher contra a cultura da violência baseada no machismo.

Até julho do ano passado, a aplicação da Maria da Penha, editada em 2006, resultou em 111 mil sentenças, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Essa estatística espelha a desigualdade entre homem e mulher não só no campo do trabalho, da educação na distribuição da riqueza tanto cultural quanto material, mas também a leitura das relações desiguais de gênero que permeia o tecido social da sociedade brasileira.

 

No evento realizado Gênero, Corpo, Violência e Poder realizado de 25 a 28 de agosto de 2008 a Profa. Dra. Maira Angélica Pandolfi - Doutora em Literatura e Vida Social (UNESP/ASSIS), docente da Universidade Estadual Paulista (UNESP) Coordenadora do simpósio Temático: Construindo novas relações de gênero: a presença feminina nos territórios do saber. Define na sinopse gênero como: A palavra gênero aqui tratada refere-se, propriamente, à diferenciação na construção social do masculino e feminino do sexo biológico. Este conceito veio elucidar a história social e cultural dos sujeitos masculino e feminino, atribuindo significado às relações de poder. Sabemos que as relações de gênero se constroem de maneira indissociável das relações de poder. Desse modo, propomos a reflexão e a discussão dessas relações nos diferentes territórios do saber, como na família, na religião, na academia, nos meios de comunicação de massa e nos movimentos sociais. Em todas essas dimensões as relações de gênero são continuamente construídas, destruídas e reconstruídas ao longo da história. Nesse contexto, é necessário reconhecer, evidentemente, o lugar de destaque que a mulher ocupa, desde os primórdios do Movimento Feminista até nossos dias, nas discussões de gênero. Os estudos das relações de gênero têm mostrado a superação da desigualdade feminina no que se refere aos diferentes papéis sociais que antes eram desempenhados exclusivamente pelos homens em nossa sociedade. Contudo, há indicadores que apontam o crescimento da violência entre os gêneros nas mais diversas esferas. No contexto desta reflexão, destacam-se os territórios do saber, os espaços de construção das identidades sociais dos gêneros e, sobretudo, das relações de poder. Entender a história social e cultural dos gêneros em diversos territórios poderá auxiliar, conseqüentemente, a compreensão da violência presente nessas relações.

Os demais palestrantes dissecam as questões de gênero, Senão vejamos:

 

Segundo Cavalcanti Oliveira”(...)tratam a violência no espaço doméstico como uma reação das mulheres quanto às desigualdades nas suas relações com o marido”. A mulher quando questiona seus direitos, quando percebe que está em uma relação desigual, se volta contra o marido. A partir deste contexto que acontece a violência dos homens contra as mulheres, quando o homem não tolera uma reação das mulheres ao seu poder de dominação. A concepção social possui base patriarcal, sendo assim, ainda existe bastante tolerância social para com a violência contra as mulheres. OLIVEIRA, A. P. G, CAVALCANTI, V. R. S. Violência Doméstica na Perspectiva de gênero e Políticas Públicas. Rev. Brás. Crescimento Desenvolvimento Humano, 2007.

 

Para Chauí “violência como toda e qualquer violação da liberdade e do direito de alguém ser sujeito constituinte de sua própria história. Liberdade aqui entendida como ausência de autonomia”. O uso de poder para dominar e explorar outrem, é considerado prática de violência. Os autores afirmam, portanto, a violência contra a mulher é uma prática já instaurada pela própria subordinação a que ela está submetida. Sua identidade é construída a partir desta concepção de dominação. Quando esta identidade não atinge o esperado, ou seja, quando se constrói algo que é oposto ao que é constituinte da sociedade, comumente as mulheres são alvo de agressões e de discriminações. CHAUI, M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

 

 

Para Simone de Beauvoir, sugere a concepção de “outro” que o homem lhe impõe. A mulher não possui autonomia, porque está sendo controlada por uma consciência que ela considera soberana. Portanto, a autora considera que “o drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o essencial, e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial”. BEAVOIR, 1967, p.63) BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo I – Os fatos e os mitos. São Paulo: DIFEL, 1967.

 

Segundo Oliveira Cavalcanti é correto pensar na condição de vítima da mulher. O que não se deve é retirar a possibilidade de superação e reação quanto à relação violenta a qual a mulher se encontra, porque é a partir desta concepção que ocorre a naturalização da violência que está submetida. OLIVEIRA, A. P. G, CAVALCANTI, V. R. S. Violência Doméstica na Perspectiva de gênero e

Políticas Públicas. Rev. Brás. Crescimento Desenvolvimento Humano, 2007.

 

Adairllon e Caldeira afirmam que para a mulher se tornar um indivíduo pleno, constituído autonomamente, identificado com a condição humana, ela deve lutar para “se fazer”, tendo como referencia o seu desejo por igualdade. ARDAILLON, Danielle; CALDEIRA, Teresa. Mulher: indivíduo ou família. Novos estudos, V. 2, São Paulo: Cebrap, 1984.

 

Madame de Bovary de Flaubert, Casa de Bonecas de Ibsen são alguns exemplos na literatura universal de narrativas de insurgência de gênero.

 

A hermenêutica jurídica quando voltada para interpretação de normas de denso conteúdo social exige do hermeneuta aflorar a sua sensibilidade no momento em que se utiliza dos modos de interpretação.

 

Em artigo publicado no site do Ministério Publico do Rio Grande do Sul, intitulado “A Norma da Lei Maria da Penha” Belmiro Pedro Welter enriquece o debate demonstrando o grau de complexidade existente nas dimensões conceituais acerca do relacionamento familiar. A Constituição do País de 1988 também possibilita uma visão tridimensional da famí-lia, genética, afetiva e ontológica, rompendo com todo o passado objetificado, intolerante, hierar-quizado, preconceituoso, visto que não se caracteriza um comportamento, um modo de agir nor-matizado, mas, sim, um modo de ser, um jeito de ser, uma condição de ser-no-mundo humano. Isso quer dizer que a família não se limita ao casamento, à união estável, à anaparentalidade, à socioafetividade etc., porquanto o modo de ser de família localiza-se dentro do ser humano.
Com essa novel linguagem da família é afastado o conceito dogmático – de que a família seria um contrato, uma instituição ou contrato-instituição –, visto que não é possível normatizar o modo de ser-em-família, o modo de ser-em-sociedade e o modo de ser-no-mundo, tendo em vista que a compreensão humana não é um comportamento, mas, sim, o movimento básico da existên-cia humana .
Existem tantas famílias quantos forem os modos de ser do humano, genético, afetivo e ontológico, em cujo asilo familiar inviolável deveria ser professado o ideário da compreensão, que, na linguagem gadameriana , quer dizer linguagem familiar do diálogo, da conversação, do entendimento, da suspensão dos preconceitos (legítimos e ilegítimos), porquanto onde não há vínculo não há diálogo, sendo a conversa o encontro entre dois mundos, duas visões e duas ima-gens do mundo, transformando os humanos que dialogam, pelo que os membros da família de-vem ter a liberdade do dizer a si mesmo e deixar-se dizer, conversar, perguntar e responder, ouvir e ser ouvido.
Portanto, o conviver e o compartilhar reclamam palavra, linguagem, diálogo permanente, na medida em que, afirma Gadamer, não haja coisa alguma onde se rompe a palavra, significando que a conversação é condição de possibilidade de convivência e de compartilhamento em família e garantia da não instauração da linguagem do desafeto, da violência familiar e doméstica contra os seus integrantes.”

Prossegue o Autor:

 

“Há vários anos, Lenio Luiz Streck alerta que o intérprete/legislador não é mero repro-dutor, e sim produtor do Direito, que precisa compreender a realidade, os fatos da montanha da vida, porquanto o Direito deve ter a potencialidade de transformar a sociedade, não havendo compreensão sem relação social, na medida em que o legislador edita o texto, mas o intérpre-te/julgador ‘faz’ a norma (sentido).
O autor pontifica que texto e norma não são a mesma coisa, porque, em a norma não sen-do superior ao texto, ela não pode superar o texto, querendo dizer que, “quando o juiz pretende adequar a lei às necessidades do presente, tem claramente a intenção de resolver uma tarefa práti-ca”, cuja compreensão e interpretação da lei pelo intérprete/julgador não pode ser uma tradução arbitrária, isso porque, na linguagem gadameriana, “se queres dizer algo sobre um texto, deixe que o texto te diga algo”.
Isso significa, na visão desse filósofo e fenomenologista gaúcho, que “a força normativa da Constituição começa a partir da concepção que se tem acerca de seu texto (que ex-surgirá sempre como uma norma), mas que não será uma norma qualquer, ao ‘gosto’ do intérprete”. É dizer, para que a Constituição do Brasil, que é um acontecer, um evento, um existencial, possa realmente constituir , é preciso que ela seja compreendida como condição de possibilidade de produzir sentido/aplicação vinculante à sociedade . Em outras palavras, a norma é o resultado da atribuição de sentido do texto , sendo que o intérprete/julgador não atribui sentido ao texto, mas, sim, comunica-se com ele, deixando que ele diga alguma coisa, vez que são as palavras do texto que desvelam o mundo da linguagem, o mundo da vida, o mundo da realidade, visto que sem linguagem não há mundo, à medida que “ser que pode ser compreendido é linguagem” .
Concordo, assim, com a doutrina streckiana no sentido de que é impossível continuar sustentando as serôdias dicotomias metafísicas, porque texto não é a norma, porquanto é no sen-tido do texto que está a norma; o texto é fato, fato é texto; o texto é evento, evento é texto; na lei está uma parcela do Direito; não é na vigência, e sim na validade constitucional do texto que se vislumbra o Direito; isso porque hermenêutica é filosofia, é faticidade, é acontecimento, é evento, é um modo, um jeito, uma circunstância de ser do humano.
Independentemente das tendências/posições defendidas, o fato é que a dogmática jurídica não tem o alcance de compreender o sentido do texto, que, com a hermenêutica, passou a ser compreendido como dependente do contexto social , pelo que a cientificidade, a pureza, o senti-do literal etc., característicos da matriz analítica, perderam em importância frente às idéias de compreensão, fenomenologia, tradição histórica, pré-conceitos, círculo hermenêutico, fusão de horizontes. A hermenêutica, seja como método de compreender e interpretar, seja como ciência do espírito , seja como um modo de ser-no-mundo, levou para a seara jurídica a importância da enunciação, e não (só) do enunciado, deixando para trás o pensamento unívoco da lei, o momento sublime da subjetividade.
Mais do que declarar o sentido literal do texto ou a suposta vontade do legislador, o julga-dor/intérprete, a contar da matriz hermenêutica, está sendo encorajado a compreender o texto le-gal a partir de um horizonte de sentido, deixando que o texto fale alguma coisa. Em outras pala-vras, o julgador/intérprete frente ao texto e ao caso concreto torna-se intérprete, hermeneuta, pro-dutor, e não mero reprodutor, do Direito, devendo, numa circularidade , reconhecer e suspender os seus pré-conceitos, para que possa compreender a si mesmo e, conseqüentemente, o sentido do texto, do ser humano, da família e da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Compreendido o sentido da própria existência, o intérprete, o juiz, parte para a atualização do texto e, para isso, embarca na tradição histórica, na fusão de horizontes (entre o passado e o presente), no círculo hermenêutico (da parte ao todo e do todo à parte), podendo então descobrir o sentido do texto (da norma), e assim dar-lhe (novo) sentido , vez que “não podemos compreen-der nada sem compreender a totalidade” .
É por isso que se diz que a filosofia da consciência apega-se na relação sujeito-objeto, em que a idéia dominante é a de que interpretar é descobrir o sentido, o alcance, o significado da norma, é explicar, esclarecer e dar o significado ao vocábulo, enfim, extrair da norma tudo o que nela se contém . Porém, a hermenêutica filosófica não é metódica, e sim condição de ser no mundo, é experiência de vida , é existência, é um acontecer, um existir, um evento, em que o processo de interpretação tem como condição de possibilidade a compreensão, cujo sentido vem antecipado pela pré-compreensão que, por sua vez, “é pré-figurada por uma tradição determinada em que vive o intérprete e que modela os seus pré-juízos” , em que as relações passam a ocorrer entre sujeito e sujeito, sendo unicamente a linguagem a condição de possibilidade de uma visão da totalidade do mundo .”
http://www.mp.rs.gov.br/atuacaomp/not_artigos/id14940.htm

 

Na mesma esteira de entendimento leciona Miguel Reale, in “Para uma hermenêutica Jurídica Estrutural”: “É indispensável termos sempre presente a conexão entre “visão do mundo” e processo hermenêutico”.

 

Não há que questionar a obediência do princípio da igualdade na Lei Maria da Penha, pois ela se destina desde o seu nascedouro a proteção da mulher contra a violência masculina. Trata-se de Lei de natureza tuitiva, protetiva. Basta que façamos algumas indagações para aferirmos a razoabilidade da interpretação que questiona a constitucionalidade a Lei. Vejamos: O Estatuto da Criança e do Adolescente visa à proteção daqueles que estão em processo de amadurecimento social e desenvolvimento psicológico. Portanto poderíamos questionar a Constitucionalidade do Estatuto por violação ao princípio da igualdade? O Estatuto do Idoso visa à proteção daqueles que estão em idade acima dos 60 anos. Poderíamos argüir a inconstitucionalidade do Estatuto sob o aspecto isonômico em relação àqueles que ainda não atingiram esta faixa etária? Poderíamos dizer que a Consolidação das Leis do Trabalho não se destina a da proteção do trabalhador em face do capital? E tantos outros diplomas legais que têm como destinatários os que sofrem de vulnerabilidade ou mesmo fragilidade na perspectiva dos direitos humanos, ou seja, reconhecidamente merecedores de ações afirmativas que recompensem as perdas históricas e promovam a defesa e a promoção sobre os que sofrem maior violação dos direitos fundamentais da pessoa humana.

 

Ora, não cabe dúvida que a interpretação deva ser teleológica. A busca da finalidade da Lei. Histórica, retrospecção dos fatos que historicamente construíram as representações de gênero que estimulam o imaginário social masculino a prática da violência doméstica contra a mulher. A interpretação sistemática. O Texto Constitucional no § 8º do art. 226. Interpretação sociológica. Interpretação sistemática, enfim as novas hermenêuticas hauridas do complexo e vasto elenco de autores que se debruçam sobre o tema.

O que faz operadores do direito entenderem alguma forma de aviltamento ao princípio da igualdade? O que esta aí subjacente? Poderíamos sem sombra de dúvidas dizer que a construção social do feminino ao longo dos tempos fez introjetar no homem, seja ele de que formação for, entender que normas protetivas a mulher os ameaça em sua masculinidade, ou até mesmo a idéia de igualdade no plano da abstração, garante a desigualdade substantiva presente cristalinamente no Texto Constitucional.

 

Tratar o afeto no plano jurídico, ainda causa algumas resistências, pois a máscara da abstração e da neutralidade são ícones do teatro desempenhado pela visão normativista. Poderíamos dizer que o intérprete está imune ao legado recebido na sua formação? A formação jurídico-profissional imuniza as histórias pessoais e sociais? Ou apenas quando não aceitas por intencionalidade ou ignorância, naturaliza a violência radicada no machismo e na discriminação. A decisão baseada na hermenêutica da desconsideração do afeto, afeto necessário nas relações domésticas.

Por fim, é mais do que necessário haver na formação jurídica dos operadores do direito, o desenvolvimento de atividades que despertem o amor às artes. Porque a artezania do sagrado está no reconhecimento de que todo ser humano merece respeito, dignidade, tarefa que os artistas sabem muito bem fazer para alimentar a alma daqueles que apreciam a sacralidade do humano. Os Direitos Humanos tem a distinção e a dimensão do arco que vibra as cordas do cello da vida.

Dignidade as mulheres, pois elas representam à força da criatividade uterina no seu mais complexo e amplo sentido.

 

 

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