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Resumo:
o Superior Tribunal de Justiça tem aplicado a teoria do fato consumado para regularizar situações de fato que se consolidaram no tempo a partir do deferimento de medida liminar e longo trâmite processual, desprestigiando a finalidade social do ensino
Texto enviado ao JurisWay em 01/12/2011.
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A aplicação da teoria do fato consumado no sistema de cotas
Por Raquel Santos de Santana, bacharela em Direito pela Universidade Tiradentes - UNIT/SE, especialista em Direito Público pela UNIDERP/LFG, aprovada pela OAB/SE, Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe.
O sistema de cotas no ensino público brasileiro é fruto da política de inclusão social elaborada pelo governo federal com fulcro no artigo 206, inciso I, da Constituição Federal, o qual determina como princípio do ensino, dentre outros, “a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, sendo instituído em algumas universidades públicas estaduais através de lei estadual e, nas universidades públicas federais, por meio de resolução, permitindo que um percentual de vagas nas universidades públicas seja reservado a um grupo de candidatos, segundo critérios baseados nos indicadores sócio-econômicos, ou na cor ou raça do indivíduo.
Atualmente, pode-se encontrar em mandado de segurança o deferimento de medida liminar pelo Poder Judiciário brasileiro no sentido de manter cursando graduação em universidade pública o aluno que concorreu a vagas de escolas particulares no vestibular, ainda que ele não tenha sido aprovado dentro daquele número limitado de vagas, enquanto se discute o fato de esse aluno ter feito uma pontuação maior do que os candidatos aprovados dentro do limite de vagas reservadas às escolas públicas ou de vagas raciais e a invalidade da resolução ou inconstitucionalidade da lei que instituiu o sistema de cotas na universidade pública.
Também consta deferimento de medida liminar para manutenção de aluno em curso de graduação sem o preenchimento de requisito exigido em edital de universidade pública para inclusão nas vagas reservadas ao sistema de cotas, qual seja, cursar a integralidade do ensino médio de forma exclusiva em escola pública e pelo menos parte do ensino fundamental (ou sua integralidade a depender do edital do vestibular) também em escola pública.
Tais deferimentos de medida liminar têm em comum o fato de sustentarem por muito tempo uma situação irregular enquanto se discute o seu mérito e se chega à imutabilidade da decisão final após os recursos cabíveis, garantindo ao beneficiário da decisão judicial a consolidação daquela situação pelo decurso do tempo, entendimento este decorrente da aplicação da teoria do fato consumado pelo Superior Tribunal de Justiça.
A “teoria do fato consumado” é uma construção jurisprudencial que justifica a manutenção de uma situação de fato constituída pelo deferimento de uma tutela de urgência, ainda que o provimento final pudesse ser desfavorável, por ocasião do extenso lapso temporal entre o deferimento liminar e a decisão final, que ensejou a consolidação dessa situação de fato de tal forma que sua desconstituição geraria prejuízos muito maiores que sua manutenção.
No dizer do Superior Tribunal Justiça (Resp. 441064/RS), a teoria do fato consumado seria “uma situação ilegal consolidada no tempo, em decorrência da concessão de liminar”.
Excelente exemplo a ser citado sobre as situações acima avençadas é o REsp. 1.172.643/SC, julgado em março deste ano (2011) pela segunda turma do Superior Tribunal de Justiça, no qual foi mantida a aluna na instituição de ensino superior por já ter concluído pelo menos três anos do curso, apesar de sua matrícula ter sido efetuada por meio de mandado de segurança, sob a alegação da aplicação da teoria do fato consumado em casos desse tipo.
Consta em ementa referente ao recurso especial acima citado o seguinte posicionamento:
“No que diz respeito à violação ao art. 462 do Código de Processo Civil, em face da adoção da teoria do fato consumado quando a recorrida ainda não concluiu o curso, melhor sorte não socorre à universidade. Verifica-se que a recorrida estuda na instituição de ensino há pelo menos 3 anos e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem firmado-se no sentido de que, em hipótese como a dos autos, em que o estudante obteve a matrícula em instituição por intermédio do mandado de segurança e, inclusive, está prestes a concluir o curso, deve-se aplicar a teoria do fato consumado”. (REsp 1172643/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/03/2011, DJe 29/03/2011)
Isso quer dizer que o STJ tem entendido que, deferida em mandado de segurança ou em ação ordinária a matrícula do aluno, caso haja uma demora excessiva no trâmite da ação e julgamento de eventuais recursos, e o aluno venha a cursar parte considerável do curso, a fim de não prejudicá-lo, há que se aplicar a “teoria do fato consumado” e manter o aluno na universidade até a conclusão do respectivo curso de graduação, independente da matéria em discussão, ou seja, se o aluno/requerente não foi aprovado dentro daquele número limitado de vagas reservadas a escolas particulares e obteve pontuação superior aos alunos aprovados nas vagas reservadas ao sistema de cotas ou se o aluno/requerente não preenche algum requisito exigido em edital de universidade pública para inclusão nas vagas reservadas ao sistema de cotas.
Por outro lado, quando se trata de concurso público, o entendimento do STJ parece distinto, pois, segundo o referido Tribunal, não haveria como se aplicar a teoria do fato consumado ao candidato sub judice (àquele participante das demais fases do certame por força de medida liminar), mesmo porque tal candidato estaria amparado por uma medida de natureza precária e sua manutenção afrontaria o princípio da isonomia, já que a tal candidato estar-se-ia reconhecendo tratamento diferenciado em relação aos demais.
Nesse sentido, vide ementa a seguir transcrita:
ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PARTICIPAÇÃO EM CURSO DE FORMAÇÃO POR FORÇA DE DECISÃO LIMINAR. APROVAÇÃO NO CURSO DE FORMAÇÃO. NOMEAÇÃO. PERMANÊNCIA NO CARGO. FATO SUPERVENIENTE. INEXISTÊNCIA. TEORIA DO FATO CONSUMADO. INAPLICABILIDADE. 1. (...). 2. É pacífico nesta Corte Superior o entendimento segundo o qual a aplicação da teoria do fato consumado em matéria de concurso público requer o cumprimento dos requisitos legalmente estabelecidos. 3. Tampouco se aplica a teoria do fato consumado em caso de situações amparadas por medidas de natureza precária, como liminar e antecipação do efeito da tutela, não havendo que se falar em situação consolidada pelo decurso do tempo. (Precedente: AgRg no REsp 1.248.051/RS, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 7.6.2011, DJe 20.6.2011). 4. Em razão do princípio da isonomia, não há como reconhecer a um candidato uma "segunda chance" sem que o mesmo tratamento tenha sido reconhecido aos demais candidatos. (Nesse sentido: RMS 23.915/RO, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 9.10.2007, DJ 29.10.2007, p. 279.) Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1263232/SE, Rel. MIN. HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/09/2011, DJe 09/09/2011).
Partindo-se do pressuposto de que as cotas para estudantes de escolas públicas nas universidades públicas são constitucionais, porque o Supremo Tribunal Federal ainda não apreciou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, e sua instituição decorre da autonomia garantida às universidades públicas pelo artigo 207 da Constituição Federal, em se tratando de deferimento de medida liminar nos casos que envolvem o sistema de cotas, tanto para que seja efetuada matrícula de aluno sem o preenchimento de requisito exigido em edital de universidade pública para inclusão nas vagas reservadas ao sistema de cotas, quanto para que seja efetuada matrícula de aluno de escola particular em universidade pública com pontuação superior a qualquer dos aprovados nas vagas reservadas às escolas públicas, há que se atentar para os seguintes pontos: a) se o mandado de segurança seria a ação cabível para essa situação; b) e até que ponto se poderia fazer uso da “teoria do fato consumado” para manter tal situação.
Sobre a constitucionalidade do sistema de cotas nas universidades públicas vide artigo jurídico de minha autoria intitulado “A constitucionalidade do sistema de cotas nas universidades públicas” publicado em alguns sites na internet.
A priori, são requisitos para a interposição do mandado de segurança a existência de um direito líquido e certo, bem como a prática de ilegalidade por autoridade, nos termos da lei 12.016/2009 que regula a matéria.
Segundo Hely Lopes Meirelles (2006, p.37), constitui direito líquido e certo “o direito comprovado de plano”. Logo, não havendo instrução probatória, as situações e fatos atinentes ao direito devem restar comprovados juntamente com a apresentação da inicial. Ainda segundo o autor, o direito a ser amparado por mandado de segurança deve estar expresso em norma legal e compreender os seguintes requisitos: existência certa, extensão delimitada e exercício dependente de situações e fatos determinados.
Nesse diapasão, verifica-se que o aluno, quando busca o Poder Judiciário para conseguir ingressar na universidade pública por meio de decisão judicial, não possui algum requisito para o seu livre ingresso nas vagas reservadas ao sistema de cotas ou simplesmente não possui vaga disponível dentro daquelas que foram reservadas aos estudantes de escolas particulares, o que deixa clara, a meu ver, a inexistência de qualquer direito líquido e certo à efetivação de sua matrícula em universidade pública, mesmo que haja prova pré-constituída do fato alegado, podendo a medida liminar ser indeferida por ausência de base legal do direito invocado, o que faz desaparecer um dos seus requisitos essenciais que é o fumus boni iuris, caracterizado pela existência de bom direito, ou seja, probabilidade de existência daquele direito invocado.
Logo, por mais que o reitor da universidade pública configure autoridade coatora, nos termos do artigo 1º da lei 12016/09, por caracterizar o próprio Poder Público na prestação do serviço público de educação como um dever do Estado nos moldes do artigo 205 da Constituição Federal, o fato de inexistir o direito líquido e certo do autor enseja, nesse caso, a denegação do mandado de segurança.
Porém, a fim de não prejudicar o direito da parte, considerando que o artigo 10 da lei 12.016/09 determina que a inicial será, de logo, indeferida quando se verificar que não é caso de mandado de segurança, e considerando ainda que, como o sistema de cotas vem sendo alvo de muita celeuma, inclusive de arguição de inconstitucionalidade, o Magistrado poderia extinguir sem mérito o mandado de segurança, invocando a necessidade de dilação probatória para que se discuta em Juízo o direito autoral, possibilitando à parte a interposição de ação ordinária para tal fim.
Frise-se que, para o afastamento do sistema de cotas pelo Magistrado, caso sua instituição tenha se dado mediante resolução da própria universidade pública, deverá haver a declaração de invalidade da respectiva resolução por ser desarrazoado o ato administrativo, ao passo que, sendo sua instituição efetivada por meio de lei estadual, deverá haver a declaração de inconstitucionalidade da norma, efetuando-se, assim, o controle incidental de constitucionalidade, pois se a regra existe, deve ser aplicada até que seja declarada sua inconstitucionalidade pelo STF.
No mandado de segurança que tem como pedido imediato a determinação de que seja efetuada a matrícula de aluno em universidade pública mesmo que ele não possua algum requisito para o seu livre ingresso nas vagas reservadas ao sistema de cotas ou simplesmente não possua vaga disponível dentro daquelas que foram reservadas aos estudantes de escolas particulares, como há essa probabilidade de discussão acerca do direito invocado, poder-se-ia dizer incabível o mandado de segurança por inadequação da via eleita.
A posteriori, o segundo ponto a ser observado é a “teoria do fato consumado” frequentemente aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça nesses casos e firmemente fustigada pelo Supremo Tribunal Federal.
Conforme dito acima, o próprio STJ afirma que a teoria do fato consumado consolida uma situação ilegal, o que permite concluir que, se a própria lei veda, inexiste qualquer direito da parte a ser concretizado judicialmente.
Até então, se a medida liminar em mandado de segurança ou ação ordinária fosse indeferida e o mandado de segurança denegado ou a ação ordinária julgada improcedente, não haveria maiores problemas. O problema surge quando o direito inexistente da parte encontra-se amparado por uma decisão judicial/medida liminar, pois o STJ tenta, com a aplicação da teoria do fato consumado, reaver o tempo perdido anteriormente pela longa tramitação da ação e seus recursos, solidificando a situação ilegal para não gerar maiores prejuízos ao beneficiário da decisão judicial.
Em contrapartida, o Supremo Tribunal Federal assim já se manifestou sobre o tema recentemente:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO AMBIENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE LICENÇA AMBIENTAL. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INAPLICABILIDADE DA TEORIA DO FATO CONSUMADO. 1. (…). 3. A teoria do fato consumado não pode ser invocada para conceder direito inexistente sob a alegação de consolidação da situação fática pelo decurso do tempo. Esse é o entendimento consolidado por ambas as turmas desta Suprema Corte. Precedentes: RE 275.159, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ 11.10.2001; RMS 23.593-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Primeira Turma, DJ de 02/02/01; e RMS 23.544-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJ 21.6.2002. 4 . Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 609748 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-175 DIVULG 12-09-2011 PUBLIC 13-09-2011 EMENT VOL-02585-02 PP-00222)
Em seu voto no AgRg nº 120.893-7, o Ministro Moreira Alves explicou com bastante lucidez que a aplicação da teoria do fato consumado restaria por premiar aquele que não possui qualquer direito pelo simples fato da demora injustificada do julgamento definitivo do mandado de segurança no qual houve a concessão prévia de medida liminar, que por si só possui caráter precário. Também explicou que não há possibilidade de direito adquirido nesses casos quando sequer existir o direito invocado.
Sobre o tema, o Ministro Celso de Mello também assegurou, em seu voto no RMS 23544-AgR, que decisões de caráter provisório, como é o caso da medida liminar em mandado de segurança, não se revestem da imutabilidade, característica própria das decisões definitivas de mérito, cobertas pelo manto da coisa julgada, pelo que não se aplica a teoria do fato consumado, especialmente para manter situações que conflitem com o ordenamento constitucional.
Em exemplo prático, é possível visualizar melhor a gravidade da situação: a UFS – Universidade Federal de Sergipe instituiu, por meio da resolução nº 80/2008, o sistema de cotas étnicas e sociais, reservando o percentual de 50% das vagas de cada curso para o aluno que se enquadre nesses perfis. Suponha-se que o curso de medicina tenha 50 vagas, sendo 1 reservada aos portadores de deficiência, 25 reservadas às escolas particulares e 24 reservadas às escolas públicas.
A partir daí, o aluno que ficou classificado na 26ª posição ao concorrer às 25 vagas reservadas às escolas particulares, inconformado com o sistema de cotas por ter feito uma pontuação maior que os candidatos às vagas reservadas àquele sistema, impetrou mandado de segurança ou ação ordinária na Justiça Federal de Sergipe alegando sua invalidade e requerendo sua matrícula forçada por meio de medida liminar.
Deferida essa liminar para garantir a matrícula do aluno, em qual vaga ele será enquadrado? Haverá então a necessidade de retirar os candidatos classificados nas vagas reservadas ao sistema de cotas ou o Poder Judiciário tem a competência de criar vagas?
É importante frisar que o artigo 207 da Constituição Federal do Brasil de 1988 concede às universidade públicas autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, porém, de forma genérica. Regulamentando esse dispositivo, foi instituída a lei 9394/96 que trata das diretrizes e bases da educação nacional, e no seu artigo 53 é possível identificar, de forma específica, o que seria abrangido por tal autonomia.
A norma constitucional do artigo 207 da CF trata de uma autonomia plena das universidades públicas e, por constituir norma de eficácia plena e aplicação imediata, segundo a classificação do ilustre José Afonso da Silva, independe de qualquer norma que lhe reduza o alcance ou mesmo que lhe regulamente para viabilizar sua aplicação, porém, a lei 9394/96 vem justamente criar diretrizes gerais, a fim de evitar que as universidades acabem por legislar em matéria de ensino superior (1998, p.101).
Fazendo-se uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, a autonomia administrativa que o texto constitucional quer dizer é justamente a possibilidade de a universidade pública “fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio” prevista no artigo 53, inciso IV, da lei 9394/96, enquanto que, por autonomia didático-científica, entende-se, dentre outras, a possibilidade de “ampliação e diminuição de vagas” pela universidade pública, prevista no artigo 53 § único, inciso II da mesma lei.
Leia-se onde a lei se refere a “fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio” que a universidade pública pode não apenas criar o número de vagas que a instituição consiga suportar, mas também dar a elas a destinação que a sociedade necessita, como é o caso do sistema de cotas, que foi instituído com a finalidade de minimizar as desigualdades sociais e oportunizar aos menos favorecidos o acesso à boa educação.
Não há, portanto, que se falar em exorbitância ao poder regulamentar no caso das resoluções que instituam o sistema de cotas, pois tal resolução não está inovando o ordenamento jurídico, na medida em que se a Constituição Federal concedeu às universidades públicas autonomia plena, e a lei de diretrizes e bases da educação nacional prevê essa função social do ensino em seu artigo 53, inciso IV, a universidade pública estaria apenas executando o diploma legal de acordo com a realidade social local, sobrepondo a função social do ensino ao direito subjetivo do aluno.
Dentro desse contexto de autonomia administrativa, ou seja, diante da prática de um ato administrativo discricionário e executório pela universidade pública, há que se verificar até que ponto o Poder Judiciário poderia interferir nesse mérito administrativo. Sabe-se que o mérito administrativo só é passível de apreciação pelo Poder Judiciário em casos de manifesta ofensa ao princípio da razoabilidade, logo, deve-se perquirir se seria razoável o Poder Judiciário determinar a realização da matrícula de um aluno que não possui a vaga, pois não foi aprovado dentro do número de vagas para o qual concorreu.
Nesse sentido, leciona o ilustre Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p.92):
Fácil é ver-se, pois, que o princípio da razoabilidade fundamenta-se nos mesmos preceitos que arrimam constitucionalmente os princípios da legalidade (arts. 5º, II, 37 e 84) e da finalidade (os mesmos e mais o art. 5º, LXIX, nos termos já apontados). Não se imagine que a correção judicial baseada na violação do princípio da razoabilidade invade o "mérito" do ato administrativo, isto é, o campo de "liberdade" conferido pela lei à Administração para decidir-se segundo uma estimativa da situação e critérios de conveniência e oportunidade. Tal não ocorre porque a sobredita "liberdade" é liberdade dentro da lei, vale dizer, segundo as possibilidades nela comportadas. Uma providência desarrazoada, consoante dito, não pode ser havida como comportada pela lei. Logo, é ilegal: é desbordante dos limites nela admitidos.
Sobre o que seria razoável para que o Poder Judiciário promova o controle judicial do ato e sua consequente invalidação, é importante ter em mente que ato razoável é aquele que é praticado com racionalidade e aceitável pelos parâmetros do senso comum, leia-se aquele ato em sintonia com o entendimento de pessoas prudentes, equilibradas e sensatas e que atenda à finalidade precípua que a lei estabelece (MELLO, 2002, p.91).
Ainda que existam valorações distintas sobre uma mesma situação, o que é razoável deve situar-se dentro dos limites aceitáveis, não podendo o Juiz efetuar o controle do ato administrativo através de mera alegação de que não é razoável. O Juiz não pode simplesmente substituir o juízo de valor do administrador pelo seu, quando o seu juízo de valor é aquele baseado somente no critério meritocrático, ou seja, da maior pontuação, sem dar qualquer relevância para o meio social e suas dificuldades de acesso ( CARVALHO FILHO, 2006, p.28).
A ausência de razoabilidade deve ter por base a inobservância de requisitos legais exigidos para a validade do ato, não podendo haver violação a tal princípio quando o ato estiver revestido de licitude (CARVALHO FILHO, 2006, p.28 e 29).
Assim, para o Juiz reputar desarrazoada a conduta do administrador, deverá apontar sua ilegalidade, pois, se a conduta é legal, não há que se falar em ofensa ao princípio da razoabilidade e o juízo de valor do administrador deve ser preservado, na medida em que constitui pessoa apta e com atribuição para gerir a máquina pública (CARVALHO FILHO, 2006, p.29).
Nesse sentido, a criação de novas vagas e o percentual de reserva vinculado ao sistema de cotas são totalmente razoáveis, na medida em que não foram estabelecidos pelas universidades públicas de forma evasiva, há todo um estudo desenvolvido a partir de um programa acadêmico que leva em consideração em sua pesquisa justamente a capacidade da instituição e a necessidade da sociedade local, conforme exigido pelo artigo 53, inciso IV, da lei 9394/96 acima mencionado, havendo fundamentação plausível para implemento desse sistema diante da notória realidade precária do ensino público no Brasil, o que lhe confere racionalidade, sensatez e prudência no dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello acima proposto, atendendo à finalidade de preservação do princípio da isonomia com a redução das desigualdades.
O que fere, na verdade, o princípio da razoabilidade é justamente a inclusão do aluno que não foi aprovado dentro do número de vagas para as quais concorreu sem que haja uma vaga na universidade para ser preenchida. A invalidade do sistema de cotas quando feita judicialmente, possui efeito inter partes, e não tem o condão de reestruturar as vagas disponíveis para cada grupo de candidatos, de modo que, uma vez invalidada a resolução pelo Poder Judiciário, necessário se faz um outro ato administrativo da própria universidade pública para fazer essa reestruturação de vagas e reclassificação do aluno a ser incluído.
Definitivamente, o Poder Judiciário não tem a competência de criar, extinguir ou modificar o número de vagas existentes nas universidades públicas, sob pena de afronta ao princípio da separação dos poderes insculpido no artigo 2º da CF, de modo que, tornando-se inválida a reserva das vagas aos alunos beneficiados pelo sistema de cotas naquela relação processual entre aluno/requerente e universidade/requerida, a universidade pública não fica obrigada a criar vaga para aquele aluno, não podendo o Poder Judiciário incluir ao seu arbítrio o aluno fora do número de vagas, porque aí sim estar-se-ia usurpando a competência da universidade pública para “ampliação e diminuição de vagas”, prevista no artigo 53 § único, inciso II da lei 9394/96, permanecendo o estudante beneficiário da ordem judicial sem qualquer vaga disponível para preenchimento, já que para os demais candidatos aprovados dentro do número de vagas étnicas e sociais, por não fazerem parte daquela relação processual, não sofrerão os efeitos da decisão judicial, permanecendo preenchidas em sua totalidade tais vagas.
Para o candidato que concorreu às vagas reservadas aos alunos de escolas particulares inexiste qualquer interesse e resultado prático viável na invalidação da resolução que institui o sistema de cotas na universidade pública, pois sua inclusão não será legalmente possível a partir disso, não havendo qualquer proveito a ser usufruído por esse aluno, pois o Poder Judiciário pode invalidar o sistema de cotas, mas não pode criar a vaga para que o aluno seja incluído e nem pode obrigar a universidade a praticar o ato de criação da vaga, que é discricionário.
Assim, quando o STJ admite a permanência do aluno que não preenche os requisitos exigidos pelo sistema de cotas ou do aluno que ingressou na universidade pública além do número de vagas, através da aplicação da teoria do fato consumado, está premiando alguém que burlou o ingresso na universidade pública, seja porque não possuía requisito para se matricular apesar de aprovado, seja porque não possuía vaga disponível e sequer foi aprovado, mas mesmo assim conseguiram se matricular por força da medida liminar.
Embora o STJ invoque, para a aplicação da teoria do fato consumado, os princípios da proporcionalidade, razoabilidade, dignidade da pessoa humana, razoável duração do processo, eficiência e segurança jurídica, não é proporcional, nem razoável, sequer eficiente e muito menos confere segurança jurídica o fato de manter pessoas em situação irregular para lhes evitar prejuízo maior, quando tais pessoas concorreram às vagas em situação de igualdade, não foram aprovadas, mas, por recorrerem ao Poder Judiciário, foram beneficiadas por esse privilégio em detrimento dos demais candidatos não aprovados e que não recorreram ao Poder Judiciário, pois a aplicação de tais princípios pressupõe a regularidade da situação e a existência do direito do aluno e não sua inexistência ou afronta ao ordenamento, além do que a segurança jurídica que toda a sociedade espera não pode ser mitigada pela segurança jurídica de única pessoa nessa situação específica.
Deve-se utilizar o mesmo fundamento aplicado pelo STJ para os concursos públicos, ou seja, se o candidato está amparado por uma medida de natureza precária e sua manutenção afrontaria o princípio da isonomia, já que a tal candidato estar-se-ia reconhecendo tratamento diferenciado em relação aos demais, razões inexistem para a manutenção do aluno na universidade pública por meio de mandado de segurança ou ação ordinária.
Chocam-se, portanto, do lado da maioria o princípio da isonomia, e do lado do único aluno litigante, os princípios da dignidade da pessoa humana e razoável duração do processo.
A ponderação deve ser feita pelo peso dos princípios da dignidade da pessoa humana e razoável duração do processo para justificar a insegurança jurídica que traz o princípio do livre convencimento motivado somado aos desarrazoados e longos trâmites processuais, pois, mesmo inexistindo o direito por parte do aluno, seu ingresso na universidade pública teve por base uma decisão judicial, embora de caráter precário, como é o caso da medida liminar, que convalidou a situação de irregularidade.
Assim, nos casos em que o aluno já cursou pelo menos 2 anos do curso superior, de fato, há que se aplicar a teoria do fato consumado, na medida em que, se o aluno dispendeu gastos, estudos, esforços em geral para concluir boa parte do curso e encontra-se psicologicamente preparado para aquela formação superior, inclusive com a formulação de expectativas para o futuro, tudo isso com a autorização do Poder Judiciário, é inevitável que o prejuízo seja muito maior se houver sua retirada da universidade pública, preservando-se, assim, a dignidade da pessoa humana, que no dizer de Ingo Wolfgang Sarlet é “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade”, ou seja, princípio fundamental, que assegura ao homem um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, de forma a preservar a valorização do ser humano (2001, p.60).
REFERÊNCIAS
CARVALHO Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15ª edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.
MEIRELES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 29ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2002.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
SILVA, José Afonso. A aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1998.
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