Respostas Pesquisadas sobre Direito do Trabalho

O que é a Repersonalização do Direito do Trabalho?

Pesquisa

Denner Santana

O trecho abaixo, indicado como resposta, faz parte do seguinte conteúdo:

UMA ANÁLISE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO EM ÂMBITO NACIONAL
Autor: Letícia Bittencourt e Abreu Azevedo
Área: Direito do Trabalho
Última alteração: 29/12/2016
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Para o autor Norberto Bobbio (2001), a dicotomia entre a esfera pública e a esfera privada reflete a situação de um grupo social onde se diferencia o que pertence ao grupo e o que pertence, individualmente, a cada membro desse grupo.

O filósofo político italiano observa, ainda, que:



Como se trata de dois termos que no uso descritivo comum passam por ser contraditórios, no sentido de que no universo por ambos delimitado um ente não pode ser simultaneamente público e privado, e sequer nem público nem privado, também o significado valorativo de um tende a ser oposto ao do outro, no sentido de que, quando é atribuído um significado valorativo positivo ao primeiro, o segundo adquire um significado valorativo negativo, e vice-versa (BOBBIO, 2001, p. 20).



Tal fenômeno constitui etapa do processo de transformação das sociedades industriais mais avançadas no momento em que o Estado consegue perceber a influência da evolução social (BOBBIO, 2001).

De acordo com Judith Martins Costa (2006), a dicotomia do público-privado é pautada no modelo da incomunicabilidade, uma vez que estas esferas se caracterizam como linhas paralelas e sem nenhum ponto em comum. A autora trás, ainda, o exemplo da Constituição Federal e o Código Civil, que somente se tocavam sob o aspecto formal e por força da hierarquia das leis.

Dessa forma:



Esse modelo de relacionamento entre o público e o privado, típico do Estado liberal de direito, é concebido também como "modelo da incomunicabilidade", na medida em que a Constituição e o Código Civil se encontravam apenas no aspecto formal e caminhavam paralelamente: a Constituição regrando o Estado e o homem político; o Código Civil como império da sociedade civil e do sujeito proprietário e cidadão, ou seja, o Código civil, fincado na igualdade formal, exigia uma postura omissa do Estado, consagrando liberdades ditas negativas. Em verdade, pode-se dizer que o Código Civil desempenhava o papel de Constituição e estava sempre a favor do valor fundamental do liberalismo: o sujeito livre e (formalmente) igual. (TEODORO, 2016, p. 148).



Com o passar dos anos, enfrenta-se a transição dos ideais do Estado Liberal para o Estado Social, onde, neste último, então dotado de caráter intervencionista e promotor de políticas públicas, não mais se admite um Direito Civil alheio e incomunicável ao direito público.

Segundo Maria Cecília Máximo Teodoro:



Não obstante o Estado Social entre em crise, em virtude do neoliberalismo, a rarefação da divisão entre as esferas pública e privada prossegue. Embora esta separação entre o público e o privado seja cada vez menos nítida, o que se percebe é uma continuidade, um progressivo entrecruzamento, mas não se trata, todavia, do desaparecimento desta clivagem, pois a abolição desta divisão é a característica mais forte de um regime totalitário.

Miguel Reale fala em complementaridade para explicar a crescente convergência do Direito Público e do Direito Privado, ressaltando que não há primado de um ou de outro.

E continua: [...] pois ambos compõem o processo dialético da positividade jurídica através da história, obedecendo às diretrizes emergentes dos valores eminentes que caracterizam cada civilização, e que formam o que denomino invariantes axiológicas. A principal delas é a idéia (sic) de pessoa humana, em meus livros apresentada como "valor fonte" de todos os valores. Nada de extraordinário que seja ela o valor básico de todo o ordenamento jurídico, sobretudo do civil. (REALE apud TEODORO, 2016, p. 149).



Assim:



Com essa interpenetração entre público e privado, alguns institutos de direito civil ganharam status constitucional, como a família. É inegável que a constitucionalização do direito privado alterou a perspectiva do direito, porque os institutos de direito privado passaram a ser interpretados sob a ótica da dignidade.

Trata-se da despatrimonialização e repersonalização do direito privado. Todo o ordenamento jurídico passa a ser orientado pela Constituição, para que a dignidade da pessoa humana seja o centro irradiador do direito. (VALADÃO; TEODORO, 2015, p. 165-166).



Portanto:



Houve uma mudança substancial, pois onde antes havia uma disjunção, hoje há uma unidade hermenêutica, pela qual a Constituição apresenta-se como o crivo conformador da elaboração e aplicação da legislação civil. Há ainda uma virada hermenêutica, pois deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição, segundo o Código, como outrora. (TEODORO, 2016, p. 149 e 150).



A partir dos extratos acima, é possível verificar que a atual configuração do Estado brasileiro teve influências traçadas no período neoliberal. Ao absorver o espírito democrático tracejado na Carta Republicana de 1988, o Estado assumiu o compromisso de instrumentalizar um sistema de cooperação e integração entre o interesse público perseguido pelos anseios da esfera privada. Assim, grandes partes das relações começaram a ser norteadas pela carga valorativa trazida pelo próprio texto constitucional, destacando-se os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana.

Maria Cecília Máximo Teodoro explana que:



Dessa forma, como a Constituição e a dignidade da pessoa humana passaram a sustentar todo o ordenamento jurídico, os direitos fundamentais ganharam aplicabilidade também nas relações entre particulares. A força normativa da Constituição determinou que seus valores e princípios devem ser aplicados de forma direta e efetiva nas relações privadas, e não apenas na relação Estado-indivíduo. (MORAES apud TEODORO, 2015, p. 12).



E ainda:



Desse modo, o neocontitucionalismo propõe a aplicação direta das normas constitucionais, o que é denominado de eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

[...]

Nesse passo, há incidência imediata dos direitos fundamentais no âmbito privado, porque não apenas o Estado, mas também as pessoas e entidades privadas estão diretamente vinculadas à Constituição.

[...]

Assim, a irradiação dos princípios e valores constitucionais a todo o ordenamento jurídico tem por conseqüência a aplicação direta da Constituição às relações privadas, conferindo eficácia horizontal aos direitos fundamentais. (VALADÃO; TEODORO, 2015, p. 167).



A partir das perspectivas acima mencionadas, sabe-se que os sujeitos da relação trabalhista - empregado e empregador - são sujeitos de direitos e deveres, de tal forma que o Direito do Trabalho atua com o intuito de promover a igualdade e o equilíbrio entre as partes.

Ainda na concepção de Maria Cecília Máximo Teodoro:



No que diz respeito à interpenetração do direito público no Direito do Trabalho, temos que esse fenômeno ainda está sendo gestado. Não obstante, a interpenetração já alcançada propiciou, no contrato de trabalho, a superação da concepção de contratualidade pautada na autonomia da vontade.

Na verdade, o Direito do Trabalho se apresenta como uma atuação estatal direta nas relações de emprego a fim de preservar o interesse público. O grande desafio, porém, que se apresenta, é colocar na centralidade dos estudos e da hermenêutica trabalhistas as questões existenciais do trabalhador, o que significa elevar a sua dignidade humana à máxima potência. (TEODORO, 2016, p. 150).



Portanto:



O que se propõe é uma releitura do Direito do Trabalho, à luz dos direitos fundamentais, em tentativa de promover a repersonalização deste ramo do Direito. Assim, com a transferência da dignidade do empregado para o centro do Direito do Trabalho, não mais se admite uma visão meramente patrimonialista dos direitos trabalhistas.

A repersonalização do Direito do Trabalho é tema atual e polêmico no contexto jurídico contemporâneo. Na maioria dos casos, os direitos trabalhistas são interpretados como mera decorrência econômica e patrimonial, de forma que basta o pagamento das parcelas previstas em lei.

(...)

Nesse contexto, repersonalizar o Direito do Trabalho é afirmar a pessoa do trabalhador como ocupante de seu eixo de regulação. No Estado Neoliberal, isso implica na vedação de o empregador exercer o direito à propriedade de forma abusiva, na medida em que a propriedade não constitui valor absoluto, pois é preciso privilegiar a dignidade da pessoa do trabalhador. Por isso, ainda que a relação de trabalho situe-se na esfera privada, não se sustenta o desrespeito a direitos fundamentais trabalhistas, pois são inerentes à dignidade. (TEODORO, 2016, p. 151).



A fim de complementação:



Nesse contexto, no Estado Neoliberal, é vedado ao empregador exercer o direito à propriedade de forma abusiva, na medida em que a propriedade não constitui valor absoluto, pois é preciso privilegiar a dignidade da pessoa do trabalhador. Por isso, ainda que a relação de trabalho situe-se na esfera privada, não se sustenta o desrespeito a direitos fundamentais trabalhistas, porque são inerentes à dignidade.

Ademais, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais promove a mitigação da autonomia da vontade na celebração do contrato de trabalho. Ainda que as partes sejam livres para contratar, o objeto do contrato deve respeitar não apenas as normas ordinárias de prestação do trabalho, mas principalmente a dignidade dos trabalhadores.

[...]

Assim, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais é instrumento para a tutela da dignidade do trabalhador. Ainda que a atividade econômica constitua objeto de proteção da Constituição, esse valor não é absoluto, porque é imprescindível a interpretação da norma de acordo com os demais valores insculpidos no texto constitucional. Desse modo, a atividade econômica deve ser explorada como meio de valorização social do trabalho, além de ser desempenhada à luz da dignidade da pessoa humana.

[...]

Portanto, a busca pela efetivação material dos direitos trabalhistas deve ser perseguida por todos os agentes envolvidos no trabalho, ou seja, pelos trabalhadores, empregadores, sindicatos, juízes, advogados e também pelo Ministério Público do Trabalho.

Por todo o exposto, nas relações de trabalho, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais ganha especial relevância, já que o trabalho atua como instrumento de construção e afirmação social e psíquica do empregado, de forma a influenciar diretamente na dignidade humana.

Dessa forma, haverá efetivação das normas constitucionais, o que atende aos objetivos da República.

A necessidade de releitura do Direito do Trabalho, à luz dos direitos fundamentais, é imprescindível para a despatrimonialização e repersonalização do Direito Laboral. Torna-se necessário abandonar o antigo paradigma de que o Direito do Trabalho é patrimonialista e se preocupa com o pagamento das parcelas previstas em lei.

Ao contrário, a maior preocupação do Direito do Trabalho deve ser a dignidade humana do trabalhador, pois o homem é o centro do ordenamento jurídico. Nesse espeque, com a despatrimonialização e a repersonalização do Direito do Trabalho, é possível o cumprimento da justiça social, por meio da inclusão social e da melhoria da condenação socioeconômica da população, o que atende aos objetivos da República. (VALADÃO; TEODORO, 2015, p. 168-169).



Isto porque o trabalho escravo apresenta-se como o rebaixamento máximo da dignidade da pessoa humana, retirando-a do centro do ordenamento jurídico e colocando-a no limbo social e jurídico. A escravidão, notadamente a moderna, representa a própria antítese da repersonalização, significando a própria despersonalização do trabalhador.

Assim, o estudo das condições análogas à de escravo e principalmente o seu combate trata-se de uma das vertentes do que se propõe através da repersonalização, na medida em que resgata o trabalhador das profundezas do abismo de desproteção em que foi lançado, devolvendo-lhe a dignidade humana e o status de pessoa humana ocupante do eixo central do ordenamento jurídico-trabalhista.





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