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A DENÚNCIA ANÔNIMA E A INVESTIGAÇÃO PENAL EM FACE DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA


Autoria:

Letícia Carolina De Oliveira Carvalho


Bacharel em Direito pela FEIT-UEMG. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Servidora Pública Municipal em Ituiutaba-MG.

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Resumo:

O presente estudo tem por objetivo analisar a denúncia anônima e a investigação criminal à luz do princípio constitucional da presunção de inocência ou presunção de não-culpabilidade.

Texto enviado ao JurisWay em 23/12/2013.



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 SUMÁRIO

  

INTRODUÇÃO...................

06

1. NOTITIA CRIMINIS......

08

1.1. Espécies...................

09

1.2. A denúncia anônima.......

2. VERTENTES DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA......

09

13

2.1. Princípios Similares...............

15

2.1.2. Devido processo legal....................

16

2.1.3. Legalidade...................

17

2.1.4. Vedação do anonimato..........

18

3. O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA APLICADO À DENÚNCIA ANÔNIMA...

19

3.1. O inquérito policial iniciado a partir de denúncia anônima......

20

3.2. Remédio constitucional......

23

CONSIDERAÇÕES FINAIS...........

27

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS......

29

TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE.....

31

  

INTRODUÇÃO

  

A denúncia anônima, hoje representada em sua maioria pelos disque denúncias, é tão antiga quanto o próprio direito de punir do Estado. Havia as cartas anônimas, mas com o desenvolvimento da tecnologia é possível hoje denunciar através de um telefonema ou via internet.

 

A questão da vedação do anonimato é excepcionada pelos tribunais no caso da denúncia anônima. Entretanto, o princípio da Presunção de Inocência, maior garantia do cidadão, há que ser respeitado.

 

O princípio da Presunção de Inocência representa a própria democracia. O Estado, que detém o poder de punir, deve demonstrar que o cidadão é culpado, e nunca o contrário. As provas devem demonstrar a necessidade ou não da investigação. Apenas com o trânsito em julgado o réu pode ser considerado culpado. Qualquer antecipação de condenação antes disso (do trânsito em julgado), salvo os casos previstos em lei, pode ser considerada ofensa a este princípio.

 

Pondera-se que assim como a investigação causa um constrangimento permitido por lei, a denúncia anônima infundada pode trazer grandes prejuízos ao “investigado”, mas desta vez, sem amparo legal.

 

Deste modo, o estudo se divide em três capítulos. Primeiramente, passa-se a compreender o instituto “denúncia anônima”, como espécie danotitia criminis e o fundamento para sua aplicação.

 

Em um segundo momento, há a análise do princípio penal-constitucional da presunção de inocência, seu conceito e aplicabilidade, representando o primeiro direito a ser garantido ao cidadão que se acha na condição de investigado. É este princípio que serve de base e argumento para afastar arbitrariedades, a exemplo de uma denúncia anônima infundada.

 

Outrossim, houve a necessidade de trazer à baila casos concretos, como inquéritos policiais iniciados a partir de denúncia anônima, para que o confronto entre princípio constitucional e o “bem-estar” da população seja analisado.

 

Por fim, considerando-se o constrangimento ilegal e o abuso provocados por uma denúncia anônima infundada, o último capítulo trata de remédios constitucionais adequados para afastar a arbitrariedade do Estado.

 

Este estudo realizou-se por intermédio de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, observando-se detalhes objetivos e subjetivos do tema em análise.

 

A abordagem desta pesquisa, por se tratar de atividade meramente teórica, realizou-se através do método hipotético-dedutivo. O método de procedimento utilizado neste estudo é o dogmático jurídico, aplicável especificamente no Direito, com análise de doutrinas, jurisprudências e legislações.

  

1. NOTITIA CRIMINIS

  

A notícia do crime, do latim notitia criminis, é a fase preliminar do Inquérito Policial, traduzindo-se no conhecimento da existência do cometimento do fato delituoso[1]. Dá-se o nome de notitia criminis (notícia do crime) ao conhecimento espontâneo ou provocado, por parte da autoridade policial, de um fato aparentemente criminoso. É com base nesse conhecimento que a autoridade dá início às investigações.

 

São muitas as pessoas autorizadas a apresentar a notitia criminis à autoridade competente. Em todas as hipóteses pode ser ela oferecida por meio de requerimento do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo (art. 5°, II, segunda parte, e §§ 4° e 5°, do CPP). Há casos em que a ação penal pública depende de representação (art. 39). Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública incondicionada poderá, verbalmente ou por escrito (delatio criminis simples), comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar o inquérito (art. 5°, § 3°).

 

O Juiz que tenha a notícia da prática de um crime que se apura mediante ação pública incondicionada deve comunicar o fato ao Ministério Público (art. 40 do CPP) ou requisitar diretamente a instauração do inquérito policial. Aliás, toda pessoa que tenha conhecimento no exercício de função pública de crime de ação pública incondicionada tem o dever de comunicar o fato à autoridade competente, constituindo a omissão contravenção penal (art. 66, I, da LCP). À tal comunicação também está obrigado aquele que teve conhecimento do crime no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal (art. 66, II, da LCP)[2].

 

Quanto ao oferecimento, nos termos do Código de Processo Penal, a notícia do crime pode ser dirigida à autoridade policial (art. 5°, II, §§ 3° e 5°), ao Ministério Público (arts. 27, 39 e 40) ou, excepcionalmente, ao juiz (art. 39).

 

1.1. Espécies

  

A doutrina classifica diversos tipos de notícia de crime. Há notícias de crimes de cognição direta, espontânea, inqualificada ou imediata; cognição indireta, provocada, qualificada ou mediata; e de cognição coercitiva.

 

 A notícia crime de cognição indireta ou mediata ocorre quando a autoridade policial toma conhecimento do fato ilícito por meio de algum ato jurídico de comunicação formal, podendo ocorrer por delatio criminis, requisição da autoridade judiciária, do Ministério Público e do Ministro da Justiça e representação do ofendido.

 

A cognição coercitiva ocorre com a prisão em flagrante do autor, quando o respectivo auto será a primeira peça do procedimento. Como o flagrante pode provocar a prisão do autor da infração por parte da autoridade policial, como de qualquer outra pessoa ou autoridade, a notícia do crime pode ser, em relação ao órgão persecutório, ou direta ou indireta, conforme tenha sido ele próprio, ou outro, o autor da prisão.

 

Por fim, a notícia de crime de cognição direta ou imediata se dá quando a autoridade policial toma conhecimento direto do ilícito através de suas atividades de rotina, de jornais, pela descoberta do corpo do delito, por comunicação da polícia militar, por investigações da polícia judiciária, etc. Caracteriza-se pela inexistência de um ato jurídico formal de comunicação da ocorrência do delito.

 

E é exatamente dentro da cognição direta ou imediata que a denúncia anônima ou apócrifa está classificada.

 

A denúncia anônima difere do delatio criminis. Além do delatio criminis fazer parte da cognição indireta, trata-se de comunicação por escrito ou verbal prestada por pessoa identificada, nos termos do art. 5º, II, do Código de Processo Penal.

  

1.2. A denúncia anônima

 

A denúncia anônima sempre foi permitida e aceita pela doutrina e jurisprudência brasileira.

 

Historicamente, surgiu com o “disque denúncia”, que é a exteriorização da denúncia anônima. Alguns sites definem o disque denúncia como um serviço de combate ao crime, operacional em alguns estados. O primeiro disque denúncia surgiu em 1995 no estado de Rio de Janeiro, idealizado por um grupo privado[3]: 

 

O programa foi concebido no Rio de Janeiro, no ano de 1995, quando a cidade vivia uma dramática onda de violência. A convite do Movimento Rio de Combate ao Crime (MOVRIO), entidade civil que arrecada doações privadas para dividir com o Governo do Estado os custos do programa, José Antônio Borges Fortes, Zeca Borges, engenheiro civil formado pela UFRJ, com experiência de quase três décadas no mercado financeiro, idealizou um serviço de atendimento telefônico que disponibilizasse ao cidadão um meio para canalizar sua indignação, levando-o a colaborar com a polícia, contribuindo para a integração entre esta e os cidadãos. Desse modo, qualquer cidadão pode ajudar as autoridades a combater o crime, e a segurança pública passa a ser uma questão não apenas de polícia, mas de cidadania. 

 

O resultado do programa foi tão satisfatório, que o estado de Rio de Janeiro o adotou. Após o pioneiro estado, outros vieram a adotar o programa “disque denúncia”.

 

Em âmbito federal, tem-se o chamado “disque 100”, que é um serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual, vinculado ao Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Esse disque denúncia foi criado em 1997 por organizações não governamentais que atuam na promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes. Foi em 2003 que o serviço passou a ser de responsabilidade do governo federal. A coordenação e execução do Disque 100 ficou então a cargo da Secretaria de Direitos Humanos, criada no mesmo ano, vinculada à Presidência da República[4].

 

A denúncia anônima é, sem dúvida, um importante instrumento para a investigação criminal no Brasil. Isso porque as pessoas podem denunciar sem medo de represálias futuras por parte dos supostos criminosos. Por esta razão, os órgãos de segurança pública incentivam a população a denunciar, de forma que são frequentes as propagandas neste sentido.

 

Por outro lado, infelizmente, muitas vezes a denúncia anônima é usada como forma de vingança de um desafeto ou por simples brincadeira e, outras vezes, fundamentada em meros boatos.

 

Reza o art. 5º, IV, da Constituição Federal que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Mesmo após essa redação, que está presente desde a promulgação da Constituição em 1988, a doutrina continuou apontando a possibilidade de instauração de Inquérito Policial unicamente baseado em denúncia anônima. Damásio de Jesus, em 1990, ponderava que mesmo em face de denúncia anônima de crime, a autoridade policial tinha dever de instaurar o inquérito policial para a apuração do fato[5].

 

De toda sorte, a partir da cláusula constitucional da vedação do anonimato (art. 5º, IV, in fine), o STF já ressaltou a impossibilidade de instauração da persecução criminal – leia-se, inquérito policial ou procedimento investigatório – com base unicamente em notitia criminis apócrifa, salvo quando o documento em questão tiver sido produzido pelo acusado (segundo a acusação), ou constituir o próprio corpo de delito[6].

 

A maioria da doutrina também se manifesta no sentido de que a denúncia anônima não pode servir de fundamentação para abertura do Inquérito Policial, de forma que a autoridade policial, quando recebe denúncia anônima deve proceder a uma investigação ou diligência preliminar. Se por acaso, a denúncia anônima servir de base para o inquérito policial ou até mesmo para a ação penal, por se tratar de prova ilícita, contaminará todos os atos praticados fulminando-os de ilegalidade, tais como a interceptação telefônica, quebra se sigilo bancário, prisões cautelares decretadas, sequestros de bens e outras medidas restritivas[7].

 

Assim ensina Eugênio Pacelli: 

 

Mas, no que respeita à fase investigatória, observa-se que, diante da gravidade do fato noticiado e da verossimilhança da informação, a autoridade policial deve encetar diligências informais, isto é, ainda no plano da apuração da existência do fato – e não da autoria – para comprovação da idoneidade da notícia. É dizer: o órgão persecutório deve promover diligências para apurar se foi ou não, ou se está ou não, sendo praticada a alegada infração penal. O que não se deve é determinar a imediata instauração de inquérito policial sem que se tenha demonstrada nem a infração penal nem mesmo qualquer indicativo idôneo de sua existência[8]. 

 

Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou em sentido diverso, permitindo que seja instaurado o Inquérito Policial com base na denúncia apócrifa, como a seguir se segue: 

 

Ainda que com reservas, a denúncia anônima é admitida em nosso ordenamento jurídico, sendo considerada apta a deflagrar procedimentos de averiguação, como o inquérito policial, conforme contenham ou não elementos informativos idôneos suficientes, e desde que observadas as devidas cautelas no que diz respeito à identidade do investigado. Precedente do STJ[9].

 

Inexiste ilegalidade na instauração de inquérito com base em investigação iniciadas por notícia anônima, eis que a autoridade policial tem o dever de apurar a veracidade dos fatos alegados (Inteligência do art. 4º, § 3º, CPP)[10]. 

 

Corroborando com a ideia, o próprio STF já admitiu a possibilidade de instauração de inquérito policial apenas com base em delação anônima[11]:  

 

Enfim, a denúncia anônima é admitida em nosso ordenamento jurídico, sendo considerada apta a determinar a instauração de inquérito policial, desde que contenham elementos informativos idôneos suficientes para tal medida, e desde que observadas as devidas cautelas no que diz respeito à identidade do investigado. 

 

No caso do HC 100.042, o STF admitiu que quando a denúncia anônima é, por si só, lastreada de elementos informativos idôneos, é possível a instauração de inquérito policial, mas, neste caso, deve a autoridade policial ou parquet agir com as devidas cautelas no tocante à identidade do investigado. 

 

2. VERTENTES DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA 

 

O princípio da presunção de inocência ou presunção de não-culpabilidade foi inserido no ordenamento constitucional de 1988 como direito fundamental. Assim, reza o inciso LVII do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

 

Trata-se de princípio consagrado internacionalmente, uma vez que institui o art. 66 do Estatuto de Roma, criador do Tribunal Penal Internacional, aprovado pelo Brasil através do decreto-legislativo número 112 de 06 de junho de 2002:  

 

Presunção de Inocência  

1. Toda pessoa se presume inocente até prova da sua culpa perante o Tribunal, de acordo com o direito aplicável. 

 

2. Incumbe ao Procurador o ônus da prova da culpa do acusado.  

3. Para proferir sentença condenatória, o Tribunal deve estar convencido de que o acusado é culpado, além de qualquer dúvida razoável. 

 

É o primeiro direito a ser garantido ao acusado, o qual é presumido inocente, até que seja declarado culpado por sentença condenatória.

 

A presunção de inocência representa um direito que veio atender à igualdade, ao respeito à dignidade da pessoa humana, ao cidadão e ao devido processo penal porquanto: a) a relação jurídica entre o imputado e órgãos persecutórios é mais equilibrada (garantia à igualdade), impedindo que as manifestações do poder público ultrapassem o necessário; b) impede, de ordinário, que ao imputado seja dado tratamento de condenado, antes do reconhecimento definitivo de sua culpa (garantia à dignidade da pessoa); c) impõe a necessidade de um processo condizente com todos os padrões constitucionais de justiça para que se proceda à verificação e declaração de culpa do cidadão (garantia do devido processo legal); d) impõe uma decisão menos prejudicial ao imputado sempre que houver dúvida fática ou se possa proceder à mais favorável escolha jurídica, como asseveração do prestígio à dignidade da pessoa humana em toda e qualquer decisão judicial penal[12].

 

Em outras palavras, impõe o princípio ao poder público a observância de duas regras específicas em relação ao acusado: uma de tratamento, segundo o qual o réu, em nenhum momento da persecução, pode sofrer restrições pessoais fundadas exclusivamente na possibilidade de condenação, e outra de fundo probatório, a estabelecer que todos os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação. Com efeito, até mesmo no ato de indiciamento, é possível reclamar a presença de justa causa[13].

 

Salienta Alexandre de Moraes que a presunção de inocência condiciona toda condenação a uma atividade probatória produzida pela acusação e veda, taxativamente, a condenação, inexistindo as necessárias provas. Daí surge a necessidade de colheita de provas ou de repetição de provas já obtidas perante o órgão judicial competente, mediante o devido processo legal, contraditório e ampla defesa[14].

 

A presunção de inocência, portanto, tem por finalidade evitar juízos condenatórios precipitados, protegendo pessoas potencialmente culpáveis contra eventuais excessos das autoridades públicas[15].

 

Deste modo, esta presunção impede que o Estado trate como culpado aquele que ainda não sofreu condenação penal irrecorrível. Significa que a comprovação da culpabilidade do acusado compete ao Ministério Público, não cabendo ao réu demonstrar a sua inocência. Para que tenha validade ético-jurídica, o juízo condenatório deve sempre apoiar-se em elementos de certeza.

 

Como desdobramento, integra-se ao princípio da prevalência do interesse do réu (in dúbio pro reo), garantindo que, em caso de dúvida, deve sempre prevalecer o estado de inocência, absolvendo-se o acusado. As medidas constritivas aos direitos individuais, por conseqüência, devem ser excepcionais e indispensáveis, como ocorre com a quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico (direito constitucional de proteção à intimidade), bem como com a violação de domicílio em virtude de mandado de busca (direito constitucional à inviolabilidade de domicílio).[16]

 

Em relação à presunção de inocência em casos concretos, a jurisprudência é farta. O STF decide, em linhas gerais, que a presunção de não-culpabilidade impede que se lance o nome do réu no rol dos culpados antes do trânsito em julgado da decisão condenatória[17].

 

O princípio impede que o investigado ou réu seja prejudicado também nas vias civil e administrativa, a exemplo da proibição da exclusão de candidato de concurso público pelo simples fato de responder a inquérito ou ação penal sem trânsito em julgado da sentença condenatória[18].

 

Entretanto, o STF faz algumas ressalvas ao Princípio da Presunção de Inocência, quando diz que ele não é violado no caso de vedação legal de inclusão de oficial militar no quadro de acesso à promoção em razão de denúncia em processo criminal. O STF justifica a vedação em razão da função exercida. Data vênia, trata-se de violação ao princípio da Presunção de Inocência, justificada pelo fato de que este princípio constitucional, a exemplo de muitos outros, não é absoluto.

 

Quanto aos antecedentes criminais, de acordo com o STF, 

 

Inquéritos policiais e ações penais em andamento configuram, desde que devidamente fundamentados, maus antecedentes para efeito da fixação da pena-base, sem que, com isso, reste ofendido o princípio da presunção de não-culpabilidade[19]. 

 

O princípio da presunção de inocência tem eficácia plena, por força do parágrafo único do art. 5º, da Constituição Federal, que determina a aplicação imediata das normas que instituem direitos e garantias fundamentais.

 

Tratando-se de princípio expresso da Constituição, pode ser parâmetro para controle de constitucionalidade. 

 

2.1. Princípios similares 

 

Corroborando com o princípio da presunção de inocência, outros demonstram, também, a necessidade de prévia apuração da procedência da denúncia anônima, para então iniciar o Inquérito Policial.

 

2.2.1. Devido processo legal 

 

O devido processo legal surgiu da experiência constitucional norte-americana do due process of law, que, por sua vez, é reconduzida aos esquemas garantísticos da Magna Carta[20].

 

De acordo com o princípio, para que a privação de direitos ligados à liberdade ou à propriedade seja considerada legítima, exige-se a observância de um determinado processo legalmente estabelecido, cujo pressuposto é uma atividade legislativa.

 

Como anota José Afonso da Silva[21], quando se fala em “processo” e não simplesmente em “procedimento”, alude-se, sem dúvida, a formas instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídica. E isso envolve a garantia do contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais.

 

Materialmente, o devido processo legal diz respeito à necessidade de observar o princípio da proporcionalidade, com resguardo da vida, da liberdade e da propriedade[22].

 

Na acepção processual, também chamado de devido processo legal em sentido formal, o princípio garante a qualquer pessoa o direito de exigir que o julgamento ocorra em conformidade com regras procedimentais previamente estabelecidas. Ou seja, a privação da liberdade ou de bens só será legítima se houver a observância do processo estabelecido pela lei como sendo o devido.

 

O devido processo legal em termos penais guarda íntima relação com o princípio da presunção de inocência, podendo, neste estudo, ser considerado como vertente deste. Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal[23]: 

 

A submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado coloca em evidência a relação de polaridade conflitante que se estabelece entre a pretensão punitiva do Poder Público e o resguardo à intangibilidade do jus libertatis titularizado pelo réu. A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O processo penal condenatório não é instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõe os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu – que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença que, condicionada por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo MP. 

 

Ora, penalmente o processo começa apenas com a denúncia ou queixa, entretanto, esta é oferecida com base nas provas e indícios colhidos na fase inquisitória, ou seja, no Inquérito Policial.

 

Assim, embora todas as provas devam ser reproduzidas na ação penal, o inquérito policial tem grande influência no processo, de forma que durante seu andamento, o devido processo legal deve ser observado.

 

A questão é que quando a autoridade policial recebe uma denúncia anônima, ás vezes nem tem conhecimento do crime, ou não pode ainda afirmar que o crime existe ou existiu. Caso tome a iniciativa de inaugurar o Inquérito Policial, sem proceder a uma  investigação preliminar, estará ferindo o devido processo legal, colocando em risco a liberdade do investigado, sem que haja um mínimo de indício da existência do crime e/ou de sua autoria. 

 

2.2.2. Legalidade 

 

O princípio da legalidade tem como objetivo limitar o poder do Estado impedindo sua utilização de forma arbitrária[24].

 

Significa a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador[25].

 

Quando o Código de Processo Penal autoriza qualquer pessoa do povo a comunicar à autoridade policial sobre a existência do crime, também determina à mesma autoridade policial que verifique a procedência das informações, para só então instaurar o Inquérito Policial. Assim é a redação do § 3º do art. 5º do CPP: 

 

Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito. 

 

No caso de um Inquérito Policial iniciado a partir de denúncia anônima, sem averiguação da procedência da informação, há direta afronta ao § 3º do art. 5º do CPP, o qual determina uma conduta do funcionário público, atingindo, por conseguinte, o Princípio da Legalidade. 

 

2.2.3. Vedação do anonimato 

 

A maioria das decisões dos tribunais superiores a respeito da denúncia anônima guarda relação com a vedação do anonimato.

 

Este princípio está previsto no inciso IV do art. 5º, da Constituição Federal, quando diz que a manifestação do pensamento é livre, sendo vedado o anonimato.

 

A doutrina explica que a liberdade de manifestação do pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros[26]. Daí por que a Constituição veda o anonimato. A manifestação do pensamento não raro atinge situações jurídicas de outras pessoas.

 

Quando se consagra a vedação do anonimato, logo se questiona o porquê de permitir a denúncia anônima. Tal questão pode ser respondida com o fato da proteção do denunciante de futuras represálias. Adiciona-se ao fato dos tribunais preverem que a denúncia anônima não fere o princípio da vedação do anonimato, desde que o procedimento investigatório não seja iniciado única e exclusivamente a partir dela. 

 

3. O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA APLICADO À DENÚNCIA ANÔNIMA 

 

A denúncia anônima, como visto, não é só possível, como também é incentivada pela justiça, através dos famosos disque denúncias. Qualquer um pode denunciar. A denúncia anônima é na verdade, um mecanismo de um Estado deficiente em investigar, denunciar e punir, Estado este que não quer investir em políticas criminais preventivas ou aparelhar devidamente os órgãos de prevenção e repressão à criminalidade.

 

Entretanto, fato é que existem centenas e talvez milhares de denúncias infundadas, baseadas no rancor, vingança e até mesmo em boatos. Por outro lado, algumas denúncias apócrifas levam ao desvendamento de crimes bárbaros e até evitam que o crime aconteça. É o que demonstra a seguinte notícia: 

 

A apreensão do adolescente de 16 anos que confessou o assalto seguido de assassinato, do comerciante Paulo Rubens Pereira da Silva, de 51, só foi possível graças a um munícipe que presenciou um roubo praticado por ele e um comparsa maior de idade – que foi preso. Essa pessoa, que fez a denúncia de forma anônima, seguiu os autores do crime até um determinado lugar e avisou a Polícia Militar, que fez a prisão em flagrante.

 

O delegado da Delegacia de Investigações Gerais (DIG) João Brocanello, que na semana passada havia esbravejado contra a falta de colaboração da população na solução do latrocínio, em matéria publicada pelo Jornal de Barretos, comentou que “o homem que seguiu os bandidos fez um trabalho realmente de cidadão. A Polícia Civil e a Polícia Militar caminham juntas contra a criminalidade, e o cidadão de bem tem que participar. Quando isso aconteceu, encontramos o autor do crime, e de mais 20 roubos na cidade”, comemorou.
Já a delegada da DIG, Silvana Ferreira da Silva, disse que “o homem que avisou a polícia fez o seu papel na questão de se fazer segurança pública”[27].
 

 

Note-se que neste caso houve prisão em flagrante delito, ou seja, o inquérito policial, por meio de auto de prisão em flagrante delito, foi iniciado somente quando a polícia militar verificou a procedência da denúncia, dando voz de prisão aos investigados.

 

O princípio da presunção de inocência consagra o estado inicial e natural de inocente de todo indivíduo. Fazer com que uma pessoa passe pelo constrangimento de ter seu nome como investigado em um inquérito e de se fazer investigado perante a sociedade, sem um mínimo de indício de procedência da denúncia anônima, fere claramente a presunção de inocência.

 

A honra é indenizável no Direito Civil Brasileiro e sua ofensa punida no Direito Penal. A vergonha de um cidadão de bem que é processado criminalmente, entretanto, não é passível de ressarcimento. Em outros termos, mesmo com a indenização, talvez tardia, do Estado, o indivíduo que se viu processado por uma denúncia apócrifa infundada estará à mercê de uma sociedade ainda preconceituosa, infelizmente. Ás vezes um investigado inocente passa por isto, mas de forma permitida pela lei. Porém, o mínimo exigido pelo princípio da presunção de inocência é que o Estado tenha ao menos indício de que seja ele o autor do crime.

 

A presunção de inocência tem por objetivo garantir, primordialmente, que o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa. As pessoas nascem inocentes, sendo este o seu estado natural, razão pela qual, para quebrar tal regra, torna-se indispensável que o Estado-acusação evidencie, com provas suficientes, ao Estado-juiz a culpa do réu. Complemente-se com a afirmação, já assentada pelo STF, de que só é possível a instauração de inquérito policial ou outro procedimento formal, desde que a denúncia anônima seja preliminarmente averiguada e considerada procedente pela autoridade policial ao fim do relatório dos policiais investigadores do fato. 

 

3.1. O inquérito policial iniciado a partir da denúncia anônima

 

Por mais que se exija a realização de diligências preliminares para averiguar a procedência da denúncia anônima, sempre haverá casos em que o inquérito policial seja iniciado a partir, unicamente, da denúncia anônima. Tais casos são crimes graves, havendo jurisprudência, minoritária, que aceita a instauração do inquérito com base na denúncia, como o citado julgado HC 100.042-0/RR, do relator Ministro Celso de Mello, o qual cita-se novamente: 

 

Enfim, a denúncia anônima é admitida em nosso ordenamento jurídico, sendo considerada apta a determinar a instauração de inquérito policial, desde que contenham elementos informativos idôneos suficientes para tal medida, e desde que observadas as devidas cautelas no que diz respeito à identidade do investigado.” (STF - Habeas Corpus 100.042-0 Roraima). 

 

Claramente há ofensa ao princípio da presunção de inocência. Pois, neste caso, aplicou-se a dúvida em favor da sociedade. Caso a denúncia anônima fosse inverdade, certamente os tribunais teriam reprimido a conduta da autoridade policial, tabulando-a como abuso de autoridade. Um julgado como este, que não é sozinho na jurisprudência, é indício de um direito penal repressor, a exemplo do direito penal do autor (também chamado de direito penal do inimigo), totalmente contrário às garantias e direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

 

Porém, a maioria da jurisprudência adota o entendimento sobre a impossibilidade de instauração de Inquérito Policial lastreado unicamente no documento de denúncia apócrifa, entretanto ressalva o caso de o próprio acusado produzir o documento ou o documento constituir o próprio exame de corpo de delito.

 

Embora haja este entendimento majoritário, frequentes são as instaurações de Inquérito Policial com base unicamente na denúncia anônima. E não se trata de erro exclusivo da autoridade policial, presidente do inquérito. Por vezes o próprio Ministério Público solicita a abertura de Inquérito para apuração da denúncia anônima.

 

Tantos são os casos que a jurisprudência é farta. Na maior parte das vezes, a defesa alega a nulidade do processo, uma vez iniciado o Inquérito Policial com base unicamente na denúncia anônima. A acusação defende-se dizendo que a polícia realizou diligências preliminares: 

 

A jurisprudência deste Tribunal Superior firmou-se no sentido de que não há nulidade na decisão que defere as medidas de interceptação telefônica e busca e apreensão quando, a despeito de delatio criminis anônima, os decretos constritivos tenham sido precedidos de diligências policiais a demonstrarem a imprescindibilidade do ato. Precedentes[28]. 

 

Que os tribunais aceitam a instauração de Inquérito Policial após a averiguação preliminar da denúncia anônima efetuada pela autoridade policial, não há dúvidas. Mas, o que seriam as diligências preliminares exigidas pelos tribunais? Seria suficiente apenas uma comunicação dos investigadores afirmando que o crime ou o autor podem ser verdadeiros?

 

Em respeito e obediência ao Princípio da Presunção de Inocência, as diligências preliminares referidas como requisito para instauração de procedimento investigatório devem conter mais do que a reafirmação do teor da denúncia anônima. Deve ser feito mais do que a afirmação do anonimato. Juntada de documentos, arquivos, depoimentos, mesmo que informais. Somente uma comunicação de investigadores afirmando a necessidade da instauração de inquérito para ulteriores diligências afronta a presunção de inocência, tratando-se de uma afronta não permitida ou justificada.

 

Acrescente-se que além da diligência preliminar eficientemente munida com documentos, necessariamente ela tem que ser sigilosa, resguardando o investigado de futuros prejuízos.

 

Todavia, em casos graves, crimes hediondos ou de grande repercussão, o tribunal acaba aceitando a simples averiguação. E isto não é uma crítica às polícias. Vê-se o mesmo erro nas “investigações” do Ministério Público: 

 

 

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DESEGURANÇA. INQUÉRITO CIVIL ABERTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO COM BASEEM DENÚNCIA ANÔNIMA. POSSIBILIDADE.
1. Recurso ordinário no qual se discute a possibilidade de o Ministério Público instaurar inquérito civil para apurar a veracidade de fraudes em procedimentos licitatórios, que foram informadas por meio de denúncia anônima.
2. A Lei n. 8.625/1993, lei orgânica do Ministério Público, e a Resolução n. 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público autorizam a atuação investigatória do parquet, no âmbito administrativo, em caso de denúncia anônima. Precedente: RMS30.510/RJ, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe10/02/2010.
3. No caso, o parquet instaurou inquérito civil com base em denúncia
anônima que continham indícios que supostamente caracterizariam
fraudes em procedimentos licitatórios, bem como baseou-se em notícia determinada que é objeto em outros inquéritos civis.
4. Recurso ordinário não provido[29]. 

 

A denúncia anônima deve ser interpretada apenas como uma notícia sem rosto dada à autoridade policial ou órgão do Ministério Público, para que, cuidadosamente e sigilosamente, averigue a procedência da informação. Cuidadosamente, porque se determinado indivíduo tem, mesmo que minimamente, sua liberdade restringida, já houve o prejuízo. Sigilosamente, para que o nome do “diligenciado” não seja desde já taxado como culpado pela sociedade. A denúncia anônima não é de uma vítima ou testemunha que se identifica, sendo muitas vezes a ferramenta de quem deseja prejudicar.

 

Depois que a investigação é iniciada, provando-se a total infundabilidade da denúncia anônima, só resta ao cidadão, injustamente investigado e com a liberdade restringida, a indenização, por vezes penosamente demorada, do Estado.

 

A instauração de inquérito policial ou de investigação iniciada pelo Ministério Público traz consequências prejudiciais para o investigado. Note-se o exemplo dado no capítulo referente ao princípio da Presunção de Inocência, quando citou-se que o STF entende que inquéritos policiais e ações penais em andamento configuram, desde que devidamente fundamentados, maus antecedentes para efeito da fixação da pena-base, sem que, com isso, reste ofendido o princípio da presunção de não-culpabilidade.

 

Para que esse prejuízo não seja ilegal, são necessárias provas idôneas e suficientes para a instauração da investigação. Por isso, o inquérito policial ou investigação do Ministério Público iniciado a partir unicamente de denúncia anônima, ou de fracas ou mínimas diligências preliminares de averiguação da denúncia anônima, são ilegais por ferir a presunção de inocência.

 

Para coibir este tipo de abuso ilegal, no entanto, é possível a impetração de remédios constitucionais. 

 

3.2. Remédio constitucional

 

Os remédios constitucionais ou ações constitucionais são meios postos à disposição dos indivíduos e cidadãos para provocar a intervenção das autoridades competentes, visando sanar, corrigir, ilegalidade e abuso de poder em prejuízo de direitos e interesses individuais. São garantias institucionais na medida em que são instrumentos destinados a assegurar o gozo de direitos violados ou em vias de ser violados ou simplesmente não atendidos[30]. Têm o poder de limitar a atuação do Poder Público, impondo correções a seus atos e atividades.

 

O habeas corpus é o remédio constitucional mais ligado e aplicado ao processo penal. É o instrumento de garantia do direito líquido da liberdade de locomoção do indivíduo.

 

O instituto do habeas corpus vem de muitos séculos, tido sempre como o melhor remédio jurídico processual. A Magna Charta Libertatum, outorgada por João Sem-Terra, em 15/6/1215, por força das constantes pressões dos nobres e do clero, norteou os princípios fundamentais do habeas corpus. Diz o seu art. 48: “Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento de seus pares, de acordo com as leis do País”. No século XVII, mais precisamente em 1679, no reinado de Carlos II, o texto suso-transcrito foi regulamentado pelo Habeas Corpus Act[31].

 

No Brasil, o desenvolvimento do instituto se deu logo após a República, quando o Decreto 848, de 11/10/1890, organizou a Justiça Federal, estabelecendo-se o recurso extraordinário em todos os casos de denegação da ordem de habeas corpus. Em 1891, pela primeira vez, o instituto passa a integrar o texto constitucional[32].

 

Nesta época, por não haver outra garantia que tutelasse os demais direitos e liberdades contra ilegalidade ou abuso de poder, passou-se a entender que o remédio constitucional poderia ser utilizado para reparar lesão a qualquer liberdade ou direito. Com a reforma constitucional de 1926, o habeas corpus se restringiu a tutelar o direito de locomoção, deixando de ter o sentido genérico protetivo até então[33].

 

A Constituição de 1988 concede habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Tem natureza de ação constitucional penal.

 

Basicamente, o habeas corpus pode ser dividido em preventivo ou repressivo. O habeas corpus é repressivo ou liberatório quando a ordem dada tem por finalidade a cessação de determinada ilegalidade já praticada. No caso de prisão, busca-se o alvará de soltura. Dá-se o nome de habeas corpus preventivo quando a ordem concedida visa a assegurar que a ilegalidade ameaçada não chegue a se consumar. Busca-se o salvo-conduto.

 

As hipóteses de cabimento do habeas corpus encontram-se prevista no art. 648 do Código de Processo Penal, de forma não exaustiva: 

 

 

Art. 648.  A coação considerar-se-á ilegal: 

I - quando não houver justa causa;  

II - quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei; 

III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo; 

IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação; 

V - quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza; 

VI - quando o processo for manifestamente nulo; 

VII - quando extinta a punibilidade.  

 

No presente estudo, conclui-se que o inquérito policial instaurado simplesmente a partir da denúncia anônima é considerado coação sem justa causa. Ou seja, o Estado não está autorizado a submeter o investigado ao constrangimento das investigações oficiais, principalmente em respeito ao princípio da presunção de inocência. Sobre isso, anota Guilherme de Souza Nucci: 

 

Note-se o que ocorre com a utilização do habeas corpus para trancar o inquérito policial ou a ação penal, quando inexista justa causa para o seu trâmite, bem como quando se utiliza esse instrumento constitucional para impedir o indiciamento injustificado, entre outras medidas. Nada mais lógico, pois são atos ou medidas proferidas em processos (ou procedimentos criminais), que possuem clara repercussão na liberdade do indivíduo, mesmo que de modo indireto. Afinal, o ajuizamento de ação penal contra alguém provoca constrangimento natural, havendo registro em sua folha de antecedentes, bem como servindo de base para, a qualquer momento, o juiz decretar medida restritiva da liberdade, em caráter cautelar[34]. 

 

Desta forma, o habeas corpus será cabível, podendo ser preventivo ou repressivo a depender do caso concreto. O agente investigado, neste caso, está sofrendo limitação ilegal em sua liberdade de locomoção. Em alguns casos, absurdos por sinal, seja pela gravidade do enunciado na denúncia apócrifa, ou simplesmente por dados repassados incorretamente, o injustamente investigado pode chegar a ser preso.

 

Ensina a doutrina que a questão da coação ilegal por falta de justa causa desdobra-se em duas questões. Na primeira situação, a falta de justa causa baseia-se na inexistência de provas ou de requisitos legais para que alguém seja detido ou submetido a constrangimento. Na segunda hipótese, a ausência de justa causa concentra-se na carência de provas a sustentar a existência e manutenção da investigação policial ou do processo criminal. Se a falta de justa causa envolver apenas uma decisão, contra esta será concedida a ordem de habeas corpus. Caso diga respeito à ação ou investigação em si, concede-se a ordem para o trancamento do processo ou procedimento[35].

 

Se a investigação oficial, inquérito policial ou investigação ministerial, portanto, foi instaurada com base unicamente na denúncia anônima, a defesa pode impetrar habeas corpus para o trancamento do procedimento. E o principal fundamento é que não há justa causa em uma coação que afronta diretamente o princípio da presunção de inocência. A coação, neste caso, não é justificada. Não há lastro probatório suficiente para submeter o indivíduo ao inocente, assim presumido constitucionalmente.

 

Salienta-se que a depender do vexame ou constrangimento sofrido, pode se pleitear, também, indenização pelo dano moral causado.  

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS  

 

Com o crescimento da criminalidade, as pessoas tendem a exigir um comportamento mais punitivo do Estado, de forma que apoiam a redução da menoridade penal e chegam a exigir atuações extremas no sistema punitivo, como a pena de morte ou a prisão perpétua.

 

Sabendo que algumas destas reivindicações não são permitidas para o ordenamento jurídico, o Estado, que quer agradar, cria leis ou institui programas com a participação popular para aplacar essa sensação de anomia social.

 

A denúncia anônima representa uma ferramenta à disposição da população em dias de tamanha violência. Qualquer um pode denunciar. Qualquer pessoa pode utilizar o disque 100, por exemplo. Claro que, por um lado, isso é extremamente importante para a elucidação e prevenção de crimes, bem como identificação de autoria. Entretanto, deixando as centenas e talvez milhares de denúncias infundadas de lado, o ato de denunciar traz à população uma responsabilidade que sempre foi do Estado. Investigar e provar a culpabilidade de determinado agente são deveres do Estado.

 

O ideal seria que o Estado aparelhasse todo o sistema de investigação. Valorização de policiais também entra na ideia. Ao invés de punição, a prevenção é mais adequada. Deste modo, o sistema penal no Brasil deveria ser eficiente e eficaz, pois assim, não seria necessária, ou seria pouco necessária a intervenção da população através das denúncias anônimas.

 

Como não há investimento na polícia repressiva e preventiva, bem como nos demais órgãos de investigação, o Estado prefere transferir um pouco da titularidade da investigação ao povo.

 

Entretanto, em face do princípio da presunção de inocência, quando do recebimento de uma denúncia anônima, a autoridade policial não tem o poder-dever de instaurar de imediato o inquérito policial. Tampouco, as diligências preliminares citadas pela doutrina e jurisprudência podem ser simples averiguações de procedência.

 

Para que haja respeito à situação inicial de inocência do indivíduo, tais diligências ou investigações preliminares devem, necessariamente, primar pelo sigilo, evitando escândalo e constrangimento aquele que foi denunciado. As provas também devem ser razoáveis, como colheita de possíveis testemunhas, as quais não precisariam, de pronto, serem ouvidas, mas apenas serviriam para confirmação da existência do crime e de indícios de autoria.

 

Ademais, a investigação de campo realizada pelos policiais não deve colocar em risco a reputação do investigado, sendo necessária a maior cautela possível. O caminho sugerido parece ser melindroso, mas não poderia ser de outra forma, quando se reconhece o estado inicial de inocência de todo indivíduo.

 

Toda e qualquer investigação oficial instaurada a partir de denúncia anônima, que não tenha sido previamente averiguada com outros tipos de provas, deve ser anulada por ser ilegal. Isto pode ser feito através do remédio constitucional denominado habeas corpus. 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

 

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TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

 


[1] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P. 45.

[2]MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo penal.14ª.ed. São Paulo: Atlas, 2003.p. 82.

 [3]Denúncia anônima: disque denúncia. Disponível em:https://pt.wikipedia.org/wiki/Disque_Den%C3%BAncia. Pesquisa em 10/06/13.

[4]Disque denúncia – o que somos. In Secretaria de Direitos Humanos.Disponível em:http://www1.direitoshumanos.gov.br/clientes/sedh/sedh/spdca/exploracao__sexual/Acoes_PPCAM/disque_denuncia/disque. Pesquisa em 10/06/13.

 [5] JESUS, Damásio Evangelista de. Código de Processo Penal Anotado. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1990.

[6] STF – QO Inquérito 1.957/PR, rel. Ministro Carlos Velloso (Informativo STF nº 387).

[7]QUINTINO, Eudes. Denúncia anônima. Disponível em: http://espaco-vital.jusbrasil.com.br/noticias/2554267/denuncia-anonima. Pesquisa em 05/04/2013.

[8] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 46.

[9] STJ – HC 44.649/SP, rel. Ministra Laurita Vaz (DJ 8/10/07).

[10] STJ – HC 106040/SP, rel. Ministra Jane Silva – Desembargadora convocada do TJ/MG, Sexta Turma, (DJ 8/09/2008).

[11] STF – HC 100.042-0/RR, rel. Ministro Celso de Mello (maio 2011).

[12] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2010. p.347.

[13] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P. 37.

[14] MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais.p. 277.

[15] CUNHA JÚNIOR, Dirleyda. NOVELINO, Marcelo. Constituição Federal para concursos. 4ª ed. São Salvador: Jus Podvm, 2013. p. 97.

[16] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 82.

[17] STF – HC 80.174, rel. Ministro Maurício Corrêa (DJ 14.04.2002).

[18] STF – RE (AgR) 559.135, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski (DJE 13.06.2008).

[19] STF – AI (AgR) 604.041, rel. Ministro Ricardo Lewandowski (DJ 31.08.2007).

[20] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição.p. 480.

[21] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p.432.

[22] CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional.15ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 863.

[23] STF, HC 73.338/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, RTJ 161/264.

[24] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. NOVELINO, Marcelo. Constituição Federal para concursos. 4ª ed. São Salvador: Jus Podvm, 2013. p. 31.

[25] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p.422.

 [26] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 245.

 [27] JORNAL DE BARRETOS. Delegados comemoram ligação anônima que ajudou a desvendar o latrocínio e outros 20 roubos. Disponível em: http://jornaldebarretos.com.br/site/delegados-comemoram-a-ligacao-anonima-que-ajudou-a-desvendar-o-latrocinio-e-outros-20-roubos/. Pesquisa em 20/05/13.

[28] STJ, AgRg no AREsp 262655 / SP. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. DJe 14/06/2013.

[29] STJ, RMS 37166/SP. Rel. Min. Benedito Gonçalves. DJe 15/04/2013.

[30] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 442.

[31] TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 196.

[32]Ibidem.

[33] CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 15ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 853.

[34] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 949.

[35] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 952.

 

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