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A CULPABILIDADE COMO LIMITE AO FUNCIONALISMO PENAL.


Autoria:

Júlio César Prado De Oliveira


Pós-Graduado (latu sensu) em Ciências Penais (UNISUL/LFG), Direito Ambiental e Urbanístico (UNIDERP/LFG), Direito Constitucional (UNIDERP/LFG), Direito Civil, Processual Civil e Consumidor (UNIASSELVI/FMB), Direito Público (UNIASSELVI/VERBO JURÍDICO)

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Texto enviado ao JurisWay em 22/10/2012.

Última edição/atualização em 23/10/2012.



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Resumo 

O presente trabalho discutirá a culpabilidade como limite intransponível à aplicação funcional da pena. Em um primeiro plano será estabelecido às funções que modernamente se atribuem à pena e ao Direito Penal dentro de uma perspectiva funcional racional teleológica. Posteriormente será delineado o conceito e o conteúdo da culpabilidade na teoria do delito, distinguindo-a do conceito mais amplo atribuído à responsabilidade. Destacar-se-á, por fim, a importância garantista da culpabilidade como elemento limitador da aplicação da pena e preservação da dignidade da pessoa humana, demonstrando como esta impede que o ‘homem’ apenado seja transformado em meio para a propagação de valores na sociedade, mantendo-o como um fim em si mesmo e não como meio para outros fins.

 

Palavras-chave: Monografia; Funcionalismo; Culpabilidade; Limitação da Pretensão Punitiva; Dignidade da Pessoa Humana.


ABSTRACT 

The present work will consider the guilt like obstacle and limit to the functional application of the punishment. In first moment will be established the functions attribute to the punishment and to the Penal Law in the morden times, inside in one functional, rational and teleological pespective. After will be delineate the concept and the content of the guilty in teory of the crime, distinguish it of ample concept attribute to the responsibility. In fine, will be demonstrated the guarantee importance of the guilty like limiter element in the aplication of punishment and preservation of the dignity human being, showing how it prevent the transformation of the man in mere way for spread values, preserving him like purpose for himself and not a way for others purpose.

 

Key words: monograph, functional application of the punishment, guilty, limitantion of punitive pretension, dignity of human being.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................09

 

1 - Razões do Direito Penal e O FENÔMENO CRIMINAL.....................13

1.1       Considerações Iniciais....................................................................................13

1.2       RAZÕES DO DIREITO PENAL........................................................................13

1.3       O FENÔMENO CRIMINAL..............................................................................20

1.3.1    O HOMEM CRIMINOSO..................................................................................22

1.3.2    A SOCIEDADE COMO PROMOTORA DO FENÔMENO CRIMINAL.......24

 

2 - Funcionalismo Penal e culpabilidade...........................................28

2.1       Funcionalismo...................................................................................................28

2.2       Prevenção Geral..............................................................................................38

2.3       Prevenção Especial .........................................................................................40

2.4       Culpabilidade...................................................................................................41

2.4.1    Conceito ............................................................................................................42

2.4.2    Evolução da Teoria da Culpabilidade... .....................................................44

2.4.3    Culpabilidade enquanto princípio ...............................................................48

2.4.4    Elementos da Culpabilidade......................................................................... 49

2.4.4.1 Potencial Consciência da Ilicitude .............................................................49

2.4.4.2             Exigibilidade de Conduta Conforme a Norma ............................................51

2.4.4.3 Imputabilidade .................................................................................................53

 

3 - Culpabilidade como limite intransponível ao funcionalismo penal.......................................................................................60

3.1 O vetor axiológico Dignidade da Pessoa Humana...........................................60

3.2 A culpabilidade como limite ao funcionalismo............................................... 64 

Conclusão................................................................................................................72 

BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................76 

ANEXO I........................................................................................................................80

 

Introdução 

A simples edição de uma lei nova põe por terra bibliotecas inteiras.

(Kirchmann). 

 

Os estudos desenvolvidos nessa monografia propõem elaborar uma análise crítica sobre o papel da culpabilidade como limite instransponível as funções do direito penal e da pena.

Inicialmente será analisada a razão do direito penal e o fenômeno criminal, para que se construa em um segundo momento, de forma lógica e racional, as funções que pertencentes ao Direito Penal e à Pena.

Será estudado a forma como a Dignidade da Pessoa Humana se coloca como centro axiológico de toda a construção jurídica e quais os reflexos peculiares sobre a construção das funções penais e da limitação desta pela culpabilidade.

Far-se-á uma breve análise da culpabilidade dentro da teoria do delito, seus elementos e pressupostos.

Por fim, será enfrentada diretamente a questão da limitação do funcionalismo penal pela culpabilidade, que ao exercer este papel atua como guardiã insuperável da dignidade da pessoa humana.

A idéia é que todos os temas sejam perpassados tendo em vista a problematização essencial do fenômeno jurídico e seus reflexos práticos na realidade do sistema penal.

Dou lume às palavras de Ovídio Baptista:

 

Se quisermos, no entanto, construir o Direito como instrumento democrático, será indispensável discutir com os alunos os casos práticos, colhidos na jurisprudência, mostrando-lhe a problematicidade essencial ao fenômeno jurídico, de modo que o Direito abandone o dogmatismo, com todas as falsificações da realidade que lhe são inerentes, para lançá-lo na dimensão hermenêutica, reconhecendo-lhe a natureza de ciência da compreensão.[1]

 

A força do racionalismo ainda ecoa nas ciências jurídicas, promovendo uma ‘geometrização’ do direito. Há uma pretensão de que a lei e a dogmática esgotem as respostas, cabendo ao jurista apenas adequar à realidade ao normativo.

A verdade é que a realidade não se curva ao normativo, e este é que deve se adequar de acordo com os fins a que se propõe e a um estudo sistemático da realidade que coordena.

O direito é uma ciência cultural e como tal deve refletir os anseios sociais de seu tempo, referindo-se a um conjunto de valores que lhe sirvam de guia, flexibilizando o dogmatismo de acordo com as necessidades que os casos concretos clamem.

O sistema é construído de forma a burocratizar as instâncias, criando um corporativismo que distancia o operador jurídico da realidade que opera, incorporando discursos e teorias que interessam ao poder e aniquilando sua capacidade de pensar o direito teleologicamente.

Toda a nossa reflexão busca romper estas amarras e introduzir o tema não como solução pronta e acabada, mas continuidade e ponte da problemática arraigada entre um sistema penal funcionalista e a idéia kantiana do homem como um fim em si mesmo, e não meio para quaisquer fins. 

 

1 Justificativa do Tema

 

 

A discussão que se propõe é de fundamental importância, pois demonstra como é possível atrelar uma perspectiva funcional do Direito Penal à preservação da dignidade da pessoa humana.

A história nos revela que a utilização funcional do direito, ligando-o a uma política de Estado, permitiu a instituição e justificação de barbáries.

Por outro lado, para que o Direito Penal realize seu papel de proteção subsidiária de bens jurídicos fundamentais, com o fim último de estabilização e pacificidade social, há uma necessidade premente de integração do sistema penal, de modo que a criminologia sirva de base para a elaboração de uma política criminal racional que por sua vez oriente todas as estruturas dogmáticas penais.

Nessa seara a dogmática assume um semblante funcionalista, pois deve se estruturar tendo como fundamento as finalidades orientadas político criminalmente.

Dentro deste prisma é fundamental o estudo da culpabilidade, construída sobre a dignidade da pessoa humana, como limite intransponível para as orientações funcionais do Direito Penal e da pena, impedindo que o Estado volte a abusar das estruturas do Direito para promover barbáries e justificar a concentração do poder.

 

 

2 Objeto

 

 

O objeto do presente trabalho centra-se no estudo do funcionalismo penal, assim compreendido como a orientação funcional do Direito Penal e das penas para o propósito de promover a paz e a estabilidade social através da proteção de bens jurídicos fundamentais, e a forma como este funcionalismo é limitado pela dimensão pessoal da dignidade do ser humano exposta na culpabilidade.

Será demonstrado como a culpabilidade estabelece limites instransponíveis às finalidades do Direito Penal, legitimando, desta forma, sua atuação funcional.

 

 

3 Metodologia

 

 

Método de Abordagem:

Dedutivo – O método dedutivo opera através da lógica, partindo de axiomas firmados pela cultura humana (premissas) para construção de novas conclusões teóricas fundamentadas. A validade das conclusões é depurada em sua coerência racional com as premissas estabelecidas. O método adotado é o racionalista proposto por Descartes, Spinoza e Leibniz.

Método de Procedimento:

Analítico e Histórico-estruturalista – O analítico atua pela separação das partes de um todo para estudá-las individualmente. O histórico-estruturalista analisa os processos históricos que exerceram um papel central na teoria a ser estudada. Essa a análise histórica se concentra essencialmente na caracterização das estruturas consideradas mais importantes.

Método de Interpretação:

Exegético – Este método foi originado da Escola dos Glosadores. Busca descobrir o verdadeiro sentido e alcance da lei. Os procedimentos utilizados são: a interpretação gramatical ou literal; a interpretação lógica, sistemática e a interpretação histórica.

Tipos e Técnicas de Pesquisa:

Pesquisa Bibliográfica, Documental e Jurisprudencial – Realizada em livros, publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, pesquisas, monografias, dissertações, teses bem como em normas constitucionais, leis complementares e ordinárias, decretos legislativos, Diários Oficiais, projetos de leis e emendas constitucionais, jurisprudência dos Tribunais, revistas especializadas e periódicos.

 

 

 

 


 1 - Razões do Direito Penal e O FENÔMENO CRIMINAL

 

 

 

Você deve, porque eu quero, é um disparate; mas: Você deve, porque eu devo, é uma conclusão justa e a base do direito.

(Seume).

 

 

1.1 Considerações Iniciais

 

 

A compreensão funcionalista do Direito Penal só pode ser construída dentro de um panorama lógico racional se antes demonstrarmos as razões que orientam o direito penal e no que consiste o fenômeno criminal.

Isso porque só poderemos justificar funções atribuídas ao Direito Penal e às Penas se demonstrarmos que estas funções não foram fruto de escolhas aleatórias, mas conclusões extraídas logicamente da razão de ser do próprio Direito Penal, razão esta que deve necessariamente refletir a realidade fenomênica a que se reporta (fenômeno criminal).

Nessa perspectiva serão delineados esses temas (razões do direito penal e fenômeno criminal) de forma concisa, porém estruturada.

 

 

1.2 Razões do Direito Penal:

 

 

Nas palavras de José Joaquim Calmon de Passos vida e conflito são indissociáveis e o conflito é o pressuposto necessário do jurídico.[2]

Pensar a razão do direito, qualquer que seja o ramo que se resolva teorizar, passa indubitavelmente por um questionamento do homem enquanto ser político, homem enquanto animal que superou a corrente do instinto ou do tropismo vegetal para pensar suas possibilidades e optar por aquela que deseja seguir.

As variáveis que influem o desejo humano são muito mais amplas, e o são porque sobre ele incide as circunstâncias culturais.

O querer humano e seus desejos suplantam as meras necessidades físicas. Nós criamos e propulsionamos nossas próprias necessidades.

O capitalismo, sobre quem se distancia a presente monografia de fazer qualquer juízo valorativo (bom ou mal, produtivo ou improdutivo), não deve ser misturado com conceitos como democracia, direitos e garantias fundamentais, dignidade da pessoa humana. Estes podem sobreviver em variados sistemas que não o capitalista.

O que é inarredável, pelo menos nos moldes estruturais atuais, é que o capitalismo fundou uma lógica perversa e autodestrutiva que o põe em uma fase terminal. Lógica esta que repousa sobre a busca desmedida do lucro sobre o lucro, e que perde a perspectiva das reais necessidades humanas.

Está a fomentar um confronto inevitável, que já alastra seus sinais, dos excluídos, daqueles que não são chamados a participar do Estado, sua cidadania e instituições.

Pensa-se no Direito do Consumidor, por exemplo, e nos deparamos com o fato que este direito se volta para uma parcela da população, isso porque, uma grande massa de excluídos e miseráveis não conseguiu sequer ascender ao status de consumidor, vivendo abaixo da linha da subsistência.

Pensar o Direito Penal é, portanto, pensar o cenário jurídico em que se consubstancia.

Não há, outrossim, como distanciá-lo do pensar global das ciências criminais, contextualizado na coalizão indissociável da criminologia, política criminal e dogmática, a construção de seus conceitos e a forma como esses setores se interpenetram.

A justificação do Direito Penal e da Pena, construída racionalmente, está inserida na construção das teorias e discussões a respeito outros ramos ou temas que compõe as ciências criminais (política criminal, criminologia, dogmática penal). Se assim não for, perderá sua logicidade e racionalidade, tornando-se mero discurso simbólico e disfuncional.

Partindo desse princípio, trava-se uma análise crítica das propostas ofertadas para justificar o Direito Penal ao longo da história, delineando àquela que melhor subsiste a uma avaliação lógico-racional dos seus pressupostos.

Alguns autores compreenderam ser impossível argüir uma justificação razoável ao Direito Penal e à Pena, propondo sua total supressão. Esta corrente genericamente ficou conhecida como Abolicionismo.

Dentro do Abolicionismo variadas foram as fundamentações em defesa da supressão do Direito Penal, desde as mais radicais que compreendiam a impossibilidade de justificar-se quer a pena quer a proibição em si, como a propugnada pelo individualismo anárquico de Max Stirner, até aquelas que não deixaram de desvalorar a transgressão, mas igualmente desvaloravam o julgamento condenatório proferido por homens sobre outros homens, que tem como norte o princípio moral do altruísmo.

Outros se ativeram a disfuncionalidade do Direito Penal, preterindo-o por outras formas de controle morais e sociais.

No Abolicionismo destacam-se autores como Louk Hulsman, Nils Christie e Henry Bianchi.

Não será aprofundado o estudo do Abolicionismo sob pena de perdermos o foco do presente trabalho.

Mas impende fazer uma análise crítica dos paradoxos e evoluções espraiados pela teoria Abolicionista.

Dois problemas centrais desestruturam a teoria Abolicionista se submetida a uma filtragem lógico-racional:

                                                         I.         O Abolicionismo funda-se em uma base utópica de uma sociedade despida de conflitos intersubjetivos, ou que poderia superá-los por meros aparatos sociais ou morais, o que é de todo negado pela história humana.

                                                      II.         Ao invés de funcionar como máxime do modelo garantista, funciona como barreira a este, posto que a ausência de regramentos limitadores certamente levará a um modelo de auto ajuste social na composição dos conflitos que evoluirá para métodos autoritários, opressores e despidos do devido processo legal[3].

A grande vantagem do Abolicionismo foi por em evidência as falácias do Direito Penal ao propor a um modelo reeducador, ou ressocializador, revelando o grande mal e a força criminógena que a pena significa dentro da sociedade.

Uma segunda corrente que se propôs a justificar o Direito Penal ficou conhecida como Absolutistas ou Retributivista, e propuseram que a pena é um fim em si mesmo.

Nesta senda encontram-se as clássicas construções de Kant e Hegel, o primeiro apontando na pena uma retribuição ética, que se justifica pelo valor moral da lei penal vilipendiada pelo criminoso e do necessário castigo que deve advir, o segundo através da clássica construção “o crime nega o direito, a pena nega o crime, logo, restabelece o direito”.

Em verdade, fundamentar a pena em si mesmo é mero artifício retórico que foge ao dever de justificá-la. A pena e o Direito Penal são fruto da construção cultural humana, pertence à deontologia, não podendo receber tratamento ontológico como fundamento do ser enquanto ser.

Inobstante, a teoria absolutista do Direito Penal e da Pena teve forte apelo doutrinário, contagiando autores como Selden, Leibniz, Genovesi, Pellegrino Rossi, Antonio Rosmini, Ternzio Mamiani, Enrico Pessina, Tancredi Canonico, Giuseppe Maggiori, Giuseppe Bettiol, Vittorio Mathieu, Karl Binding, etc.

A auto justificação do direito, além de confundir o campo normativo com o próprio da moral, o que sempre se mostrou temeroso às garantias do indivíduo frente ao Estado, alastra as margens do que pode ser proposto enquanto conteúdo, posto que se limita apenas a aspectos de forma e fonte, não encontrando limitação externa na sua legitimação ou deslegitimação. A teoria Absolutista serve perfeitamente a propósitos escusos de utilização do direito como manutenção aos núcleos de poder e resistência à quebra das desigualdades.

Por fim várias correntes podem ser agrupadas em uma teoria Utilitarista da pena e do Direito Penal, assim compreendida àquelas que compreendem o Direito Penal como um meio para fins pré-definidos.

As teorias Utilitaristas ou Relativistas trabalharam a pena como instrumento voltado a um fim, que poderia ser:

                                                         I.         Preventivo Geral Negativo – Intimidação dos outros para que evitem cometer o delito sob a coerção da pena que lhe segue.

                                                      II.         Preventivo Geral Positivo – Fixação de valores na sociedade (vida, patrimônio, saúde, idoneidade da administração pública, etc.) através da criminalização da lesão a estes e reafirmação da vigência das normas através da punição ao delito.

                                                   III.         Preventivo Especial Negativo – Segregação do delinqüente do meio social para proteção dos ‘homens de bem’.

                                                   IV.         Preventivo Especial Positivo – Pena como meio de reeducação e reinserção social. Caráter terapêutico.

As justificativas das teorias Preventivas Especiais esbarram na confusão entre direito e moral, pois se permitem julgar o próximo enquanto ser e determinar a personalidade que reputa adequada ou desviada ao padrão estabelecido.

Levada a extremos, redundará na pena de morte ou segregação perpétua, quer no seu aspecto Preventivo Especial Negativo (imagine-se os inadaptáveis), quer no seu aspecto Preventivo Geral Positivo (imagine-se os irrecuperáveis).

Não por menos serviu às escolas Positivistas que, por sua vez, deram sustentáculo ao Direito Penal empregado pelos regimes Fascista e Nazista.

As teorias Preventivo Especiais confundem direito e patologia (moral ou naturalística), agregam a legitimação externa (por que punir) e a legitimação interna (como punir), substancializando as instâncias, e promovem uma dupla violência ao individuo, cerceando sua liberdade física e psíquica (autodeterminação).

Comum o uso de termos estigmatizantes como subversivo, degenerado, sóciopata, psicopata, desvirtuado, marginal, etc.

Além de poder ser utilizada como forma manipuladora do discurso para justificar doutrinas totalitárias que pregam a eugenia, pragmaticamente, constrói a teoria Preventivo Especial uma falácia, já que a análise de dados nos mostram que o sistema penal, ao contrário de ressocializar ou recuperar, funciona como elemento potencialmente criminógeno e dessocializador.

Em que pese a crítica à Prevenção Especial Positiva, entendendo-se que esta é insuficiente para legitimar o Direito Penal e a necessidade da pena, considerando que a pena é um mal necessário justificado por outros fundamentos (a serem demonstrados), deve o Estado ao aplicar a pena tentar ao máximo dotar o recluso de meios para que, reingresso na sociedade, possa gozar de alternativas várias para que não volte a delinqüir.

Nesse sentir a Prevenção Especial Positiva, na medida do possível, deve ser aplicada subsidiariamente na execução da pena e, embora não justifique a pena ou o direito penal, deve ser empregada profissionalizando, fornecendo educação fundamental e média ao recluso, se esmerando ao máximo para reduzir os fatores criminógenos sociais e culturais que o cercam, ofertando alternativas, sem, contudo, impor-lhe um modo de ser.

A justificação do Direito Penal e da pena é tripla:

Preventivo Geral – Deve à pena e o Direito Penal tutelar bens jurídicos fundamentais, quer afirmando valores na sociedade, leia-se, apontando os bens jurídicos de vital importância, a ponto de submetê-los a chancela do Direito Penal, subsidiário e fragmentário por excelência e reafirmando a vigência da norma pela punição ao delito, quer intimidando os potenciais delinqüentes a abster-se do delito por receio da sanção.

É equívoca a crítica que diz que a função Preventiva Geral Positiva confunde direito com moral, considerando que o que ela visa é tutelar bens, e não construir o ser individual. A preocupação é clarificar no seio social quais os bens o Estado quer ver protegido, quais bens lhe são caros e essenciais, voltado ao fim último que é a paz e estabilidade social. A assimilação desse conhecimento como forma determinante da conduta, independentemente das valorações de cunho subjetivo, é o que interessa ao Direito Penal.

Estabilidade do Ordenamento Jurídico – A função penal de estabilizar o ordenamento jurídico perante a sociedade é uma realidade. Pragmaticamente verificada como questão de fundo ao longo da história do Direito Penal, é também coerente com a fundamentação racional do Sistema Penal.

Critica-se muitas vezes a defesa desta função sob o argumento que dar-se-ia ao sistema penal um aspecto extremamente utilitarista, de satisfação à sociedade, convertendo o homem em mero panfleto de uma segurança aparente.

As críticas são bem feitas e possuem fundamento. A questão é que elas se aplicam não a função em si de estabilização do ordenamento jurídico, e sim a falta de limitações a esta função. É uma questão de contorno e não de substância.

Quaisquer funções públicas devem ser construídas a partir do respeito à dignidade humana. As pretensões políticas devem ser atreladas a possibilidade de atribuição de tais ou quais responsabilidades ao indivíduo, considerando neste processo suas circunstâncias pessoais e ambientais.

A partir do momento em que eu defino a possibilidade de atribuir uma responsabilidade ao individuo, a definição da função política do elemento construído dar-se-á dentro do entorno do respeito à dignidade da pessoa humana. Respeitado o limite humano, a construção de determinado instituto estará livre para se definir por questões puramente lógicas, racionais e funcionais.

Sem sombra de dúvida o Direito Penal exerce um papel de reafirmação do Direito e do Estado perante a sociedade, que se submete a este justamente sob a condição de que esse lhe garanta (ou se empenhe em garantir) certas proteções, dentre as quais as de segurança pública, a qual se realiza através da proteção de bens jurídicos fundamentais pelo aparato punitivo, diga-se, pelo Direito Penal.

Há um caráter político no Direito Penal consistente na estabilização da sociedade através da estabilização da confiança no ordenamento jurídico. O que não se pode é utilizar essa fundamentação de forma isolada e extremista, de modo a justificar que o homem (delinqüente) seja um meio e não um fim em si mesmo, sucumbindo à crítica kantiana.

Quaisquer funções que se atribua ao Direito Penal, se não encaradas sob uma limitação constituída por garantias de ordem individual, podem ser levadas a modelos autoritários e repressivos que transformam os homens em meros instrumentos, destituindo-os de sua dignidade e humanidade.

A análise crítica dos fins das penas e da justificação do Direito Penal deve ser construída não isoladamente, mas em conjunto com as garantias limitadoras de seu funcionalismo.

Garantia do réu contra a vingança privada – O direito penal trás consigo benesses várias como a legalidade, o devido processo penal, o primado da inocência até prova em contrário, o primado do in dúbio pro réu.

A ausência do Direito Penal não suprimiria a existência de conflito de interesses, que passariam a ser solvidos na esfera privada, o que sempre se mostrou muito mais cruel e injusto. Basta ver que a população sempre cede ao espetáculo midiático, condenando antes de julgar, propondo medidas extremas como linchamento, confundindo direito e moral.

O Direito Penal funciona para o réu como dupla barreira, frente à vingança privada e frente à utilização despótica e autoritária do Estado.

O réu, através do Direito Penal, tem as garantias:

1.   Só ser julgado por fato previamente definido como crime e apenado com as penas previamente cominadas.

2.   Ter direito a um amplo e irrestrito direito ao contraditório e a defesa plena.

3.   Só ser condenado com prova cabal da materialidade e da autoria.

4.   Só ser punido por fatos que lese bens jurídicos, não podendo ser julgado por comportamentos morais ou atos que só afetem a si próprio.

5.   Não ser submetido à sanha popular de praticar justiça com as próprias mãos ou entronizar a lei de Talião[4].

Através dessa tripla fundamentação e legitimação do Direito Penal e das Penas, pode-se trabalhar o funcionalismo penal, para, futuramente, demonstrar como a culpabilidade servirá de barreira para seu emprego funcional em garantia do indivíduo.

Vê-se que a construção do conceito do funcionalismo e da culpabilidade não se insere em um plano de liberalidade. Sua construção estará atrelada as razões que fundamentam o direito penal e que foram, em breve análise, expostas.

 

 

1.3 O Fenômeno Criminal:

 

 

A criminologia é o segmento das ciências criminais que fornece os critérios para construção de uma teoria analítica que compreenda o crime enquanto fenômeno social.

Deve ser compreendida em interação com a política criminal e com a dogmática penal, atuando como fundamento racional das estratégias de prevenção e ressocialização a serem elaboradas pela política criminal.

Através da criminologia é possível definir critérios político-criminais lógicos de criminalização e descriminalização, determinação de mecanismos mais ou menos eficientes para enfrentar cada etapa da etiologia do crime, divisão graduada dos meios de punição e reação de acordo com sua necessidade e eficácia.

A importância do estudo do fenômeno criminal revela-se na medida em que a compreensão do funcionalismo penal e da culpabilidade devem ser realizados tendo por paradigma todo o complexo das ciências criminais (criminologia, política criminal e dogmática penal) bem como as forças de interação que as mantém integradas.

A fundamentação racional dos fins da pena e do direito penal está ligada a critérios eficientes de política criminal e a coerência com os estudos empíricos apontados pela criminologia. Se, por exemplo, adota-se a função da pena privativa de liberdade como sendo primacialmente ressocializadora, haverá uma inevitável incoerência lógica, pois a criminologia nos mostra que a privação da liberdade estigmatiza, criminaliza e ‘dessocializa’, logo, não guarda qualquer eficiência político criminal. Portanto, a atribuição dessa função como primacial não se mostra harmônica com os estudos criminológicos e político-criminais.

A criminologia realizará um estudo em que se revelam as diversas dimensões do fenômeno criminal, desde suas origens sociais, criação da lei, administração da justiça penal, causas do comportamento valorado como delinqüente, eficácia da prevenção e controle do crime, meios de reabilitação individual.

Supera o positivismo kelseniano, definindo o papel interventor e co-criador do intérprete e do aplicador do direito.

O crime, nos dizeres de Jorge de Figueiredo Dias, é cada vez menos uma questão de lei, e cada vez mais o resultado da intervenção prescritiva das instâncias formais de controle.[5]

A criminologia constrói um conceito do fenômeno criminal que nos permite trabalhar com um movimento fundamentado de criminalização ou descriminalização, combatendo a idéia de criminalizar condutas simplesmente para tornar eficaz uma moralidade particular ou uma estrutura, econômico, social e política peculiar.

Resta superada as tendências dicotômicas de raízes neokantianas de separar a função da dogmática penal e da criminologia como sendo a primeira pertencente às “ciências culturais e as últimas às ciências da natureza”.[6]

Não há como limitarmos o campo do criminólogo a um mero exercício de explicação asséptica do fenômeno criminal, como se fosse este composto de meros elementos naturais.

O crime é um complexo que tem, indubitavelmente, uma matiz cultural. Deve, portanto, ser compreendido, não explicado.

A criminologia não pode estar presa por princípios dogmáticos, mas também não pode ser manietada por ser atrelada a uma visão político - social imposta pelo sistema.

Todas as asserções criminológicas devem funcionar como elemento crítico sobre as soluções institucionais vigentes, podendo legitimar ou deslegitimar decisões políticas adotadas. É necessário um descomprometimento imparcial.

Isso não importa dizer que a criminologia é uma ciência neutra, sendo esta percepção errônea, posto que se constrói sobre condicionantes ideológicos, o que Gouldner designou “supostos básicos subjacentes”[7].

Construir o sentido etiológico do fenômeno criminal pela criminologia é tarefa das mais árduas, e necessariamente, fundadas em suposto básico subjacente. Indaga-se qual suposto básico subjacente funda a criminologia. É nessa resposta que encontramos a matiz ideológica, que suprime da criminologia qualquer pretensão asséptica.

Essa pedra angular deve se apoiar sobre a conquista cultural dos Direitos Humanos, construída como reação aos mecanismos de opressão e dominação, e que vem talhada em um conceito universal de dignidade da pessoa humana.

A partir da dignidade da pessoa humana pode-se construir o conceito do fenômeno criminal com base: a) no homem a quem se atribui pecha de delinqüente; b) a sociedade que seleciona condutas a qual designa criminal, ao mesmo tempo que indiretamente propugna essas próprias condutas; c) os mecanismos de seleção que impõe uma reação (seletiva) ao fenômeno criminal.

Evidente que esse conceito será critico, e terá finalidades que redundarão diretamente na política criminal de conter os abusos e proteger as fronteiras das garantias conquistadas em prol da dignidade humana.

Por não ser objeto precípuo do presente trabalho, essa análise será feita de forma sintética, apenas com o escopo de situar, oportunamente, as finalidades do sistema penal (funcionalismo) apontando os mecanismos de contenção pressupostos e anteriores à culpabilidade, que opera em nível dogmático penal.

 

 

1.3.1 O homem criminoso

 

 

Descarta-se a utilização das doutrinas bioantropológica para explicar o homem criminoso pela sua instabilidade, provisoriedade e possibilidade de perpetrar injustiças que agridam a dignidade da pessoa humana, substrato fundamental.

Ademais, parece impossível discernir até onde se pode apontar a causa genética como fator influente em um dado comportamento, posto que há uma seletividade a determinados estereótipos, cuja construção é fruto de uma tradição preconceituosa da própria sociedade.

Razão assiste, em parte, à teoria psicodinâmica, na medida em que essa explica o crime do prisma individual como um modelo conflitual entre os impulsos naturais e a resistência adquirida pela incorporação das normas socialmente propagadas.

Abrahansen, citado por Gwynne Nettler, apresenta a seguinte fórmula:

 

Crime é o resultado das tendências impulsivas, somadas ao peso das variáveis situacionais, dividida pela resistências racionais e emocionais do indivíduo, composta esta última pelas interiores (culpa, consciência) e pelas exteriores (vergonha, medo).[8]

 

Traz-se para a criminologia o velho problema debatido pela filosofia, pela sociologia, pela psicologia, residente no confronto entre a natureza e a cultura, dos interesses egoísticos e os valores comunitários e o equilíbrio entre o espaço da liberdade e a ordem instituída.[9]

A personalidade não é uma estrutura homogênea. É composta, linhas gerais, por três estruturas – o ID, componente inferior, inconsciente, irracional e desorganizado, fronteiriço entre a vida psíquica e fisiológica e fonte dos desejos – o Super-ego, consciência e agência de controle racional do ID, assumindo um papel de mecanismo inibitório – e o EGO, instancia intermediária sujeita as exigências contraditórias do ID e do Super-ego.

Da teoria psicodinâmica extrai-se as conclusões:

O homem é por natureza um ser desligado de padrões culturais e sociais.

A causa do crime é, em última análise, é fruto da interação do homem com a sociedade.

A personalidade é modelável pelas condições existenciais que marcam a trajetória do indivíduo.

Nas palavras de Glover: “O crime representa uma das parcelas do preço pago pela domesticação de um animal selvagem por natureza; ou, numa formulação mais atenuada, é uma das conseqüências de uma domesticação sem êxito”.[10]

O crime sofre também uma influencia considerável do fenômeno frustração-agressão, onde à agressão corresponde uma frustração e vice versa.

Revela o delinqüente uma predominância de reação extra-punitiva à frustração, baseada no ressentimento e hostilidade, condenação do ambiente, tendências de agressão contra o exterior e projeção, contrariamente aos não delinqüentes, em que predomina a resposta intra punitiva, baseada na culpa e remorso, auto-condenação, tendências de agressão contra o interior e transferência e isolamento.

A questão sobre a capacidade de resistir à frustração sem incidir em uma agressão caracterizada como criminal reside, nas palavras de Lückert, na “experiência adquirida durante a infância, da mobilidade do espírito, da capacidade de adaptação, da integração da personalidade, do grau de comunicação social, da abertura aos valores e aos apelos da consciência, da correta e segura orientação ética, e, por último, da estabilidade emocional”. [11]

A agressão, contudo, não está necessariamente ligada à frustração, podendo ter como fator desencadeador elementos culturais de aprendizagem ou socialização.

A injustiça tem como conseqüência a dissolução ou relaxamento do vínculo moral à lei.

 

 

1.3.2 A Sociedade como promotora do fenômeno criminal

 

 

A análise do papel da sociedade como promotora do fenômeno criminal é precipuamente realizada pela sociologia criminal.

A criminalização sob o prisma da promoção pela sociedade compreende dois âmbitos, um em termos de estimulo pelo meio social aos comportamentos reputados como desviantes, outro pela estigmatização seletiva de condutas pelos meios de controle social.

Para falar em comportamento criminal há necessariamente que referir-se a uma ordem normativa que tente estabelecer uma ordem social de possível convivência.

A realidade social, mutante, tem como característica uma permanente precariedade.

A insuficiência para as perspectivas de regulação ou satisfação de necessidades levam a adoção de modelos alternativos, no seio dos quais surgem os comportamentos desviantes, apropriando-nos da expressão cunhada por Jorge de Figueiredo Dias.[12]

Temos uma tensão constante surgida do confronto entre a ordem social definida, seu conteúdo e sua extensão, e a livre expressão da individualidade.

Há uma dispersão de modos de socialização, cultura e moral que torna cada vez mais caleidoscópica a sociedade, deslegitimando intenções constritivas que nos conduza a modelos totalitários de regulação do comportamento.

A realidade nega a possibilidade de se estabelecerem sociedades como a caracterizada por George Owell na obra clássica 1984. A pretensão de instituir um modelo rígido de comportamento social conduzirá a tensões explosivas e incontroláveis, posto que negará a multiformidade de expressões e interações que o homem desenvolveu paralelamente ao incremento dos meios de comunicação e da globalização.

A definição do espaço de tolerância à diversidade dentro de uma ordem social, no que repercute ao sistema penal, depende de uma criteriosa avaliação de qual papel o direito penal deve realizar na sociedade. O Direito Penal terá que ponderar as conseqüências que o fenômeno criminal produz na interação sociedade e criminoso (estigmatização) e até onde a ele é conferido o direito de estabelecer padrões de comportamento.

Uma visão crítica do direito penal o descreverá, em certos momentos, como um meio de dominação perpetrado pelos detentores do poder, como forma de garantir sua posição de dominância.

Percebe-se uma tendência a criminalizar condutas próprias dos grupos marginais (excluídos) ou punir estas condutas de forma mais acentuada, sendo mais condescendente com os crimes próprios dos integrantes das classes sociais mais altas, ainda que potencialmente mais danosos ou execráveis, haja vista um comparativo do modelo punitivo adotado para o furto e para os crimes contra a ordem tributária.

Durkheim aponta efeitos positivos do crime, ao compreendê-lo como via de reforço á coesão social e forma de evolução das rígidas estruturas institucionais normativas e ao imobilismo, funcionando como válvula do desenvolvimento de novas realidades sociais.[13]

Sob certo aspecto verifica-se a necessidade do crime na sociedade.

O crime atua como forma de aliviar tensões – o ser humano não é perfeito, mas fruto de imperfeições. A sociedade projeta o comportamento humano sobre um arquétipo ideal, porém, se não houvesse vias de escapes que permitissem certas corruptelas ao modelo perfeccionista da sociedade chegaríamos a um tal ponto de tensão que “explodiríamos”. Para haver a virtude é necessário o crime. Nessa perspectiva a citação ilustrativa da necessidade da prostituta em uma sociedade para que possa os entes familiares dar vazão as satisfações sexuais ocultas, e, com isso, conduzir sua vida “normal”, projetada na célebre citação de Davis a considerar que “representando, por si mesma, o tipo supremo do vício, a prostituta é em última instância, o mais eficaz guardião da virtude”.[14]

Registre que a criação normativa do crime é comprovadamente um fenômeno fruto das desigualdades sociais promovidas pelo sistema, bem como dos ideais que propugna e da insuficiência de meios para atender a todas as expectativas geradas.

O sistema capitalista tem um forte teor produtivo de criminalidade.

Favelas convivendo ao lado de bairros de extrema luxuosidade dão testemunho das desigualdades.

A sociedade contemporânea, inserida no modo de produção capitalista, é altamente criminógena. Dentre os fenômenos que promove estimulando o surgimento do fenômeno criminal destacamos:

a) Vende a idéia de que o sucesso, a felicidade e a realização plena está associada com o consumo e o poder aquisitivo, o que é natural, já que sua mola propulsora é o consumo.

b) Estimula o culto a violência e poder das armas, filmes, séries televisivas, jogos interativos relatam o fetiche da violência.

c) Cria uma cultura de revolta e culto à criminalidade, latente nas zonas periféricas, onde ser ‘do crime’ é a única forma de afirmação e poder que o indivíduo encontra em uma sociedade que o põe a margem. O indivíduo, despido de cidadania, só é percebido ou valorizado no momento em que ele põe uma arma na cara do ‘cidadão’. Até então o tachamos de fracassado e com eles não nos misturamos. O crime se torna não apenas uma forma de aquisição de seu produto, mas uma forma de afirmação social. Isso é percebido de forma singela pelo criminoso. Ele vê o João, trabalhador, ganhando um salário mínimo, sendo tratado com indiferença e desprezo pela sociedade e pela comunidade (esse não faz parte da sociedade), e vê Zé Pequeno, criminoso, tratado com temor pela sociedade e temor e respeito pela comunidade. Se quiser se afirmar socialmente sua única opção é Zé Pequeno, nunca João.

A instabilidade pela má distribuição de renda, combinada com o estímulo ao consumo e o surgimento de modelos alternativos de aquisição e organização conduz a uma ideologia do medo, intensificada pelos meios de comunicação, promovendo uma demagógica inflação de leis penais, aumentando o rol de condutas criminalizadas.

Em comparação com uma ideologia cristã conformista da idade medieval, um simples raciocínio já mostra qual sociedade é mais propensa à reprodução da criminalidade.

 


2 - Funcionalismo Penal e culpabilidade

 

 

A pedra sofre pacientemente o cinzel que a molda, e as cordas que o músico faz vibrar respondem-lhe sem resistência aos seus dedos. Somente o legislador trabalha com um tema autônomo e rebelde – a liberdade humana [...]

(Schiller).

 

 

2.1 – Funcionalismo

 

 

A necessidade de se discutir o papel do direito na sociedade é antiga nas ciências jurídicas.

Essa discussão acaba refletindo em todos os ramos seccionais do ordenamento, para esse trabalho, em particular, tentaremos vislumbrar o reflexo no campo do direito penal.

Conforme aquilo que do direito se espera constata-se uma fragilidade institucional, ou seja, uma impotência absoluta para realização dos propósitos estabelecidos.

Há um discurso perverso que tenta repassar para o direito e para o judiciário atribuições para as quais eles são incapacitados, atribuições cujo palco de discussão e realização na verdade pertencem ao campo da mobilização política da sociedade.

A Constituição Federal de 1988, se por um lado foi extremamente benevolente em albergar as mais diversas postulações sociais, por outro, esfriou a mobilização política, transferindo para o judiciário um papel que ele não tem condições de realizar.

Garantimos o direito ao meio ambiente, à infância e juventude, à proteção aos idosos, à reforma agrária, à função social da propriedade, à moradia, à saúde para todos, etc.

No entanto, o discurso divorcia-se da prática, e o papel de aproximação dessas duas realidades só é passível de ser efetivamente concretizado pelas mobilizações políticas.

Não se faz, por exemplo, a proteção efetiva do meio ambiente pelo judiciário. O judiciário pode atuar em casos específicos, pontuais, pode legitimar um discurso jurídico de proteção e reafirmar a vigência da norma, pode garantir as fronteiras conquistadas, mas a real proteção do meio ambiente depende da mobilização política e consciência pública.

Não há como se comprometer, portanto, com um discurso jurídico divorciado da necessária mobilização política.

Por isso o direito deve estar comprometido com as finalidades e funções que ele seja apto a realizar.

Nas palavras de Plínio Melgaré:

 

O direito nasce inserido na realidade experenciada pelo homem. É obra da realização humana, historiacamente condicionado. Produto da cultura humana com seu porquê e para que, sua respectiva razão de ser e finalidade.[15] 

 

Há necessidade na vida humana em sociedade de compatibilizar umaexistência plural em um espaço singular.”[16].

O direito é uma das formas, das várias existentes, que tentará tornar viável a existência humana em sociedade na sua interação interpessoal e com o planeta.

Ensina o Professor Castanheira Neves:

 

A decisão, uma vez todavia prescrita, deverá (...) revelar-se objectivo-racionalmente fundamentada no seu concreto sentido prático-normativo, de modo a não se ter de fazer intervir entre os seus fundamentos-argumentos e a sua conclusão a mera invocação do fiat da decisão como factor determinante- ou seja, o que há nela de decisão autoritária deverá ser assimilável pelo juízo, pelo raciocínio argumentativamente fundamentante em que ele se exprima.[17]

 

O funcionalismo jurídico vem justamente a dar projeção funcional (instrumental) ao direito.

Se o direito é criado culturalmente para atender a finalidades externas, existentes antes da sua criação, toda a sua atuação deve ser pautada tendo em vista a eficácia na consecução desses objetivos.

Chaïm Perelman nos diz: “A concepção funcional do direito vê neste um meio para a obtenção de um fim buscado pelo legislador”.[18]

O ordenamento jurídico é compreendido para o funcionalismo como uma estratégia político-social, teleologicamente e racionalmente definida. A decisão judicial é a realização dessa estratégia.

Há uma preocupação maior para o funcionalismo em definir para que serve o direito do que o que ele é. Verifica-se um comprometimento epistemológico e teleológico do direito que supera as questões ontológicas.

Não subsistem as críticas elaboradas pelos finalistas que o funcionalismo abriria espaço para a vontade estatal manipular princípios e valores na promoção de objetivos escusos.

O funcionalismo concebido por Roxin defende uma extensiva introdução de dados empíricos na sistemática e na dogmática das teorias gerais do direito penal, dotando a teoria de limites racionais no estabelecimento de propósitos político criminais.[19]

É importante a superação da fixação hermética na estrutura lógico real da finalidade da ação humana, uma vez que ela não se revela apta a solver todos os problemas da dogmática penal.

Analisa nesse sentido Roxin:

 

Face ao exposto, pode se afirmar que a virada do finalismo para os dados ontológicos levou a desenvolvimentos em parte corretos, em parte errôneo (...) Assim, por ex., a finalidade do autor é decisiva quando se quer saber se há tentativa de homicídio ou um disparo por mero susto. Pois, como foi dito, o injusto da tentativa fundamenta-se, ainda que não exclusivamente, na finalidade do autor. Por outro lado, a modalidade do controle finalista é irrelevante quando se quer responder à pergunta quanto a se aquele que dispara contra outrem em legitima defesa putativa comete ou não uma ação dolosa de homicídio. E, noutros casos, a finalidade deve ser complementada por critérios de imputação objetiva quando o que importa é saber se uma lesão a bem jurídico almejada ou cujo risco foi assumido pelo autor representa ou não uma realização típica de um risco permitido.[20]

 

A preocupação com a possibilidade de manipulação das intenções político-criminal pelo funcionalismo se exaure na medida em que os preceitos propostos tem que se fundamentar, obrigatoriamente, sobre princípios garantistas e humanitários como a dignidade da pessoa humana, a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, etc. Estes princípios, construídos no seio dos Direitos Humanos, contemplados pelas modernas constituições, atuam como fundamento e limite das políticas propugnadas pelo Estado.

O cerne do funcionalismo é, portanto, necessariamente pautado por uma dimensão humanitária

O funcionalismo concentra seu foco na eficiência dos meios. Não se admite que fique o jurista preso a formalidades ou conceituações lógico reais se estas conceituações importarem na derrocada de seus fins.

Contudo, o funcionalismo é permeado por uma racionalidade material. Esta racionalidade atenta para o conteúdo, não permitindo uma disparidade surreal entre as proposições da deontologia e da ontologia. Nessa medida não está o funcionalismo totalmente divorciado das estruturas lógico reais, apenas que não centraliza sua estrutura teórica sobre elas, mas lhes atribui  o papel de limitador racional às proposições normativas.

Dentro da perspectiva, podemos concluir que o direito penal assume uma função finalisticamente instrumentalizada, mas axiologicamente neutra? Não, pois a dignidade da pessoa humana atua como valor axiológico que refuta sua neutralidade. Toda e qualquer função atribuída ao direito está intrinsecamente comprometida com a proteção da dignidade da pessoa humana.

O funcionalismo surgiu contemporaneamente para o Direito Penal e apresentou duas variações, uma originada no funcionalismo estrutural de Parsons, que redundou no funcionalismo teleológico, valorativo, hoje conhecido por 'moderado', e outro originado do funcionalismo sistemico de Luhman, normativo, estratégico e conhecido por 'radical'.

O funcionalismo moderado foi consagrado por Claus Roxin, que o teorizou através do que chamou de Funcionalismo Racional Teleológico. A idéia de Roxin consiste em uma reconstrução da teoria do delito tendo por referencial critérios políticos criminais ao invés da estrutura lógico real da finalidade das ações humanas (finalismo). Propugna o mestre alemão que o sistema penal deve se permitir permear por valorações político criminais.

Roxin baseia-se na teoria personalista da ação apresentando-a como manifestação da personalidade (atribuições a uma pessoa com centro de atos anímicos espirituais).

A integração da política criminal às estruturas do delito dependia de que estas fossem passíveis de valoração. Por isso, para coordenar a política criminal e a dogmática penal, Roxin faz um normatização de todas as categorias do sistema penal, afastando-se da vinculação ontológica do finalismo.

Não adere o Funcionalismo Racional Teleológico a um normativismo inconseqüente, respeitando as resistências naturais do ser ao dever ser. Supera, contudo, o papel categórico que as estruturas lógico reais haviam assumido no finalismo. O resultado é que o sistema penal ganha em abertura e dinâmica, e o mais importante, passa a operar estreitamente ligado aos objetivos político-criminais a serem alcançados.

Fique claro que o presente trabalho adere a essa concepção de funcionalismo, com algumas discordâncias pontuais às soluções dadas, e não ao funcionalismo radical de Günther Jakobs ou o funcionalismo limitado de Santiago Mir Puig, embora se reconheça que ambos os autores trouxeram contribuições de grande valia.

Citamos Paulo de Souza Queiroz:

 

O funcionalismo pretende, assim, unir a teoria do delito à teoria da pena ou, ainda, integrar a política criminal à dogmática penal, temas tradicionalmente tratados de forma separada, como se nenhuma relação mantivessem entre si (ao menos para a doutrina).[21]

 

Define Roxin:

 

A função do Direito Penal consiste em garantir a seus cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando as metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos.[22]

 

No mesmo sentido preleciona Fernando Fernandez: “Deve estar direcionado o Direito Penal a indispensável tutela dos bens jurídicos essenciais e a manutenção da viabilidade da vida em sociedade, a partir das condutas lesivas ou que exponham a perigo tais bens”.[23]

Desde que a humanidade aderiu à concepção ideológica do contrato social como elemento necessário de legitimação do Estado democrático, compreende-se como transferido ao legislador somente as atribuições de intervenção jurídico penais necessárias.

A idéia da 'necessidade' como imperativo para a legitimação da intervenção  penal do Estado possui dois significados. Primeiro, no sentido de justificativa proporcional da utilização do Direito Penal face à essencialidade do bem que se quer proteger (Princípio da Fragmentariedade). Segundo na verificação de que outros ramos do direito revelaram-se insuficientes ou inadequados à tutela do bem a ser protegido (Princípio da Subsidiariedade).

Fora desse espectro a intervenção penal é deslegitimada, pois não pode ser extraída do conceito ideal de pacto social. Veja que a questão transcende, de certa forma, a constitucionalidade, adentrando a discussão filosófica dos limites do Estado em sua ingerência na vida do cidadão, pontuada pela preservação da dignidade da pessoa humana.

O próprio conceito de dignidade da pessoa humana é exterior à definição constitucional. É fruto de uma construção cultural histórica que encherga, cada vez mais, no próximo um reflexo de si mesmo, e nessa seara agrega valores mínimos ao ser humano, que, querendo ver preservado para si quer ver preservado para outrém.

A compreensão do Direito Penal como funcionalmente atrelado à manutenção da sociedade em estabilidade e paz através da subsidiária proteção a bens jurídicos fundamentais afasta a possibilidade de penalizar condutas que se restrinjam a esfera do moral.

O funcionalismo se assenta sobre uma base fundamental normativa consistente na imputação objetiva. O causalismo e o finalismo estruturavam-se sobre um elemento do ser. Por sua vez, o funcionalismo não se contenta com a mera causação do resultado ou o agir final humano (ôntico) para definir o crime, antes, estrutura-se sobre a prática de um risco não permitido (axiológico) que lese ou ameace de lesão bens jurídicos fundamentais.

Cabe a sociedade ponderar quais riscos devem ser permitidos para seu bem estar e desenvolvimento e quais devem ser proibidos para os mesmos propósitos. A imputação objetiva liga-se ao funcionalismo penal, pois, se concebemos o direito penal a partir de sua função de proteção subsidiária de bens jurídicos como forma de garantia da paz e estabilidade social, e a própria sociedade promove a assunção de riscos toleráveis para seu desenvolvimento, torna-se impossível criminalizar uma conduta se esta adere a um risco permitido, pois se esvazia a funcionalidade do direito penal.

O direito penal funda-se em uma base normativa e não em estruturas lógico reais (embora elas vinculem os conceitos normativos construídos). O fundamento em uma base normativa não esfacela as garantias do indivíduo, primeiro porque as valorações político-criminais que ela compreende estão vinculadas a função do direito penal, que tem que ser explicitada de forma racional. Segundo porque ela deve sempre reverenciar o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. E por fim, porque estará o funcionalismo penal limitado pela culpabilidade.

O combate à criminalidade deve ser encarado como uma missão que envolve diversos setores da sociedade como a família, a escola, os órgãos assistenciais, os sistemas de proteção ao menor, etc.

Impende delinear de forma clara qual o papel específico que deve o Direito Penal realizar no seio social, quais funções se põe sob sua égide, quais as perspectivas que podemos legitimamente depositar sobre seus ombros.

Evidentemente que essa resposta não advirá da opinião pública ou da opinião popular, que, invariavelmente, age sobre o influxo de uma reação emotiva imediatista e destemperada, e, por regra, contraria as prescrições ministradas pelo mestre Assis Toledo: “Não deve, pois, ser chamado (o direito penal) a tudo resolver e menos ainda deve transformar-se em desajeitado modelador do caráter, da personalidade, ou um sancionador da formação moral profunda da pessoa.”[24]

O direito penal tem por função primordial a tutela de bens jurídicos como forma de reafirmar a ordem social e estabilizar as expectativas de segurança e paz no seio social.

Se mostra, de início, duplamente limitado o papel do Direito Penal, em parte por ser subsidiário, leia-se, protege apenas bens jurídicos que não foram suficientemente tutelados por outros ramos do direito. Em parte, por ser fragmentário, isto é, não é qualquer bem que possui densidade o suficiente para justificar a intervenção penal.

A intervenção penal está ligada a importância ou gravidade da lesão, real ou potencial.

Este aspecto residual se justifica porque o Direito Penal age restringindo bens que são reputados fundamentais (liberdade, patrimônio, direito ao exercício da plena cidadania, etc.), logo, só consegue legitimar sua intervenção se estritamente necessário, operando, sempre, quer em concreto, quer em abstrato, tendo por parâmetro critérios de proporcionalidade e razoabilidade.

O esteio maior sobre o qual se ergue esta construção teórica é o princípio angular da dignidade da pessoa humana.

O conteúdo material do injusto está inexoravelmente ligado à lesão ou à exposição de um bem jurídico a perigo.

A função do Direito Penal é simbiótica à função da Pena. Isto porque esta última é instrumento sem o qual o primeiro não se realiza.

O Estado tem a função de garantir a cada um o espaço necessário para que possa comunitariamente exercer o livre desenvolvimento de sua personalidade. Para que esse espaço se realize é necessário que doemos parcelas mínimas dos nossos direitos, garantias e liberdades, sem os quais ele não se realizaria.

A idéia de um contrato social exprime justamente este raciocínio, leia-se, o Estado só se legitima a tolher minha livre manifestação a partir do momento em que ele o faça para garantir a todos, inclusive a mim, uma existência digna em sociedade. Meu pacto com o Estado consiste em abrir mão de parcela de minha liberdade para poder conviver em um ambiente de estabilidade social.

Com base nessa linha de raciocínio afasta-se desde logo qualquer justificativa retributiva da pena, pois não se concebe a hipótese de ceder parcela da liberdade apenas para que se realize uma compensação simbólica da violência, destituída de quaisquer fins.

A atuação do Estado que se sustente apenas em um aspecto retributivo é ilegítima, e, em contrapartida, justifica a irresignação e a resistência por partes dos indivíduos. A resistência e a irresignação serão legítimas quando a coerção estatal se deslegitimar. Quem ousaria dizer que Ghandi agiu ilegitimamente ao resistir pacificamente aos desmandos da Grã Bretanha na Índia?

Dentro da ótica funcionalista, se toda a pena pressupõe a culpa, nem toda a culpa pressupõe pena. Isto se dá justamente por que o Direito Penal e a Pena não são sustentados no aspecto retributivo, e a pena, como violência necessária que é, só se justificará se ao realizar-se cumprir seus fins.

A culpa é pressuposto, limite e fundamento da pena que respeite a dignidade da pessoa humana, mas não fundamento funcional.

Se o papel do Direito Penal é a tutela subsidiária de bens jurídicos fundamentais à estabilidade da sociedade e à convivencia comunitária pacífica, a pena refletirá em suas finalidades os meios específicos pelos quais o direito penal atinge seu fim maior.

Roxin nos fornece o fundamento ideológico da teoria teleológica - funcional:

 

O Direito Penal é muito mais forma, através da qual as finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigencia jurídica. Se a teoria do delito for construída neste sentido, teleologicamente, cairão por terra todas as críticas que se dirigem contra a dogmática abstrata-conceitual, herdada dos tempos positivistas. Um divórcio entre contrução dogmática e acertos político-criminais, é de plano impossível, e também o tão querido procedimento de jogar o trabalho dogmático-penal e o criminológico um contra o outro perde o seu sentido: pois transformar conhecimentos criminológicos em exigências político-criminais, esta em regras jurídicas, da lex lata ou ferenda, é um processo em cada uma de suas etapas, necessário e importante para a obtenção do socialmente correto.[25]

 

É fundamental, ainda, construir a seguinte reflexão, o Sistema Penal é um complexo maior do que a Dogmática Penal. A Política Criminal é mais ampla que a mera operatividade jurídica do direito penal. Ela compreende uma série de intervenções (educação, saúde, moradia, promoção da cidadania, distribuição de renda, promoção cultural, etc.) mais significantes para o combate ao crime que o próprio Direito Penal. Por isso, o funcionalismo tem que ter em perspectiva, ao permitir a interpenetração da política criminal na dogmática, que essa política não pode ser construída ao alvedrio da criminologia e talante dos governantes.

Verifica-se na realidade contemporânea uma distorção no exercício funcional do Direito Penal, realizado de forma divorciada das conclusões extraídas da criminologia e de uma política criminal com ela integrada.

Constata-se uma política criminal precursora de uma inflação penal desmesurada e da atribuição ao Direito Penal do ridículo papel de panfletário simbólico da atuação governamental, disfarçando a letargia em promover as reformas de bases que realmente surtiriam algum efeito no fenômeno criminal. A permitir essa política demagógica e avessa aos apontamentos fornecidos pela criminologia, o Direito Penal será sustentáculo de uma hipocrisia.

Haverá uma crescente erosão da credibilidade do direito penal.

A dogmática está presa à política criminal, que a direciona no seu funcionamento teleológico e racional, comprometendo-a com os fins do Direito Penal e da Pena. Por sua vez, a Política Criminal está comprometida com a Criminologia, tendo que adotar propostas e direcionamentos que se adéqüem aos estudos empíricos produzidos pelos criminólogos e envolvam todos os campos de atuação político criminal (sociedade, executivo, judiciário e legislativo). É necessário que a política criminal seja criticamente avaliada pela criminologia, de forma a confrontar a eficácia de suas medidas na redução do fenômeno criminal e das causas criminógenas.

A criminologia é o diagnóstico sobre o qual atua a Política Criminal, prognóstico.

Uma política criminal embasada criminologicamente, por exemplo, jamais proporá a produção em série de leis penais com cunho meramente demagógico. Antes, limitará o Direito Penal ao seu específico e peculiar papel dentro da prevenção ao crime (minimalismo penal), e buscará as formas para que em face a este papel ele seja o mais eficiente possível.

A criminologia tem demonstrado por pesquisas realizadas que o direito penal para ser eficiente no seu propósito deve ser minimizado e não maximizado (inverso da política que vem sendo adotada).

Esta conclusão se dá por por dois motivos:

I) Se o direito penal quer prevenir intimidando e fixando valores, deve se ater às condutas sérias, com lesividade significativa, sob pena de se desmoralizar, quer porque se tudo é crime, crime é nada, ou seja, banaliza-se a conduta "criminosa", e a partir do momento em que qualquer coisa é crime este título perde o seu potencial preventivo; quer porque a inflação penal sobrecarregará o sistema punitivo que se tornará inerte, deixando de punir as condutas que realmente deveria, e a impunidade esvaziará qualquer caráter preventivo.

II) A minimização também será cogente porque a persecução criminal, principalmente quando a pena é privativa de liberdade, estigmatiza, marginaliza e reforça os impulsos criminosos do apenado. As penitenciárias são uma fábrica de criminosos e não instituições ressocializadoras. O indivíduo entra por furto e sai roubando, entra roubando e sai matando. Esse fenômeno é natural, a partir do momento em que eu concentro em um microcosmo, muitas vezes em condições subumanas, várias pessoas que já apontam um desvio dos padrões sociais desejáveis, em circunstâncias que estimulam o medo, a violência, a agressividade. É evidente que ao invés de ressocializar iremos potencializar os instintos criminosos do sujeito. Por outro lado, a inflação penitenciária permitiu o surgimento de organizações criminosas intramuros como o Primeiro Comando da Capítal (PCC) e o Comando Vermelho (CV).

Portanto, se o papel do Direito Penal é tutelar subsidiariamente bens jurídicos através da prevenção geral negativa e positiva em primeiro plano, e a prevenção especial positiva (na medida do possível) em segundo plano, com base no que vem apontando os estudos criminológicos, deverá ser minimizado, restringindo-se a tipificar as condutas realmente lesivas aos bens jurídicos fundamentais da sociedade, nos casos em que se faça necessária sua intervenção.

 

 

2.2  Prevenção Geral

 

 

A idéia de prevenção geral compreende a fixação na psique coletiva de valores e aderência social a condutas que afastem os indivíduos da prática de fatos tipificados como criminosos.

Possui um prisma negativo, consistente na intimidação dos indivíduos por receio da pena, levando-os a absterem-se das práticas delituosas, e um prisma positivo, consistente na manutenção e reforço na comunidade da validade e vigência das normas e fixação no seio social dos valores que são caros ao ordenamento jurídico (vida, propriedade, liberdade sexual, probidade administrativa, etc.)[26].

A prevenção geral positiva da pena funciona como garantidora da estabilidade social, pois permite à generalidade a confiança de que o Estado está atento na tutela dos bens essenciais ao indivíduo, e vê na aplicação da pena esta confirmação, continuando, portanto, a aceitar a permanência do pacto social e garantindo a credibilidade do Estado. Por outro lado, o Estado declara à coletividade os bens que reputa fundamentais dentro do ordenamento jurídico ao dotá-los de densidade jurídico penal. Quando o Estado tipifica o homicídio, por exemplo, está declarando à sociedade: “para mim a vida é bem tão importante que agressões dolosas ou culposas a ela serão chanceladas com a intervenção penal”.

Preleciona Domingos Sávio Calixto: “O sociólogo francês Durkheim falava da necessidade do crime pelo sentimento de indignação que ele causa, sendo essa repulsa social ao crime funcionaria como fator de coesão social, sua teoria funcionalista”.[27]

A prevenção geral, portanto, quer na sua ótica negativa, quer positiva, é fim perseguido pela pena que refletirá a consecução da função do Direito Penal (tutela subsidiária de bens jurídicos fundamentais).

De qualquer forma, carece de maiores e mais profundos estudos interligando vários setores das ciências humanas (psicologia, sociologia, direito, etc.) a comprovação da extensão e profundidade dos efeitos preventivos (negativo e positivo) produzidos. Esse estudo se voltará não aos criminosos, mas aos não criminosos, verificando até onde a pena aplicada a outrem os intimida a não praticar delitos ou afirma valores e reforçam em sua psique a crença na vigência e validade das normas. Estudo este que, diga-se de passagem, é extremamente custoso, pois a mutabilidade das coisas sempre inclui novos elementos na equação que dificultará o apreço da real força preventiva da norma. Se pensarmos, por exemplo, em um estudo realizado antes e depois da adoção da pena de morte em um país para saber até que medida esta possuía uma força intimidatória ou fixadora de valores, teremos que levar em conta diversos outros fatores mutantes como: crescimento demográfico, desigualdades sociais, implemento de novos riscos, inflação da legislação penal, etc. Ficará muito difícil conseguir isolar o elemento normativo para aferir exclusivamente sua força de influência. Independentemente de todas as dificuldades o estudo é necessário, e, ainda que sem precisão aritmética, seguimos nos balizando pelo reconhecimento de uma certa força preventiva da norma, motivo pelo qual segue-se sustentando a justificação do Direito Penal, expressando aversão ao Abolicionismo Radical de Louk Hulsman e Focault.

 

 

2.3- Prevenção Especial

 

 

A prevenção especial também possui um cariz positivo e um negativo.

Fala-se em prevenção especial positiva quando se pensa a pena como tendo por finalidade a ressocialização do apenado, e negativa quando se pensa na necessidade de isolá-lo do seio social para que não prossiga delinqüindo e lesando bens jurídicos.

A prevenção especial positiva não pode ser soerguida a função primacial da pena por uma pragmática constatação de absoluta incoerência entre a prática e o discurso. Para melhor elucidação do afirmado, quando se toma por base a mais comentada das penas, a privativa de liberdade, percebe-se que ela é absolutamente contrária a qualquer projeto de ressocialização do indivíduo. Ao segregar uma pessoa da sociedade e confiná-la em um ambiente onde todos já apresentaram características que desvirtuam dos padrões socialmente adequados, lançando sobre os mesmos o estigma da marginalidade, apartando-o de toda e qualquer realidade social exterior, faz-se atuar sobre o indivíduo uma força diametralmente oposta à ressocializadora.

Considerando a inevitabilidade da pena para atingir os propósitos iniciais de prevenção geral, uma vez que ela incida sobre o indivíduo, deve-e buscar ao máximo possível a implementação de uma eficácia preventivo especial na sua execução, agregando ao seu cumprimento mecanismos que permitam ao indivíduo ter uma maior gama de alternativas que o conduzam a não delinqüir. Ao cumprir uma pena privativa de liberdade, por exemplo, o Estado deve buscar, no tempo em que tem indivíduo a sua disposição, fornecer educação, cursos profissionalizantes, tratamento psicoterapêutico e pedagógico, acordos com empresas do setor privado para contratação do egresso, de forma que quando o recluso volte à sociedade tenha a opções várias que não o caminho da reincidência.

Assumir a prevenção especial positiva como função primacial da pena é hipocrisia, porém, esforçar-se por cumpri-la uma vez que a pena venha a ser executada é garantir a dignidade da pessoa humana.

Também extraímos da criminologia, ao apontar o fator estigmatizante e criminógeno especial da pena privativa de liberdade, a necessidade de adotarmos uma política criminal que privilegie as medidas alternativas à reclusão e à detenção.

No que toca a prevenção especial negativa, embora seu apelo seja muito forte na opinião pública, e aflore a tentação de a ela aderir quando trazemos ao lume certos casos de criminosos habituais que cometem delitos bárbaros, não há como sustentá-la racionalmente.

Pode-se, ao prever a pena em abstrato, fixar parâmetros mais elásticos quanto ao máximo de acordo com a importância do bem jurídico tutelado e a culpabilidade aferida no fato do agente. Mas, colocar a prevenção especial negativa como finalidade da pena, genericamente, dentro da construção teórica do funcionalismo penal, fere a dignidade da pessoa humana, pois converte a visão do direito penal fincado no fato do agente em um direito fundado no agente do fato. Sabe-se, em decorrência da história, que qualquer aproximação ao Direito Penal do autor é potencialmente danosa a dignidade da pessoa humana.

Conclui-se o capítulo afirmando que o Direito Penal cumpre um papel funcional, sustentado racionalmente na interligação da criminologia à política criminal e desta à dogmática, que normatiza todas as estruturas do delito e privilegia as funções preventivo geral negativa e positiva, agregando o máximo possível de uma prevenção especial positiva na inevitável execução da pena.

Nas palavras de Roxin e Fernando Fernandez:

 

O sistema do direito penal não deve fornecer uma dedução a partir de conceitos normativos abstratos ou um reflexo de regularidades ontológicas. Ele é, muito mais, uma combinação de idéias reitoras político-criminais, que penetram na matéria jurídica, a estruturam e possibilitam resultados adequados às peculiaridades desta.[28]

 

 

Um Sistema Punitivo Estatal que se pretenda moderno, funcional, evoluído quanto à orientação e às conseqüências, somente pode comprometer-se com uma função de antecipar e evitar ocorrência dos conflitos; numa palavra: ser inspirado por motivos de política criminal. Obtém-se, dessa forma, um sistema estruturado a partir de uma ordem conceitual, referido à realidade e orientado para as finalidades político-criminais.[29]

 

Na seqüência será estruturado o conceito da culpabilidade para, em seguida, demonstrar como este funciona como limite que legitima a funcionalidade penal face à dignidade da pessoa humana.

 

 

2.4 – Culpabilidade

 

 

2.4.1 Conceito

 

 

Conforme menciona Luiz Flávio Gomes podemos ter inúmeras acepções para o termo culpabilidade. Menciona o Professor:

 

O termo culpabilidade se (a) se contrapõe, numa primeira acepção, de raiz constitucional, ao da inocência. Quando se diz que réu é culpado, isso significa que sua inocência foi derrubada por provas contundentes e válidas produzidas no processo. E ser culpado,normalmente, significa, em seguida, ser penalmente responsabilizado; (b) é também uma categoria dogmática que fundamenta a imposição da pena quando essa seja necessária e o agente tenha praticado um fato típico, antijurídico e punível (isto é: a culpabilidade é um dos fundamentos da pena; faz o elo entre a teoria do delito e a teoria da pena); (c) também se utiliza a palavra culpabilidade como sinônimo de responsabilidade subjetiva, que proscreve a responsabilidade objetiva pelo resultado e só admite o dolo e a culpa como títulos de imputação penal; (d) ela é ademais um conceito político criminal e, nesse sentido, constitui limite do ius puniendi, mas não se confunde com os princípios da responsabilidade pessoal, da materialização do fato ou da responsabilidade subjetiva (dolo ou culpa); (e) a culpabilidade também constitui o limite máximo de responsabilização do agente (cada um é punido na medida de sua culpabilidade) (cf.  o art. 29 do CP) e (f) ainda funciona (também) como critério de fixação (ou de determinação ou de medição) da pena, nos termos do art. 59 do Código Penal.[30]

 

 

Prossegue o magistério de Luiz Flávio Gomes:

 

 

O princípio da culpabilidade deve expressar a base (o eixo ou fundamento) a partir da qual irradiam-se todos os pressupostos necessários para poder responsabilizar alguém pelo evento que motiva a pena. Essa premissa reside precisamente na capacidade de acesso do agente à proibição, ou seja, na sua capacidade de motivação (no sentido da norma). Culpabilidade, nesse sentido, é a capacidade do agente de se motivar de acordo com a norma.[31]

 

 

Em linhas gerais, a compreensão da culpabilidade como diferenciadora de modelos de responsabilidade objetiva, solidária, impessoal, corporativa e desigual não são novidade para o direito penal, reportada já no direito romano por uma lei de Numa Pompílio, perdurando na doutrina e jurisprudência até a compilação de Justiniano.[32]

Porém, a concepção de culpabilidade tratada nesta monografia é relativamente recente, correspondendo à definição da culpabilidade como reprovabilidade do injusto ao autor, de conteúdo puramente normativo.

Destaca Zaffaroni e Pierangeli que pela culpabilidade questiona-se “o que lhe é reprovado? O injusto. Por que se lhe reprova? Porque não se motivou pela norma. Por que se lhe reprova por não haver se motivado na norma? Porque lhe era exigível que se motivasse nela”.[33]

Nas palavras de Roxin: “A culpabilidade, para o direito penal, é a realização do injusto apesar da idoneidade para ser destinatário de normas e da capacidade de autodeterminação que daí deve decorrer”.[34]

Portanto a culpabilidade é a reprovação da conduta típica e antijurídica oriunda da não motivação do autor pela norma, quando exigível, nas circunstancias em que agiu, que por ela se motivasse.

Há divergências doutrinárias sobre se a culpabilidade integraria ou não o conceito de crime. A doutrina dominante hoje aponta a culpabilidade, ao lado da tipicidade e da antijuridicidade como elementos constitutivos do crime. Contudo há quem defenda que ela seja apenas pressuposto da pena (Dotti, Damásio e Mirabete) e quem entenda que ela seja uma categoria muito relevante do Direito Penal, porém, não pertencente ao injusto penal ou ao fato punível, sendo fundamento indeclinável da pena e elo entre o crime e a pena. Esta última teoria é propugnada pelo Professor Luiz Flávio Gomes que aduz:

 

 

(Culpabilidade) Não deve ser estudada (...) nem dentro da teoria do delito nem tampouco no âmbito da teoria da pena. Ocupa, como se nota, posição sistemática autônoma, independente, mas ao mesmo tempo intermediária: entre a teoria do delito e a teoria da pena.[35]

 

 

Vê-se que o conceito de culpabilidade é normativo.

Esse conceito é fruto de uma longa evolução doutrinária.

 

 

2.4.2 Evolução da Teoria da Culpabilidade

 

 

A princípio o conceito de delito era dividida de forma estanque, colocando-se de um lado todos os elementos objetivos e de outros os subjetivos. A esses últimos elementos correspondia a culpabilidade.

A culpabilidade era vista como uma relação psicológica despida de elementos normativos, delineada na descrição da vinculação entre o autor e o injusto.

Este conceito de culpabilidade foi concebido na esteira do causalismo de Von Liszt-Beling. Esta concepção abarca o dolo e a culpa como espécies de culpabilidade.

Dentro desta concepção torna-se difícil resolver de forma coerente o problema da culpa.

A culpabilidade psicológica continha o que hoje entendemos por aspecto subjetivo do tipo.

Compreendia que a culpabilidade era a ligação anímica entre o agente e o fato, situando nela a voluntariedade e previsão (dolo) ou a mera previsibilidade (culpa).

O dolo e a culpa eram os únicos elementos componenciais da culpabilidade, admitido, também, a imputabilidade como pressuposto da culpabilidade.

O dolo, nessa concepção, era um dolo normativo, equiparado ao dolus malus dos romanos, contendo no seu bojo a consciência da ilicitude.

Para essa corrente a culpabilidade está contida na psique do agente.

A necessidade de atribuir conteúdo valorativo à culpabilidade fez com que seu conceito evolui-se para uma teoria complexa.

Ao lado do dolo e da culpa fez-se surgir à idéia de reprovabilidade. Nesta seara, Reinhard Frank falava sobre a possibilidade de haver dolo sem culpabilidade, ao passo que Goldschmidt enxerga o dolo como pressuposto da culpabilidade e Mezger afirmava que o dolo sempre é culpável, posto exigir, para este autor, consciência da antijuridicidade.

Foi com o finalismo que se excluiu o dolo e a culpa da culpabilidade, remetendo-os para serem analisados dentro da tipicidade, destituindo-se o dolo de conteúdo valorativo.

Nas palavras de Luiz Flávio Gomes:

 

 

Deixa a culpabilidade de ser considerada como aspecto subjetivo do crime (psicológica), que liga o agente ao seu fato, para transformar-se em um juízo de reprovação, de censura, que se faz ao agente em razão de sua atuação contrária ao direito ou, mais precisamente, em razão de sua “formação da vontade contrária ao direito”.[36]

 

 

O finalismo realocou o dolo e a culpa para o tipo, substituindo o dolus malus pelo dolo natural. Welzel teve a perspicácia de apontar que toda a ação humana é final, voltada para um objetivo, e nela que devemos ponderar sobre a atuação dolosa (intenção de resultado) ou culposa (negligência, imprudência ou imperícia).

Luiz Flávio Gomes menciona as críticas elaboradas pelo jurista Juarez Tavares a concepção de que o dolo e a culpa estariam situados na culpabilidade, sustentada pela teoria psicológica da culpabilidade:

 

 

Juarez Tavares sintentizou as críticas ao posicionamento do dolo e da culpa (negligência) ainda dentro da culpabilidade, in verbis:

Primeira: “é assistemático distanciar o dolo dos elementos subjetivos do injusto ou do tipo.

Segunda: para a caracterização da tentativa de um delito é indispensável indagar qual foi o elemento subjetivo do atente (qual era o resultado visado pelo agente que ele não conseguiu consumar por circunstâncias alheias à sua vontade?); assim, se na tentativa a única forma dogmática possível de sustentar-se o injusto é a de incluir-se nele o dolo do agente, porque se deve mudar de orientação, quando passar do crime tentado para o crime consumado?

Terceira: ao invés de, desde logo, no campo da conduta, separar-se o crime culposo do crime doloso, tem-se de investigar até a culpabilidade para fazê-lo. Aí, então, constatada a ausência de dolo, regride-se novamente à antijuridicidade ou à tipicidade para se reanalisá-las, segundo o esquema de infração ao dever de cuidado. Mais fácil e mais econômico seria, configurada, para a investigação posterior da culpabilidade”.[37]

 

 

O dolo enquanto objeto de valoração da culpabilidade não pode com esta ser confundido. A culpabilidade é compreendida como puramente normativa, trata-se de um juízo realizado sobre a conduta do agente, na qual se encontra inserida sua volição dolosa ou culposa.

A culpabilidade é um conceito graduável. Há graus de culpabilidade.

Com o Funcionalismo Racional Teleológico Roxin ampliou o conceito de culpabilidade, tornando-o parte de um contexto maior, a responsabilidade. A responsabilidade é formada pela culpabilidade somada à necessidade funcional da pena.

O Funcionalismo Racional Teleológico reestruturou a teoria do delito, antes elaborada a partir de dados ontológicos e estruturas lógico-reais, para reconstruí-la sobre elementos valorativos axiológicos de política criminal.

Houve um progresso na medida em que se estabeleceu uma linha interativa entre os campos das ciências penais.

A concepção normativa da culpabilidade realizou-se gradativamente. A princípio os elementos normativos permaneceram ao lado dos elementos psicológicos, compreendendo que a culpabilidade seria constituída pelo dolo, culpa, exigibilidade de conduta conforme a norma e consciência do agir ilícito.

Essa concepção transitória foi denominada de teoria psicológico normativa da culpabilidade.

A doutrina finalista deu o passo definitivo para a concepção atual, normativa pura da culpabilidade, ao perceber que o dolo se encontrava na ação, logo, no tipo, e que era natural, leia-se, finalístico causal destituído de carga normativa.

A doutrina finalista situa a culpabilidade como elemento puramente normativo que valora o objeto, e reconduz o dolo para a tipicidade. O primeiro é valoração do objeto, o segundo, objeto da valoração. A culpabilidade surge como sinônimo de juízo de reprovação do agente pela conduta e seu resultado.

O conceito de culpabilidade mais adequado à moderna teoria do delito deve ser pontuado no cerne de um sistema garantista.

Primeiramente, reputa-se essencial que a culpabilidade seja analisada em concreto. Com isso se quer dizer que não cabe mais uma análise abstrata, referenciada ao lendário homem médio, que em última análise, inexistente, restará por ser o construído na mente do juiz. Cada juiz reportará ao seu homem médio, gerando aplicação desigual e anti-isonômica da culpabilidade. A culpabilidade tem que ser aferida perante o homem concreto, situado nas circunstâncias concretas do fato sob análise.

Em segundo lugar deve prevalecer a culpabilidade exercida sobre o fato do agente, jamais sobre o agente do fato. A culpabilidade de autor ou direito penal do autor revela-se incompatível com a dignidade da pessoa humana, pois se arvora oráculo supremo da verdade ao definir quais e tais seres são normais e quais devem ser repugnados pois avessos à normalidade. Trabalha, portanto, sobre conceitos fluídos e facilmente manipuláveis por interesses opressores, como o fora pelo nazismo, fascismo, ditaduras, e tantos outros regimes políticos cujas mazelas e ossos ainda desenterramos estarrecidos, envergonhados do passado.

Essa opção é cogente no sistema normativo brasileiro, extraída da Constituição Federal e do próprio Código Penal, no qual prevalece as figuras que tipificam o fato do autor e não o autor do fato (modo de ser), salvo raras exceções (rufianismo, vadiagem, etc.), diga-se de passagem, inconstitucionais.

Apenas indiretamente, em segunda instância, a culpabilidade se volta à personalidade do agente, ainda sim, sempre atrelada ao que dos fatos pode ser extraído.

A reprovação presume um poder agir de outro modo, o que traz ao Direito Penal a complexa questão filosófica travada entre o livre arbítrio e o determinismo.

A questão foi assim exposta por Ferrajoli:

 

 

Segundo as hipóteses deterministas e suas múltiplas variantes (finalistas, teleológicas, mecanicistas, histórico-idealistas, economicistas, etc.), todo fenômeno – e, portanto, não só as ações, mas também a intenção (ou seja, a soma de conhecimento e vontade) de realizá-las – é efeito necessário e, por isso, inevitável de causas absolutamente condicionantes, de tipo físico, psíquico, ambiental, econômico ou social, condicionadas, por sua vez, por outras causas de tipo análogo e igualmente condicionantes numa espécie de espiral para o infinito. Contrariamente, segundo as hipóteses de livre-arbítrio, a vontade humana é normalmente livre e incondicionada, no sentido de que todos os seres racionais têm a faculdade de autodeterminar-se e são pais e donos de suas ações.[38]

 

 

Nesse ponto a compreensão de que há um poder agir de outro modo é posta como axioma, sob pena de inviabilizar o sistema penal.

Sem adentrar profundamente à questão do livre arbítrio, postula-se por sua existência dentro de uma fundamentação filosófica. Nesse sentido adere-se à célebre indagação de Santo Agostinho em suas confissões: “Que ladrão há que suporta com paciência que o roubem?”[39]

Se o ladrão não suporta que o roubem é porque compreende a extensão lesiva do roubar e visualiza outra alternativa a qual não adere.

Ensina o eterno mestre Francisco de Assis Toledo: “Do mundo da cultura vivida extraímos facilmente esse poder agir de outro modo, que nos enseja, por meio de uma espécie de linha curva, evitar os atalhos ético-socialmente reprováveis”.[40]

E ainda: “O homem - e só ele - realiza seu destino (Schiller), por ser livre dentro de uma fatalidade dada (Ortega y Gasset”).[41]

De qualquer forma, o poder agir de outro modo para ciências como sociologia e o direito penal transforma-se em verdadeiro axioma, como já afirmado, não cabendo, a não ser por motivos acadêmicos próprios do campo da filosofia do direito, torturar-se com a questão no propósito do presente trabalho.

Uma parcela do determinismo é aceita ao ponderar na culpabilidade a vulnerabilidade do agente como redutor da reprovação. Não se deixa, em absoluto, de considerar as circunstâncias externas (pobreza, marginalidade, violência, etc.) que reduzem a autodeterminação do agente.

Não se pode afirmar que a culpabilidade está totalmente destituída, também, do agente do fato. Embora construída primacialmente sobre o fato do agente, e se reportar constantemente a este, há momentos em que sobreleva o agente do fato, por exemplo, na dosimetria da pena, no regulamento da reincidência, ao punir o erro de proibição evitável com atenuação da pena do dolo. No momento da medida da pena, portanto, considera-se o conjunto fato-personalidade.

 

 

2.4.3  Culpabilidade enquanto princípio

 

 

A culpabilidade como juízo de reprovação vincula a aplicação da pena. Não há pena se a conduta não for reprovável ao autor.

Impossível imputar-se pena ao indivíduo por não observar uma norma se as circunstâncias o manietavam de conduzir-se de acordo com esta.

Esta visão é de fundo constitucional e estrutura-se na dignidade da pessoa humana. Nossa carta magna afasta leituras deterministas da tutela penal.

A culpabilidade reporta-se ao ato praticado e as circunstâncias em que praticado, não devendo refletir uma reprovação do autor pelo que ele é, e sim pelo que fez.

 

 

2.4.4 Elementos da Culpabilidade

 

 

A doutrina contemporânea aponta a culpabilidade como integrada por três elementos: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta conforme a norma. Analisar-se-á cada um dos elementos individualmente.

 

 

2.4.4.1 Potencial Consciência da Ilicitude

 

 

A consciência que se exige é potencial, ou seja, a possibilidade de conhecer a ilicitude nas circunstâncias em que se encontrava o agente. O juízo a ser realizado é valorativo/normativo.

Há uma separação do dolo, elemento do tipo, da potencial consciência da ilicitude, elemento da culpabilidade. Essa reestruturação do delito revela-se a mais coerente com a realidade humana e mais eficaz na solução dos problemas surgidos no bojo da dogmática penal..

A potencial consciência da ilicitude compreende alguns estágios. Primeiro refira-se a compreensão ou entendimento da antijuridicidade como forma de internalização da norma vigente no seio social. Por ser potencial, não se exige que a norma tenha efetivamente sido internalizada pelo agente, mas que tivesse condições de internalizá-la. Quanto maior o distanciamento e o esforço que o agente tem que realizar para internalizar a norma, menor a reprovação que podemos lhe referir na culpabilidade, pois menor o potencial que possui de conscientizar-se da ilicitude.

O que se compreende por consciência do ilícito não é consciência da norma jurídica, o que, a bem ver, nem dos juristas mais exímios poder-se-ia exigir em sua plenitude. A valoração que se faz dá-se na ‘esfera do profano’, leia-se, consciência da contrariedade genérica ao direito, à ordem jurídica enquanto padrão ético disperso socialmente.

A ponderação da consciência da ilicitude é graduada, e reportará o grau de reprovação do injusto.

Admite três concepções, uma formal, exigindo que o agente saiba que ao cometer o fato infringe alguma norma, outra baseada na concepção material do injusto a exigir o conhecimento por parte do agente da anti-socialidade, da imoralidade da conduta ou lesão a um interesse, e por fim, a adotada contemporaneamente, mais coerente, que concebe que consciência da ilicitude requer a possibilidade de o agente com o esforço razoável de consciência atingir o injusto material existente em sua conduta, não se requerendo qualquer valoração de ordem técnico jurídica. Por isso se falar não mais em consciência da ilicitude, mas em potencial consciência da ilicitude.

A potencial consciência da ilicitude é uma valoração paralela do agente na esfera do profano (Mezger),[42] onde se valora a capacidade de cada indivíduo em refletir os valores ético-sociais comuns ao seu meio. Não se exige que a consciência plena da ilicitude tenha sido atingida, desde que, nas circunstâncias o agente pudesse com algum esforço atingi-la.

A questão mais polêmica no tema da potencial consciência da ilicitude é a que se refere às discriminantes putativas ou erro sobre causa de justificação.

Adotou-se expressamente no nosso código a teoria limitada da culpabilidade, que reconduz para a tipicidade o erro sobre circunstâncias de fato da justificante. Se o agente equivoca-se sobre a existência ou inexistência de situação fática que seria apta a excluir a ilicitude a questão será tratada como erro de tipo. Se evitável, responde o agente por crime culposo (caso haja previsão), se inevitável exclui-se o dolo.

Por outro lado, se o erro recai sobre a existência ou extensão de norma que preveja a excludente de ilicitude o tratamento se dá nos moldes do erro de proibição, excluindo a pena se inevitável e atuando como causa de diminuição se evitável.

A bem ver, ponderando o conceito teórico da ação final, ambas seriam causas atuantes sobre a potencial consciência da ilicitude (teoria extremada da culpabilidade), logo, tratadas como erro de proibição e atuando como excludente da culpabilidade. Essa resposta é inexorável se nos pautarmos por um raciocínio construído sobre as estruturas lógico reais. Porém, político criminalmente, revela-se mais justo o tratamento dado pela teoria limitada da culpabilidade, motivo pelo qual, a ele se adere, o que se revela perfeitamente admissível na teoria funcionalista racional teleológica, que flexibiliza as estruturas lógico-reais face as necessidades político-criminais.

O tratamento da teoria limitada da culpabilidade se aproxima das soluções apresentadas pelos adeptos da teoria dos elementos negativos do tipo.

Exclui-se a potencial consciência da ilicitude quando se demonstra que o agente não tinha como, nas circunstâncias concretas, compreender ilicitude do fato. Não se trata de mero desconhecimento da lei, mas na crença da legalidade da conduta sem possibilidade de exigir compreensão contrária do agente.

A exclusão da culpabilidade por ausência de potencial consciência da ilicitude pode atuar sobre qualquer crime. Mesmo o homicídio, que possui uma contrariedade ética facilmente apurada na valoração paralela na esfera do profano, pode, em dadas circunstâncias, excluir a culpabilidade por ausência de potencial consciência da ilicitude. Por exemplo, se determinada tribo indígena pouco integrada à cultura nacional tem por hábito secular sacrificar os indivíduos que nascem com determinada anomalia, não há, sequer potencialmente, como exigir que eles tenham consciência da ilicitude do seu ato. Nessa senda, esfacela-se a culpabilidade sendo impossível a imposição penal.

 

 

2.4.4.2 Exigibilidade de Conduta Conforme a Norma

 

 

A exigibilidade da conduta conforme a norma integra na culpabilidade o viés social da reprovabilidade.

Pode ser extraída do conceito de “delito como uma ação anormal cometida por uma pessoa normal em condições normais” albergado por Ferrajoli.[43]

Não há culpabilidade quando não há expectativa por parte da sociedade de atuação diversa pelo autor. Se a própria sociedade reconhece que nas circunstâncias em que se encontrava o réu agiria da mesma forma, não há como exercer sobre ele um juízo de reprovação. A ação transforma-se de anormal para normal, e as condições transpõem-se de normais para anormais, o que impede a reprovação social.

É na exigibilidade de conduta conforme a norma, quando ausente, que encontramos as excludentes legalmente previstas da coação moral irresistível e da obediência a ordem de superior hierárquico não manifestamente ilegal.

A coação moral irresistível, socialmente reconhecida como determinante sobre a conduta do agente, é exemplificada classicamente no caso do gerente de banco que tem a família seqüestrada e recebe a ordem de roubar o banco para preservar a vida da família. A vontade ainda é determinante na conduta do agente, que age dolosamente. Não há excludente de ilicitude, porém, não lhe é exigível conduta diversa, pois qualquer um no seu lugar agiria da mesma forma, não havendo como lhe exigir um agir conforme a norma. Incide no caso a exclusão da culpabilidade.

Se a coação moral for resistível atuará como circunstância atenuante genérica.

É preciso não confundir a coação moral irresistível com o estado de necessidade. O estado de necessidade retira a ilicitude da conduta, não permitindo que qualquer agente seja punido por ela. No caso da coação moral irresistível a ilicitude permanece. O coacto fica isento de pena, pois possui a excludente de culpabilidade inexigibilidade de conduta diversa, porém, o coator responderá pelo crime como autor mediato.

Quanto à obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal, observa-se sua inexistência na relação de emprego ou de subordinação realizada fora do âmbito da administração pública. A subordinação hierárquica é típica da relação entre o agente público e a administração.

Embora a doutrina e a jurisprudência tenham suscitado polêmica sobre a existência ou inexistência de causas supra-legais excludentes de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, elas são irrefutáveis. Não há, em um estado democrático de direito, fundado sobre a dignidade da pessoa humana, como afastar o primado do nullum crimem sine culpa. A punibilidade do agente depende da demonstração da evitabilidade da conduta por poder agir de forma diversa da que agiu. Se não é exigível do agente sua aderência à norma é impossível exercer sobre ele um juízo de reprovação.

O estado de necessidade exculpante e a legítima defesa exculpante configuram exemplos típicos de causa supra legal de exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. É o caso, por exemplo, daquele que para não perder as duas pernas sacrifica a vida de outrem (estado de necessidade exculpante) ou que mediante a ameaça de estupro atira contra o estuprador, quando poderia ter dado um tiro de aviso para o alto, em virtude do pânico que tomado no momento (legitima defesa exculpante).

Há ainda um terceiro grau em que se encontra o autor abaixo do estado de necessidade exculpante, que lhe permite uma redução da pena de um a dois terços nos termos do art. 24, §1º do Código Penal.

As causas legais ou supra-legais de inexigibilidade de conduta diversa aniquilam a culpabilidade, impedindo a imposição de pena ao agente.

 

 

2.4.4.3 Imputabilidade

 

 

A imputabilidade é a capacidade psíquica de culpabilidade. Diz-se imputabilidade a capacidade de compreender o caráter ilícito da conduta e determinar-se de acordo com este entendimento.

Veja a definição dada à imputabilidade por alguns reconhecidos autores em seus cursos de direito penal:

A capacidade psíquica requerida para se imputar a um sujeito a reprovação do injusto é a necessária para que lhe tenha sido possível entender a natureza do injusto de sua ação, e que lhe tenha podido permitir adequar sua conduta de acordo com esta compreensão da antijuridicidade(Zaffaroni e Pierangelli).[44]

 

 

É a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com este entendimento (Capez).[45]

 

 

A imputabilidade penal é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada à prática de um fato punível (Damásio).[46]

 

 

Há imputabilidade quando o sujeito é capaz de compreender a ilicitude de sua conduta e de agir de acordo com esse entendimento (Mirabete).[47]

 

 

Evidente que eu só posso reprovar aquilo que é passível de escolha. Impor uma norma pressupõe que haja por parte do destinatário desta a opção de agir conforme o dever ser por ela preceituado. Se agente é completamente incapaz de compreender o comando da norma torna-se inviável exercer sobre ele um juízo de reprovação. O mesmo ocorre quando, embora compreenda o caráter ilícito de sua conduta, vê-se psiquicamente absolutamente impossibilitado de gerir sua autodeterminação.

Há duas correntes dentro da teoria complexa da culpabilidade, uma que apontará a imputabilidade como capacidade e elemento da culpabilidade (majoritária), outra que a apontará, tal qual a teoria psicológica da culpabilidade, como pressuposto da culpabilidade.

É preciso distinguir duas situações, o estado de inconsciência, que exclui o dolo, e a perturbação da consciência que torne impossível perceber o caráter ilícito do fato, que exclui a imputabilidade (culpabilidade).

Perturbada é a consciência em que os aspectos psíquicos intelectuais e afetivos não se acham harmonicamente dispostos, impedindo uma adequação ao mundo objetivo.

Zafaroni ressalta certa imprecisão no conceito da perturbação mental, pontuado tratar-se muito mais de uma impressão clínica do que um conceito abstrato disponível.

O conceito de normalidade está desprestigiado. Ao direito penal o conceito de normalidade é de todo dispensável. O que preocupa saber são, especificamente, as características psíquicas que dificultam ou facilitam a compreensão do ilícito no momento da realização do injusto. O esforço para compreensão da ilicitude é inversamente proporcional à intensidade do juízo de reprovação.

O conceito de enfermidade guarda consonância com um desequilíbrio biopsíquico, que pode ser mais ou menos duradouro, ou mesmo transitório, podendo ser desencadeado pelos mais diversos fatores, inclusive pela ministração de uma determinada droga. Pode também a enfermidade ligar-se a um evento traumático, como ter sido submetido o agente a torturas, por exemplo. Conclui-se que o conceito de enfermidade não pode ser reduzido a uma causa biológica necessariamente.

Já o desenvolvimento mental incompleto compreende as oligofrenias. A oligofrenia apresenta graus de variações, o que permite, em determinados casos, que o oligofrênico seja inimputável para determinados delitos que exigem um raciocínio mais complexo (crimes contra a ordem tributária, por exemplo), mas seja imputável para outros de compreensão da ilicitude mais elementar (homicídio, por exemplo).

Essa variação difere do delírio, em que há uma perturbação distorcida da realidade e que, ainda que se vincule a determinados aspectos, afeta a harmonia da psique como um todo.

A questão do psicopata, por sua vez, é altamente polêmica. Se por psicopata eu entender a total aversão a qualquer sentido ético, manietando a possibilidade de internalização ou introjeção de regras ou normas de conduta, faltará a compreensão da ilicitude, ainda que haja conhecimento formal, e, portanto, presente estará à inimputabilidade.

No tocante a neurose, diversidade de distúrbios emocionais caracterizados pela ansiedade, que muitos autores não consideram causa de inimputabilidade, razão assiste aos mestres Zaffaroni e Pierangelli:

 

Toda neurose tem um núcleo problemático e provoca uma alteração da personalidade, podendo, em determinadas constelações situacionais que tocam diretamente o núcleo problemático da mesma, dar lugar a um estado em que seja para a pessoa extremamente difícil a compreensão da antijuridicidade de sua conduta. Isto deve ser examinado com muito cuidado e levando-se em conta a potencialização de certas tensões e situações conflitivas particularmente prolongadas, como costuma acontecer em uma convivência familiar forçada, onde permanentemente ocorrem maus-tratos, etc. [48]

 

 

A dependência rígida à substância entorpecente, química ou psicológica, se aniquila a capacidade de autodeterminação do dependente, deve ser encarada como fator de inimputabilidade.

Nos termos do art. 28, inciso I do Código Penal, a emoção e paixão não excluem a imputabilidade penal. Uma compreensão precipitada deste dispositivo pode conduzir a uma exclusão da inimputabilidade de pessoas que, a bem ver, são inimputáveis, o que é inadmissível face ao princípio vetor da dignidade da pessoa humana, impeditivo irrefutável de atribuição de culpabilidade a quem não tem condição de compreender o caráter ilícito da norma ou determinar-se por este entendimento. A paixão e a emoção de ordinário não excluem a imputabilidade. Porém, há casos extremados de paixão ou emoção em que o indivíduo perde completamente a consciência dos seus atos ou a autodeterminação, nesses casos específicos o sujeito é inimputável.

A imputabilidade é a aptidão para ser culpável. Ela funda-se na idéia de que o homem possui livre arbítrio para determinar seu comportamento.

A imputabilidade vai se insculpir justamente sobre essa presunção de livre arbítrio. Onde ela se manter intacta, haverá imputabilidade, onde ela for refutada afastar-se-á a imputabilidade.

A inimputabilidade afasta a possibilidade de compreender o agir como ilícito, ou de determinar seu comportamento face a esta compreensão, tornando o agente sujeito às condições que se lhe apresentam, afastando juízos de reprovação e excluindo a culpabilidade.

Os critérios e sistemas adotados para falar-se no Direito Penal Brasileiro em inimputabilidade são vários:

Sistema biológico (etiológico) – a anomalia psíquica que afeta a compreensão da ilicitude ou a possibilidade de o agente autodeterminar-se face aos impulsos anômalos.

Sistema psicológico – analisam as condições psicológicas do agente no momento do fato. Não se preocupa em específico com a existência de doença mental ou distúrbio patológico.

Sistema normativo – presume a inimputabilidade normativamente. É o caso da menoridade penal.

O código penal menciona como causas de inimputabilidade a doença mental e o desenvolvimento mental incompleto ou retardado, a menoridade (desenvolvimento mental incompleto presumido/normativo), a embriaguez fortuita completa.

Dentro das doenças mentais encontramos às chamadas psicoses funcionais como a esquizofrenia, psicose maníaco depressiva, paranóia, epilepsia, demência senil, psicose alcoólica, paralisia progressiva, sífilis cerebral, arteriosclerose cerebral, histeria, etc.

O cuidado necessário no tema é de não confundir uma excludente de culpabilidade por inimputabilidade e uma excludente da própria volição da conduta que afastaria o dolo da ação. No caso da epilepsia, por exemplo, se um ataque retira em absoluto o autocontrole motor do sujeito, e este vem a atropelar alguém, temos exclusão da conduta típica por ausência de dolo, e não exclusão da culpabilidade por inimputabilidade.

O desenvolvimento mental incompleto compreende os casos de oligofrenias (debilidade mental, imbecilidade e idiotia).

A doença mental e o desenvolvimento mental diminuído só excluem a imputabilidade se eliminam a capacidade de compreensão da ilicitude ou a de autodeterminar-se de acordo com este entendimento. A inimputabilidade não é presumível pelo fato da doença mental ou desenvolvimento incompleto, sendo necessário que se demonstre sua presença no momento do crime bem como a força de sua influência na imputabilidade.

O exame para aferição da imputabilidade, caso haja qualquer nesga de dúvidas pairando sobre a capacidade mental do agente, é imperativo, devendo o juiz, se não requisitado pelas partes, determiná-lo de ofício, posto tratar-se de matéria indisponível de ordem pública.

A excludente de imputabilidade gera a absolvição imprópria. Nela, após o juiz aferir que há tipicidade e antijuridicidade, absolve o réu por inimputabilidade, mas lhe aplica medida de segurança, que pode consistir em internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou tratamento ambulatorial.

A diminuição, mas não eliminação, da capacidade de compreensão e autodeterminação pela afetação mental importa em mera causa de diminuição de pena, de um terço a dois terços.

Em que pese ter se discutido se a causa de diminuição por afetação mental que não exclua totalmente a imputabilidade seria cogente ou facultativa ao magistrado, concluí-se por sua imperatividade, posto que a redução da capacidade de compreender o ilícito ou de por ele determinar-se gera uma inevitável diminuição da culpabilidade na medida em que aumenta o grau de esforço que o agente terá de fazer para conduzir-se conforme a norma. É direito público do réu ter a pena reduzida.

Superado o sistema do duplo binário pelo vicariante, não se admitindo mais a aplicação cumulativa de pena com medida de segurança, no caso de culpabilidade diminuída, mas não excluída pela afetação mental, pode o juiz, após aplicar a pena, substituí-la por medida de segurança, se esta mostrar-se mais adequada, nos termos do art. 98 do Código Penal.

Actio libera in causa – fala-se em actio libera in causa, um resquício da responsabilidade penal objetiva, quando o agente, propositadamente, se coloca em situação de inimputabilidade para cometer o crime, realizando este em estado de inconsciência. O sujeito utiliza a si mesmo como instrumento para a prática do fato. O direito penal brasileiro estendeu a teoria da actio libera in causa não apenas para os casos de voluntariedade do resultado (embriaguez preordenada), mas também para os casos de voluntariedade ou culpa no ato de embriagar-se.

A actio libera in causa atua, por motivos políticos criminais, estende a compreensão da ação a uma visão global dos atos concatenados e não isoladamente. Não se fixa no ato de se embriagar ou no ação propriamente dita que preenche o conceito típico do delito, mas integra as duas em um conjunto sobre o qual fará incidir a conduta dolosa ou culposa.

Há uma quebra da sistemática geral fazendo incidir a culpabilidade sobre o conjunto de atos visto no todo.

Admite-se a adoção da actio libera in causa, sem lesão ao princípio da culpabilidade como limite ao funcionalismo penal, desde que construída sobre a seguinte concepção:

a)       Se o sujeito não tem voluntariedade ou culpa no ato de embriagar-se, exclui-se a culpabilidade por ser inimputável não respondendo pelo injusto.

b)       Se o sujeito voluntariamente ou culposamente se embriaga, mas não tem a intenção preordenada de delinqüir, embora fosse previsível o fato posterior, deve responder por crime culposo, caso previsto.

c)       Se o sujeito se embriaga preordenadamente para cometer o delito, responde pelo injusto doloso.[49]

 

Outro fator que afeta a imputabilidade é a menoridade penal.

O fundamento é tanto legal quanto constitucional, e, essencialmente normativo.

A norma estabelece uma presunção absoluta e inquestionável. Não é o juiz que vai valorar face aos elementos existentes se há ou não imputabilidade. A idade é um indicativo normativo, leia-se, menos de dezoito anos inimputabilidade, mais de dezoito anos imputabilidade (caso presente os demais requisitos).

Adere-se a um critério político criminal. Diga-se de passagem, polêmicas a parte, de bom senso. O combate a criminalidade insere-se em um critério político amplo onde são mais relevantes fatores educacionais, de distribuição de renda, de inclusão social, do que a repressão penal propriamente dita.

As penitenciárias tem se revelado meio criminógeno e não ressocializador. Inserir neste contexto trágico também os menores de dezoito anos seria uma medida demagógica que satisfaria apenas os sentimentos vingativos retributivos da massa, não tendo qualquer eficácia no real combate ao fenômeno criminal, pelo contrário, atuando como fonte de criminalização. As medidas político-criminais devem ser pautadas por critérios de racionalidade e eficiência e não por impulsos emocionais.

Apóia-se, portanto, o tratamento diferenciado dado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que, padece de ineficácia não pela incoerência de suas disposições, e sim pela não aplicação efetiva de seus dispositivos pelas autoridades institucionais. O Estatuto, da mesma forma que a Lei de Execuções Penais, revela um abismo colossal entre suas disposições e a realidade cotidiana instituída. Neste aspecto reside o fator determinante de sua ineficácia.

 


3 - Culpabilidade como limite intransponível ao funcionalismo penal

 

 

Continuamente, ao refletirmos, o mundo se rompe em pedaços desordenados. Continuamente, silenciosa e interiormente, recompomos a bela ponte.

(Richard Dehmel).

 

 

3.1 – O vetor axiológico Dignidade da Pessoa Humana

 

 

Remonta à Grécia, berço da filosofia, as primeiras construções sobre a pessoa humana enquanto ser dotado de dignidade.

Protágoras afirmou que o homem era a medida de todas as coisas, Antifone defendeu a igualdade dos indivíduos independente de sua origem.

Na idade média São Tomas de Aquino sustentou a divindade da chamada "dignitas humana".

Mas é com o iluminismo que a dignidade da pessoa humana começa a adquirir os contornos que hoje possui, através das obras de Descartes, Locke, Voltaire, Turgot, Condorcet, Paine, Rousseau, Montesquieu.

Kant talvez tenha sido o principal porta voz do conceito ao apontar o homem como um fim em si mesmo, dotado de razão que lhe conferiria o direito de ser chamado pessoa humana. Para Kant o homem é dotado de um valor intrínseco superior a qualquer preço, e que, em virtude disso, não poderia ser reduzido a um valor numérico. Dessa construção surge a parêmia às coisas preços aos homens dignidade.

Sobre o conceito de dignidade de pessoa humana define André Lalande com fulcro na obra de Kant:

 

 

Designa-se com este nome o princípio moral que enuncia que a pessoa humana não deve nunca ser tratada apenas como um meio, mas como um fim em si mesma; ou seja, que o homem não deve jamais ser utilizado como meio sem levar em conta que ele é, ao mesmo tempo, um fim em si mesmo (Kant, Fund. da metaf. dos costumes, 2ª seção).[50]

 

 

Com o tempo a dignidade da pessoa humana passou a princípio albergado pelas Constituições Federais. Não foi diferente no cenário brasileiro, onde a Constituição Federal de 1988 acolheu expressamente o Princípio da Dignidade da Pessoa Humano como fundamento superior da Republica Federativa do Brasil.

Nas palavras de Uadi Lâmmego Bulos:

 

 

A dignidade da pessoa humana é o valor constitucional supremo que agrega em torno de si a unanimidade dos demais direitos e garantias fundamentais do homem, expressos nesta Constituição. Daí envolver o direito à vida, os direitos pessoais tradicionais, mas também os direitos sociais, os direitos econômicos, os direitos educacionais, bem como as liberdades públicas em geral.[51]

 

 

Prossegue Lammêgo Bulos citando os ensinamentos de Antonio Enrique Pérez Luño que aponta a tripla função exercida pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: a) fundamentadora - servindo como núcleo basilar e informativo de todo o sistema jurídico-positivo; b) orientadora - estabelecendo metas ou finalidades pré-determinadas, deslegitimando orientações normativas que sigam fins distintos ou obstaculizem a consecução dos fins axiológicos constitucinais derivados da dignidade da pessoa humana; c) crítica - em relação às condutas.

Essa função centrípeta do Princípio da Dignidade Humana traz influência direta no tema proposto nesta monografia.

No que é pertinente ao funcionalismo penal e à culpabilidade demonstra-se a atuação do vetor axiológico da dignidade da pessoa humana nos seguintes aspectos:

a) Influencia a definição de qual função deve ser atribuída ao sistema penal.

b) Serve de fundamento para o afastamento das funções retributivas ou preventivo-especiais-negativas.

c) Determina o papel da culpabilidade como limite intransponível à atuação funcional do sistema penal uma vez que o homem tem que ser fim e medida de todas as coisas e não meio para propósitos quaisquer.

A uma sustentação teórica que atribui a cada indivíduo autonomia em relação aos outros o dotando de igual dignidade. A partir do momento em que eu dignifico igualmente os homens perco a autoridade para julgar as opções ou escolhas dos outros se não afetam a mim ou a outrem (princípio penal da alteridade).

O princípio da alteridade tem, portanto, raiz na dignidade da pessoa humana.

O mesmo diga-se da imposição de um direito penal do fato do agente e não do agente do fato.

Se todos são dotados de igual dignidade como posso dizer que as escolhas do outro é melhor ou pior do que a minha, ou que o ser do outro é melhor ou pior que o meu ser? O que posso é defender a coexistência pacífica em sociedade através de medidas que tutelem bens fundamentais. Essa tutela se volta contra fatos, mas não contra o ser enquanto ser.

Toda construção teórica, necessariamente, recairá em um ponto de partida, em um axioma.

No ordenamento jurídico brasileiro este ponto de partida é o valor supra-constitucional da dignidade da pessoa humana como patrimônio histórico cultural da humanidade.

A dignidade da pessoa humana constitui verdadeiro Direito Natural no sentido cunhado por Radbruch: “(...) tem validade geral e são invariáveis, têm primazia sobre os direitos positivos que lhe são opostos: o direito natural rompe o direito positivo”.[52]

Somente o absoluto respeito à dignidade da pessoa humana permite atribuir a um Estado o adjetivação material de 'democrático de direito'.

A dignidade da pessoa humana, seu reconhecimento e observância são fatores que legitimam ou deslegitimam a atuação estatal.

Em um Estado intrusivo as medidas oficiais são ilegítimas, ao passo que atos revolucionários são legítimos. A veracidade do afirmado encontra sustentáculo na comunicação social e cultural e se depura de uma simples constatação exemplificativa traduzida na seguinte questão: Quem se voltou contra o Estado Nazista ou Ditaduras Militares é reputado herói ou fora da lei? Evidentemente que a história definiu o papel daqueles que resistiram à opressão como heróis, pois legitimamente lutavam contra um regime deslegitimado pelo desrespeito a dignidade humana.

Verifica-se, portanto, que a dignidade da pessoa humana possui uma fundamentação extrajurídica, fruto de um direito inerente ao ser humano (natural), soerguida através de um reconhecimento histórico, cultural e filosófico baseado na consagração da vida e da razão de cada indivíduo como um universo em si.

É necessário, contudo, refletir criticamente a efetivação dos direitos humanos e da dignidade humana, como o faz magistralmente Bobbio:

 

Descendo do plano ideal para o plano real, uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais extensos,e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva(...) a medida que as pretensões aumentam, a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil.[53]

 

 

É preciso que todo o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como vetor axiológico, hermenêutico, legitimador, suplante o plano do discurso e se torne uma realidade. Aliás, é papel do Estado prover a superação do discurso pela prática, podendo, para tanto, ser cobrado.

A nova era do direito coloca o Estado como dotado primeiramente de deveres para, em função desses, gozar direitos, e o indivíduo como dotado de direitos, para em função desses respeitar deveres.

Nessa seara a implementação da dignidade da pessoa humana é o dever primeiro do poder público, e o funcionalismo penal e o papel dogmático das estruturas do delito só serão soerguidos legitimamente se apoiados no fundamento hermenêutico da dignidade humana.

Explana Fernando Fernandez:

 

 

Urge, pois, estabelecer os limites além dos quais a busca da funcionalidade transbordaria para o campo da ilegitimidade.

Limite por excelência dessa busca é a proteção da dignidade da pessoa humana, sendo inadmissível qualquer medida inovadora [...]que ponha em causa essa proteção, sob pena de transformar o ser humano em simples instrumento para obtenção das finalidades político-criminais que orientam o Sistema Jurídico-Penal.

Em síntese, a dignidade humana da qual é dotado todo o cidadão num Ordenamento Jurídico inspirado no Estado de Direito é uma barreira intransponível.[54]

 

 

3.2 A culpabilidade como limite ao funcionalismo

 

 

O sistema penal revela, em nível macroscópico, uma tensão que contrapõe os postulados garantistas e os postulados funcionalistas.[55]

A culpabilidade desempenha papel fundamental na estabilização dessa tensão, na medida em que permite que o exercício do papel funcional do Direito Penal se realize dentro das margens do respeito à dignidade humana, promovendo a limitação da pretensão punitiva pelo juízo de reprovação concreto exercido sobre o fato do agente.

Roxin traz a visão da culpabilidade como elemento legitimador da pena ao acusado (aspecto retributivo) e também um limite a imposição da pena pelo poder estatal. Preleciona:

 

 

O instrumento central – quase sagrado na Alemanha, desde Kant e Hegel – para limitação do poder punitivo estatal é o princípio da culpabilidade. Se entendermos por culpabilidade o agir ilícito apesar da idoneidade para ser destinatário de normas, posição que defendo, teremos descrito a capacidade de autodeterminação através de um critério empírico, que pode pôr uma barreira à punição de pessoas não culpáveis. E isso vale tanto para déficits psíquicos na pessoa do autor como para o campo do erro de proibição.[56]

 

 

Uma vez refutada nos capítulos anteriores a função retributiva não podemos conceber que a culpabilidade seja fundamento da pena. Em verdade, ela atua como limite aos abusos funcionalistas que podem ser pretendidos com a aplicação da pena, integrando no funcionalismo o respeito à dignidade da pessoa humana a partir do momento que a pena imposta esteja limitada à reprovação do fato praticado.

As necessidades preventivas estarão sempre amarradas ao pleno respeito dos limites impostos pela culpabilidade.

A própria função preventiva, em certa medida, revela-se esvaziada se suprimida a culpabilidade. Qual a prevenção geral negativa possível àquele que não atinge, por motivos quaisquer, a compreensão da ilicitude ou a possibilidade de determinar-se por este entendimento? Como intimidar quem não compreende que o ato que pratica é ilícito e sancionável?

Por outro lado, ao afastar da pena a função retributiva e a prevenção especial negativa, e colocar em segunda instância a prevenção especial positiva (sempre atrelada à medida do possível face ao inevitável), refutamos a utilização da culpabilidade como medida da pena.

A culpabilidade se presta não à medida, mas limite da pena, leia-se, fixa, face ao fato do agente, o máximo concreto que a pena pode chegar. A quantificação efetiva, respeitado este limite, estará atrelada as funções primaciais da pena.

Preleciona Luiz Flávio Gomes:

 

O princípio da culpabilidade [...] opera como limite do ius puniendi (o Estado não pode punir quem não tem capacidade de se motivar no sentido da norma), porém, com uma dupla significação: (a) atua não só no momento da determinação da essência do pressuposto fundamental da pena, que é a capacidade de motivação pessoal, senão também (b) no âmbito da individualização judicial da pena, posto que a pena não deve exceder o limite do que resulta adequado à gravidade da culpabilidade do autor, por mais que possa ser muito necessária no caso concreto por razões de prevenção geral ou especial.[57]

 

O magistrado terá que se indagar posto o limite pela culpabilidade qual é a quantificação necessária nesse caso concreto para gerar efeitos preventivos gerais na sociedade? Casos como o recentemente veiculado na mídia em que o casal Nardoni foi acusado de matar a menina Isabela talvez clamem por uma elevação da função preventivo geral positiva, pois a sociedade foi fortemente abalada nas expectativa de vigência da norma. Mas essa sanha punitiva, em contemplação ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, encontrará um limite intransponível na culpabilidade dos acusados. Em outros casos as necessidades preventivas mostrar-se-ão muito aquém do limite punitivo permitido pela culpabilidade. Por exemplo, no caso relatado de Ramón Sampedro, ilustrado no filme Mar Adentro, com espetacular interpretação de Javier Bardén, temos um auxílio ao suicídio onde a prevenção geral negativa é esvaziada, pois os motivos humanitários e sensíveis que conduziram a ação provavelmente esgotariam qualquer pretensão intimidatória sobre o agente. Também temos o esgotamento prevenção positiva, posto que a sociedade não vê sua confiança no ordenamento abalada, compreendendo o ato altruístico praticado pelos amigos de Ramon Sampedro ao realizar seu desejo e dar fim a um sofrimento que o condenara a quase trinta anos de tetraplegia em uma cama. Nesse caso o esvaziamento das funções preventivas pode conduzir até mesmo a não aplicação de pena.

Deixa-se claro, portanto, que uma interpretação constitucional do direito penal permite reduzir à pena abaixo do mínimo legal face ao caso concreto e as reais necessidades preventivas da pena.

Registre-se a crítica de Hassemer ao atual status da culpabilidade para quem este conceito está sendo erodido, por um lado porque compreende que a culpabilidade jurídica acaba por se revelar uma versão fragilizada da moral, por outro lado porque culpabilidade pessoal não integra a responsabilidade social na conduta do agente.

O que se quer demonstrar é que Direito Penal tem um papel funcional- comunicativo- social, mas uma limitação à culpabilidade concreta do agente.

A culpabilidade é, em um plano imediato, limite ao poder punitivo, e em um plano reflexo, limite as pretensões funcionalistas do Direito Penal.

Roxin expôs esta sistemática ao substituir o conceito unitário da culpabilidade pelo conceito de responsabilidade, que agrega a culpabilidade como limite na dosimetria da pretensão punitiva e trabalha a necessidade da pena para fixar a pena aquém deste limite, podendo até mesmo dela prescindir.

Luiz Flávio Gomes expõe a limitação do jus puniendi pela culpabilidade nos seguintes termos:

 

A culpabilidade opera como limite à exigências de prevenção impedindo que, por razões de “exemplaridade” a pena supere aquela merecida pelo autor. Aqui é que reside o obstáculo intransponível (político-criminalmente falando) para a imposição da chamada “pena exemplar”. Para se evitar que uma determinada conduta venha a se repetir, o juiz, muitas vezes, se sente compelido a impor ao agente uma pena flagrantemente desproporcional. Por razões de prevenção geral supõe o juiz que tal pena exemplar seja necessária. Mas se ela ultrapassa os limites do merecimento do autor (os limites da culpabilidade concreta), não pode ser imposta, sob pena de violação do princípio da culpabilidade (como limite máximo da intervenção penal).

O princípio da culpabilidade assim entendido corresponde à necessidade de que o fato punível “pertença” a seu autor, não só do ponto de vista material e pessoal, senão também como obra de um ser “responsável”, de uma “racionalidade normal”. O princípio da igualdade real dos cidadãos confirmará tal exigência, porque não se pode impor uma pena, prevista para quem pode ser motivado normalmente pela lei, a pessoas que não gozam da referida capacidade de motivação normal.[58]

 

 

Coloca-se outra questão – quais são os parâmetros para fixar a culpabilidade?

Um dimensionamento da culpabilidade é apontado por Celso, Roberto, Roberto Jr. e Fábio Delmanto:

 

 

“Deve ser aferir o maior ou menor índice de reprovabilidade do agente, não só em razão de suas condições pessoais, como também em vista da situação de fato em que ocorreu a indigitada prática delituosa, sempre levando em conta a conduta que era exigível do agente, na situação em que o fato ocorreu. Ao se analisar as condições pessoais do acusado, entendemos imprescindível que se leve em consideração seu grau de instrução, condição social, vida familiar e pregressa, bem como sua cultura e meio em que vive. Isto porque, o que se julga em um processo é, sobretudo, o homem e, não, um fato descrito isoladamente na denúncia ou queixa, o qual, por vezes, retrata um episódio único e infeliz em meio a toda uma vida pautada pelo respeito ao próximo”.[59]

 

 

O art. 59 a 65 do Código Penal fornece critérios para se determinar o grau de reprovação do agente.

O art. 59 traz as circunstâncias judiciais que servirão para a fixação da pena base.

Consiste nos seguintes parâmetros: culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias, conseqüências do crime, comportamento da vítima.

O art. 61 e 62 do Código Penal descrevem as circunstâncias agravantes. São elas: reincidência; cometimento do crime por motivo torpe, fútil, para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime; cometimento de crime à traição, emboscada ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum; contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge; com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas de coabitação ou de hospitalidade; com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão; contra criança, velho, enfermo, mulher grávida; quando o ofendido estava sob proteção imediata de autoridade; em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido; em estado de embriaguez preordenada; em relação ao agente que promove, organiza ou dirige a atividade dos demais agentes, coage ou induz outrem à execução material do crime, instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal; em relação àquele que executa o crime, ou nele participa, mediante paga ou promessa de recompensa.

Por fim, o artigo 65 traz a relação das circunstâncias que atenuam a pena. Destacamos: ser o agente menor de vinte um ano, da data do fato, ou maior de setenta anos, da data da sentença; desconhecimento da lei; ter o agente cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral; ter o agente procurado por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano; ter cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior ou sob influência de violenta emoção; ter cometido o crime após injusta provocação injusto da vítima; ter o agente confessado espontaneamente, perante a autoridade a autoria do crime; ter o agente cometido o crime sob influência de multidão em tumulto, se não o provocou; outras circunstâncias relevantes, anteriores ou posteriores ao crime, embora não previstas expressamente em lei.

Refira-se ainda a tendência da doutrina contemporânea em falar em co-culpabilidade ou vulnerabilidade, assim compreendido a ponderação ao quantificar a culpabilidade da parcela de culpa da sociedade pelas condições em que o agente do fato se encontrava. Explana Domingos Sávio Calixto:

 

 

[...] a vulnerabilidade do indivíduo provém da omissão fática do Estado contrariando o dever de agir declarado constitucionalmente, denota-se que , quanto mais vulnerável é o indivíduo pela pouca –ou nenhuma – atuação do Estado, tanto menor deverá ser sua culpabilidade.

Daí há um deslocamento do objeto da exigência comportamental, ou seja, o indivíduo passa de exigido a exigente, conforme postulados do garantismo e da efetiva aplicabilidade do princípio da dignidade humana como premissas jurídicas.[60]

 

Evidente que dentro de uma ótica funcionalista, estes critérios estabelecidos devem ser valorados tendo em conta estipulações de natureza político criminal. Se por um lado eles conferem alguma segurança à culpabilidade, pois determina os campos que o juiz deverá seguir para sua graduação, evitando que o juiz pondere a seu bel prazer, por outro, eles não podem ser vistos como critérios estanques, e sim como estandartes cujo conteúdo e extensão será preenchido pelas necessidades político criminais do caso concreto.

Refuta-se a concepção de Jakobs de que a culpabilidade independe das qualidades psíquicas de um autor, mas deve fundar-se tão somente na punição indicada ou não para estabilizar a confiança na ordem social. Esta concepção transforma o homem delinqüente em instrumento simbólico de interesses sociais, sendo, portanto, despersonalizado e tendo, conseqüentemente, esvaziada sua dignidade.

Em um Estado democrático de direito como o nosso, o sistema jurídico é soerguido sobre o princípio central da dignidade da pessoa humana. Todos os demais princípios, normas e ramos do direito devem nele se fundar, funcionando como lente hermenêutica para interpretar o sistema jurídico.

É justamente esse vetor axiológico fundamental, albergado formalmente por nossa Constituição Federal, que orientará o dogma da culpabilidade como limite intransponível ao funcionalismo penal.

Não poderia ser de outra forma, sob pena de darmos vazão à crítica de Kant de transformarmos o homem em meio e não fim de todas as coisas.

Se permitíssemos que as funções preventivas subsistissem sem freios, chegaríamos ao absurdo de aplicar penas máximas a todo e qualquer crime, justificando, até mesmo, a pena de morte.

A dignidade da pessoa humana impede que o funcionalismo penal avance sobre o indivíduo com gana utilitarista a fim de transformá-lo em estandarte de propósitos preventivos. E o faz valendo-se da culpabilidade, juízo de reprovação, construído nos estritos lindes do fato praticado pelo agente.

Por mais que se justifiquem as finalidades da pena em intimidar, introduzir valores e ressocializar (na medida em que inevitável a aplicação da pena pelas finalidades preventivo gerais), se não pudermos verificar a imputabilidade do agente, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa, não poderá a pena ser imposta.

Ademais, os elementos da culpabilidade funcionarão como balizamento para os limites da pena a ser imposta, que no mais será tratada dentro das necessidades justificadas das finalidades preventivas.

Por outro lado a culpabilidade não fixa valores mínimos, isto é, ainda que presente a culpabilidade, se a pena não cumprir qualquer função preventiva, deve ser afastada, posto que a culpabilidade é limite e pressuposto mas não fundamento da pena, e o conceito da culpabilidade deve ser superado pelo mais amplo da responsabilidade, conforme os ensinamentos de Claus Roxin.

A culpabilidade é pressuposto e limite intransponível da pena e de sua medida.

Refira-se também, que o esvaziamento da culpabilidade, em certa medida, prejudica a própria função preventiva. Nessa linha o raciocínio construído por Ferrajoli:

 

 

Apenas condutas culpáveis podem ser objeto de prevenção por meio da pena, já que só em relação a elas a cominação encontra-se apta para desenvolver uma função intimidatória. Os fatos não culpáveis, por não imputáveis à consciência ou à vontade do agente ou, inclusive, à ação direta de quem é chamado a responder por eles, não podem ser prevenidos penalmente: são inexigíveis e, em relação a eles, a pena é supérflua

[...] As ações culpáveis são as únicas que podem ser não somente objeto de reprovação, de previsão e de prevenção; são, também, as únicas que podem ser lógica e sensatamente proibidas. As proibições penais são normas “regulativas”, no sentido de que necessariamente pressupõem a possibilidade de serem observadas ou violados por parte de seus destinatários, a cujo conhecimento e vontade se dirigem, com função pragmática de orientá-los e condicioná-los; e seriam insensatas, além de inúteis, se tal possibilidade não existisse..[61]

 

 

Discorda-se, contudo, de algumas soluções que Roxin estabelece com base na responsabilidade, que devem ser resolvidas ainda no estágio da culpabilidade, acompanha-se, nesse caso, a doutrina finalista.

É o caso da legítima defesa e do estado de necessidade exculpante. A exclusão de pena em tais casos não se dá em virtude da ausência de necessidade preventiva, conforme propugnou o mestre alemão, mas ainda no estágio da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa nas circunstâncias concretas.

A inexigibilidade de conduta diversa não pode ser vista como um conceito absoluto, pois, a bem ver, seria indemonstrável e muitas vezes inexistente. Sempre há possibilidade de agir diversamente do que se agiu. O que ocorre é que na inexigibilidade de conduta diversa esfacela-se a possibilidade de exercer a reprovação do agente (culpabilidade), pois a maioria de nós tenderia a agir e comportar-se da mesma forma se exposto a mesma situação circunstancial. Perde-se a legitimidade da reprovação, questão que se resolve no plano da culpabilidade e não das necessidades preventivas.

Há diversos temas instigantes e controversos na jurisprudência e na doutrina em que não se pode afastar a culpabilidade, porém, dentro da teoria da responsabilidade de Roxin, podemos excluir a pena pela ausência de necessidade preventiva, dando coerência político criminal à dogmática.

O critério da responsabilidade e da necessidade preventiva da pena é político criminalmente ideal para refletir casos de eutanásia altruística e aborto de feto anencefálico. Embora o agente seja imputável, tenha potencial consciência da ilicitude e pudesse dele se exigir conduta diversa, em muitos casos concretos não há qualquer necessidade preventivo geral, negativa[62] ou positiva.


Conclusão

 

 

O homem não nasceu para solucionar os problemas do mundo, mas para investigar onde o problema principia, e então, manter-se nos limites do inteligível.

(Goethe [a Eckermann]).

 

 

Com a presente monografia restou demonstrado que o Funcionalismo Racional Teleológico é a teoria que melhor se adéqua ao sistema penal, pois permite a integração da política criminal, da criminologia e da dogmática penal, de forma que estes ramos atuem harmonicamente e de forma eficaz no combate ao crime.

O Funcionalismo reestrutura a teoria do delito promovendo normatização dos seus componentes, o que permite valorações político criminais em cada etapa de estudo do delito.

A construção das funções penais foi sistematizada através de um método racionalista, tendo como ponto fundamental a dignidade da pessoa humana, centro axiológico do Estado Democrático de Direito Brasileiro.

A partir de uma concepção humanitária descreveu-se o papel da culpabilidade como barreira intransponível as pretensões funcionalistas do Direito Penal e da Pena.

A culpabilidade foi contextualizada dentro do conceito mais amplo de responsabilidade, cunhado pelo penalista alemão Claus Roxin, demonstrando que além do juízo de reprovação, a pena, para ser imposta, tem que possuir mínima funcionalidade preventiva.

A contribuição do tema é fundamental em tempos de recrudescimento penal, marcado pela agenda pós 11 de setembro, em que se tem reforçado a contextualização de um direito penal utilitarista, repressor e anti-garantista.

É preciso se ter sempre em mente a base de construção histórica dos direitos humanos e das garantias fundamentais, bem como o custo para que fossem soerguidos (parafraseando Winston Churchill – sangue, suor e lágrimas[63]).

O preço da construção das garantias do cidadão face ao Estado foi o sacrifício de milhares de vidas. O pós-guerra foi profícuo em uma contra-reação que eclodiu na defesa gradativa dos direitos humanos como resposta aos terrores de Hiroshima, do Holocausto e das Guerras Mundiais.

O século XXI era convidativo ao estabelecimento de direitos humanos de 4ª geração, assim definidos por Paulo Bonavides:

 

São direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência [...] Enfim, os direitos de quarta geração compendiam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos.[64]

 

Contudo, a escalada do fenômeno terrorista pós 11 de setembro, trouxe consigo o desrespeito sistemático por países desenvolvidos a convenções que eles mesmos tinham elaborado, como ao Pacto internacional sobre direitos civis e políticos, Pacto internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais, Convenção Americana sobre direitos humanos, Convenção contra torturas e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes, Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. O argumento utilizado é sempre a necessidade de combate ao terrorismo.

Dentre as periclitantes inovações temos a intervenção militar preventiva, como as promovidas no Oriente Médio pelos Estados Unidos da América, a supressão de direitos a ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal, e, até, adoção de tortura como forma de extrair confissão dos investigados.

Temos visto, estarrecidos, a barbárie de uma prisão militar de Guantánamo, onde são sufragados os mínimos direitos que socorrem a um ser humano, em uma evidente afronta ao Pacto de São José da Costa Rica e restauração do manual da Inquisição. O que dizer das humilhações a soldados capturados no Iraque? E a manutenção de presos em estado de incomunicabilidade por longos períodos, desconhecendo a acusação que sobre eles pesam, simplesmente por serem de etnia ou religião determinada? Ou ainda a execução sumária e pelas costas proferida contra o brasileiro Jean Charles de Menezes na Inglaterra?

Nessa perspectiva é fundamental reforçar a impositiva barreira da culpabilidade aos fins e intenções penais.

A questão ganha foro privilegiado como barreira ao movimento repressivo que vem se instalando nas principais nações do ocidente.

É, portanto, de extrema utilidade repisar o tema, como forma de construir uma doutrina universal, baseada na linguagem da racionalidade e dos valores historicamente consagrados pela humanidade, para que se possa construir uma forte teoria de resistência ao retrocesso nos direitos e garantias fundamentais.

A construção elaborada no tema culpabilidade como limite ao funcionalismo penal, demonstra que qualquer Estado que avance os limites penais para além da culpabilidade, perde sua legitimação democrática, e insere-se fora da construção humanitária do direito.

Não há que se falar em direito penal democrático ou Estado Democrático de Direito se não limitarmos o funcionalismo às fronteiras estabelecidas pela culpabilidade.

Verifica-se no declarado combate ao terrorismo, ente abstrato que infunde terror e pânico, a manipulação político ideológica por regimes de feição repressora, manipulando o apoio popular a medidas destituídas de coerência lógico-racional.

Será fundamental a construção dialética de soluções forjadas no embate entre as soluções que se proponha (contra o terrorismo, contra o crime organizado, ou qualquer outro termo genérico que se empregue) e às necessidades de curvar as finalidades penais à culpabilidade individual.

O limite do funcionalismo pela culpabilidade se renova a cada nova proposta, separando a possibilidade da impossibilidade, a legitimidade da ilegitimidade, o humano do desumano.

Nesta senda, a atualidade do tema se impõe.

Conclui-se o presente trabalho com uma citação de Francisco de Assis Toledo:

Não negamos que um dia, talvez, tenhamos todos (não só os criminosos) que responder pela personalidade total. Mas não será, com toda certeza, perante um severo e falível juiz de carne e osso, nem segundo critérios exclusivamente jurídicos. Quando isso ocorrer estaremos provavelmente frente a um Deus-de-amor.[65]


 

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ANEXO I

 

 

Segue na íntegra o extraordinário voto proferido pelo Juiz Federal Élcio Pinheiro de Castro do Tribunal Regional Federal - oitava turma da 4ª Região – em que se excluiu a aplicação da pena por ausência de necessidade preventiva. A aplicação do princípio da irrelevância penal do fato, em essência, na forma como construído no raciocínio do juiz federal, se insere dentro da teoria da responsabilidade plasmada na obra de Claus Roxin, onde, além do limite da punibilidade fixado pela culpabilidade é necessário lastrear a pena pelas necessidades funcionais preventivas.

A aplicação da pena que não preencha qualquer função preventiva é contrária a dignidade da pessoa humana, e insustentável em um Estado Democrático de Direito.

 

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2003.70.03.009921-6/PR r

RELATOR : Des. Federal ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO r

APELANTE : JESUS ROSALVO doS SANTOS r

ADVOGADO: Joao Paulo Coutinho de Moraes r

APELADO : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL r

RELATÓRIO r

DES. ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO: - O Ministério Público aviou denúncia em desfavor de Jesus Rosalvo dos Santos dando-o como incurso nas sanções do artigo 334 do Código penal. r

 

A exordial (fls. 02-3) recebida em 26.10.2004 (fls. 18-9) assim descreveu os fatos: r

\\"Exsurge dos presentes autos de inquérito policial que no dia 25 de maio de 2003, por volta de 00h48min, no Município de Maringá, o Auditor Fiscal da Receita Federal Paulo Schinhiti Abe surpreendeu o denunciado Jesus Rosalvo dos Santos na posse de mercadorias de procedência estrangeira, que se encontravam desacompanhadas de regular documentação fiscal de introdução em território nacional e pagamento de tributos, devidamente discriminadas no Auto de Infração e Termo de Apreensão e Guarda Fiscal nº 0910500/00176/03 (fls. 09/12). r

As mercadorias em questão foram avaliadas em R$ 6.170,00 (seis mil, cento e setenta reais) consoante AITAGF nº 0900500-00176/03 e Laudo de Exame Merceológico nº 361/03 (fls. 47/48) valor esse superior à cota legal de isenção de US$ 150,00 (cento e cinqüenta dólares) permitida à importação de mercadorias estrangeiras, via terrrestre, as quais, segundo relato do denunciado foram adquiridas pelo mesmo no Paraguai e destinavam-se a comercialização no país. r

A materialidade do fato delituoso está consubstanciada no Termo de Apreensão e Guarda Fiscal nº 09105000-00176/03 (fls. 09/12) e no Laudo de Exame merceológico nº 361/03 (fls. 47/48\\". r

Devidamente instruídos e processados os autos, sobreveio sentença (fls. 87-90) publicada em 11.10.2006 (fl. 90) julgando procedente a pretensão punitiva do Estado para condenar Jesus Rosalvo dos Santos, em regime aberto, a 01 (um) ano de reclusão pela prática do delito tipificado no art. 334 do CP. A privativa de liberdade foi substituída por restritiva de direitos consistente em prestação pecuniária no valor de 06 (seis) salários mínimos em prol de entidade assistencial a ser definida pelo Juízo da Execução. r

Inconformado, o réu interpôs o presente apelo. Nas razões (fls. 106-16) pleitea a defesa, em síntese, a reforma da sentença, para absolver o réu, uma vez que o evento em tela representa apenas mera infração administrativa. Pugna pela aplicação do princípio da insignificância jurídica, em face da baixa lesividade da conduta. r

Apresentadas contra-razões (fls. 114-6) subiram os autos. r

Oficiando no feito (fls. 130-5) a douta Procuradoria Regional da República opinou pelo desprovimento da irresignação. r

À fl. 140 consta ofício da Secretaria da Receita Federal, informando o valor dos tributos sonegados. r

É o relatório. À revisão. r

 

Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro r

Relator r

VOTO r

DES. ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO: - Busca o apelante eximir-se da condenação a ele atribuída pela internação em solo pátrio de mercadorias de procedência estrangeira sem o pagamento dos tributos devidos. r

A materialidade do delito restou cabalmente positivada pelos documentos constantes no caderno processual suplementar, a saber: Auto de Infração e Termo de Guarda Fiscal nº 0910500/00176/03 (fls. 09-11) de Apreensão de Mercadorias (fls. 13-4 ) além do Laudo de Exame Merceológico nº 0361-04 (fls. 47-8). r

A autoria também foi suficientemente comprovada, pois o acusado, durante o trabalho de vigilância e repressão, foi flagrado na posse de produtos sem a regular documentação, tendo, inclusive, firmado o Termo de Apreensão (fls. 13-4). Aliás, o próprio réu, tanto na esfera policial como em juízo, confessou a prática do delito, verbis: r

\\"(...) Confirma como sendo sua a assinatura no Termo de Apreensão. Estava na posse pois transportava todas as mercadorias estrangeiras ali descritas (...). Realizou 06 viagens para o Paraguai (...) após este fato, nunca mais foi. Adquiriu todas as mercadorias no Paraguai, pagando cerca de R$ 4.000,00 (quatro mil reais). No Paraguai, as pessoas não compram as mercadorias com documentação e, as que portava, também não tinham, já que é costume de todos que compram no país vizinho. Vendia os vestuários de \\"porta em porta\\". Esclarece que os componentes de informática eram todos sob encomenda, ou seja todos já estavam vendidos, inclusive vendia para alguns amigos. Nunca foi processado nem preso. (fls. 31-2 do IP). r

\\"(...) São verdadeiros os fatos narrados na denúncia, exceto no que se refere ao valor das mercadorias que transportava, pois, segundo o declarante, o gasto foi no máximo de R$ 2.500,00. O valor de R$ 6.170,00 não procede, sendo mera estimativa feita pela Receita Federal. O declarante trazia mais blusas de frio. (fls. 31-2). r

Os depoimentos das testemunhas de acusação, bem como da defesa, em nada contribuíram para alterar a situação fático-probatória constante dos autos. Assim ressai evidente a responsabilidade de Jesus Rosalvo quanto ao cometimento da infração narrada na exordial. r

No que tange ao princípio da insignificância, é cediço que referido instituto tem larga utilização para afastar do direito penal fatos que não produzam relevante lesão a determinado bem jurídico. Assim, exclui-se a tipicidade de condutas consideradas inexpressivas diante do ínfimo dano causado a bens legalmente protegidos. r

No caso dos autos, melhor sorte não socorre ao apelante, pois inobstante a questão social subjacente, em relação ao crime inscrito no art. 334 do CP, não há mais como sustentar o entendimento quanto ao emprego do aludido preceito nas hipóteses em que o total dos tributos não ultrapassa a quantia de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). r

Sobre o tema, a 5ª Turma do E. STJ, tendo como relatora a Ministra Laurita Vaz, no julgamento do Habeas Corpus nº 61.133/ RS, publicado no DJU de 20/11/2006, deixou registrado o seguinte: r

\\"Examinando-se o caso, observa-se que o cerne da controvérsia é a possibilidade ou não de aplicação do princípio da insignificância em relação ao crime de descaminho, cujo débito tributário foi apurado no valor de R$ 1.024,44 (mil e vinte e quatro reais e quarenta e quatro centavos). Inicialmente, impende dizer que, relativamente aos débitos previdenciários, o Superior Tribunal de Justiça tem aplicado o entendimento de que se pode aplicar o princípio da insignificância, desde que as contribuições devidas não ultrapassem o patamar de R$ 1.000,00 (mil reais), estipulado no art. 1º, da Lei nº 9.469/97. Com a entrada em vigor da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, o patamar foi aumentado para R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). O art. 20 da Lei nº 10.522/02, com efeito, trazia a seguinte redação, verbis: '(...) Serão arquivados, sem baixa na distribuição, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais).' Assim, os débitos inferiores a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) provenientes do descaminho, passaram a ser considerados juridicamente irrelevantes, em razão de sua inaptidão para lesar o interesse fiscal da Administração Pública. Todavia, com o advento da Lei nº 11.033/2004, esse patamar foi novamente modificado, desta vez, para R$ 10.000,00 (dez mil reais). Nesse particular, no julgamento do REsp nº 685.135/RS, no qual se discutiu caso semelhante ao presente, a Colenda 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que a orientação jurisprudencial deveria ser revista, para aplicar ao caso de execução de crédito tributário o mesmo raciocínio seguido nas hipóteses de apropriação indébita de contribuições previdenciárias, sob pena de se atribuir tratamento diferenciado a hipóteses semelhantes - sonegação de tributos. Realizada, naquela oportunidade, a interpretação sistêmica entre os enunciados contidos nos arts. 18, § 1º e 20, ambos da Lei nº 10.522/2002, concluiu-se que \\"enquanto o art. 18 , § 1º determina o cancelamento (leia-se: extinção) do crédito fiscal igual ou inferior à R$ 100,00 (cem reais), o art. 20 apenas prevê o não ajuizamento da ação de execução ou o arquivamento sem baixa na distribuição, não ocorrendo, pois, a extinção do crédito. Daí porque não se pode invocar este dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizador de matéria penalmente irrelevante' (REsp nº 685.135/RS, DJ de 02/05/2005). Observa-se, assim, que a legislação citada na impetração não estabelece a extinção do crédito tributário, mas a suspensão da execução, até que o valor devido atinja o patamar ali previsto. Desse modo, se no presente caso, o valor do tributo apurado é de R$ 1.024,44 (mil e vinte e quatro reais e quarenta e quatro centavos) - que ultrapassa em muito o montante previsto no art. 18, § 1º, da Lei nº 10.522/2002, de R$ 100,00 (cem reais), como limite para extinção do crédito fiscal - afasta-se a aplicação do princípio da insignificância, devendo, portanto, prosseguir a ação penal instaurada em desfavor do paciente. Nesse sentido: 'CRIMINAL. HC. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. ARTIGO 20, CAPUT, DA LEI Nº 10.522/2002. PATAMAR ESTABELECIDO PARA O NÃO AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE EXECUÇÃO OU ARQUIVAMENTO SEM BAIXA NA DISTRIBUIÇÃO. ART. 18, § 1º, DA LEI N.º 10.522/2002. EXTINÇÃO do CRÉDITO. ORDEM DENEGADA. I. Hipótese na qual o paciente ajustou Termo de Suspensão Condicional do Processo pela prática de descaminho e interpôs o presente writ sustentando a aplicabilidade do princípio da insignificância ao caso, pois o valor do tributo apurado seria inferior ao limite fixado no art. 20, da Lei nº 10.522/2002, adotado para o arquivamento dos autos da execução fiscal. II. Aplica-se à execução de crédito tributário o mesmo raciocínio seguido nas hipóteses de apropriação indébita de contribuições previdenciárias - para as quais se adota o valor estabelecido no dispositivo legal que determina a extinção dos créditos (art. 1º, inciso I, da Lei nº 9.441/97). III. O caput do art. 20 da Lei nº 10.522/2002 se refere ao ajuizamento da ação de execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, e não à extinção do crédito, razão pela qual não pode ser invocado como forma de aplicação do princípio da insignificância. IV. Se o valor do tributo devido ultrapassa o montante previsto no art. 18 , § 1º da Lei nº 11.033/2004, que dispõe acerca da extinção do crédito fiscal, afasta-se a aplicação do princípio da insignificância. V. Ordem denegada.' (HC n.º 47.944/PR, rel. Min. GILSON DIPP, DJ de 02/05/2006).'penal. RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. DÉBITO FISCAL. ARTIGO 20, CAPUT, DA LEI Nº 10.522/2002. PATAMAR ESTABELECIdo PARA O AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE EXECUÇÃO DA DÍVIDA ATIVA OU ARQUIVAMENTO SEM BAIXA NA DISTRIBUIÇÃO. ART. 18 , § 1º, DA LEI Nº 10.522/2002. CANCELAMENTO do CRÉDITO FISCAL. MATÉRIA penalMENTE IRRELEVANTE. I - A lesividade da conduta, no delito de descaminho, deve ser tomada em relação ao valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas. II - O art. 20, caput, da Lei nº 10.522/2002 se refere ao ajuizamento da ação de execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, não ocorrendo, pois, a extinção do crédito, daí não se pode invocar tal dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizador de matéria penalmente irrelevante. III - In casu, o valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas é superior ao patamar estabelecido no dispositivo legal que determina a extinção dos créditos fiscais (art. 18 , § 1º, da Lei nº 10.522/2002). Logo, não se trata de hipótese de desinteresse penal específico. Recurso provido.' (REsp n.º 685.135/PR, rel. Min. FELIX FISCHER, DJ de 02/05/2005). Ante o exposto, denego a ordem.\\" r

Na mesma linha, observe-se, dentre outros, Acórdão da 6ª Turma assim ementado: r

HABEAS CORPUS. DIREITO penal. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. VALOR EXCEDENTE. INOCORRÊNCIA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITO. FUNDAMENTAÇÃO. OCORRÊNCIA. 1. \\"O art. 20, caput, da Lei nº 10.522/2002 se refere ao ajuizamento da ação de execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, não ocorrendo, pois, a extinção do crédito, daí não se pode invocar tal dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizador de matéria penalmente irrelevante.\\" (REsp nº 685.135/PR, Relator Ministro Felix Fischer, in DJ 2/5/2005). 2. Em se mostrando que o valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas excedeu ao limite pelo qual o Estado expressou o seu desinteresse pela cobrança, não há falar em aplicação do princípio da insignificância. 3. Sendo informadas as penas privativa de liberdade, restritiva de direitos e multa substitutiva pelas mesmas circunstâncias de individualização, não se há de exigir a reprodução da motivação judicial, em espécies em que a recusa da resposta penal menos grave encontra fundamento em circunstância judicial desfavorável ao réu. 4. Ordem denegada. (HC nº 32.576/RS, 6ª Turma, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, julg. em 13.09.2005, public. no DJU em 06.02.2006). r

Como se vê, as duas Turmas que integram a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça vêm se manifestando no sentido de ser inaplicável o disposto no art. 20 da Lei 10.522/2002 no âmbito penal. r

Da mesma forma a Quarta Seção desta Corte, no julgamento dos embargos infringentes nºs 2006.71.04.005535-3, 2002.70.01.011706-3, 2005.71.03.003545-6 e 2004.71.11.000059-4, ocorrido em 19.07.2007, tendo como Relator o Juiz Federal Luiz Carlos Canalli, por maioria, em seguimento à nova orientação firmada pelo STJ, entendeu que deve ser aplicado o patamar inscrito no art. 18, § 1º da Lei 10.522/02, para fins de reconhecimento da insignificância jurídica nos crimes de contrabando e descaminho. r

Logo, em razão do referido parâmetro legal apontado pelo STJ e por esta Corte, cumpre reconhecer que o denunciado não faz jus ao aludido benefício, pois conforme informado pela Receita Federal por meio do Ofício nº 081/2007 (fl. 140) o valor dos tributos sonegados totalizam R$ 1.271,48 (mil, duzentos e setenta e um reais e quarenta e oito centavos). r

Nesse contexto, sendo típica e antijurídica a conduta perpetrada pelo acusado e, não havendo quaisquer excludentes, além de comprovadas a materialidade e autoria, impõe-se o reconhecimento da sua culpabilidade. r

Todavia, no que tange à aplicação da pena, torna-se necessário tecer algumas considerações: Com efeito. O direito penal moderno, por meio da intervenção mínima e da fragmentariedade, tem utilizado mecanismos garantidores àqueles que se envolvem em algum delito, facultando melhores condições de reparação do dano causado a uma vítima ou a toda coletividade. r

Para cada tipo de crime, o Estado determinou que o agente, quando condenado por alguma infração penal seja punido com uma sanção corporal, dentro dos limites da lei. r

Todavia, a pena como instituto de prevenção, muitas vezes não é a melhor solução para trazer a tão almejada paz social. r

Consoante o magistério de Aníbal Bruno \\"a pena como instrumento de defesa social, de afirmação e proteção dos valores cuja violação é definida pela norma penal como punível, que se deve promover através da emenda do criminoso, de seu reajustamento à vida social dentro do direito, veio quebrar a rigidez daquela exigência e admitir certo número de medidas que a modificam ou completam, determinando a suspensão da reprimenda ou cumprimento de parte da sua execução em regime de liberdade vigiada ou mesmo, em casos excepcionais, a dispensa da punição. (in: Das Penas, Editora Rio, 1976, p. 177-8). r

No mesmo sentido, Leonardo Sica, in Direito penal de Emergência e Alternativas à Prisão, Editora RT, 2002, págs. 73-4, nos ensina que: r

\\"O Direito penal, mercê de sua forte carga emocional, tornou-se fonte de expectativas para a solução dos grandes problemas políticos e sociais. Ante o fracasso de outras esferas de controle social ou ante a própria ausência de políticas destinadas a garantir prestações públicas essenciais à população. Paralelamente, novas formas de criminalidade, distantes da violência tradicional, deslocaram a tutela penal de proteção de bens jurídicos individuais e concretos para bens universais e coletivos, originando o que Figueiredo Dias e Costa Andrade denominam \\"as grandes manchas da neocriminalização\\". A tendência do Direito penal em controlar a fidelidade do cidadão ao ordenamento e dissuadi-lo de comportamentos desviantes, faz com que as conseqüências da lei penal deixem de ter importância (v.g., a diminuição da criminalidade) bastando a própria existência da lei como sua justificativa. r

(...) A ilusão de segurança e proteção que a cominação de uma pena - principalmente a privativa de liberdade - gera na coletividade passa a ser o \\"fim\\" da pena. Como adverte Baratta, \\"o déficit da tutela real de bens jurídicos é compensado pela criação, junto ao público, de uma ilusão de segurança e de um sentimento de confiança no ordenamento e nas instituições que tem uma base real cada vez mais fragilizada\\". r

Não sendo diferente o alerta de Roxin, para quem \\"a fuga para o direito penal, significa muitas vezes que a sociedade ilude as suas tarefas criadoras de cariz político-social\\". Arroga-se à pena um fim incompatível com sua natureza: a obtenção do consenso buscado pelos dirigentes políticos na opinião pública. E, por todas as ponderações contidas até aqui, é evidente que tal fim não detém eficácia nem constitui uma garantia dentro do sistema penal. r

Punição, ressocialização e prevenção são, então, secundárias. A pena passa a ser um símbolo esvaziado de conteúdo ético ou social\\". r

Cumpre ressaltar que, no caso de delitos de baixo potencial ofensivo, as privativas de liberdade, podem, dependendo do preenchimento de determinadas condições pessoais, serem substituídas por restritivas de direitos, o que certamente são bem menos aflitivas e possuem caráter mais humano e ressocializador. Todavia, ainda remanesce a punição imposta. r

Nessa direção, assevera Aníbal Bruno que o apenamento alternativo \\"atende a conveniência de poupar-se o delinqüente da ação desmoralizadora da prisão, intelectual e moral que resulta das condições da vida carcerária e da convivência com os demais condenados, fechado dentro de um círculo de interesses muito diversos dos da vida social comum, à qual se pretendia ajustar o criminoso\\". r

Da mesma forma, Miguel Reale Jr. e outros, ensina que \\"a pena é reconhecida como aflição e castigo, antes de tudo, como decorrência da própria realidade, pois desde a persecução penal, recaindo sobre o indiciado o aparato estatal para apuração do fato, até a execução, a pena é vista e sofrida pelo agente como um castigo e assim entendida pela sociedade, até mesmo depois de cumprida, quando permanece atuando na forma de rejeição do condenado.\\" (Penas e Medidas de Segurança no Novo Código, 2ª edição, editora Forense, 1987 pág. 164). r

Insta consignar que não estamos defendendo a não-punição a todo e qualquer delito. Há aqueles de grande ofensividade que necessitam, efetivamente, de sanção corporal, pois caso contrário, deixaria de se justificar o direito penal. Existem, também, os crimes que embora relevantes em termos de tipicidade são considerados de baixa lesividade aos bens jurídicos protegidos, mas que dependendo das circunstâncias pessoais do agente e do fato concreto, impõem apenamento adequado à ação ilícita perpetrada. r

Em hipóteses como a dos autos (crime meramente patrimonial e sem violência) certas condutas praticadas possuem características de infração bagatelar imprópria, ou seja não é alcançado pela insignificância, mas no âmbito da culpabilidade, constitui fato irrelevante para aplicar-se a pena. r

Logo, partindo dos argumentos acima referidos, cumpre verificar a possibilidade do reconhecimento do Princípio da Irrelevância penal do fato (espécie de perdão judicial - insculpido no artigo 59 do CP) analisado com acuidade em obra recentemente publicada, verbis: r

\\"(...) Infração bagatelar imprópria é a que nasce relevante para o Direito penal (porque há desvalor da conduta bem como desvalor do resultado) mas depois se verifica que a incidência de qualquer pena no caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária (princípio da desnecessidade da pena conjugado com o princípio da irrelevância penal do fato). r

Não se pode confundir, desse modo, o princípio da insignificância com o princípio da irrelevância penal do fato: aquele está para a infração bagatelar própria assim como este está para a infração bagatelar imprópria. Cada princípio tem seu específico âmbito de incidência. O da irrelevância penal do fato está estreitamente coligado com o princípio da desnecessidade da pena. Ao \\"furto\\" de um pote de manteiga deve ser aplicado o princípio da insignificância (porque o fato nasce irrelevante). Tratando-se de \\"roubo\\", que envolve bens jurídicos sumamente importantes (integridade física, liberdade individual etc.), pode ter incidência o princípio da irrelevância penal do fato (se presentes todos os seus requisitos). r

Não é acertado utilizar um critério típico do princípio da irrelevância penal do fato (coligado à teoria da pena) na esfera de incidência do princípio da insignificância (que reside na teoria do delito). Essa é a confusão que precisa ser desfeita o mais pronto possível, para que o Direito penal não seja aplicado incorretamente ou arbitrariamente. r

Os princípios da insignificância e da irrelevância penal do fato, a propósito, não ocupam a mesma posição topográfica dentro do Direito penal: o primeiro é causa de exclusão da tipicidade material do fato (ou porque não há resultado jurídico grave ou relevante ou porque não há imputação objetiva da conduta); o princípio da irrelevância penal do fato é causa excludente da punição concreta do fato, ou seja, de dispensa da pena (em razão da sua desnecessidade no caso concreto). r

Um afeta a tipicidade penal (mais precisamente, a tipicidade material); o outro diz respeito à (desnecessidade de) punição concreta do fato. O princípio da insignificância tem incidência na teoria do delito (aliás, afasta a tipicidade material e, em conseqüência, o próprio crime). O outro pertence à teoria da pena (tem importância no momento da aplicação concreta da pena). r

O primeiro tem como critério fundante o desvalor do resultado ou da conduta (ou seja: circunstâncias do próprio fato); o segundo exige sobretudo desvalor ínfimo da culpabilidade (da reprovação: primário, bons antecedentes etc.), assim como o concurso de uma série de requisitos post factum que conduzem ao reconhecimento da desnecessidade da pena no caso concreto (pouco ou nenhum prejuízo, eventual prisão do autor, permanência na prisão por um fato sem grande relevância etc). r

Para que se reconheça esse último princípio (assim como a desnecessidade ou dispensa da pena) múltiplos fatores, portanto, devem concorrer: ínfimo desvalor da culpabilidade, ausência de antecedentes criminais, reparação dos danos ou devolução do objeto, reconhecimento da culpa, colaboração com a justiça, o fato de ter o agente sido processado, preso ou ter ficado preso por um período etc. r

Tudo deve ser analisado pelo juiz em cada caso concreto. Lógico que todos esses fatores não precisam concorrer (todos) conjugadamente. Cada caso é um caso. Fundamental é o juiz analisar detidamente as circunstâncias do fato concreto (concomitantes e posteriores) assim como seu autor (...)\\". (GOMES, Luiz Flávio e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, Direito penal-PG, v.2, São Paulo: RT, 2007, p. 303 e ss). r

Na hipótese sub judice, verifica-se ter sido a primeira e única vez que o acusado se envolveu em um ilícito penal. Jesus Rosalvo não empreendeu qualquer manobra com o fito de prejudicar a instrução processual (a qual, aliás, por si só, representa severo castigo). Além disso, confessou expressamente o delito, sustentando que tinha como socialmente aceita a aquisição de produtos no país vizinho para fins de comércio. r

Cabe registrar ainda que nenhuma das circunstâncias judiciais, elencadas no artigo 59 do Estatuto Repressivo foi considerada desfavorável ao acusado. r

Da mesma forma, os bens adquiridos irregularmente restaram perdidos em prol da Fazenda Nacional, o que revela ter o réu também sofrido financeiramente com a perda dos produtos que iria vender. A par disso, responderá a processo de execução fiscal relativo às sanções administrativas (multas e outros). Percebe-se, igualmente, não ter atuado o réu como laranja ou atravessador. r

Assim, embora o fato praticado por Jesus Rosalvo seja típico, antijurídico e culpável, mas, irrelevante para fins penais, por razões de política criminal, no presente caso, excepcionalmente, entendo desnecessária a punição, consoante estabelecido na parte final do art. 59 do CP. r

Frente ao exposto, nego provimento ao apelo, e de ofício, declaro desnecessária a aplicação de reprimenda, em face do princípio da irrelevância penal do fato. r

 

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2003.70.03.009921-6/PR r

RELATOR : Des. Federal ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO r

APELANTE : JESUS ROSALVO doS SANTOS r

ADVOGAdo : Joao Paulo Coutinho de Moraes r

APELAdo : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL r

EMENTA r

penal E PROCESSUAL. ART. 334 do CP. DESCAMINHO. INSIGNIFICÂNCIA. DESCABIMENTO. ART. 18, § 1º DA LEI 10522/02. CULPABILIDADE. PRINCÍPIO DA IRRELEVÂNCIA penal do fato. DESNECESSIDADE DE APLICAÇÃO DA REPRIMENDA NO CASO CONCRETO. r

1. Materialidade e autoria devidamente demonstradas, uma vez que o réu introduziu em território nacional mercadorias de procedência estrangeira, desacompanhadas da documentação legal. 2. Incabível a aplicação do princípio da insignificância quando o valor dos tributos sonegados ultrapassa o parâmetro contido no artigo 18 § 1º da Lei nº 10.522/02. Precedentes do STJ. 3. Sendo a conduta típica e antijurídica e não havendo excludentes, mostra-se de rigor o reconhecimento da culpabilidade do agente. 4. Todavia, sendo favoráveis todas as circunstâncias judiciais, bem como ter sido esta a primeira e única vez que o agente se envolveu numa infração penal, além de ter respondido ao processo sem criar qualquer obstáculo, inclusive confessando expressamente o delito, por razões de política criminal e em face do princípio da proporcionalidade e da irrelevância penal do fato, excepcionalmente, torna-se desnecessária a aplicação da pena no caso concreto, conforme estatuído na parte final do artigo 59 do Código penal. r

 

ACÓRDÃO r

Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Oitava do Tribunal Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao apelo e decretar, de ofício, extinta a punibilidade do réu, com ressalva do ponto de vista do Des. Luiz Fernando Wowk Penteado, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que integram o presente julgado. r

 

Porto Alegre, 10 de outubro de 2007. r

Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro r

Relator r

NOTAS TAQUIGRÁFICAS do JULGAdo r

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2003.70.03.009921-6 (12) r

RELATOR: DES. ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO r

RELATÓRIO E VOTO (no Gabinete) r

DES. LUIZ FERNANdo WOWK PENTEAdo: r

Neste V. Exa. adota a irrelevância penal do fato. Faço todas as homenagens ao princípio invocado, mas ressalvo compreensão e chego à mesma conclusão por fundamentos diversos. Aplico o princípio da insignificância justificando segundo a orientação tradicional da nossa 8ª Turma, ainda que por maioria. r

 

DES. ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO (RELATOR): r

Tenho a forte tendência de aplicar a irrelevância penal do fato nos 2.500, porque isso sanaria esse nosso problema, mas teríamos de construir em cima disso. r

 

DES. PAULO AFONSO BRUM VAZ (REVISOR): r

Achei interessante. r

DES. LUIZ FERNANdo WOWK PENTEAdo: Sem evoluir muito na análise, tenho uma outra tese, e V. Exas. também são partidários, de que houve contrariedade do Supremo Tribunal Federal pelo simples fato de importar em antecipação de um juízo condenatório. O Supremo Tribunal Federal, em certa ocasião, disse que prescrição antecipada não se reconhece porque significa, sem instrução e sem sentença, chegar-se à conclusão de que alguém é culpado. E nós investigarmos culpabilidade - e esse princípio que V. Exa. invoca estaria contido implicitamente no art. 59 do Código penal - teria significado assemelhado, se não idêntico. Nós estaríamos investigando a necessidade da aplicação da pena; não teríamos então que superar necessariamente a instrução? Na minha concepção, é óbvio que, aplicando o princípio da insignificância, se fosse o caso de encerrar a instrução, caberia também a invocação do princípio da irrelevância penal do fato, porque, se já não reconheço tipicidade da ação, obviamente, não veria necessidade de aplicação da pena. Mas o princípio da irrelevância penal do fato vai mais além: o fato é típico, antijurídico, culpável, porém, a pena é desnecessária. Sinceramente, louvo V. Exa. pela iniciativa de compatibilizar as conclusões com os fundamentos que a Turma vem manejando. De qualquer forma, para este caso é absolutamente fora de crítica, mas, nos demais, até penso que, por questão de utilidade, pode ser invocado, sim, antes, na instrução, da mesma forma que V. Exa. já introduziu aqui nesta Turma o perdão judicial. De qualquer forma, estamos de acordo no resultado final. r

 

DES. PAULO AFONSO BRUM VAZ (REVISOR): r

Vou acompanhar o Relator. r

 

DES. LUIZ FERNANdo WOWK PENTEAdo: r

Acompanho V. Exa. mantendo fundamentação diversa e aplicando o princípio da insignificância. r

Acompanho o Relator. r

 

DECISÃO: r

A Turma, por unanimidade, negou provimento à apelação e, de ofício, declarou desnecessária a aplicação da reprimenda em face do princípio da irrelevância penal do fato, nos termos do voto do Relator, com ressalva do ponto de vista do Des. Luiz Fernando Wowk Penteado.

 

 



[1] BAPTISTA DA SILVA, OVÍDIO. Processo e Ideologia: o paradigma racionalista. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2006

[2] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder, justiça e processo.Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 28.

[3] Haja vista a tendência popular de condenar antes do julgamento, com base no mero apelo midiático, e normalmente propugnar penas bárbaras (linchamento, castração, pena de morte, etc.). O apelo de Talião ainda é muito forte com as massas.

[4] Olho por olho, dente por dente.

[5] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Criminologia – O homem delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997. p. 86.

[6] Expressão cunhada por Heinrich Rickert. Ciência cultural y ciência natural, Buenos Aires: Espasa Calpe, 1943.

[7] GOULDNER, Alvin Ward. La crisis de La sociologia ocidental.Buenos Aires: Amorrortu, 1973. p. 34 e seguintes.

[8] NETTLER, Gwynne. Explaning Crime.New York: McGraw-Hill, 1978. p. 308.

[9] Para uma perfeita compreensão da criminalidade e o individuo é importante também estudar a figura do bystander, ou seja, o problema da alienação e indiferença do terceiro para com a violência, a banalização do crime introjetada nos sentimentos sociais que relativiza a barbárie, só nos incomodando quando a vítima somos nós (o drama só é drama quando pessoal).

[10] GLOVER, Edward. The Roots of Crime. London: Imago Publishing Company, 1960.

[11] LÜCKERT, Heinz Rolf. Konfliktpsychologie.München: Ernst Reinhardt, 1965.

[12] DIAS, op. cit.

[13] DURKHEIM, Emilly. As Regras do Método Sociológico. Lisboa: Editorial Presença, 1980. p. 85 e segs.

[14] DIAS, op.cit., p. 264.

[15] MELGARÉ, Plínio. A autonomia do direito: apontamentos acerca do funcionalismo. Texto extraído do site http://bdjur.stj.gov.br.

[16] Ibidem.

[17] NEVES, Catanheira. Metodologia jurídica - problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1993.

[18] PERELMAN, Chaïm. La logica juridica y la nova retorica. Tradução de Luis Diez-Picazo. Madri: Civitas, 1988.

[19] ROXIN, Claus. Normativismo, política criminal e dados empíricos na dogmática do direito penal. Material da 2ª aula da Disciplina Culpabilidade e responsabilidade pessoal do agente, ministrada no curso de  Pós Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Ciências Penais – UNISUL – IPAN – REDE LFG.

[20] Ibidem, p. 04.

[21] QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal - Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva, 2001.

[22] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal - organização e tradução André Luiz Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006.

[23] FERNANDEZ, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Coimbra: Almedina, 2001. p. 06.

[24] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 1994.

[25] ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução de Luís Greco. Renovar: Rio de Janeiro: 2002. p. 82.

[26] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas Básicos da Doutrina Penal - sobre os fundamentos da doutrina penal - sobre a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

[27] CALIXTO, Domingos Sávio. Elementos para uma teoria da vulnerabilidade. Disponível na internet: WWW.ibccrim.org.br, 13.11.2003. Material da 3ª aula da Disciplina Culpabilidade e responsabilidade pessoal do agente, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – UNISUL – IPAN-REDE LFG. p. 17.

[28] ROXIN, op. cit., p. 10.

[29] FERNANDES, op. cit., p. 32.

[30] GOMES, Luiz Flávio. Princípio da responsabilidade pessoal. Material da 1ª aula da Disciplina Culpabilidade  e responsabilidade pessoa do agente, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Ciências Penais – UNISUL – IPAN – REDE LFG. p. 9.

[31] Ibidem, p. 10.

[32] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão- Teoria do Garantismo Penal. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 448.

[33] ZAFFARONI, op. cit., p. 571.

[34] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal - 2ª edição revista e ampliada. Tradução Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[35] GOMES, Luiz Flavio. Conceito e funções da culpabilidade. Mateirial da 2ª aula da Disciplina Culpabilidade e responsabilidade pessoal do agente, ministrada no Curso de Pós – Graduação Latu Sensu TeleVirtual em Ciências Penais – UNISUL – IPAN – REDE LFG. Pg. 02.

[36] GOMES, op. cit., p. 06.

[37] Idem, Ibidem,. p. 09.

[38] FERRAJOLI, op. cit. p. 452.

[39] AGOSTINHO, Santo. Confissões. Texto extraído em PDF da Internet, disponível na página http://www.4shared.com/file/42926778/7e5ec8a2/santo_agostinho_-_confisses.html?s=1. Pg. 15, livro I, Capítulo IV - O furto das pêras.

[40]TOLEDO, op. cit., p. 245

[41] Idem, ibidem.

[42] TOLEDO, op. cit., p. 262.

[43] FERRAJOLI, op. cit., p. 452.

[44] ZAFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro - Parte Geral. 5ª. edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

[45] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal - Parte Geral. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005.

[46] JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal. V.1. Parte Geral. 23 edição. São Paulo: Saraiva, 1999.

[47] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral - Arts. 1º a 120 do CP. 17 edição. São Paulo: Atlas, 2001.

[48] ZAFFARONI, op., cit.

[49] Nesse sentido Luiz Flávio Gomes – GOMES, Luiz Flávio. Causas de exclusão da Culpabilidade. Material da 3ª aula da Disciplina Culpabilidade e responsabilidade pessoal do agente, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – UNISUL – IPAN – REDE LFG. p. 02.

[50] LALANDE, Andre. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 

[51] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva, 2000. pg. 48

[52] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2004.p. 26.

[53] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. Pg. 63.

[54] FERNANDEZ, op. cit., p. 268.

[55] FERNANDES, op. cit., p. 10.

[56] ROXIN, op. cit., p. .08.

[57] GOMES, op. cit., p. 11.

[58]GOMES, op. cit., p. 12.

[59] DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÙNIOR, Roberto e DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 6ª Edição e 6ª tiragem. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. P. 110.

[60] CALIXTO, op. cit., p. 19.

[61] FERRAJOLI, op. cit., p. 451.

[62] A sociedade invariavelmente, em questões dessa natureza, aderirá ou não à conduta por motivos religiosos, de comiseração, piedade, compaixão, etc., não por temor da pena.

[63] Extraído do sitio disponível na internet http://www.vidaslusofonas.pt/winston_churchill.htm.

[64] Apud in PRADO, Alessandro Martins. Direitos Humanos, terrorismo e retrocesso após o atentado terrorista de 11 de Setembro. Texto extraído da Internet, disponível no site: http://www.artigos.com/artigos/sociais/direito/direitos-humanos,-terrorismo-e-retrocesso-apos-o-atentado-terrorista-de-11-de-setembro-6473/artigo/

[65] TOLEDO, op. cit..

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