ELIZABETE ALVES DE AGUIAR
USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO URBANO.
UMSA – Universidad Museo Social Argentino
Buenos Aires
2008
UMSA – Universidad Museo Social Argentino
Doctorado en Derecho y Ciências Sociales
Disciplina: Teoria del Derecho
Tema: Usucapião Especial Coletivo Urbano.
Alumno: Elizabete Alves de Aguiar
Classe: 2-A
Matrícula:
Profesor: Dr. Carlos Mario Clerc.
BUENOS AIRES
Fevereiro de 2008
SUMÁRIO.
Apresentação. 2
CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO. 2
CAPÍTULO II – A FUNÇÃO SOCIAL COLETIVA. 6
CAPÍTULO III – A USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO URBANO.
CONSIDERAÇÕES GERAIS. 10
CAPÍTULO IV – A AÇÃO DE USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO
URBANO. ASPECTOS PROCESSUAIS. 16
4.1- Legitimidades ativa e passiva. 16
4.1.1- Legitimidade ativa. 16
4.1.2- Legitimidade passiva. 17
4.2 - Da prova da posse. 18
4.3 - Juízo e foro competentes. 19
4.4 - Intervenção do Ministério Público. 19
4.5 - Justiça e Assistência Judiciárias gratuitas. 20
4.6 - O procedimento da ação de usucapião especial coletivo urbano. 20
4.7 - Efeitos da propositura da ação de usucapião especial coletivo urbano. 21
4.8 - A usucapião especial coletivo urbano como matéria de defesa. 21
4.9 - A sentença na ação de usucapião especial coletivo urbano. 22
CAPÍTULO V – CRÍTICAS QUANTO À CONSTITUCIONALIDADE
DO USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO URBANO. 23
CAPÍTULO VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS. 28
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. 30
ANEXO. 31
APRESENTAÇÃO
A monografia ora apresentada, tem por escopo uma breve abordagem acerca do instituto do usucapião especial coletivo urbano, regulamentado pela Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001 que se autonominou de Estatuto da Cidade.
Em sua parte introdutória noticia-se a existência da crescente crise habitacional no Brasil e a primeira tentativa governamental em procurar solucioná-la até o advento da Constituição Brasileira de 1988, que previu em seu texto políticas governamentais tendentes a permitir a efetividade do direito à habitação.
Dedica-se a etapa seguinte do trabalho ao princípio da função social da propriedade, sob a ótica coletiva, o qual foi consagrado pela Carta Constitucional “Cidadã” de 1988 nos Títulos dos Direitos e Garantias Fundamentais e Da Ordem Econômica e Financeira.
A posteriori no Capítulo III faz-se Considerações Gerais sobre o novel instituto do usucapião especial coletivo urbano, analisando-se de forma sucinta cada um de seus requisitos.
Os aspectos processuais da ação de usucapião especial coletivo urbano (legitimidades ativa e passiva, prova da posse, Juízo e foro competentes, intervenção do Ministério Público, Justiça e Assistência Judiciária gratuitas, o procedimento, os efeitos da propositura da ação, alegação como matéria de defesa e a sentença) são abordados no Capítulo IV.
O Capítulo V, é destinado às críticas sobre a constitucionalidade do instituto do usucapião especial coletivo urbano.
Finalizando-se em Considerações Gerais, sintetiza-se a importância do instituto como instrumento viável à efetivação da ordem constitucional orientada a estabelecer um Estado Democrático fundado nos ditames sociais da igualdade e da justiça.
CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO.
É notório que após a Segunda Guerra Mundial, aumentou consideravelmente em quase todos os países o déficit de moradias, não tendo o Brasil ficado infenso a tal problema.
O paulatino abandono do campo e das cidades interioranas passou a produzir enormes massas migratórias que rumaram para os principais centros metropolitanos, praticamente tomando-os de assalto.
Sem terem onde morar face aos altos preços dos aluguéis, os migrantes foram se assentando na mais das vezes nas periferias dos centros urbanos em uma ocupação sem controle e convulsionada, formando verdadeiros cinturões de miséria.
A realidade brasileira mostrou que cada vez mais crescia o número de habitações toscas nas grandes cidades, com construções precaríssimas desprovidas de recursos higiênicos e sem as condições mínimas de habitabilidade para seus moradores.
Para tentar solucionar tal problema habitacional foi publicada no ano de 1964 em 21 de agosto a Lei Federal n.º 4.380, instituindo o Banco Nacional da Habitação (BNH), cujo objetivo era orientar a iniciativa privada estimulando a construção de habitações populares e conceder financiamento para a aquisição da casa própria.
A lei indicada previa em seu artigo 4º a concessão de prioridades na aplicação dos recursos, para a construção de conjuntos habitacionais objetivando eliminar as favelas e retirar as pessoas que viviam em condições sub-humanas em palafitas, casebres, cortiços, etc., para os projetos municipais ou estaduais com as ofertas de terrenos urbanizados e dotados dos melhoramentos necessários, de modo a permitirem o início de imediato de construções de habitações, bem como associações/cooperativas para a construção da casa própria, e ainda para projetos da iniciativa privada que contribuíssem para solucionar o problema habitacional.
Entretanto, o Banco Nacional da Habitação, que foi autarquia financeira, posteriormente transformado em empresa pública, foi extinto no ano de 1986 pelo Decreto-Lei Federal n.º 2.291, passando seu acervo e atribuições para a Caixa Econômica Federal.
A par do esforço do Governo Federal da época da criação do Banco Nacional da Habitação, a crise habitacional disparou e a ocupação urbana tornou-se incontrolável proliferando as “favelas” de forma vertiginosa.
Com a explosão das invasões e ocupações de terrenos particulares (e públicos), nas grandes cidades, inclusive em áreas de risco (encostas, morros, etc.) e de preservação ambiental, somadas à inércia dos poderes governamentais em não promoverem programas de construção de moradias populares, tal estado de coisas causou preocupação aos constituintes da nova Carta Constitucional em elaboração.
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, no Título VII que trata “Da Ordem Econômica e Financeira”, inovou em relação à Carta Política anterior, ao introduzir um Capítulo sobre a Política Urbana, com previsão nos artigos 182 e 183.
Com efeito, a ousadia do legislador constituinte de 1988, ao consignar que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”, induvidosamente constituiu ao mesmo tempo um avanço e um desafio.
Tal desafio deve-se efetivar pelo fomento do “urbanismo”, que no dizer de Antonio Plácido e Silva, “designa o conjunto de medidas de ordem técnica relativa à arquitetura, à higiene, à administração, ou a qualquer outro objetivo, tendo por finalidade traçar o plano, ou projeto de construção geral de uma cidade, que melhor assegure não só o seu desenvolvimento racional e de melhor aspecto, como a sua perfeita salubridade”.
Não se pode negar que a crescente concentração populacional nas cidades, com áreas de intensas aglomerações de moradias, edificadas desordenadamente em extensões geográficas que não as comportam e sem qualquer planejamento, interfere na qualidade de vida de seus habitantes, sem se falar na degradação ambiental que provoca.
Para ordenar a política de desenvolvimento e de expansão urbana com fins ao atendimento das funções sociais da cidade, de molde a se garantir a urbanização das áreas degradadas e do bem-estar de seus moradores, visando a implantação e fornecimento de serviços públicos tidos como básicos, dentre outros traçados de ruas e praças públicas, saneamento, energia elétrica, escolas, etc. previu a Constituição Brasileira a necessidade de aprovação pelo Poder Legislativo Municipal do instrumento nominado de “Plano Diretor” para cidades com mais de vinte mil habitantes.
Regulamentando os artigos 182 e 183 da Carta Magna de 1988, foi aprovada a Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, rotulada de “Estatuto da Cidade”, a qual em seu artigo 1º, parágrafo único “estabelece normas de ordem pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.
Aludido diploma legislativo prevê além de outras diretrizes gerais da política urbana, que tem por objetivo o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, a regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda (artigo 2º, inciso XIV).
Referida regularização fundiária trata-se do usucapião especial coletivo de áreas urbanas invadidas e ocupadas por número indeterminado de pessoas que nelas construiram suas moradias, comunidades conhecidas como “favelas”, estando apontado usucapião disciplinado nos artigos 10 a 14 do mesmo pergaminho legal, usucapião este que foi instituído em razão da função social coletiva da propriedade.
Insta informar que utilizamos a expressão “usucapião” no gênero masculino, inobstante o Estatuto da Cidade a use no gênero feminino, considerando a consagração do primeiro gênero em diversos diplomas legislativos e o costume em se utilizá-la na forma masculina, a qual será adotada em todo o texto deste trabalho.
CAPÍTULO II – A FUNÇÃO SOCIAL COLETIVA.
A função social coletiva, pode ser vislumbrada na Constituição Brasileira promulgada a 16 de julho de 1934, que foi a primeira a insculpir no seu texto as expressões interesse social ou coletivo, em seu artigo 113, número 17, que dispunha:
É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou collectivo na fórma que a lei determinar.A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização ... (grifamos)
Por seu turno, a Carta Constitucional promulgada a 18 de setembro de 1946 em seu artigo 147 estabeleceu:
O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, §16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.(destaques nossos).
Consoante informa Arnaldo Rizzardo em sua obra “Contratos”, expondo sobre a função social destes, a doutrina da Igreja Católica teve grande repercussão nas concepções de uma justiça social nas estruturas dos sistemas econômicos, especialmente por meio das encíclicas Rerum Novarum, Quadragésimo Anno, Mater et Magistra, Pacem in Terra e Populorum Progressio.
Ajunta Wilson Accioli que, ao que tudo indica a expressão justiça social teria surgido, inicialmente, na Encíclica Quadragésimo Anno de Pio XI, difundindo-se posteriormente. É certo ainda que este termo novo parece ter correspondencia na expressão usada pelos escolásticos – justiça legal. Como essa expressão se desgastou, surgiu então o uso da referência justiça social, que melhor se adequava à linguagem contemporânea. O objetivo mais evidente da justiça social é a realização do bem da sociedade, o bem comum ou geral.
Há que se realçar portanto, que a justiça social é um dos ideais do Cristianismo em relação à solidariedade social, bem ilustrados na máxima: Quem dá aos pobres empresta a Deus. É certo que em tais ideais embute-se o pensamento de propriedade como fator de bem-estar social, com proveito para todos e repúdio à avareza do proprietário. E tanto é assim, que o Papa João XXIII em uma de suas Encíclicas ao expressar que “sobre toda propriedade particular pesa uma hipoteca social”, presumivelmente referiu-se à função social da propriedade com a justa distribuição da terra.
Saliente-se que a expressão “social” é citada diversas vezes na Constituição Brasileira de 1988. Como “função social” nos artigos 5º, inciso XXII, 170, incisos II e III, 182, caput e § 2º.; 184, caput, 185, parágrafo único e 186. Como “interesse social” nos artigos 5º inciso XXIV, 184 e parágrafo 2º; e, ainda “justiça social” no artigo 170, caput.
Sem embargo da garantia do direito de propriedade insculpido no artigo 5º, inciso XXII da Constituição Brasileira atual, é curial que não mais perdura o conceito de absolutismo de tal direito, haja vista que a concepção moderna a respeito converge para o relativismo, prestigiando a socialização e a justa e eqüitativa distribuição de bens.
Nessa linha de pensamento, a Carta Magna Brasileira de 1988 após garantir o direito de propriedade, subordinou seu uso e exercício a encargo de interesse coletivo ou a imposição de ordem legal, ao que batizou de “função social” ou “interesse social”, permitindo destarte inclusive a desapropriação mediante prévia e justa indenização.
Em seu “Preâmbulo” a Carta Política de 1988 dispôs que o Estado Democrático de Direito tem dentre seus escopos precípuos, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, erigindo como um dos objetivos fundamentais da República Federativa a redução das desigualdades sociais.
Conforme o escólio de José Afonso da Silva, a função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito de proprietário; aquela à estrutura do direito mesmo, à propriedade.
Acrescenta o jurista (op. cit, p. 281/282) que,
a norma que contém o princípio da função social da propriedade incide imediatamente, é de aplicação imediata, como o são todos os princípios constitucionais. A própria jurisprudência já reconhece[1].Realmente, afirma-se a tese de que aquela norma tem plena eficácia, porque interfere com a estrutura e o conceito de propriedade, valendo como regra que fundamenta um novo regime jurídico desta, transformando-a numa instituição de Direito Público, especialmente, ainda que nem a doutrina, nem a jurisprudência tenham percebido o seu alcance, nem lhe dado aplicação adequada, como se nada tivesse mudado.
Sem sombra de dúvidas, a ocupação coletiva de áreas urbanas sem qualquer destinação dada por seus proprietários, por pessoas carentes para fins de moradia, insere-se no âmbito dos princípios constitucionais, notadamente os de ordem econômica que miram assegurar a existência digna com base nos imperativos sociais.
Ainda sobre a função social da propriedade, não é por demais carrear a lição de Celso Antonio Bandeira de Mello (in, Curso de Direito Administrativo, pp. 741/742)que discorre: “embora seja característicos das limitações administrativas apenas impor deveres de abstenção não se pretendendo por meio delas captar do particular atuações positivas, em nosso Direito Constitucional há uma exceção notável, e que se constitui em candente expressão do art. 170, III, onde se impõe o princípio da função social da propriedade. Esta, na conformidade do art. 5º, XXIII cumprirá sua função social, em cujo nome o proprietário é obrigado a prepor seu imóvel a uma função socialmente útil, seja em área urbana, seja em área rural.
No espaço urbano, o titular de imóvel sito em área incluída por lei específica no Plano Diretor e que não esteja edificado, sub-utilizado ou não utilizá-lo poderá, a teor do art. 182, §4º por força do aludido princípio, ser compelido pelo Município, nos termos da lei federal, a promover seu adequado aproveitamento, pena de se assujeitar sucessivamente a: (a) parcelamento ou edificação compulsória; (b) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo e; (c) desapropriação paga mediante títulos da dívida pública, com prazo de resgate até 10 anos, assegurado seu valor real, em parcelas anuais e sucessivas.”
Considerando que dentre os direitos fundamentais do homem se insere o de habitação, previsto no artigo 25, §1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos o espírito do legislador constituinte de 1988 ao consagrar a função social da propriedade inspirou-se nos pensamentos modernos de socialização para que a mesma atenda não apenas ao interesse individual, mas sobretudo e prioritariamente o interesse coletivo, comunitário.
Destaca o administrativista Hely Lopes Meirelles, que com a Constituição Brasileira de 1988, evoluiu-se da propriedade-direito para a propriedade função e que aquela e esta foram incluídas entre os direitos e garantias fundamentais, salientando no que pertine à função social das propriedades rural e urbana, que com relação a primeira o legislador constituinte estabeleceu parâmetros no artigo 186, não o tendo feito em relação à segunda.
Enfatiza o autor que, [...] a Constituição de 1988, ao submeter o direito de propriedade ao preenchimento de sua função social, estabeleceu verdadeiro marco na evolução da simples proibição do mau uso do solo urbano à exigência constitucional de uso adequado à sua função no ordenamento da cidade. (in, Direito de Construir, p. 37)
Para o eficaz atendimento da função social da propriedade urbana, a norma constitucional (artigo 182, parágrafo 2º da C.R.F.B.), atribuiu ao Plano Diretor, instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana aprovado por lei municipal, as diretrizes para o aproveitamento de imóveis urbanos em consonância com o ordenamento da cidade.
Por sua vez, o artigo 39 do “Estatuto da Cidade” (Lei Federal n.º 10.257 de 10/7/2001) ao referir-se ao cumprimento da função social da propriedade urbana, determina que o atendimento às exigências fundamentais de ordenação da cidade, deve assegurar o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida; a justiça social e desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no artigo 2º da mesma lei.
Desta forma, a política habitacional urbana deve visar a justa utilização do solo, a ordenação urbanística e a melhoria das condições das áreas urbanas já ocupadas desenfreadamente, com vias a proporcionar serviços básicos, dentre outros, arruamento, água potável, rede de esgotos sanitários, galerias de águas pluviais, pavimentação e calçamento, iluminação pública, transportes coletivos, etc. levando em conta que mencionadas áreas tendem a ser usucapidas coletivamente, se superiores ao módulo de 250 m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados).
Insta mencionar que a jurisprudência brasileira se inclina ao reconhecimento da função social da propriedade, como se observa da ementa do Acórdão da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no Recurso de Apelação Cível n.º 212.726-1-4, julgado em 16 de dezembro de 1994, tendo como relator o Desembargador José Osório:
Ação Reivindicatória. Lotes de terreno transformados em favela dotada de equipamentos urbanos. Função social da propriedade. Direito de indenização dos proprietários. Lotes de terrenos urbanos tragados por uma favela deixam de existir e não podem ser recuperados, fazendo assim, desaparecer o direito de reivindicá-los. O abandono dos lotes urbanos caracteriza uso anti-social da propriedade, afastado que se apresenta do princípio constitucional da função social da propriedade. Permanece, todavia, o direito dos proprietários de pleitear indenização contra quem de direito.
CAPÍTULO III – O USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO URBANO. CONSIDERAÇÕES GERAIS.
Nos tempos atuais, mostra-se praticamente inviável a remoção dos ocupantes de áreas favelizadas para outros locais em que possam morar com dignidade, isto porque há descumprimento do comando constitucional do artigo 23 inciso IX da Constituição da República Brasileira de 1988, pelas três esferas de poder (Federal, Estadual e Municipal).
Como conseqüência de referido descumprimento, que diz respeito a programas de construção de moradias populares e melhorias das condições habitacionais e de saneamento, mister se faz a regularização fundiária das áreas urbanas com extensões superiores a 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), utilizadas para moradia por pessoas hipossuficientes.
O usucapião especial coletivo de imóveis particulares urbanos, como modalidade de aquisição da propriedade foi regulamentado pelo artigo 10 do Estatuto da Cidade, Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001.
Dispõe o referido dispositivo legal que:
As áreas urbanas com mais de 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por 5 (cinco) anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
No artigo enfocado encontram-se os requisitos do usucapião especial coletivo de imóveis particulares localizados em áreas urbanas, quais sejam: a) áreas urbanas com metragens superiores a 250 m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados); b) que tais áreas sejam ocupadas por população de baixa renda; c) que a ocupação se destine a moradias; d) que a posse seja quinqüenária, e que seja ininterrupta e sem oposição do proprietário; e) que não haja possibilidade de identificar-se o terreno ocupado por cada um dos posseiros; f) que os possuidores não sejam titulares de domínio de outros imóveis, quer urbanos ou rurais.
Convém analisar em apertada síntese, cada um dos requisitos que devem ser observados para a aquisição do domínio por meio do usucapião especial coletivo urbano.
O imóvel usucapiendo deve localizar-se em área urbana e ter metragem acima de duzentos e cinqüenta metros quadrados, e ser propriedade particular, uma vez que a Constituição Brasileira de 1988 veda a aquisição de imóveis públicos por usucapião no parágrafo único do artigo 191. Aliás, a respeito já dispunha o verbete n.º 340 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, in verbis:
Desde a vigência do Código Civil os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.
Área urbana, no sentido do texto legal, é empregada em oposição à área rural. Desta forma, a área urbana diz respeito àquela que se refere ou pertence à cidade e está compreendida em seu perímetro, destinando-se à construção de prédios comerciais ou residenciais.
A própria Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, autodenominada “Estatuto da Cidade” deixa antever como corolário, que as áreas rurais que se destinam às culturas agrícolas ou às criações de animais não podem ser objeto de usucapião especial coletivo.
Os compossuidores da área urbana usucapienda devem ser pessoas carentes, ou seja, de baixo padrão econômico e financeiro, devendo-se levar em consideração para a aferição deste requisito, a renda média daquelas, sem também descurar-se que tal avaliação deve levar em conta a hipossuficiência apuradapela quantidade de filhos de cada família, o número de familiares que trabalham, etc.
É obvio, que não se pode usar como parâmetro para atendimento do requisito de baixa renda, a remuneração do assalariado, qual seja, daquele trabalhador que nos termos do artigo 6º, inciso IV da Carta Fundamental de 1988 percebe mensalmente um salário mínimo nacional, pois é cediço que “renda” e “salário” são conceitos distintos.
No concernente a tal requisito expõe Celso Augusto Coccaro Filho que o critério é impreciso. Primeiro, parte do pressuposto de homogeneidade discutível, tendo em vista que, mesmo em favelas, há diferenças socioeconômicas razoáveis. Resta concluir pela aferição da média do traço predominante da coletividade ocupante. (usucapião ... , op. cit., p. 8)
Prossegue o articulista: [...] o termo baixa renda é infeliz, a começar pela tormentosa definição do que seja “renda”, que tantas controvérsias propiciou aos tributaristas.
Parece-nos pressuposto de direito material, que deve ser apenas revelado mediante declaração na petição inicial, dispensando-se prova efetiva. (op. cit., p. 8)
A ocupação da área urbana a ser usucapida coletivamente deve destinar-se à moradia dos usucapientes e de seus familiares não se podendo dar à mesma destinação diversa.
Impende observar que a lei usa a expressão “moradia” e não residência. Esta, pelo Código Civil Brasileiro de 2002 (Lei Federal n.º 10.406 de 10 de janeiro de 2002), é sinônimo de domicílio (artigo 70). Como pelo mesmo diploma legal a pessoa natural pode ter diversas residências onde alternadamente viva (artigo 71), ou ainda não ter residência habitual (artigo 73), o requisito legal que exige que os compossuidores não sejam titulares de domínio de outro imóvel urbano ou rural, pode em tese, ser burlado.
Em sendo assim, “moradia” parece-nos significar, o lar, a casa que os usucapientes habitem com seus familiares.
Convém entretanto evidenciar, que o fato de algum ou alguns dos usucapientes, exercerem módica atividade comercial em suas moradias, com pequenos pontos de comércio conhecidos como “barracas” ou “tendinhas”, para venda de mercadorias populares diversas, não desfigura a natureza do usucapião coletivo urbano, nem desatende o requisito de ocupação para fins de “moradia”.
Sobre tal requisito explana Daniel Lobo Olimpio que, [...] a existência de imóveis com destinação mista, residencial e comercial, ou, até mesmo somente comercial, não deve ser empecilho para a incidência do usucapião coletivo, uma vez que os núcleos habitacionais ou favelas formam um todo orgânico, tratado como uma unidade pelo legislador, de tal modo que excluir poucos imóveis comerciais, abrindo retalhos na gleba, pode significar, em certos casos, a inviabilidade da urbanização futura. Em havendo essas hipóteses (alguns poucos imóveis não residenciais), desde que não desfigure o todo, pode-se aplicar o princípio da razoabilidade e a vocação eminentemente residencial da área, vista como uma unidade. (Usucapião coletivo, p. 3)
A posse dos compossuidores deve atender ao prazo mínimo de 5 (cinco) anos, ininterruptos e sem oposição do proprietário da área a ser usucapida, e não pode ter ocorrido a suspensão ou interrupção do prazo quinqüenal aquisitivo, por quaisquer das causas previstas em lei que suspendem ou interrompem a prescrição.
Teoriza Celso Augusto Coccaro Filho que, o prazo relativamente curto justifica-se e acaba por compensar a concomitância de outros pressupostos, não comuns às demais modalidades de usucapião.
A lei também exige o animus domini, que qualifica a posse ad usucapionem, em todas as suas modalidades, com o plus da utilização para moradia, que o integra.
O exercício singular do direito evita que a modalidade, pelo curto prazo, se transforme em lucrativo negócio, possibilitando sucessivas aquisições e alienações. (op. cit., pp. 4 e 5)
Por outro lado, cabe frisar que há dúvidas a respeito da contagem do prazo qüinquenal, se este se iniciaria apenas a partir da vigência da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, data em que os compossuidores de áreas urbanas superiores a 250 m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados), passariam a ostentar o interesse de agir para a propositura da ação de usucapião especial coletivo urbano, nos termos do artigo 10 da lei mencionada, em razão do princípio da irretroatividade das leis, decorrente da vigência da lei no tempo.
Como o Estatuto da Cidade entrou em vigor 90 (noventa) dias após a data de sua publicação, ocorrida no Diário Oficial da União em 11.7.2001, o início do prazo de cinco anos contar-se-ia a partir da data de 10 de outubro de 2001.
Há posições entendendo que o prazo de 5 (cinco) anos para a contagem do direito ao usucapião especial coletivo urbano se iniciaria a partir da vigência da Constituição Brasileira de 1988. Desde a promulgação da Carta Maior, ocorreram intensos debates sobre o assunto. A questão se circunscreveu ao fato de que, se para alegar-se o direito ao usucapião especial urbano, poderia ser levado em conta no cálculo do tempo da posse, os anos anteriores a vigência da nova Carta Constitucional.
Existe Acórdão que se posicionou no sentido de que o prazo teria seu termo a quo a partir da vigência da Carta Fundamental de 1988. Confira-se a ementa:
O prazo preconizado no Art. 183 da CF deve ser contado a partir da vigência da nova Carta por se tratar de direito novo nascido com o advento do diploma maior, não podendo surpreender titulares de direito de domínio, pois a lei respeita o ato jurídico perfeito e direito adquirido, não se podendo retroagir para prejudicar. (Ap. 13.561. 19.11.90, 1ª CC TJMT, Rel. Des. LICÍNIO CARPINELLI STEFANI, in RT 670-137).
Após a aprovação da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade) a discussão perdurou, havendo aqueles que passaram a sustentar que a contagem do prazo no caso de usucapião especial coletivo urbano, teria seu início contado a partir do dia da vigência efetiva da lei indicada, qual seja, 10 de outubro de 2001. Destarte, de acordo com tal posicionamento, a ação de usucapião especial coletivo urbano regulamentada pelo Estatuto da Cidade só poderia ser proposta após a data de 10 de outubro de 2006.
Aqueles que argumentam estar tal posicionamento interpretativo equivocado, embasam-se na ementa da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, a qual explicita:
Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.
Aludida corrente, aduz que na hipótese não há direito novo surgido com a aprovação da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, porém tão só a regulamentação por tal diploma legislativo, da normas constitucionais insertas nos artigos 182 e 183 da Carta Magna, cabendo respeitar-se o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Acrescentam, que não é admissível que o conservadorismo secular dos latifundiários agrícolas, exerça influência nas métropoles, nas quais há de forma similar àqueles inúmeros latifúndios urbanos, que não utilizados ou subutilizados, não cumprem sua função social.
Outro requisito exigido pela lei é que na área urbana superior a 250 m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados) ocupada coletivamente por inúmeros possuidores, não haja possibilidade de identificar-se a parte ideal do terreno utilizada por cada um deles, ou seja, a fração ideal.
No que pertine a este requisito, Daniel Lobo Olimpio entende que, “[...] a expressão dever ser interpretada pelo critério teleológico e com certa largueza, evitando-se a interpretação literal. Assim, basta pensar numa situação concreta, qual seja, a do usucapião de uma favela contendo cem ou duzentos barracos. A inexistência de vias públicas internas e de recuos entre as moradias impossibilitaria qualquer descrição individual, com o mínimo de segurança apta a ingressar no registro imobiliário e conformar direito de propriedade. Logo, nos aludidos núcleos habitacionais não há propriamente terrenos identificados, mas sim espaços que não seriam passiveis de regularização pela via da usucapião individual.” (op.cit., p. 4).
Soma-se aos requisitos anteriores, o que veda que possam pleitear o usucapião especial coletivo urbano, aqueles compossuidores, pessoas físicas, que já sejam titulares de domínio de outro imóvel urbano ou rural.
Celso Augusto Coccaro Filho assevera que: “o caráter social é patente, ao exigir que o prescribente não seja proprietário de outro imóvel (durante o prazo da prescrição aquisitiva). Diante dos escopos da lei, a limitação deve ser entendida de forma ampla, abarcando o promissário comprador, nos compromissos irretratáveis e não resolvidos pelo inadimplemento. Sob tal ótica, também é óbice a pendência de ação de usucapião de imóvel diverso, mesmo que sobre outro fundamento.” (op. cit., p. 5).
Conquanto a norma legal ao conter tal requisito seja bem intencionada na prevenção de objetivar impedir que possa alguém utilizar-se por mais de uma vez de referido instituto, mesmo que em localidade e área distinta daquela em que já tenha se beneficiado anteriormente com a aquisição válida de domínio pela primeira, tal exigência pode ser em tese fraudada.
Aludido requisito é de dificultosa comprovação, pois hipotéticamente é possível a existência do fato de um homem e uma mulher não casados e que entretanto, vivam em união estável, qualquer deles já ter adquirido anteriormente o domínio de outro imóvel por meio de usucapião especial coletivo urbano, em Município distinto.
Preenchidos os requisitos do usucapião especial coletivo urbano convém examinar a ação respectiva nos seus aspectos processuais.
CAPÍTULO IV – A AÇÃO DE USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO URBANO. ASPECTOS PROCESSUAIS.
A ação de usucapião especial coletivo urbano, deve atender ao disposto no artigo 12 e parágrafos da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001:
4.1- Legitimidades ativa e passiva.
4.1.1 – Legitimidade ativa.
O artigo 12 do Estatuto da Cidade elenca em seus incisos I a III os legitimados para a propositura da ação de usucapião especial urbano.
O inciso I que dispõe estar legitimado para a propositura da ação de usucapião especial urbano, o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente.
Existe uma corrente que argumenta quanto à possibilidade de cada um daqueles que compartilham a composse ingressar individualmente em Juízo. Entretanto ao mesmo tempo tal corrente aduz que tal interpretação acarretaria o congestionamento da Justiça, atentando contra os princípio da celeridade e economia processual. Professam a tese de que o usucapião especial coletivo urbano trata-se de espécie nova de legitimidade processual, com litisconsórcio ativo facultativo.
Como destacado por Celso Augusto Coccaro Filho, a legitimidade prevista neste inciso concerne à ação de usucapião individual uma vez que o artigo 6º do Código de Processo Civil Brasileiro (Lei Federal n.º 5.869 de 11.1.1973), que trata da substituição processual (parte formal) por meio da legitimação anômala ou extraordinária, exige previsão legal. Na hipótese aventada o possuidor isolado não é autorizado pela lei como susbtituto processual de outros possuidores.
O inciso II do artigo 12 estabelece como legitimados para a propositura da ação de usucapião especial coletivo urbano os possuidores em estado de composse. Indicada norma legal deixa antever que o litisconsórcio neste caso, é necessário para que se possa formar a relação processual. Será também unitário, pelo qual o julgador proferirá decisão uniforme em relação a todos os litisconsortes. Tal se dá como enfatizado pelo autor acima citado, em conseqüência do estado de indivisão da área usucapienda ocupada pelos compossuidores.
Legitimada como substituto processual, na forma do artigo 6º do Código de Processo Civil Brasileiro, para a propositura da ação de usucapião especial coletivo urbano, na forma do inciso III do artigo 12 está a Associação de Moradores da comunidade, desde que regularmente constituída e com personalidade jurídica, devendo ainda ser expressamente autorizada pelos representados, na hipótese os que serão presumivelmente beneficiados em caso de procedência do pedido na ação intentada.
É por oportuno noticiar que há proposta de alteração do Estatuto da Cidade visando incluir o Ministério Público como parte legítima para a propositura da ação, se usucapião especial coletivo urbano. A proposta atende sugestão de número 13/2007 da Associação Paulista do Ministério Público.
4.1.2– Legitimidade Passiva.
Inobstante o Estatuto da Cidade não faça menção aos legitimandos passivos na ação de usucapião especial coletivo urbano, é certo que há que se aplicar as disposições do Código de Processo Civil Brasileiro previstas no artigo 942 inciso II e parágrafo 2º, formando-se um litisconsórcio passivo necessário: pelos titulares do domínio da área usucapienda, pessoas físicas ou jurídicas, estas privadas, que ostentem a propriedade da área ocupada; pelos proprietários dos imóveis confrontantes à área usucapienda; pelos eventuais possuidores ao tempo do ajuizamento da ação de usucapião que não figurarem no pólo ativo da lide; pelos réus ausentes, incertos e desconhecidos que serão citados por edital.
Serão outrossim cientificados da demanda para se manifestarem se têm interesse na causa os representantes das Fazendas Públicas da União, do Estado, do Distrito Federal (se for o caso) e do Município.
4.2 – Da prova da posse.
Segundo se extrai do escólio de Celso Augusto Coccaro Filho, a posse dos compossuidores deve revestir-se do animus domino caracterizada pela moradia efetiva na área usucapienda.
O Estatuto da Cidade em seu artigo 10 no que tange à posse, usa a expressão ocupação pela população, o que leva a crer que a qualidade da posse deve ser avaliada em função da coletividade.
Porém os parágrafos 1º e 3º do artigo mencionado induzem conclusão diversa.
Cremos que, no concernente à prova da posse há que ater-se à observância de forma prioritária a da coletividade e de forma subsidiária, porém conjugando-se com a dos usucapientes individualmente, quando se alegar acessão de posse ou outra situação que não dispense avaliação individual.
A posse coletiva, se resultar inepta, traz implicação na rejeição da petição inicial, acarretando a extinção do feito, com ou sem análise do mérito (pedido).
Explana Daniel Lobo Olimpio que, a prova, no caso, [...] deve incidir sobre a posse ou ocupação total da área por prazo de, no mínimo, cinco anos, ininterrupta e pacífica. Não se trata, assim, de provar a posse de cada particular de forma individual ou particularizada, o que tornaria o processo moroso e complexo. Acrescenta o articulista que a única alternativa [...] é se comprovar a posse coletiva, da área total, que pode ser feita, por exemplo, pela existência na área pleiteada pela comunidade de atividades públicas realizadas neste prazo, tais como terraplanagem, realização de esgoto, instalação de rede elétrica, construção de escolas, postos de saúde, mercados, entre outros exemplos. (op. cit., p. 7).
É essencial realçar que para a prova da posse dos usucapientes, todas as provas admissíveis em direito serão hábeis para tanto, especialmente as provas testemunhais, documentais, periciais, requisições a órgãos públicos, etc.
A seguir, analisar-se-á o Juízo e foro competentes.
4.3 – Juízo e foro competentes
No que tange ao Juízo e foro competentes para a propositura da ação de usucapião especial coletivo urbano, em princípio aquele está adstrito à Justiça Estadual, devendo ser a ação proposta na comarca da situação do imóvel, como previsto no artigo 95 do Código de Processo Civil Brasileiro.
Se entretanto houver interesse na ação, da União, entidade autárquica ou empresa pública federal, na qualidade de rés, assistentes ou opoentes, o Juízo competente será o da Justiça Federal ante a previsão constitucional do artigo 109 inciso I, mantendo-se o foro da comarca da situação do imóvel. A respeito insta mencionar o verbete número 11 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça:
A presença da União ou de qualquer de seus entes, na ação de usucapião especial, não afasta a competência do foro da situação do imóvel.
4.4 – Intervenção do Ministério Público.
Determina o parágrafo 1º do artigo 12 do Estatuto da Cidade a intervenção obrigatória do Ministério Público na ação de usucapião especial coletivo urbano. Referida norma tem redação semelhante àquela do artigo 944 do Código de Processo Civil Brasileiro, que também determina a intervenção obrigatória do Ministério Público nas demais ações de usucapião de terras particulares de modalidades diversas.
A não intervenção do Ministério Público acarreta a nulidade do processo por imposição do artigo 246 da Lei Processual Civil Brasileira.
Vale ressaltar que o Ministério Público tem inclusive legitimidade para apresentar recurso, consoante permissivo do verbete 99 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, ora transcrita:
O Ministério Público tem legitimidade para recorrer no processo em que oficiou como fiscal da lei, ainda que não haja recurso da parte.
4.5 – Justiça e Assistência Judiciária gratuitas.
O parágrafo 2º do artigo 12 da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, confere aos usucapientes os benefícios da Justiça e da Assistência Judiciária Gratuitas, bem como isenção de emolumentos quando do registro do título (sentença), no registro de imóveis.
No que concerne à Justiça Gratuita e Assistência Judiciária, os conceitos são distintos.
Justiça Gratuita significa o direito à dispensa provisória de despesas, sendo instituto de direito pré-processual. Já a Assistência Judiciária é a organização estatal ou paraestatal, cuja finalidade é a indicação de profissional (advogado) para representar a parte legitimada em Juízo, sendo instituto de Direito Administrativo.
A Justiça Gratuita está prevista na Carta Magna de 1988 que garante este direito no artigo 5º, inciso LXXIV aos que comprovarem insuficiência de recursos, estando regulamentada na Lei Federal n.º 1.060 de 5 de fevereiro de 1950, que relaciona as isenções das despesas processuais nos incisos I a VI do seu artigo 3º.
A título informativo, no Brasil a Assistência Judiciária tem previsão constitucional no artigo 134 e parágrafos 1º e 2º, sendo organizada em carreira, pela Lei Federal de n.º 80 de 12 de janeiro de 1994 (Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios) sendo que cada Estado da Federação tem sua lei própria. (No Estado do Rio de Janeiro é a Lei Complementar Estadual n.º 6 de 12 de maio de 1977).
Oportuno evidenciar que a determinação contida no parágrafo 2º do artigo 12 do Estatuto da Cidade, não configura excesso de zelo do legislador infra-constitucional, eis que tanto a gratuidade de justiça quanto a assistência judiciária também gratuita são direcionadas a pessoas hipossuficientes, ou seja, incapacitadas economicamente de arcarem com estas despesas.
4.6 – O procedimento da ação de usucapião especial coletivo urbano.
O rito processual a ser observado na ação de usucapião especial coletivo urbano conforme ordenado pelo artigo 14 da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001 é o sumário. Indicado rito é previsto nos artigos 275 a 281 do Código de Processo Civil Brasileiro, o qual determina uma audiência de conciliação prévia a ser realizada no prazo de trinta dias com citação do réu (ou réus) com antecedência mínima de 10 (dez) dias.
Consoante se extrai do alertado por Celso Augusto Coccaro Filho, a utilização do rito processual sumário pode implicar em prejuízo da audiência de conciliação, considerando as citações e intimações, pessoais e editalícias, sem contar ademais com o prazo em dobro em favor da Fazenda Pública quando esta ostentar a qualidade de ré, assistente ou opoente, sugerindo o articulista a conversão do rito sumário para o procedimento comum ordinário com espeque no parágrafo 4º do artigo 277 do Código de Processo Civil Brasileiro.
4.7 - Efeitos da propositura da ação de usucapião especial coletivo urbano.
Havendo a propositura da ação de usucapião especial coletivo urbano, enquanto esta estiver em curso, em obediência ao artigo 11 da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001 ficarão sobrestadas quaisquer outras ações de natureza petitória (por exemplo: ações confessória, demarcatória, divisória, demolitória, imissória na posse, ex empto ou ex vendito, embargos de terceiro, de depósito, negatória, reivindicatória, publiciana, de passagem forçada, discriminatória, etc.) ou possessórias (interdito proibitório, manutenção de posse, reintegração de posse), propostas relativamente ao imóvel usucapiendo.
É curial que a norma do artigo 11 do Estatuto da Cidade impede a propositura de outras ações reais que tenham por fundamento o domínio, bem como de ações possessórias, visto que a ação de usucapião coletivo urbano por fundar-se na função social da propriedade, afasta a questão dominial bem como a disputa da posse da área usucapienda.
4.8 – O usucapião especial coletivo urbano como matéria de defesa.
O Estatuto da Cidade permite em seu artigo 13 que o usucapião especial coletivo urbano, seja invocado em sede de contestação, como matéria de defesa, acrescentando que a sentença que o reconhecer vale como título para registro no Cartório do Registro de Imóveis.
A respeito do tema, já dispunha o verbete número 237 da Súmula do Supremo Tribunal Federal:
O usucapião pode se argüído em defesa.
É interessante avivar, que a Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade) seguiu a mesma linha da Lei Federal n.º 6.969 de 10 de dezembro de 1981 (Dispõe sobre a aquisição, por usucapião especial, de imóveis rurais, altera a redação do §2º do art. 589 do Código Civil e dá outras providências) que em seu artigo 7º admite indicada faculdade ao prescribente, nos seguintes termos:
A usucapião especial poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para transcrição no Registro de Imóveis.
4.9 - A sentença na ação de usucapião especial coletivo urbano.
O reconhecimento do usucapião especial coletivo urbano será declarado por sentença, a qual servirá de título para registro no Cartório de Registro de Imóveis competente (Lei Federal n.º 10.257 de 10/7/2001 art. 10, § 2º e art. 13 parte final). O registro da sentença far-se-á em obediência ao artigo 167 número 28 da Lei de Registros Públicos (Lei Federal n.º 6.015 de 31.12.1973).
A sentença que acolher a procedência do pedido reconhecendo o usucapião especial coletivo urbano, considerando a natureza da prestação jurisdicional, será declaratória positiva ao reconhecer a existência do direito dos compossuidores ao usucapião. Por sua vez será também constitutiva no sentido de modificar uma situação jurídica pré-existente (o domínio anterior do proprietário da área usucapienda), para atribuir a propriedade (domínio) aos compossuidores, produzindo a decisão por via de conseqüência efeitos ex nunc.
Na mesma sentença o julgador, nos termos do parágrafo 3º do artigo 10 do diploma legal mencionado atribuirá aos compossuidores igual fração ideal (fracionamento da área em partes abstratas) do terreno sem levar em conta a dimensão que cada qual ocupe na área. Apenas havendo consenso por escrito entre os compossuidores no sentido de estabelecerem frações ideais diferenciadas é que poderá a sentença contemplar algum ou alguns com frações ideais distintas.
Em se tratando de composse é cediço ser irrelevante a extensão da área que cada compossuidor ocupe, visto que se formará um condomínio de cotas iguais para cada compossuidor.
O condomínio especial constituído em decorrência da sentença não é passível de divisão, nem de extinção, exceto na hipótese de decisão tomada por no mínimo, dois terços dos compossuidores condôminos, e isto no caso de execução de plano de urbanização ulterior à formação do condomínio (Lei Federal 10.257 de 10/7/2001 art. 10, §4º).
O legislador infra-constitucional dispensou especial atenção ao funcionamento do condomínio especial coletivo a ser formado, ao prever no parágrafo 5º do mesmo artigo 10, o quorum para as deliberações da administração condominial. Estipulou maioria de votos dos condôminos presentes às reuniões convocadas, ou seja, a maioria simples (metade mais um dos presentes), obrigando as decisões aprovadas também os demais condôminos, discordantes ou ausentes.
Na seqüência, considerando a entrada em vigor do Estatuto da Cidade, 90 (noventa) dias após a data de sua publicação no Diário Oficial da União em 11 de julho de 2001, em seu prazo de vacatio legis iniciaram-se as críticas à sua constitucionalidade.
CAPÍTULO V – CRÍTICAS QUANTO À CONSTITUCIONALIDADE DO USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO URBANO.
Com a entrada em vigor da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001 que regulamentou em seu artigo 10 e parágrafos o instituto do usucapião especial coletivo urbano, inúmera vozes se levantaram alegando a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que o disciplinaram de forma pormenorizada.
Sustentam alguns doutrinadores que a Constituição Brasileira de 1988, no capítulo que trata da Política Urbana, não previu tal modalidade de usucapião e que este não estaria contemplado na norma do artigo 183, o qual faz menção tão somente ao usucapião especial urbano individual pró-moradia, em módulos com metragens até 250 m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados), enquanto o Estatuto da Cidade faz alusão em seu artigo 10 a áreas que embora também urbanas tenham extensão acima de tal metragem.
Seguindo a mesma linha da inconstitucionalidade preconizam outros que o usucapião especial coletivo urbano previsto na Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, fere a Carta Constitucional atual, por ter instituído com caráter de pena civil a perda da propriedade particular urbana, pelo “confisco”, alijando o direito do proprietário sem oportunizá-lo a pleitear indenização do Poder Público como ocorre nas desapropriações por interesse social.
Há ademais aqueles que como defensores da remoção dos habitantes das favelas, alegam com fundamento pouco consistente a inconstitucionalidade do usucapião especial coletivo urbano, aduzindo que a Carta Política de 1988 atribuiu competência comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, não para incentivar a manutenção de favelas e sim para promover programas de construções de moradias populares, bem como melhorias das condições habitacionais e de saneamento básico nas cidades com logradouros e setores desfavorecidos, inclusive mediante cooperação por meio de convênios e consórcios.
Outrossim, sem alegar qualquer inconstitucionalidade das normas legais contidas no Estatuto da Cidade que prevêem o usucapião especial coletivo urbano, há aqueles que de forma preconceituosa não apenas em relação às favelas mas também a seus ocupantes, fazem coro argumentando sobre o enfeiamento das cidades em decorrência das construções desengonçadas, sem emboço e pintura externos, sem telhados, etc., que prejudicam a estética urbana.
Acrescentam estes últimos que além do visual horrendo, as favelas por não possuírem saneamento com redes de esgotos, estes ficam à mostra gerando focos de doenças transmissíveis por roedores e insetos, além do que propiciam campo fértil para todo tipo de promiscuidade, servindo ainda de abrigo para criminosos e malfeitores, exemplificativamente assassinos, ladrões, traficantes de drogas, etc.
Os que defendem a inconstitucionalidade das normas da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001 que tratam do usucapião especial coletivo urbano, advogam a tese da revogação de referidos dispositivos legais e subsidiariamente a alteração das mesmas, ao argumento de que pairando dúvidas sobre a constitucionalidade das normas legais mencionadas, conforme sustentado por juristas, não se correria o risco de ver-se declarada a inconstitucionalidade incidenter tantum nos casos concretos que forem levados à apreciação do Poder Judiciário.
Em relação às críticas, à alegada inconstitucionalidade do instituto do usucapião especial coletivo urbano, e à revogação dos dispositivos do Estatuto da Cidade que o disciplina, discorda Celso Augusto Coccaro Filho, valendo por oportuno trazer à colação, seu posicionamento:
A formação histórica das nações deixa marcas que se esmaecem vagarosa e custosamente. Os habitantes das favelas pertencem às classes desfavorecidas, originadas da colonização européia e da escravidão.
A marginalidade social e econômica é habitat profícuo para o desenvolvimento da criminalidade; por inevitável relação de continência, a favela que abriga marginais sociais deve abrigar criminosos. Gueto urbano, geograficamente insulada, terra de ninguém, alheia ao poder estatal, é ambiente propício para instalação de quartéis-generais do crime organizado.
Tal característica, aliada à estética depreciativa, saneamento deficiente e preconceitos de graus variados, raciais, sociais e econômicos, transforma a favela em tabu também no universo jurídico.
Desmente o direito de propriedade, desde a ótica do freiherr feudal prussiano até a propriedade comunitária de seus ancestrais germânicos, que pressupunha, ao menos, a identidade do clã ou da tribo.
A difusa "exteriorização dos poderes inerentes à propriedade", que decorre das dificuldades de identificação da posse singular, da caótica composse não titulada, da ocupação clandestina e gradual de áreas públicas e particulares, da precariedade, desagrada até mesmo o defensor da informalidade jurídica. (op.cit, p. 6)
E, ainda:
Natural, nesse contexto, a existência de opiniões, não sistematizadas, que rezam da inconstitucionalidade do usucapião coletivo, diante da ausência de expressa estipulação no art. 183 da Constituição Federal, que, por outro lado, prevê o usucapião individual. Não há, porém, antinomia. O usucapião coletivo dá ensejo à exteriorização dos mesmos princípios que geraram o usucapião individual; acomoda-se à Constituição Federal, como instrumento da política urbana e auxiliar do direito à moradia, sobretudo após a edição da Emenda Complementar n. 26/2000.
Não colide ou se desvia da "ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos gerais", que define o sistema jurídico de Claus-Wilhelm Canaris.
Dessa forma, ao lado do usucapião ordinário e do extraordinário, previstos tão-somente na legislação infraconstitucional, o usucapião especial urbano não afronta a Constituição Federal, muito menos o direito de propriedade, garantia fundamental desde que cumpra sua função social. (ibidem.)
Convém aproveitar a ensancha, para destacar a opinião de José Carlos de Moraes Salles, que a par de entender pela inexistência da inconstitucionalidade do artigo 10 do Estatuto da Cidade, acata a sugestão daqueles que pugnam pela revogação do aludido dispositivo, por ser o mesmo inteiramente inconveniente face aos embaraços que irá causar ao Poder Público.
O eminente autor professa que o usucapião melhor se enquadra na esfera do Direito Privado, notadamente no Direito Civil, apoiando-se nas lições de Vicente Ráo. Acrescenta o escoliasta que os constitucionalistas modernos tornaram-se propensos a embutir nas Constituições normas que tratam de institutos que deveriam ser previstos nas codificações ou na legislação infra-constitucional, ordinária ou extravagante, vez que não são normas materialmente de natureza constitucional.
Acrescenta o jurista que não é pelo fato da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001 trazer em sua ementa, regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências, que se possa concluir que aludido pergaminho legal teria exorbitado no atinente à regulamentação da matéria prevista no artigo 183 da Carta Política Brasileira de 1988, para instituir o usucapião especial coletivo urbano de imóveis com extensões superiores a 250 m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados), levando à ilação de que há inconstitucionalidade do artigo 10 da lei em comento.
Prosseguindo em seu raciocínio e amparado nos ensinamentos sobre Hermenêutica e Aplicação do Direito da obra de Carlos Maximiliano, finaliza o escritor que por ser o instituto do usucapião matéria cujo tratamento estaria melhor na legislação infra-constitucional, mormente na Lei Civil, nenhum óbice se apresentaria para que o Estatuto da Cidade, como lei ordinária federal, dispusesse a respeito, instituindo a modalidade de usucapião especial coletivo urbano, nem que regulamentasse as normas dos artigos 182 e 183 da Carta Magna Brasileira.
Acreditamos que não há inconstitucionalidade nos dispositivos legais insertos na Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, por ter em seu artigo 10 e parágrafos disciplinado de forma pormenorizada o instituto do usucapião especial coletivo urbano.
Entendemos que inexiste possibilidade de ser acolhida qualquer argüição de inconstitucionalidade de tais normas legais, uma vez que embora a redação das mesmas não seja um primor, a intenção do legislador infraconstitucional foi de dar efetividade a função social da propriedade urbana com área superior a 250 m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados) e que já esteja ocupada por pessoas carentes para fins de moradia.
Quanto à revogação das normas do Estatuto da Cidade citadas, artigo 10 e seus parágrafos, somos de opinião que não se faz necessário, haja vista que nos termos do Decreto Lei n.º 4.657 de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro), em se tratando de integração da norma jurídica tem aplicação o artigo 4º, in verbis:
Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os custumes e os princípios gerais de direito.
Destarte, não pode o julgador eximir-se de decidir ao argumento de não haver norma legal ou ser a mesma lacunosa, obscura ou ambígua. No mesmo sentido dispõe o artigo 126 do Código de Processo Civil Brasileiro (Lei Federal n.º 5.869 de 11 de janeiro de 1973). Nesta hipótese, incide o artigo 4º do Decreto Lei n.º 4.657 de 4 de setembro de 1942, devendo o juiz, atentar para a mens legis do artigo 5º do mesmo diploma legal:
Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. (grifos nossos)
As censuras à constitucionalidade do usucapião especial coletivo urbano não têm como perdurar, haja vista que o Estatuto da Cidade, ingressou no mundo jurídico atendendo aos reclamos sociais que exigiam uma gestão de cunho mais democrático do espaço das grandes cidades.
Efetivamente o instituto do usucapião previsto no artigo 10 da Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, constitui um importante instrumento de tutela coletiva, de molde a efetivar o exercício da democracia participativa, pela qual os interesses da comunidade se sobrelevam aos interesses individuais, notadamente em se tratando da propriedade particular que não atenda a um fim de utilidade social.
CAPÍTULO VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A Carta Política Brasileira de 1988, promulgada como a Constituição Cidadã, ao insculpir em seu texto como imperativo fundamental a socialização da propriedade, com efeito teve por escopo emprestar-lhe um caráter dinâmico direcionado aos interesses sociais, em contraposição à natureza estática dos interesses individuais.
O princípio da função social instaurado pela nova ordem constitucional passou a atuar no conteúdo do Direito em sua dimensão normativa para interferir no direito de propriedade, levando em consideração a realidade concreta da massa populacional desprovida de moradia, os sem-teto, com vias a preponderar sobre a pseudo-realidade jurídico-cartorária dos titulares do domínio da terra.
Para dar alicerce ao direito social de moradia consentâneo da novel justiça distributiva e atentando para a crescente exclusão social das camadas populacionais menos favorecidas, a Carta Maior Brasileira de 1988 ao lado da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, voltadas estas para atender à função social das propriedades rurais, inseriu a Política Urbana alinhada ao mesmo fim para as propriedades localizadas nas cidades, atribuindo a execução desta última ao Poder Público Municipal.
O Estatuto da Cidade, Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, que em sua ementa apresenta como vértice ser o documento legislativo regulamentador dos artigos 182 e 183 da Carta Fundamental da República Federativa Brasileira de 1988, desde sua entrada em vigor aos 10 de outubro de 2001, não tem merecido a atenção necessária por parte das Prefeituras Municipais, tanto que muitas de suas normas ainda permanecem sem aplicação prática.
A despeito das multifárias críticas que lhe foram endereçadas, algumas justas e outras não, incontestável é o seu valor como instrumento para a execução da política urbana, volvido que está a proporcionar os meios para dar soluções a inúmeros problemas que apresentam relações com o desenvolvimento urbano, em especial aqueles que concernem ao direito de morar.
Não se pode olvidar que a política urbana orientada no sentido de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, tem ínsita como uma de suas metas a de garantir o bem-estar dos habitantes das cidades podendo incluir-se no conceito deste, a moradia condigna provida dos serviços públicos essenciais e básicos.
O bem-estar dos cidadãos não tem como se concretizar se não for efetivado o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, bem como se não houver por parte dos dirigentes públicos não apenas a intenção, mas sobretudo a adoção de medidas que erradiquem a pobreza e reduzam as desigualdades sociais, mormente no que tange ao direito social de habitação.
Neste contexto foi guindado à berlinda o usucapião especial coletivo urbano, instituto agasalhador da tutela difusa, adequado a permitir a aquisição da propriedade pelos possuidores de áreas urbanas já ocupadas, as quais podem ser consideradas como “universalidades de fato indivisíveis”, indicado aquele para a hipótese em que o abandono ou o descaso do proprietário justificam a perda do domínio de seu imóvel, em favor dos interesses comunitários.
Desta forma o usucapião especial coletivo urbano, caracteriza-se por ser um importante marco para que haja a solidificação do direito fundamental à moradia condigna, ao viabilizar a possibilidade da democratização do acesso à terra e por via de conseqüência à propriedade, de molde a tornar real a perspectiva constitucional de socialização da posse coletiva.
É intuitivo, que o Direito visto pelos ângulos social e comunitário não mais pode continuar a manter o prestígio do falso ou pseudo domínio sobre a propriedade privada que a par das aparências, em seu cerne e conteúdo ao não cumprir sua função social não pode ser imaginada como a propriedade constitucionalmente protegida.
Por derradeiro, em sendo a favelização nas cidades uma realidade fática irreversível, e estando o Direito sempre a reboque dos fatos, é indubitável que aquele se viu contigenciado a encontrar um remédio jurídico para solucionar tal situação, e o fêz por meio da instituição do usucapião especial coletivo urbano.
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[1] . 3ª Câmara Cível TACSP, Apelação 291.722, rel. Juiz José Osório, por maioria, acórdão proferido sob a vigência da Constituição anterior, muito menos enfática no estabelecer o princípio do que a atual, o que não deixa margem a dúvida sobre sua caracterização e operatividade imediata.