Outros artigos do mesmo autor
Você votaria nele 'só' por causa disso?Estatuto da OAB/Código de Ética
O princípio da seletividade aplicado à circulação de armas de fogoDireito Tributário
A alíquota do IPVA incidente sobre caminhonetes de cabine simples no Estado de São Paulo diante do princípio da isonomia tributáriaDireito Tributário
Da ilegalidade da exigência do recolhimento da taxa judiciária no cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública perante a justiça estadual paulistaDireito Tributário
Liberação de fuzil calibre 7,62x51mm para o proprietário rural. Isto é juridicamente possível?Direito Administrativo
Outros artigos da mesma área
A PROBLEMÁTICA DA TAXATIVIDADE DO AGRAVO DE INSTRUMENTO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE SOB À ÓTICA DOUTRINÁRIA E JURISPRUDÊNCIAL
A PROVA DOS NOVE DA TEORIA DA ASSERÇÃO
Honorários de sucumbência em relação ao convênio Defensoria Pública - OAB/SP.
O ACESSO À JUSTIÇA E O SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA DA UNIMONTES
Procurações Judiciais e substabelecimentos
Novo CPC otimizará a atividade de Defensores Públicos (Art. 186, §2º)
Impenhorabilidade do Bem de Família
Resumo:
O pedido de justiça gratuita deduzido por pessoa natural deve ser concedido se não houver nos autos elementos que demonstrem a capacidade econômica em relação ao processo em questão.
Texto enviado ao JurisWay em 13/05/2024.
Indique este texto a seus amigos
I. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal consagra, no caput do Art. 5º, o princípio da igualdade. Subjaz a esse princípio a premissa aristotélica, recepcionada por abalizada doutrina jurídica, de que é necessário tratar os iguais de modo igual e os desiguais de modo desigual, na medida de sua desigualdade.
É nesse contexto que surge importante questão acerca do acesso à justiça. É sabido que, como regra geral, aquele que ingressa com ação judicial deverá recolher custas (taxa judiciária e taxa de citação, v. g., dentre outras conforme o caso), estando a parte contrária sujeita a reembolsar tais custas na hipótese de vir a ser sucumbente.
Por outro lado, o ordenamento jurídico assegura o direito à justiça gratuita ao jurisdicionado que não possuir condições de arcar com as despesas inerentes ao processo sem prejuízo do próprio sustento. E esse direito, em sua usual extensão máxima, isenta a parte tanto do recolhimento da taxa judiciária quanto de outras custas (citações, perícias, etc), inclusive relegando à condição suspensiva por determinado período a exigibilidade dos honorários de sucumbência eventualmente devidos ao advogado da parte contrária (o que na prática equivale a uma isenção).
Paira, então, impasse quanto ao critério adotado para que a parte faça jus ao direito à justiça gratuita.
A Constituição Federal de 1988 estabelece que:
Art. 5º (...)
(...)
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
(...)
Nessa esteira, há de se analisar ainda a disposição do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) sobre o tema:
Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.
(...)
Art. 99. O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso.
§ 1º Se superveniente à primeira manifestação da parte na instância, o pedido poderá ser formulado por petição simples, nos autos do próprio processo, e não suspenderá seu curso.
§ 2º O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos.
§ 3º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural.
§ 4º A assistência do requerente por advogado particular não impede a concessão de gratuidade da justiça.
(...)
É importante destacar ainda que a gratuidade é um benefício conferido casuisticamente em cada processo, sendo perfeitamente possível que uma mesma pessoa tenha direito à justiça gratuita em um processo e em outro não, em razão de entendimentos divergentes de cada juiz sobre a hipossuficiência econômica processual da parte.
Além disso, as Leis nº 1.060/1950 e 7.115/1983 também dispõem sobre o assunto, sendo esta última muito clara no que se refere à presunção juris tantum de hipossuficiência derivada da simples alegação deduzida por pessoa natural, nos exatos termos do Art. 99, 3º, do CPC.
Muitos magistrados entendem que tais normas não foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988 uma vez que a Lei Maior utiliza o verbo "comprovar", supostamente incompatível com a presunção conferida pela simples alegação. No entanto, nenhuma dessas normas foi revogada expressa ou tacitamente ou ainda declarada inconstitucional pelo STF.
II. O VÁCUO DE ACESSO À JUSTIÇA
Diante do cenário apresentado, cabe fazer-se a distinção entre a parte representada por advogado particular e a parte representada pela Defensoria Pública.
Com efeito, a Defensoria Pública é um órgão público que promove, inclusive mediante convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, assessoria jurídica para pessoas de baixa renda. No estado de São Paulo, por exemplo, a regra geral para uso dos serviços da defensoria pública estadual é ter renda de até 3 salários-mínimos no grupo familiar.
Seguramente, a parte representada pela Defensoria Pública cumpre os requisitos para fazer jus à gratuidade da justiça, que nesses casos é concedida pelo Poder Judiciário sem maiores celeumas.
Por outro lado, há também situação muito recorrente em que a parte é representada por um advogado particular e pleiteia o direito ao benefício, sendo certo, por expressa disposição legal, que a representação por advogado particular não exclui o direito ao benefício (embora haja certa recalcitrância de muitos magistrados em reconhecer o benefício nesses casos, havendo exigências burocráticas como exibição da declaração do imposto de renda e dos extratos bancários dos últimos meses mesmo após a juntada do comprovante de rendimentos).
Não se ignora que a existência do processo envolve despesas ao poder público inclusive quando a parte é isenta de recolher as custas, as quais se prestam-se a suprir as referidas despesas. Todavia, não é dado ao juiz desconhecer os fatos sociais básicos da vida em sociedade.
E o ponto central é que existe um imenso número de pessoas que não possuem os requisitos para fazer jus ao uso da defensoria pública (por terem renda familiar superior a 3 salários mínimo, por exemplo), mas que, por outro lado, também não possuem condições de contratar um advogado particular (observando-se que, à luz dos valores de honorários sugeridos pela Tabela da OAB 2024, uma propositura cível custaria em torno de 4 salários mínimos, desconsiderando-se outros fatores que poderiam aumentar esse preço).
Dessa forma, há um vácuo de acesso à justiça para a parte que não pode contratar advogado particular e, ao mesmo tempo, não pode fazer uso dos serviços da defensoria. Trata-se de situação que normalmente é resolvida pelo próprio advogado, através de parcelamentos, descontos, diferimentos ou outras condições especiais concedidas ao cliente para pagamento dos honorários.
Dessa forma, não é razoável presumir-se que a parte tem condições de arcar com as despesas processuais só porque contratou advogado particular, de modo que criar óbice à concessão desse benefício é criar óbice ao próprio direito fundamental ao acesso à justiça. A concessão do benefício da gratuidade judiciária não tem como pressuposto a miserabilidade, mas a insuficiência de recursos da parte diante do processo judicial em questão.
A própria realidade fática exige que a interpretação do Código de Processo Civil seja literal nesse aspecto, ou seja: o benefício deveria ser negado tão somente se houver nos autos elementos que evidenciem a capacidade econômica da parte de arcar com as despesas processuais, observando-se que o benefício poderá ser revogado se tais elementos aparecerem inequivocamente, estando a parte sujeita inclusive à multa por litigância de má-fé se ficar demonstrada eventual falsidade na declaração de hipossuficiência.
III. A JUSTIÇA GRATUITA NA JURISPRUDÊNCIA
Recentemente o Superior Tribunal de Justiça proferiu o seguinte acórdão que, embora possua efeitos inter partes, retrata de modo fidedigno a aplicação prática do dispositivo tal qual expressa pelo legislador:
PROCESSUAL CIVIL. JUSTIÇA GRATUITA. FAIXA DE RENDA MENSAL. CRITÉRIO ABSTRATO. INADMISSIBILIDADE.
1. É assente na jurisprudência do STJ que a simples declaração de hipossuficiência da pessoa natural, ainda que dotada de presunção juris tantum, é suficiente ao deferimento do pedido de gratuidade de justiça quando não ilidida por outros elementos dos autos.
2. Esta Corte Superior rechaça a adoção única de critérios abstratos, como faixa de renda mensal isoladamente considerada, uma vez que eles não representam fundadas razões para denegação da justiça gratuita.
3. Agravo interno desprovido.
(STJ, 1ªT, AgInt no REsp nº 1.836.136/PR, rel. Gurgel de Faria, j. 04/04/2022, DJe de 12/04/2022)
(destaques nossos)
A partir desse julgado, que expressa o posicionamento jurisprudencial predominante sobre o assunto, pode-se ter um parâmetro da aplicação prática do instituto da justiça gratuita.
Há alguns julgados que levam em consideração alguns parâmetros como p. ex. a faixa de renda mensal do requerente (não confundir com renda mensal do grupo familiar), v. g.:
Agravo de instrumento. Justiça gratuita. Decisão de primeira instância que indeferiu a justiça gratuita aos agravantes. Pleito de reforma. Possibilidade. Comprovação da situação de insuficiência de recursos. Contratação de advogado particular não impede a concessão da benesse. Agravantes que, ademais, percebem remuneração inferior a três salários mínimos, parâmetro para concessão da benesse. Decisão reformada. Recurso provido.
(TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, AgIn nº 2169067-26.2023.8.26.0000, rel. Schmitt Corrêa, j. 07/07/2023, DJe de 07/07/2023)
Contudo, trata-se de critério que deve ser analisado à luz de todas as circunstâncias do caso concreto. Veja-se que a própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça considera inadequada a utilização de critérios exclusivamente objetivos para a concessão de benefício da gratuidade da justiça, devendo ser efetuada avaliação concreta da possibilidade econômica de a parte postulante arcar com os ônus processuais (EDcl no REsp 1.803.554/CE, Rel. HERMAN BENJAMIN, 2ªT, j. 26/11/2019, DJe de 12/05/2020; EDcl no AgRg no AREsp 668.605/RS, Rel. MARCO BUZZI, 4ªT, j. 04/05/2020, DJe de 07/05/2020; AgInt no AgInt no AREsp 1.368.717/PR, Rel. GURGEL DE FARIA, 1ªT, j. 28/04/2020, DJe de 04/05/2020; AgRg no AgRg no REsp 1.402.867/RS, Rel. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 1ªT, j. 27/02/2018, DJe de 14/03/2018; AgInt no REsp 1.703.327/RS, Rel. NANCY ANDRIGHI, 3ªT, j. 06/03/2018, DJe de 12/03/2018; REsp 1.706.497/PE, Rel. OG FERNANDES, 2ªT, j. 06/02/2018, DJe de 16/02/2018).
Trata-se de uma análise que deve ser feita casuisticamente, cabendo ao magistrado avaliar, no caso concreto, se os valores envolvidos estão em descompasso com a realidade financeira da parte postulante, ainda que esta não esteja em estado de penúria. Nesse sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. JUSTIÇA GRATUITA. INDEFERIMENTO. Benefício que não exige o caráter de miserabilidade, mas a insuficiência de recursos para o pagamento de despesas, custas processuais e honorários advocatícios. Artigo 98 do CPC. Presunção. Decisão reformada. DERAM PROVIMENTO AO RECURSO.
(TJSP, 8ª Câmara de Direito Privado, AgIn nº 2007837-38.2024.8.26.0000, rel. Alexandre Coelho, j. 29/02/2024, DJe de 29/02/2024).
Imagine-se, por exemplo, um indivíduo que aufere mais de 5 salários-mínimos, mas está em juízo tentando anular uma contratação bancária fraudulenta de mais de cem salários-mínimos, por exemplo; ou, ainda, que esse indivíduo é parte em uma ação possessória de um imóvel altamente valorizado; ou, ainda, que esse indivíduo esteja pleiteando em juízo medicamentos de alto custo.
São situações que gerarão potenciais impactos financeiros em razão das despesas processuais, não podendo o requerente custeá-las sem prejuízo do próprio sustento ainda que não seja propriamente uma pessoa em estado de penúria.
Há, porém, inúmeras situações em que o Poder Judiciário cria óbices desnecessários ao jurisdicionado no tocante ao acesso à justiça. Veja-se, por exemplo, o seguinte julgado:
Rescisão de contrato e restituição de valores c.c. indenização por danos morais. Empréstimo (mútuo) realizado entre particulares. R. despacho que teria indeferido o pleito de gratuidade processual ao acionante (microempreendedor). Agravo instrumental do demandante. Declaração de pobreza, com presunção relativa. Necessidade de apreciação em conjunto com demais elementos. Não demonstrada a hipossuficiência do agravante. Quem é realmente pobre procura a Defensoria Pública ou Juizado Especial. Decisão de indeferimento das benesses que deve ser mantida. Nega-se provimento ao agravo, tudo nos estreitos limites do recurso.
(TJSP, 27ª Câmara de Direito Privado, AgIn nº 2062689-17.2021.8.26.0000, rel Campos Petroni, j. 22/04/2021, DJe de 22/04/2021)
(destaque nosso)
Sem adentrar ao mérito sobre a existência, no processo em questão, de elementos passíveis de afastar a presunção de veracidade da alegação de hipossuficiência, o fato é que a conclusão em destaque traduz claramente uma punição ao requerente por ter trazido mais trabalho para o Poder Judiciário. A prestação de serviço público possui inúmeras dessas agruras, infelizmente. Trata-se de problemática que remete ao supramencionado problema do vácuo no acesso à justiça.
Em primeiro lugar, o direito à gratuidade judiciária não exige pobreza ou miserabilidade, mas insuficiência de recursos à luz da lide em questão; e, em segundo lugar, conforme mencionado, a parte requerente, mesmo sendo pobre, pode não estar na faixa que dá direito ao uso dos serviços da defensoria. Ademais, como cediço, muitas causas possuem nuances incompatíveis com o rito dos juizados especiais e um exemplo típico disso são as ações de anulação de empréstimo bancário fraudulento, que normalmente exigem prova pericial.
Veja-se que nem os próprios julgadores acreditam nessa premissa falaciosa utilizada na fundamentação do acórdão (de que quem é pobre deve procurar o juizado especial ou a defensoria, não podendo ser pobre e ao mesmo tempo ser assistido por advogado particular).
Primeiramente, nota-se que há um espantalho retórico no tocante à pobreza, pois, conforme demonstrado, esse não é o único critério para se aferir o direito à gratuidade judiciária. Contudo, por questão de coerência, todo magistrado que manifesta esse posicionamento ilegal e incongruente deveria impor multa por litigância de má-fé à parte que pedir justiça gratuita sendo representada por advogado particular, pois em tese essa pessoa estaria faltando com a verdade no que se refere à alegação de pobreza.
IV. CONCLUSÃO
A melhor aplicação do direito exige que o instituto da justiça gratuita seja interpretado literalmente em relação à presunção relativa de hipossuficiência derivada da alegação da parte postulante.
Evidentemente não é – e nem deve ser – vedado ao magistrado exigir excesso de documentação comprobatória, até mesmo para evitar abusos das partes em relação aos pedidos de justiça gratuita. Mas esse tipo de determinação só é razoável, à luz do ordenamento jurídico, quando houver nos autos elementos que evidenciem cabalmente a capacidade econômica da parte postulante diante do processo em questão, ainda que um desses elementos seja a própria natureza da ação.
O excesso de rigor na apreciação dos pedidos de justiça gratuita causa entraves indevidos no acesso à justiça, sendo comum que pessoas idosas e hipossuficientes que já apresentaram demonstrativo de rendimentos ainda se vejam obrigadas a lidar com a burocracia de ter de juntar imposto de renda e extratos bancários sem que haja nos autos em questão nenhum elemento que afaste a presunção legal de veracidade contida na declaração de hipossuficiência econômica.
Nenhum comentário cadastrado.
Somente usuários cadastrados podem avaliar o conteúdo do JurisWay. | |