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Construção do Estado Democrático de Direito


Autoria:

Elisson Ricardo Dias Pereira


Estudante de direito da Universidade Estadual do Maranhão.

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Resumo:

Abordagem sobre a evolução e construção do Estado Democrático de Direito, envolvendo seus princípios e características.

Texto enviado ao JurisWay em 20/05/2019.



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CONSTRUÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

 

Elisson Ricardo Dias Pereira[1]

 

 

 

1 SÍNTESE EVOLUTIVA: o surgimento do Estado Democrático de Direito

1.1 O Estado Liberal

O Estado Democrático de Direito foi o regime adotado pelo constituinte de 1988, de modo que a própria Carta Magna insculpiu, logo em seu artigo 1º, o mandamento de que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, demonstrando a necessidade de construir um novo regime pautado na legalidade e, principalmente, na garantia dos direitos individuais, após o fim do regime militar.

Entretanto, o mencionado artigo limita-se apenas em mencionar o Estado Democrático de Direito como regime adotado, não explicando, afinal, o que vem a ser tal noção de Estado. Diante disso, para entendermos os motivos pelos quais o crime de desacato não encontra guarida no presente Estado Democrático de Direito, é fundamental esclarecer como esse regime surgiu, em qual contexto, quais os princípios que o norteiam e por qual razão se mostra incompatível com o delito supracitado.

Nesse sentido, ao explicar as características, bem como o surgimento do Estado Democrático de Direito, José Afonso da Silva anota o seguinte:

“O Estado democrático de Direito concilia Estado democrático e Estado de Direito, mas não consiste apenas na reunião formal dos elementos desses dois tipos de Estado. Revela, em verdade, um conceito novo que incorpora os princípios daqueles dois conceitos, mas os supera na medida em que agrega um componente revolucionário de transformação do status quo.” (SILVA, 1998, pág. 1).

Desse modo, observa-se como característica principal, que o Estado Democrático de Direito é composto, de um lado, pelas garantias e proteção dos direitos e liberdades individuais, assim como pelos ideais de um Estado pautado pela lei que assegure de forma efetiva esses direitos e que evite abusos dos detentores do poder estatal.

Contudo, conforme se examina do trecho acima transcrito, essa união de elementos não se dá (ou pelo menos não deveria) apenas no plano formal. Na verdade, o Estado Democrático de Direito tem como função primordial promover a justiça social e a dignidade da pessoa humana, conforme se extrai do art. 1º da Constituição Federal de 1988 e demais incisos. A partir de tal constatação, deve-se analisar, sob o ponto de vista histórico, como se deu a formação do que se conhece hoje por Estado Democrático de Direito.

O Estado Democrático de Direito encontra sua raiz com a superação dos estados absolutistas e, mais especificamente com a eclosão das Revoluções Burguesas datadas dos séculos XVII e XVIII. Com isso, surgia então um novo contexto, baseado em ideias tipicamente liberais, buscando-se, assim, assegurar e garantir as liberdades individuais dos cidadãos e, sobretudo, limitar e submeter o poder estatal ao império da lei. Dessa forma, a respeito da consolidação do Estado Liberal:

“O Estado Liberal de Direito apresenta-se caracterizado pelo conteúdo liberal de sua legalidade, onde há o privilegiamento das liberdades negativas, através de uma regulação restritiva da atividade estatal. A lei, como instrumento da legalidade, caracteriza-se como uma ordem geral e abstrata, regulando a ação social através do não-impedimento de seu livre desenvolvimento; seu instrumento básico é a coerção através da sanção das condutas contrarias. O ator característico é o indivíduo, (Streck e Morais, 2006, p. 102).”

Importante ressaltar, nesse sentido, que a Revolução Francesa desempenhou um papel fundamental na consolidação dos ideais liberais, na medida em que a classe burguesa, a qual liderava o movimento revolucionário, seria a maior beneficiária do produto das mudanças sociais que iriam ocorrer naquele contexto, conforme aduz Hobsbawn:

“A Revolução Francesa é comumente associada ao início da predominância do ideário liberal e seu respectivo modelo de Estado, já que ela formatou as linhas mestras da política e da ideologia do século XIX, sendo a revolução de seu tempo”. (HOBSBAWN, 1979, p. 71).

 

Nessa esteira, conforme mais uma vez assevera José Afonso da Silva, ao tratar sobre as características e fundamentos do Estado Liberal:

“O Estado Liberal de Direito tinha como escopo principal não apenas garantir o princípio da legalidade, mas assegurar as seguintes premissas: a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo-cidadão; b) divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes legislativo, executivo e judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência  e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; c) enunciado e garantia dos direitos individuais. (SILVA, 1998, p. 16).

É a partir da consolidação do Estado Liberal que uma nova concepção de divisão de poderes surge, a qual ainda hoje é mantida, a saber, a Teoria de Divisão dos Poderes proposta por Montesquieu. Desse modo, como forma de limitar a concentração de poderes em uma só pessoa (a realeza), defende-se por meio dessa teoria a divisão tripartida desse poder estatal, direcionando-o ao que hoje nós conhecemos por Executivo, Legislativo e Judiciário. Na teoria, a intenção era a de contrabalancear e impedir que cada poder se sobrepusesse a outro, garantindo a não ingerência estatal na vida privada dos cidadãos. Porém, José de Albuquerque Rocha assevera de forma crítica que:

“O objetivo de Montesquieu ao idealizar os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, era preservar os privilégios da sua própria classe, a nobreza, ameaçada tanto pelo rei, que almejava recuperar sua influência nacional, quanto pela burguesia, que dominando o poder econômico, intentava o poder político. Elaborou, então, sua teoria que repartia o poder entre a burguesia, nobreza e realeza, afastando, deste modo, a possibilidade da burguesia em crescimento ser a sua única detentora.” (ROCHA, pág. 128, 1995).

 

Dessa forma, percebe-se que, apesar de deter o poder econômico, a classe burguesa carecia de influência política, a qual ainda estava concentrada nas mãos da realeza e da nobreza. Assim, o princípio da não intervenção do Estado na economia, característica central do Estado Liberal, era uma alternativa da burguesia para alavancar a economia e garantir os direitos individuais dessa classe. É o que assevera Bradbury:

Nesse contexto, a classe burguesa emergente detinha o poder econômico, enquanto que o poder político estava sob o domínio da realeza e da nobreza. Logo, percebe-se que o princípio da não intervenção do Estado na economia, defendido pelo Estado Liberal, foi uma estratégia da burguesia para evitar a ingerência dos antigos monarcas e senhores feudais nas estruturas econômicas da época, garantindo a liberdade individual para a expansão dos seus empreendimentos e a obtenção do lucro.” (LA BRADBURY, pág. 2, 2006).

Ainda nesse sentido, outro princípio inaugurado durante o Estado Liberal e encabeçado pela classe burguesa foi o da igualdade. Contudo, ainda não se falava em igualdade material, tal qual conhecemos hoje. Tratava-se apenas de igualdade formal e tinha como finalidade estabelecer um tratamento de igualdade de todos perante a lei. A estratégia era sábia, pois como a estrutura social feudal ainda era composta de estamentos, ou seja, de classes verticais muito bem estabelecidas, a burguesia tinha como escopo obter maior influência política para a expansão de seus lucros. É o que aduz novamente Bradbury:

“Trata-se de outra tática da burguesia, pois se sabe que o sistema feudal possuía uma estrutura estamental ou de ordens, isto é, era composto por várias classes sociais, a que correspondiam diferentes ordenamentos jurídicos. Essa pluralidade de textos legais vigentes representava que a lei e a jurisdição eram distintas, variando conforme o grupo social do destinatário da norma. Tal situação acabava fazendo com que a realeza e a nobreza tivessem uma série de privilégios, enquanto a burguesia era discriminada.” (LA BRADBURY, 2006, p. 2).

Ocorre que, após a consolidação da Revolução Francesa e o estabelecimento dos valores burgueses, a ideia era suprimir a vontade das classes mais pobres de maiores mudanças da realidade social, o que logicamente iria de encontro aos interesses burgueses:

“Realizada a Revolução, os burgueses cuidaram para que seus efeitos se restringissem a satisfazer seus anseios, mas não fossem a ponto de realizar o tipo de justiça social almejado pelo campesinato e pelos sans-culottes. As promessas que a sociedade liberal lhes havia feito de segurança, legalidade e solidariedade não se concretizaram e, já na primeira metade do século XIX, a pauperização das massas era notável”. (COMPARATO, 2001, p. 51).

Além disso, conforme se observa, foi durante o Estado Liberal que surge o que se conhece hoje por “direitos de primeira geração”. Assim, tanto o princípio da não intervenção do Estado na economia, bem como o da igualdade impõe uma ideia de abstenção do Estado, ou seja, esses princípios exigem que o Estado não interfira na vida privada e nos direitos individuais dos cidadãos, limitando-se apenas em garanti-los e assegurá-los.

1.2 O Estado Social

Como resultado da exigência de uma postura abstencionista por parte do Estado, apenas a manutenção das garantias e liberdades individuais geraram ao longo do tempo uma enorme desigualdade social e econômica, culminando em uma expressiva concentração de renda nas mãos das classes dominantes e, consequentemente no empobrecimento da classe trabalhadora:

“Desse modo, por meio da concepção de lei “geral e abstrata” portadora de uma igualdade estritamente formal e do abstencionismo econômico, o Estado Liberal atribuiu segurança jurídica às trocas mercantis, criou um mercado de trabalho repleto de mão de obra barata e assegurou à iniciativa privada a realização de qualquer atividade potencialmente lucrativa.” (POLANYI, 1957, p. 73).

Em razão disso, observou-se que o Estado Liberal tornara-se insuficiente para atender as demandas sociais emergentes. Ou seja, percebeu-se que satisfazer apenas os interesses da classe burguesa, bem como garantir uma isonomia e tratamento aos diferentes extratos sociais apenas formalmente não estava em sintonia com os anseios que se afloravam. Além disso, a eclosão da Primeira Guerra Mundial foi o estopim para a falência desse modelo de estado, dando início, portanto, ao nascimento do Estado Social, conforme afirma Laski:

“O espírito liberal vai ser fortemente abalado pela Primeira Guerra Mundial, momento em que já começa a existir uma forte tendência ao Estado do Bem-Estar e não mais será possível falar em um Estado Liberal nos moldes acima descritos.” (LASKI, 1973, p. 172).

Assim, a imensa desigualdade social gerada pelo Estado Liberal, reforçada ainda pelos estragos da Primeira Guerra Mundial, amplificou a pobreza e a concentração de renda nas mãos das classes mais abastadas. Diante de tal cenário, José Afonso da Silva assinala brilhantemente o quanto os ideais liberais burgueses contribuíram para o crescimento das injustiças sociais e arremata o seguinte:

"Mas o Estado de Direito, que já não poderia justificar-se como liberal, necessitou, para enfrentar a maré social, despojar-se de sua neutralidade, integrar, em seu seio, a sociedade, sem renunciar ao primado do Direito. O Estado de Direito, na atualidade, deixou de ser formal, neutro e individualista para transformar-se em Estado material de Direito, enquanto adota uma dogmática e pretende realizar a justiça social." (apud VERDU, 1975, pág. 94)

                     

Em razão de todo esse contexto, compreendeu-se que os ideias consolidados e presentes no Estado Liberal não eram mais suficientes para atender as demandas de uma sociedade em reconstrução e totalmente desacreditada nos pilares fundantes do mencionado regime.

Por isso, era necessário exigir muito mais do que uma postura meramente abstencionista por parte do Estado, ou seja, garantir apenas o direito à vida, à propriedade, à liberdade de expressão, não eram mais suficientes. Era indispensável efetivar os meios adequados para a conquista de novos direitos sociais.

Além disso, com a eclosão da Revolução Industrial, a qual foi a responsável pela completa mudança de vida dos trabalhadores, os quais foram obrigados a migrar para as cidades, os direitos até então assegurados pelos ideais liberais foram minguados pelas condições degradantes e jornadas de trabalho exaustivas a que se submetiam os trabalhadores.

Não à toa, foi devido a esse descompromisso com os aspectos sociais que culminou com a Revolução Russa de 1917 com o objetivo de romper com os ideais liberais e implantar um novo regime pautado pela intervenção do Estado na prestação de direitos sociais que garantissem aos operários condições mínimas de bem-estar.

Assim, todos esses fatores foram imprescindíveis para o surgimento de uma nova concepção de Estado, a saber o Estado Social. Assim, na visão de Carlos Ari Sundfeld:

"O Estado torna-se um Estado Social, positivamente atuante para ensejar o desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a elevação do nível cultural e a mudança social) e a realização da justiça social (é dizer, a extinção das injustiças na divisão do produto econômico).” (SUNDFELD, 2006, p. 55).

 

Nesse sentido, a luta dos operários foi de fundamental importância para o rompimento dos ideais liberais, uma vez que passou-se a exigir uma participação ativa por parte do Estado. Necessitava-se, portanto, de um Estado não apenas abstencionista, mas provedor. Assim, “ao mesmo tempo, o fortalecimento das organizações operárias elevou a questão dos direitos sociais à categoria de condicionante da plena participação política dos vários segmentos da sociedade (REGONINI, 1983, p. 416).”

Verifica-se, assim, que o Estado Social, também chamado de Estado de Bem-Estar, surge de inúmeras demandas provenientes dos vários segmentos sociais, com o intuito de assegurar novos direitos. Com base nisso, Ricardo Quartim de Moraes expõe que:

“O Estado Social nascido no século XX como consequência do clamor das massas e dos desafios econômicos postos a seu cargo é o Estado Social Material, aquele modelo de Estado historicamente determinado pelo fim da Segunda Guerra Mundial e que veio superar o neutralismo e o formalismo do Estado Liberal.” (MORAES, 2014, p. 275).

 

Não obstante, pode-se dizer também que essa luta e concessão por novos direitos à classe operária “foi o preço da pacificação social necessária ao retorno do funcionamento tranquilo do mercado.” (GRAU, 2002, p. 28). Nesse sentido, vale ressaltar que essa nova classe de direitos tem como principal característica a qualidade de programas a serem executados pelo Estado, ou seja, não são direitos que se efetivam automaticamente no momento que são inseridos em um ordenamento jurídico.

No que diz respeito aos ordenamentos jurídicos que foram pioneiros na consolidação dos direitos sociais, temos como expoente a Constituição do México de 1917, bem como a Constituição da Alemanha de 1919 (Weimar). No Brasil, o reconhecimento e a consolidação dos direitos sociais só foram estabelecidos na Constituição de 1934, durante o governo Vargas, na qual foram inseridos os direitos trabalhistas.

Assim, Henrique Damiano arremata o seguinte acerca do Estado Social:

“O Estado Social é um Estado que se responsabiliza para que os cidadãos contem com “mínimos vitais”, a partir dos quais podem exercer sua liberdade. Se o Estado Liberal quis ser o estado “mínimo”, o Estado Social quer estabelecer as bases econômicas e sociais para que o indivíduo, a partir do mínimo garantido por aquele, possa desenvolver-se.”

2.2 O Estado Democrático de Direito

Diante de todo esse processo histórico, envolvendo a queda do regime absolutista e o surgimento dos ideais liberais por meio do Estado Liberal, bem como a busca pela concretização dos novos direitos sociais característicos do Estado Social, criou-se, por fim, a figura do Estado Democrático de Direito.

Esse tipo de regime não surge com o fim de apartar os fundamentos dos outros dois regimes anteriores, mas sim como uma tentativa de união dessas características em um modelo que garantisse, de um lado, as liberdades individuais ou liberdades negativas e, de outro lado, as liberdades positivas exigindo, portanto, a atuação prestativa por parte do Estado, porém, sujeitando suas ações ao império da lei.

Nesse sentido, José Afonso da Silva descreve com propriedade o que vem a ser Estado Democrático de Direito:

“A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária, em que o poder emana do povo, deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por seus representantes eleitos; participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes na sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.” (SILVA, 1998, p. 22).

 

Por outro lado, Bobbio analisando as características e ideais do pensamento liberal presente no Estado Democrático de Direito aduz que:

"Estado Liberal e estado democrático são interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco provável que um estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um estado não democrático seja capaz de garantiras liberdades fundamentais.” (BOBBIO, 1986, p. 20).

 

Já na clássica lição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, ao analisar a construção do Estado Democrático de Direito, ele arremata que:

“O Estado Democrático de Direito é uma junção do Estado Liberal com o Estado Social, pois a passagem do primeiro ao segundo modelo de Estado, bastante nítida na história constitucional brasileira, não implicou a exclusão do segundo pelo primeiro, mas em sua transformação naquilo que a Constituição denomina Estado Democrático de Direito.” (FERRAZ JÚNIOR, 1989, p. 54).

Diante de todos esses conceitos, é imprescindível destacar que o Estado Democrático de Direito repousa sobre uma balança na qual não se admite pender demasiadamente para um dos lados. Ou seja, por um lado, exige-se que o Estado seja um agente prestativo, de transformação do status quo e de redução das desigualdades sociais e econômicas. Contudo, corre-se o risco de que tal ação gere uma dominação desmedida por parte do ente estatal, afetando as liberdades individuais dos cidadãos.

Por outro lado, não se admite que o Estado Democrático de Direito tenha como principal função apenas a garantia das liberdades negativas, restando omisso quanto a efetivação dos direitos sociais, gerando, portanto, o aumento das desigualdades nos mais variados setores sociais.

Nesse sentido, é diante desse contexto que as constituições irão desempenhar o papel fundamental de equilibrar essas ações do Estado, na medida em que impõe prerrogativas, deveres e programas a serem cumpridos pelo ente estatal, com o fim de proporcionar aos cidadãos condições dignas de desenvolvimento humano, social e econômico. Assim, Ricardo Quartim de Moraes leciona o seguinte:

“A peculiaridade do Estado Democrático de Direito é sua vocação a superar a atual contradição do Estado contemporâneo – que ou preserva a todo o custo a liberdade dos indivíduos ou, em alguns casos, cresce desproporcionalmente ao concentrar os poderes necessários para realizar a tarefa de distribuição das prestações materiais necessárias à vida digna do indivíduo. Nesses termos é que vai a assertiva de que o Estado Democrático de Direito submete-se ao império da lei, mas da lei que assegura o princípio da igualdade não somente diante da generalidade de seus preceitos como também diante das desigualdades sociais existentes. Uma tarefa tal implica realizar transformações sociais, alterar o status quo.” (MORAES, 2014, p. 279).

Desse modo, conforme já mencionado, a lei em sentido geral é o principal mecanismo de contenção da atuação desmedida por parte do Estado. Assim, o princípio da legalidade, bem como os dispositivos contidos nas constituições e leis irão estabelecer freios à vontade dos agentes estatais. Se antes o legislador estabelecia o que seria interesse público de forma discricionária, agora ele deve atuar de acordo com os ditames da constituição.

É no Estado Democrático de Direito que surge os chamados direitos de 3º geração ou dimensão, que se situam no plano da fraternidade, respeito com o próximo, bem como à necessidade de proteção dos direitos coletivos, ou seja, os direitos difusos ou transindividuais, como a proteção ao meio ambiente, à paz e autodeterminação dos povos. Nesse sentido, o saudoso Teori Albino Zavascki aduz que:

“A reforma mais urgente, mais profunda, e certamente a mais difícil, mas que precisará ser feita, é a reforma do próprio ser humano, é a renovação dos espíritos, é a mudança que se opera pela via do coração. O século XXI há de ser marcado, necessariamente, pelo signo da fraternidade. O Estado do futuro não deverá ser apenas um Estado liberal, nem apenas um Estado do social: precisará ser um Estado da solidariedade entre os homens.” (ZAVASCKI, 1998, p. 230).

No que diz respeito ao nosso plano interno, a Constituição Federal de 1988 consagrou logo em seu art. 1º o Estado Democrático de Direito como o regime adotado. Entretanto, não se trata apenas de proclamá-lo, mas sim de efetivá-lo em todas as suas características fundamentais. Não à toa, nossa Carta Magna é também conhecida por Constituição Dirigente, uma vez que funciona como o centro de onde emana todos os comandos e programas a serem obedecidos e efetivados pelo legislador e demais agentes estatais.

Além disso, a participação popular ganha especial relevo no Estado Democrático de Direito, tendo em vista que sua atuação vai além da mera escolha de representantes políticos para uma legislatura. Nesse sentido, o cidadão é visto como agente transformador da realidade social em que vive, possuindo instrumentos adequados para uma participação política mais concreta. No Brasil, podemos citar como um desses instrumentos a Ação Popular, sendo o cidadão o único legitimado para propô-la. É com base nessa participação do cidadão que Ricardo Quartim de Moraes afirma que:

“O mecanismo de base do Estado democrático de direito reside na dialética dos procedimentos, cuja animação supõe uma cidadania ativa, capaz de estabelecer nexos livres com a esfera pública. Com efeito, o Estado Democrático de Direito urge ser constantemente acionado e engatilhado pela sociedade para que a filosofia de ação de que está imbuído possa realizar-se em conformidade com os anseios sociais.” (MORAES, 2014, p. 281 apud VIANNA E CARVALHO, 2000, p. 133).

Por outro lado, a respeito da participação política no Estado Democrático de Direito, "deve-se evitar que se confunda, por qualquer motivo, a defesa do Estado Democrático de Direito com a defesa de um ‘sistema político’ que nem sempre representa o verdadeiro conceito de democracia." (DANTAS, 1989, p. 27).

Outro pilar fundamental e característico do Estado Democrático de Direito é o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual encontra guarida em nosso ordenamento jurídico no art. 1º, III, da CRFB/88. Tal princípio significa a junção das garantias individuais, da concretização dos direitos sociais e fraternais, resultando na transformação da realidade social e, consequentemente, na redução das desigualdades econômicas, sociais, políticas e culturais. Com base nisso, Fahd Awad leciona qual a finalidade do princípio em comento:

“A pretensão é de ser construída uma democracia para o século XXI com preceitos que, ao serem aplicados, abram espaços para a execução de medidas concretas, que resultem em oferecer ao cidadão qualquer que seja a escala a que ele pertença na grade social, segurança pública e jurídica, assistência à saúde, atendimento escolar, moralidade, liberdade, amplo emprego, respeito aos seus direitos fundamentais e outros valores que estão inseridos no contexto representativo da dignidade humana.” (AWAD, 2006, p. 117).

Diante do exposto, percebe-se, portanto, que o Estado Democrático de Direito é fruto de um longo processo histórico, o qual está em permanente construção e busca pela efetivação dos diretos sociais, mas com respeito às liberdades individuais dos cidadãos. Nesse sentido, Leonardo Cacau Santos La Bradbury anota, em síntese, o seguinte:

“Podemos afirmar que enquanto o Estado Liberal vivenciou a fase Declaratória dos Direitos (individuais) e o Social, a fase Garantista dos Direitos (sociais), o Estado Democrático de Direito, no qual vivemos, insere-se na fase Concretista dos Direitos (fraternais), por meio da qual se busca, efetivamente, formar uma sociedade plural, onde se respeitam as diferenças de credo, sexo, cor e religião.” (LA BRADBURY, 2006, p. 13)

Logo, necessária, como já explanado, a efetiva participação do Estado na concretização, principalmente, dos direitos sociais como saúde, trabalho, educação, transporte e lazer, bem como na proteção do princípio da dignidade da pessoa humana e na promoção da justiça social, pois sem esse elemento não há que se falar em Estado Democrático de Direito.

 

 

                                                                             

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AWAD, Fahd. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humanaJustiça do Direito, Passo Fundo, v. 20, n. 1, p.111-120, set. 2006.

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – Uma Defesa das Regras do Jogo. Trad. Brasileira de Marco Aurélio Nogueira. 2ºed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, pág.20.

COMPARATO, Fábio Konder. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Legitimidade na Constituição de 1988. In: FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio et al. Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia, supremacia. São Paulo: Atlas, 1989.

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

LASKI, Harold J. O liberalismo europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973.

LA BRADBURY, Leonardo Cacau Santos. Estados liberal, social e democrático de direito: noções, afinidades e fundamentos. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1252, 5 dez. 2006.

MORAES, Ricardo Quartim de. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação com o constitucionalismo dirigenteRevista de Informação Legislativa, São Paulo, p.269-285, out. 2014.

POLANYI, Karl. The Great Transformation. Boston: Beacon Press, 1957.

ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 128.

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4º ed. 7º tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo, 2006.

 

STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luís Bolzan. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 183 p.

SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, v. 30, dez. 1988.

ZAVASCKI, Teori Albino. Direitos fundamentais de terceira geraçãoRevista da Faculdade de Direito da Ufrgs, Rio Grande do Sul, v. 15, n. 1, p.227-232, mar. 1998.



[1] Discente do curso de Direito da Universidade Estadual do Maranhão.

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