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Resumo:
O presente artigo afirma a constitucionalidade do sistema de cotas nas universidades públicas para alunos de escolas públicas e deficientes, tendo por base o princípio da igualdade material e a dignidade da pessoa humana.
Texto enviado ao JurisWay em 26/03/2010.
Última edição/atualização em 29/03/2010.
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Por Raquel Santos de Santana, bacharela em Direito pela UNIT-Sergipe, especialista em Direito Público pela UNIDERP/LFG, servidora pública do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe.
O sistema de cotas no ensino público brasileiro é fruto da política de inclusão social elaborada pelo governo federal com fulcro no artigo 206, inciso I, da Constituição Federal, o qual determina como princípio do ensino, dentre outros, “a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, sendo instituído em alguns Estados através de leis estaduais que permitem que um percentual de vagas nas universidades públicas estaduais seja reservado a um grupo de candidatos, segundo critérios baseados nos indicadores sócio-econômicos, ou na cor ou raça do indivíduo.
Quanto às universidades federais, tramita no Senado o projeto de lei nº 73/99 que está para ser votado provavelmente em 2010. De acordo com o referido projeto, 25% das vagas deve ser dividido entre indígenas, pardos e negros, sendo os outros 25% destinados a estudantes que possuam renda familiar per capta de 1,5 salário mínimo, totalizando uma reserva de 50% do total das vagas existentes nas universidades públicas e escolas técnicas federais de ensino médio.
A inclusão do sistema de cotas nas universidades públicas, na verdade, pode ser feita por conta da autonomia garantida a tais instituições pelo artigo 207 da Constituição Federal, o qual confere essa autonomia no âmbito didático-científico, administrativo, e de gestão financeira e patrimonial, proporcionando a elaboração, por parte das universidades, de normas e regulamentos próprios, inclusive o sistema de reserva de vagas, não havendo necessidade de lei em sentido estrito para que tal sistema seja instituído em alguma universidade.
Nesse sentido, a Jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 5º Região tem se inclinado de modo a atestar a independência das universidades no tocante à apreciação do sistema de cotas, em virtude dessa autonomia que lhes é própria, restringindo a manifestação do Poder Judiciário apenas em caso de ilegalidade por parte da universidade na aplicação do procedimento, como se lê na ementa do Acórdão AGTR 88032/AL a seguir transcrito:
ADMINISTRATIVO. UNIVERSIDADE. AUTONOMIA DIDÁTICA E CIENTÍFICA. VESTIBULAR. SISTEMÁTICA DE COTAS. IMPOSSIBILIDADE DE REANÁLISE PELO PODER JUDICIÁRIO.
1. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL, EM SEU ART. 207, ASSEGURA ÀS UNIVERSIDADES AUTONOMIA DIDÁTICO-CIENTÍFICA, POSSIBILITANDO, ASSIM, O PODER DE DECIDIREM SOBRE OS REQUISITOS PARA INGRESSO EM SEUS QUADROS, A PONTUAÇÃO NECESSÁRIA PARA A APROVAÇÃO NO EXAME DE VESTIBULAR E OS CRITÉRIOS DE CORREÇÃO DAS PROVAS APLICADAS, DENTRO DE UM PLANEJAMENTO NECESSÁRIO À MELHOR FORMAÇÃO DE SEUS ALUNOS.
2. AO PODER JUDICIÁRIO CABE AVERIGUAR ACERCA DA OCORRÊNCIA DE EVENTUAIS ILEGALIDADES NA REALIZAÇÃO DO CERTAME, O QUE NÃO OCORREU NO PRESENTE CASO, E NÃO APRECIAR CRITÉRIOS ADOTADOS PELAS BANCAS EXAMINADORAS, OS QUAIS ESTÃO SITUADOS DENTRO DA ESFERA DISCRICIONÁRIA LEGALMENTE ACEITA. 3. AGRAVO DE INSTRUMENTO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (AGTR 203828; Órgão Julgador: 2ª Turma; Relator: Paulo Godelha; data do julgamento: 15/09/09)
Tal sistema é muito polêmico e tem gerado diversas controvérsias, inclusive já foram propostas ações diretas de inconstitucionalidade (adin's) perante alguns Tribunais de Justiças dos Estados quanto às leis estaduais, chegando o debate ao Supremo Tribunal Federal por meio da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186 e do Recurso Extraordinário (RE) nº 597.285/RS, que ensejaram a realização de audiência pública, convocada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, visando o debate sobre o tema, mas até o presente momento não houve decisão firmando o entendimento do STF.
Ao analisar a aplicabilidade do sistema de cotas, é preciso entender que o Brasil é um país marcado por sérias desigualdades sociais, inclusive regionais, o que impossibilita o acesso de grande parte da população às escolas particulares dotadas, notoriamente, de melhores condições de ensino, impulsionando o indivíduo a fazer parte do rol de escolas públicas que carecem de incentivos por parte do poder público e, consequentemente, carecem de qualidade no serviço prestado.
Diante da realidade do quadro sócio-econômico brasileiro é que se torna viável o estabelecimento de um sistema que venha a aumentar o acesso dos estudantes de escolas públicas às universidades públicas, na medida em que é preciso tratar os desiguais desigualmente na medida de suas desigualdades. A concepção de isonomia pelo famoso filósofo grego Aristóteles vem se somar a essa justificativa, pois para se chegar à igualdade deve-se buscar o justo, que é também o proporcional, ou seja, um meio-termo entre situações que se colocam em extremidades desproporcionais.
No presente caso, notoriamente, é possível perceber que escolas públicas e privadas encontram-se em pólos extremamente desproporcionais, não havendo possibilidade de competição de igual para igual entre os seus respectivos alunos, já que a preparação para ingresso nas universidades públicas exige qualidade e incentivo que, por sinal, existem, de fato, nas escolas privadas, em oposição à inexistência de tais requisitos nas escolas públicas.
A reserva de vagas seria justamente a busca de uma justiça proporcional, no sentido de que institui, na prática, a igualdade de competição entre estudantes de escolas públicas que terão suas vagas reservadas para concorrerem entre si e estudantes de escolas privadas que também terão suas próprias vagas, compensando, assim, a desproporcionalidade da concorrência entre escolas privadas e públicas.
O que a Constituição Federal do Brasil quer dizer em seu artigo 5º ao afirmar que “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza...” é justamente possibilitar a igualdade material entre os cidadãos, protegendo juridicamente, em especial, aqueles que se encontrarem em situação de desvantagem, seja mulher, seja consumidor, seja deficiente, seja aluno de escola pública que, necessariamente, possui baixa-renda etc.
O Tribunal Regional Federal da 5º Região, inclusive, tem se posicionado com louvor sobre o tema, no sentido de que o sistema de cotas agiu em consonância com o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal do Brasil, segundo o qual a dignidade da pessoa humana constitui fundamento da República Federativa do Brasil, bem como em consonância com o artigo 3º do mesmo diploma, segundo o qual é objetivo fundamental do país garantir uma sociedade justa, erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais, além de promover o bem de todos sem preconceitos, como se pode ler no Acórdão AMS 98838/PE.
Essa celeuma sobre o sistema de cotas para as escolas públicas nada mais é do que o retrato da sociedade egoísta e capitalista que o Brasil tem hoje, pois, de um lado, existem os estudantes de escolas particulares que não querem abrir mão do número de vagas disponíveis para outros mais necessitados e, de outro lado, existem as escolas particulares que se mantêm lucrativamente com essa obsessão de aprovação em vestibular.
E não é à toa que as escolas particulares e seus respectivos alunos não aprovados no vestibular invocam, além da infringência ao princípio da isonomia acima comentado, como o sistema meritocrático, segundo o qual o acesso ao ensino mais elevado dependeria da capacidade de cada indivíduo, nos termos do artigo 208, inciso V, da Constituição Federal, na tentativa de justificar a extinção do sistema de cotas nas universidades. Tais argumentos podem ser facilmente derrubados através dos princípios da igualdade material e da dignidade da pessoa humana, como acima comentados, especialmente em relação ao mérito do aluno se considerarmos que a capacidade do aluno de escola pública só poderá ser efetivamente desenvolvida com uma preparação regular e qualitativa para o vestibular, o que não ocorre na prática, não se podendo exigir o impossível de um aluno que sequer teve acesso a uma boa educação escolar para desenvolver sua capacidade.
Quanto à reserva de vagas para deficientes, esta dispensa maiores comentários, não apenas pelos argumentos acima expostos no tocante à igualdade material de que o indivíduo tem direito por se encontrar em situação de desvantagem, pois, de uma forma geral, esta igualdade faz parte dos objetivos do governo através das políticas de ação afirmativa, mas também porque, de uma forma mais específica, o próprio legislador constituinte originário demonstrou a intenção expressa de proteger essa categoria diante de sua notória vulnerabilidade através do artigo 227, inciso II, da Constituição Federal, que determina que o Estado deve criar programas de integração social para as pessoas deficientes, incluindo-se aí o acesso à educação, havendo ainda, a nível infraconstitucional, a lei nº 7853/89 regulamentada pelo decreto nº 3298/99 acerca da respectiva proteção.
O que não pode ocorrer é o sistema de cotas se voltar a reservar vagas em razão da raça do indivíduo, até porque a raça não está necessariamente vinculada à baixa-renda da família brasileira, tendo o negro, por exemplo, total possibilidade de concorrer de igual para igual ou com os alunos de escola pública, ou com os alunos de escola particular, a depender de sua condição social, já que os critérios de correção das provas de vestibular (estendendo-se ao concurso público) são essencialmente objetivos, não havendo possibilidade de discriminação como poderia, de fato, ocorrer no mercado de trabalho quando do exercício da atividade privada, no qual há exigência de apresentação pessoalmente de currículo, inclusive realização de entrevista para a contratação.
Nesse caso, a igualdade étnico-racial deve ser promovida dentro do mercado de trabalho e o negro deve ser submetido ao sistema meritocrático tanto quando concorrer com alunos de escolas privadas, como quando concorrer com alunos de escolas públicas ou quando concorra ainda como deficiente.
Bastaria, pois, que fossem tomadas medidas quanto ao acesso no mercado de trabalho a partir da saída do indivíduo da universidade pública, como estabelecer uma porcentagem de empregados negros a serem contratados pelas empresas, evitando que se crie uma dupla proteção a um mesmo indivíduo negro em detrimento dos demais da raça branca, já que o negro poderia optar em concorrer com as vagas abertas para os estudantes de escolas públicas ou privadas ou concorrer com as vagas destinadas exclusivamente a sua raça, ocasionando uma opção pelo que lhe der maior facilidade na aprovação, o que não seria possível para um indivíduo nas mesmas condições, porém pertencente à raça branca, que só poderia concorrer às vagas destinadas a escolas públicas ou particulares.
Seria um dissenso admitir tamanha desigualdade, sob pena de a exceção se tornar uma regra, de formar a reduzir cada vez mais as oportunidades daqueles que não se enquadrem em nenhuma das situações que se pretende proteger, além do que o Brasil possui uma população composta de caboclos, mulatos e cafuzos que são fruto da miscigenação das raças branca, negra e indígena, em decorrência da imigração, o que dificulta ainda mais a identificação da raça negra.
Assim, o sistema de cotas nas universidades deve existir sempre visando integrar a família de baixa-renda e o deficiente no meio social, através de uma maior oportunidade de ensino, independentemente da raça que o indivíduo possui, garantindo a efetividade no cumprimento dos objetivos constitucionais da República e exaltando um dos maiores fundamentos do Estado Democrático de Direito que é a dignidade da pessoa humana.
Comentários e Opiniões
1) Celso (10/04/2010 às 22:28:11) Acredito que a solução não é racializar esse problema. Mas, sim ao invés de criar um sistema de cotas raciais, criar um sistema de cotas sociais. Com isso, a abrangência vai se muito mais ampla, pois comportará realmente os que tem baixa renda que podem ser pardos, mulatos, negros, brancos e etc... Na verdade não importa a cor e sim a condição social que a pessoa vive e sempre viveu. | |
2) Pedro (11/04/2010 às 08:59:57) Parabéns Raquel. Cotas para os mais pobres sim. Por raça não. Se formos encontrar algum ancestral indígena ou negro certamente os acharemos em nossas famílias. Na minha sei que tem e meus filhos são brancos. Até mesmo porque a ciência afirma que a humanidade surgiu na África. Se fosse pela cor da pele, como algumas Universidades fazem, deveria ser a seleção pelo tom da cor e não por prova escolar. O mais preto seria escolhido em detrimento do mensos preto. | |
3) Charles (13/04/2010 às 21:15:45) Concordo com a idéia, cotas sociais e não raciais. Mas tenho algumas ressalvas. Acho que deveriam aumentar a quantidade de vagas nas universidades e deveria ser estudado um projeto de ensino no nivel fundamental e medio que conseguisse equiparar o estudante publico do particular. Acho que o problema central: falta ou desigualdade de oportunidades, tem um viés estrutural que não pode ser corrigido apenas com politicas de "tapar o sol com a peneira" como o sistema de cotas. | |
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