COMENTÁRIOS À CIDADE ANTIGA DE FUSTEL DE COULANGES.
Poucas obras literárias têm a capacidade de condensar em seu conteúdo verdadeiras pérolas de sabedoria e conhecimento. À queima-roupa, assim, sem pestanejar, citamos a Bíblia Sagrada como uma dessas obras profícuas. Dentro dessas poucas obras supracitadas, somente algumas têm a coragem de reunir em seu invólucro, uma erudita coletânea de preceitos e ensinamentos referentes a uma ciência, por exemplo.
A Cidade Antiga de Fustel de Coulanges é uma dessas obras que merece nossa apreciação especial. No seu teor há a descrição detalhada de alguns institutos atuais das nossas ciências jurídicas. Fazendo um paralelo com os estudos de Fustel, que atentamente foi estudar a origem da família, da religião, do direito, da propriedade, etc., podemos demonstrar a evolução e a aplicação de alguns institutos estudados por este autor e que ainda são aplicados e vistos hoje.
Fustel de Coulanges (1830 – 1889) era um historiador francês que ocupou a cátedra de História da Idade Média na Sorbonne e coordenou a “École Normale Supérieure”.
Sua maior obra, a Cidade Antiga, é um verdadeiro estudo dissecado da história civil do mundo Greco-Romano, apresentado de forma cronológica, discorrendo sobre a origem do Direito e da Religião.
O livro inicia demonstrando de forma ordenada a gênese das crenças e a organização da sociedade.
Apreciaremos características de alguns institutos e as curiosidades disponíveis acerca da evolução desses respectivos temas.
Fustel relata dois aspectos da lei de Sólon que merece nosso comentário.
No primeiro capítulo ele escreve que a lei de Sólon proibia enterrar mais de três vestidos com o morto. Vejamos que interessante essa prescrição. Num mundo que acreditava que seus mortos se levantariam em outra vida e, em razão disso, enterravam os seus cadáveres com moedas, comida, roupas e no Egito antigo até serviçais eram mortos e enterrados com seus patrões, a fim de lhe servirem nessa próxima vida, vem a lei de Sólon e prescreve a regra de somente três vestidos. Seria com o intuito de educar a sociedade a repartir mais os seus pertences, equilibrando assim as deficiências sociais, o zênite dessa regra de Sólon?
Outro fato, Fustel narra no subtítulo IV, do capítulo I: a lei de Sólon proibia a quem não fosse parente do defunto a acompanhá-lo, gemendo no enterro. Nos dias atuais se tal regra fosse vigente, o que seriam das famosas carpideiras do agreste nordestino?
O tema mais abordado por Fustel, sem dúvidas, é a família e suas atribuições na sociedade. A forma que Coulanges nos ensina é uma rica explicação acerca da “família” e seus direitos. Uma obra de consulta obrigatória para os apreciadores do Direito de família. Neste tema o autor demonstra a aplicação do casamento, emancipação, divórcio, poder pátrio, entre outros. Vejamos:
A emancipação descrita no cap. II “família”, do livro, declara que ao emancipar-se, o filho deixaria por completo sua participação naquela família, e isso se dava através da renúncia ao culto doméstico; e uma vez rejeitado o culto, esse deveria estabelecer sua própria família, pois já não faria mais jus a nada de sua antiga família de origem.
A emancipação em nosso direito pátrio é descrita e regulada no art. 5º, e seus incisos do Código Civil de 2002.
Outro enfoque dado no assunto familiar é o poder pátrio.
O poder pátrio naquela época era exercido de forma extremamente violenta e com caráter possessório. Fustel relata que a lei das Doze Tábuas autorizava a venda do filho por até três vezes, depois disso o filho ficaria liberto do poder paterno. Fustel assevera que por esse exemplo se comensurava a autoridade absoluta do pai.
No nosso direito, o poder familiar encontra-se lecionado nos arts. 1630 a 1638, do Código Civil.
E assim vão se formando as células que envolvem as famílias de épocas antigas. Outro tema bastante pesquisado foi o casamento.
O casamento era visto como uma instituição sagrada e, em algumas vezes, uma obrigação. Nos seus relatos Fustel menciona que o celibato era considerado hediondo e tinha uma lei antiga romana obrigando os jovens ao casamento. O grande Cícero na sua obra “Das Leis” descreve detalhadamente uma lei romana que proibia o celibato. Em Esparta, o homem que não casasse era severamente punido.
O casamento era uma obrigação nessas situações.
A formalidade do casamento daquela época apresenta aspectos interessantes e alguns ainda atuais. Vejamos o que Fustel menciona acerca do rito cerimonial:
“A jovem é levada à casa do marido. Às vezes é o próprio marido quem a conduz. Em algumas cidades, o encargo de conduzir a jovem cabe a um desses homens que, entre os gregos, tinham caráter sacerdotal, chamados arautos. Ordinariamente a moça segue de carro, tendo o rosto coberto com um véu e levando uma coroa à cabeça. A coroa, como veremos muitas vezes, era de uso em todas as cerimônias de culto. O vestido era branco, pois o branco era a cor dos vestidos em todos os atos religiosos. Durante o percurso, cantam à sua volta certo hino religioso, tendo por estribilho”õ Hymén, õ Hyménaie”.
Percebemos que a cor dos vestidos não mudou, nem o véu cobrindo o rosto da noiva. E também que a noiva, como nos dias atuais, ia para a cerimônia sozinha em um carro. Sem contar com a homenagem e a bajulação ao canto Hymeneu, que na época tinha um cunho mais religioso, mas hoje tomou proporções descabidas, sendo algumas vezes motivos de desrespeitos e agressões a mulheres.
Um exemplo de casamento compulsório é o da viúva que não possuía filhos do “de cujus”, assim explica Fustel:
“As legislações antigas prescreviam o casamento da viúva, quando não tivesse tido filhos do marido, com o mais próximo parente do seu marido. O filho nascido desse segundo casamento era considerado filho do defunto”.
O capítulo do casamento na nossa legislação brasileira encontra-se lecionado do art. 1511 ao 1570, do nosso Código Civil.
Com o advento do casamento, ulteriormente surgiu a figura do divórcio. Coulanges descreve o ritual do divórcio com essas palavras:
“O efeito do casamento só poderia ser destruído pelo divórcio. Os dois esposos, ao quererem separar-se, apresentavam-se pela última vez diante do fogo comum, estando presentes um sacerdote e algumas testemunhas. [...] Depois, no lugar de preces, pronunciavam fórmulas de caráter estranho, severo, odiento e terrível, espécie de maldição pela qual a mulher renunciava ao culto e aos Deuses do marido. A partir desse momento, o laço religioso estava rompido. O Casamento então estava anulado”.
Os efeitos do divórcio são comentados por Fustel: “No caso de divórcio, os filhos ficavam com o pai, assim como as filhas. A mulher nunca tinha os filhos sob seu poder. Não lhe pediam nem o consentimento para o casamento da filha”.
Ao contrário do que leciona nosso Direito brasileiro que em seu art. 1584, dispõe que os filhos ficarão com quem melhor apresentar condições para essa incumbência.
A sucessão é outro tema bastante explorado. A sucessão, naquela época, dizia respeito ao culto da religião do sucedido. Se o interessado comungasse com o Deus do sucedido, ele então era um sucessor legal. Fustel relata que: “o nascimento só constituía o laço físico; a declaração de pai criava o laço religioso e moral”. Logo se o “pater familiae” aceitasse alguém no seu culto, esse seria da família, e seu sucessor. Segundo Platão, parentesco seria ter em comum os mesmos Deuses domésticos. Embora não havendo laços de sangue, os indivíduos que professassem a mesma religião do “pater”, passariam a ser seus sucessores. Fustel exclama: “o direito à herança são regulamentados não pelo nascimento, mas de acordo com as participações nos cultos”.
Um escravo poderia ser sucessor de um “pater familiae”. É o que nos deixa entender Fustel em seu comentário: “Um escravo entrava para a família, se aproximando do lar, levado a presença da divindade doméstica, lavando sua cabeça com água lustral e comendo bolos e frutas com os novos familiares”.
Jamais poderia alguém participar de duas famílias ou duas religiões.
Em algumas regiões a sucessão demonstra caracteres diferentes, tais como: a filha nunca herda do pai na cultura grega, e na romana se ela for casada não herda nada também.
O código de Manu também leciona que as filhas não têm direito a herança dos pais. O código de Justiniano aceita que a filha receba herança, se no momento da morte do pai, essa seja ainda sua subordinada.
Ao contrário do nosso direito pátrio, na cultura romana a filha do adotante não só poderia casar com o adotado, como às vezes era necessário o casamento para que ela pudesse ter direito a herança do pai.
A figura do testamento, segundo Fustel era terminantemente proibido pela lei de Sólon, mas nos casos de não existir nenhum herdeiro, havia possibilidade de testar.
Outros aspectos jurídicos comentados por Fustel são as noções de propriedade, procedimentos processuais, pena de morte, circunscrição, poder judiciário e leis.
Sobre a propriedade Coulanges discorre: “Há três coisas que desde os tempos mais remotos se encontram conexas e firmemente estabelecidas nas sociedades antigas: a religião doméstica, a família e o direito de propriedade; três coisas que demonstram a manifesta relação entre si e sua origem e que parecem ter sido inseparáveis”.
As mulheres jamais poderiam ser testemunhas ou partes em processos.
A sentença de morte da mulher sempre era declarada pelo seu pai ou pelo seu marido. O estado não intervinha nessa relação, o máximo que podia fazer era aconselhar o “dono” da mulher a apená-la.
A circunscrição era definida por um limite estabelecido pela religião. Esse traçado era inviolável. Saltar por cima dessa linha que delimita é um ato imperdoável. O estado só pode agir dentro daqueles limites imposto pela religião.
O poder judiciário, então, só tem eficácia dentro dos limites da sua circunscrição. O Juiz era chamado de “Arconte”. O primeiro magistrado de Tebas recebeu essa denominação.
Não podia haver atos judiciais em dias de feriado. Nesses dias toda a vida pública ficava suspensa.
Para encerrar, faz-se mister demonstrar a preocupação de Fustel de Coulanges, em comentar com caráter impertérrito a importância das leis naqueles povos antigos.
Com suas palavras Fustel define: “Entre gregos e romanos, assim como entre os hindus, desde o princípio a lei surgiu naturalmente como parte da religião. Os antigos códigos das cidades reuniam um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, de orações e, ao mesmo tempo, de disposições legislativas”.
Podemos, então, perceber a relação estreita entre o Direito e a Religião.