Outros artigos do mesmo autor
A recepção pátria do casamento celebrado no exteriorDireito de Família
Outros artigos da mesma área
Violência de gênero na internet: pornografia de vingança e a responsabilização penal do agente
Insegurança Jurídica dos efeitos da condenação
PREVENÇÃO AO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO NAS INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS NO BRASIL
Um julgamento pode ser anulado em razão das vestimentas do réu durante o plenário do júri
IMPUNIDADE NO SISTEMA PENAL: aspectos extrajudiciais e alopoiese
Resumo:
O presente artigo apresenta uma abordagem histórica do crime de tortura, desde os primórdios da civilização até a atualidade. Além de breve explanação acerca dos artigos da Lei de Tortura.
Texto enviado ao JurisWay em 13/02/2013.
Última edição/atualização em 21/02/2013.
Indique este texto a seus amigos
O homem é o ser vivo de evolução mais significativa e isso ocorre em razão dos acontecimentos em espaço-temporais que se dão em seu convívio social. Entretanto o ser humano é, também, o ser mais intricado que existe, sendo totalmente influenciado por elementos individuais e coletivos, vinculados aos fatores geográficos.
Em toda existência da humanidade a violência esteve presente como meio para alcançar seus objetivos, sendo estes, na grande maioria das vezes os métodos mais perniciosos e desprezíveis.
O impulso dominador do ser humano é ilimitado, e se caracteriza pela submissão de um homem a atos humilhantes por outro de sua mesma espécie, que levam à agonia, à angústia intensa, à dor, e, não raras as vezes tendo por subterfúgio ideologias culturais e religiosas.
Assim aparece a tortura como objeto tipificado como crime na Lei n. 9.455/97 que faz jus à evidente atenção que lhe é dispensada, por ser um legado das épocas anteriores da humanidade.
Dessa feita, o presente trabalho se propõe a apresentar comentários acerca da Lei 9.455 de 7 de abril de 1997 – Lei de Tortura.
Antes, contudo, de adentrar precisamente à Lei de Tortura, apresentar-se-á um breve relato dos momentos históricos que foram marcados pela figura da tortura, em suas mais variadas modalidades e com as mais diversas finalidades.
II. ASPECTOS HISTÓRICOS DA TORTURA
O homem é um ser social e um ser racional, como propalava Aristóteles no século 4 a.C., no entanto, não raras as vezes desfez-se de sua racionalidade e entregou-se às barbáries promovidas pela força.
Não são poucos os relatos de violência ao longo da história, desde grandes guerras até agressões domésticas, desde as cruzadas religiosas até as torturas motivadas pelo mais puro e simples sadismo.
Nessa toada, apresenta-se a tortura como um desses meios de violência empregados ao longo da história da humanidade.
A prática da tortura possui origens das mais variadas, ora decorria da reafirmação do poder monárquico, ora do sistema penal, ora dos crimes, ora pelo descumprimento de leis religiosas, várias eram as razões para a sujeição de alguém à tortura e também vários eram os meios de se aplicá-la.
Os babilônios, por exemplo, eram utentes de métodos como a laceração dos lábios, nariz e pés, cegueira, estripação e a apurada técnica de “gotejamento” do coração que, depois, era desarraigado.
Os Assírios, a seu turno, eram adeptos esmerados do corte, transformavam seus inimigos em picadinhos ou passavam-lhes o fio da espada na barriga, “como se fossem carneiros”, dizia Assurbanipal, rei assírio entre 668-627 a.C.
Havia, também, o esfolamento que consistia em dependurar a pessoa num tipo de cabide de madeira, pelas costas, e deixar sua pele ir se dilacerando em decorrência da Gravidade.
Consistiam essas práticas em meios do rei reafirmar a essência do seu poder, demonstrando que ele que deliberava acerca da vida e da morte de seus súditos.
Os povos helênicos igualmente não permaneciam atrás no que tange à tortura, não obstante a Grécia ser o berço da democracia. Segundo Martin Zimmerman, autor de “Extreme Formen von Gewalt in Bild und Text des Altertums”, na Ilíada há 318 duelos sanguinários nos quais dentes voavam, olhos eram perfurados e cérebros vazavam dos crânios. Falaris ou Phalaris (Século VI a.C.), déspota de Acragas, hoje Agrigento, na Sicília, sentia imenso prazer em assar vivos os seus inimigos num touro de bronze, no qual a vítima era introduzida e uma fogueira era acesa em baixo.
Os romanos criaram o símbolo praticamente universal da religião, a cruz, como meio de tortura, além, é claro da execução ad bestias, isto é, aquela de fazer das vítimas a refeição de feras como leões, classicamente vistos no Coliseum.
Os persas, por sua vez, tinham uma expressão “Jogar às cinzas”, que representava a colocação da vítima num cômodo sem ventilação, tendo o solo deste, coberto por uma densa camada de cinzas. Em poucos dias, a pessoa perecia, vagarosamente sufocada, tendo seus pulmões enrijecidos pelas cinzas que se assentavam em seu interior.
A necessidade do homem viver em grupo remonta à pré-história, onde as famílias se reuniam em torno de uma divindade (COULANGES, 1975), ampliando-se posteriormente para a fratria ou cúria, que consistia num grupo de famílias, logo depois alcançando o formato de tribos, que representavam grupos de fratrias. Nesse formato de agrupamento a religião ainda era um fator decisivo para a referida união, as pessoas se submetiam ao poder dos manes, dentro dos lares, que logo depois passaram a totens das tribos.
A religião era a responsável por estabelecer as leis das tribos, era o toten que regia tudo, e ele era tanto benigno quanto maligno, proporcionando o cuidado e segurança de seu povo, mas também o castigando severamente caso não foi obedecido. Daí, surge a tortura como meio de punição para aqueles que desobedeciam as leis dos totens, consistindo em verdadeira expiação pelo pecado cometido, assim, dores insuportáveis eram infligidas aos pecadores.
Nesse sentido, Mário Coimbra (2001, p. 14) afirma:
[...] também floresceram, nessa fase histórica, os tabus, cuja palavra, de origem polinésia, expressa, ao mesmo tempo, o sagrado e o proibido. Tais proibições eram enfocadas como as leis dos deuses, que não deviam ser infringidas. Tratava-se, por conseguinte, de uma lei religiosa, que garantia o controle social.
Há relatos que apontam, inclusive para uma punição coletiva, ou seja, de toda a tribo, sob a justificativa de que somente algo de tal magnitude poderia acalmar a ira da divindade.
O mesmo autor continua afirmando que
[...] as ofensas ao totem ou as condutas que se consubstanciavam em desobediência ao tabu eram severamente punidas, geralmente com a morte, cujos castigos eram determinados pelo chefe do grupo, que, também, era o chefe religioso. (COIMBRA, 2001, P. 14)
Nos tempos remotos, a estreita relação entre poder e religião, fez com que inúmeros atos de tortura fossem praticados, sob o argumento de que os deuses assim se satisfariam.
[...] onde se confunde o poder com a religião, havia um quê de sacralidade na pena e punição. É dentro desse conceito sacral que se tem os totens, amuletos, sortilégios e oráculos. Esse mesmo espírito sacral permanece até os germanos, quando ainda subsistem as ordálias e os juízos de Deus, como instrumento de provas, mas com ‘provas’ cruéis como o uso de água fervendo, óleo fervente e outras. Era a época em que a confissão tinha um valor alto demais como prova, um valor também quase religioso, considerada a ‘rainha das provas’ (SZNICK, 1998, p.21)
Nesse ínterim, as transgressões tinham um vínculo muito mais íntimo com o conceito de pecado do que uma ofensa à sociedade, um delito. Essa característica explicava a desproporção entre a conduta e a sua repreensão.
Entretanto, mesmo quando a infração passou a ser considerada um crime propriamente dito, deixando de ser considerada apenas pecado, a pena não perdeu seu caráter místico, o que continuou a ensejar mortes mediante procedimentos de extrema tortura.
Conforme salienta João Bernardino Gonzaga (1993, p.32):
Parece que, em maior ou menor grau, essa violência foi utilizada por todos os povos da Antigüidade. O texto mais velho que dela nos dá notícia acha-se em fragmento egípcio relativo a um caso de profanadores de túmulos, no qual aparece consignado que ‘se procedeu às correspondentes averiguações, enquanto os suspeitos eram golpeados com bastões nos pés e nas mãos.
Assim, verifica-se que além de expiação pelos pecados, a tortura passou a ser utilizada como pena para os criminosos. Outrossim, outra destinação ainda lhe foi dada, conforme doutrina majoritária, os gregos foram os pioneiros no uso da tortura, como meio de obtenção de prova na instrução criminal, principalmente, contra os escravos.
Nessa época, as provas mais relevantes eram os testemunhos, os documentos e o juramento.
Na fase do Império, o processo judicial sofreu ampla modificação, limitando-se consideravelmente o direito de acusação, que cedeu espaço à acusação ex officio e ao procedimento extra ordinem, propiciando a introdução oficial da tortura. Em dado momento, permitiu-se que até mesmo as testemunhas fossem torturadas.
Para os romanos, que ampliaram os métodos de tortura,
A confissão era prova suficiente para a condenação. Desde que sem defeitos e aceitável, não havia a necessidade de realizar mais nenhuma prova, interrompendo-se o processo. Para tanto, a confissão era avaliada com cautela, ainda mais quando obtida mediante tortura (quaestio). (GOULART, 2002, p. 24)
A Idade Média inicia-se com decadência do Império Romano e a invasão da Europa pelos bárbaros.
Os bárbaros visigodos dominaram a península em 622 d.C., e elaboraram várias legislações, verbi gratia, o Código Visigótico, que afirmava serem provas: o juramento, as testemunhas, os juízos de Deus e os tormentos.
Os "Juízos de Deus", que aqui merecem destaque, abrolharam no século XI, com a conquista dos bárbaros, e são considerados o começo da tortura em juízo. Mais adiante, surgem alusões aos tormentos no processo criminal.
Foi nesse contexto histórico que a confissão tornou-se a rainha das provas – regina probarum – almejada praticamente a qualquer custo.
Segundo Gonzaga (1993, p. 23),
[...] se por qualquer motivo ao conviesse o duelo, recorria-se aos ordálios. [...] Os métodos variavam muito, mas em regra consistiram na ‘prova do fogo’ ou na ‘prova da água’. Por exemplo, o réu devia transportar com as mãos nuas, por determinada distância, uma barra de ferro incandescente. Enfaixavam depois as feridas e deixavam transcorrer certo número de dias. Findo o prazo, se as queimaduras houvessem desaparecido, considerava-se inocente o acusado; se se apresentassem infeccionadas, isso demonstrava a sua culpa. Equivalentemente ocorria na ‘prova da água’, em que o réu devia por exemplo submergir, durante o tempo fixado, seu braço numa caldeira cheia de água fervente. A expectativa dos julgadores era de que o culpado, acreditando no ordálio e por temos a suas conseqüências, preferisse desde logo confessar a própria responsabilidade, dispensando o doloroso teste.
Nesse ínterim, estruturou-se a chamada Justiça da Igreja, seguindo doutrina absolutamente contrária, culminando na chamada Inquisição, cuja denominação acertada era Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, sua existência deu-se entre os séculos XII e XIX, suplantando as fronteiras da Idade Média e do Renascimento, acostando-se à Idade Moderna.
A Inquisição foi invenção de sua época e a legitimidade da tortura empregada não provocava então dúvidas. Verdadeiramente, os costumes do povo eram tão bárbaros quanto suas leis; ele amava os suplícios tanto quanto as festas públicas e os sofrimentos divertiam a massa, a exemplo dos espetáculos no Coliseum.
Nesse sentido é o entendimento de Pietro Verri (2000, p.80), para quem,
a natureza do homem é tal que, superado o horror pelos males alheios e sufocado o benévolo germe da compaixão, se embrutece e se regozija com sua superioridade no espetáculo da infelicidade alheia, do que também se tem um exemplo no furor dos romanos pelos gladiadores [26].
Gonzaga (1993, p. 17-18) descreve com verdadeira repulsa, o cenário social da época:
Nascida oficialmente no começo do século XIII e durando até o século XIX, a Inquisição dedicou-se, dizem eles, a semear o terror e a embrutecer os espíritos. Adotando como método de trabalho a pedagogia do medo, reinou, de modo implacável, para impor aos povos uma ordem, a sua ordem, que não admitia divergência, nem sequer hesitações. Ao mesmo tempo, pretende-se que o que havia por detrás dela, nos bastidores, era um clero depravado, ignorante e corrupto, em busca apenas do poder político e da riqueza material. (...) A igreja teria conseguido entravar por longo tempo o desenvolvimento cultural da humanidade.
A proliferação da criminalidade era caótica, o sentimento de revolta social, o endurecimento do espírito, a indignação e a falta de uma política social eficaz só contribuíam para a marginalização. Coube, assim, à Justiça Penal colocar em ordem a situação, refreando os insatisfeitos, o que foi feito por meio do terror.
Nesses termos, Gonzaga (1993, p. 49) afirmou que,
diante de tantas dificuldades para uma eficaz proteção social, dois remédios foram adotados; a Justiça incentivava ao máximo as delações secretas, de modo que qualquer pessoa do povo podia acusar outrem, conservando-se no anonimato e a salvo de represálias; depois, o juiz buscava extorquir a confissão do suspeito, mediante a tortura. (...) Não se cogitava de penas com função reeducativa, exceto no Direito da Igreja. Os castigos da Justiça comum tinham mais propriamente o sentido de vingança, contra aquele que violara as ordens do rei e que era depois julgado pelos seus juízes. A par disso, a punição devia ser exemplar, escarmentando o povo, a fim de convencê-lo a respeitar as leis. Para tanto, quanto mais severa, melhor seria a pena.
A tortura, que se apresentou até o século XIV era empregada como instrumento processual, em torno do qual gravitavam garantias legais. Todavia, não bastasse as impropriedades de tal mecanismo, a partir do século XV, principalmente nos governos absolutistas, a situação se agravou, pois a tortura tornou-se imperativa para a conservação e segurança do próprio Estado, o que marcou a Idade Moderna.
Somente com o surgimento do movimento Iluminista a tortura começou a ser rechaçada. O primeiro país a livrar-se da tortura foi a Suécia, no ano de 1734, mantendo-a apenas para os delitos considerados mais graves e abolindo-a completamente em 1776. Iluministas como Verri, propuseram a total separação entre os Poderes Legislativo e Judiciário, para ilidir as pressões de natureza política do Poder Judiciário, os preconceitos e as superstições que lhe acometiam.
Os iluministas arguiam a posição dos autores mais antigos que defendiam a tortura, afirmando que não acreditavam inteiramente na pujança dos tormentos para a obtenção da verdade. Despontavam, inclusive, um contrassenso em sua teoria: em muitos períodos, apenas determinadas camadas sociais eram torturadas; se os antigos escritores apreciassem a tortura como um meio apto a descobrir a verdade nos crimes, não afastariam a si próprias das torturas, pois é tamanho o interesse da sociedade no descerramento deles que ninguém pode se subtrair dos meios de desvendá-los.
A abolição da tortura na Europa deu-se, primeiramente, por um decreto de Frederico II da Prússia, de 1740, que obteve maior propalação com a Revolução Francesa e consequente disseminação de ideias abolicionistas, alcançando cada vez mais Estados.
No século XX, a tortura desgarrou-se dos períodos de guerra a adentrou ao mundo cotidiano, principalmente em países com regimes antidemocráticos. Inúmeros governos militares, indubitavelmente, cooperaram para esse cenário negativo, e o Brasil participou desse contexto.
Os ideais humanistas evoluíram desde o século XVIII; a tortura deixou de ser legalmente aceita por uma multiplicidade de Estados, mas prosseguiu à margem da lei, sem previsão de término.
Cediço é que só será possível extirpar terminantemente a tortura do mundo civilizado quando todos se conscientizarem da seriedade e relevância dos direitos humanos fundamentais, ou seja, quando a razão se sobrepuser à estupidez e à selvajaria.
III. CONCEITO DE TORTURA
Em 1984 a Organização das Nações Unidas celebrou a "Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes", na qual estabeleceu o conceito de tortura, precisamente, no artigo 1º.
Artigo 1º - Para fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.
O presente artigo não será interpretado de maneira a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo."
A seu turno a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, datada de 1985 e ratificada pelo Brasil pelo Decreto 98.386, de 09.11.89, também traz em sua estrutura uma conceituação própria de tortura, qual seja:
Art. 2º. - Para os efeitos desta convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação ou castigo pessoal, como medida preventiva ou com qualquer outro fim.
Entender-se-á também por tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou psíquica.
Os dispositivos legais pátrios que faziam ou fazem menção à tortura, desde a Constituição Imperial, até ao Estatuto da Criança e do adolescente, bem como, a lei de crimes hediondos, embora trouxessem evidente repulsa à tortura, não trouxeram uma conceituação à mesma, o que provocou a necessidade de recorrer-se a doutrina. Assim, diversos foram os autores que conceituaram a tortura, estando infra descritos, apenas alguns deles.
De Plácido e Silva (1986, p. 1571) leciona, genericamente, que tortura "é o sofrimento ou a dor provocada por maus tratos físicos ou morais".
Hungria (p. 167) define tortura como o "meio supliciante, a inflição de tormentos, a ‘judiaria’, a exasperação do sofrimento da vítima por atos de inútil crueldade".
Aníbal Bruno (p. 81) demonstra que a tortura consiste no "sofrimento desnecessário e atormentador, deliberadamente infligido à vítima".
Noronha (p. 23) apresenta o termo como o ato de "infligir-se um mal ou sofrimento desnecessário e fora do comum".
Por fim, dentre tantas outras disposições doutrinárias, Mirabete (p. 72) afirma que "tortura é a inflição de mal desnecessário para causar à vítima dor, angústia, amargura, sofrimento".
Ainda assim, persistiu o problema, haja vista, as próprias definições doutrinárias serem demasiadamente amplas, de modo que somente com o advento da Lei 9455, de 07.04.97, a qual "define o crime de tortura e dá outras providências", conforme estabelece sua ementa, é que sanou-se a celeuma.
Dessa feita, para o ordenamento jurídico pátrio, a tortura consiste no seguinte:
Art. 1º. - Constitui crime de tortura:
I- constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
§ 1º. - Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança, a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal".
IV. Aspectos legais da Tortura
A Constituição Federal de 1998 determina, em seu art. 5º, XLIII, que:
[...] a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.
Verifica-se, entretanto, ser esta uma norma constitucional de eficácia limitada, que, portanto, possui aplicabilidade mediata e reduzida, ou, também chamada de aplicabilidade diferida. Desse modo, a norma constitucional que faz menção à tortura, precisa de outra norma para ampliar sua aplicação, i.e., precisa de uma norma que especifique, que pormenorize seus elementos, no caso em tela, a Lei 9.455/97 adentrou o ordenamento jurídico pátrio com esta função, dispondo acerca do crime de tortura.
Referida lei foi introduzida no sistema legal com um considerável atraso, mais especificamente, oito anos e cinco meses após a previsão constitucional do crime de tortura. Denota-se com isso a mais pura e simples tendência do legislativo pátrio sempre se manifestar tardiamente, e, não raras as vezes, diante de tais atrasos, o legislativo acaba “metendo os pés pelas mãos”, como fez em vários dispositivos legais editados às pressas, levando os operadores do direito a árdua tarefa de encontrar um meio coerente de aplicar tais dispositivos.
A doutrina aponta algumas críticas a Lei de Tortura, cuja edição se deu de modo extremamente célere e descuidado, o que aliás, já consiste na primeira crítica. Além desta, critica-se o fato de referida norma ater-se a fatos muito específicos, que acredita-se, serem aqueles que levaram o legislativo a tomar alguma atitude, à semelhança do que aconteceu com a Lei de Crimes Hediondos que tipificou as condutas mais recorrentes do momento.
Outra crítica que se faz, concerne a aplicabilidade da lei a fatos ocorridos antes de sua vigência, afirma a doutrina que, por ter sido feita as pressas, a lei deixou assuntos a descoberto e trouxe redações incorretas ou, ao menos, incompletas.
Importante salientar, como outrora mencionado neste trabalho, que a Lei de Tortura não foi a primeira a disciplinar este assunto, antes dela, a Lei 8.072/90, Lei de Crimes Hediondos, quase repetiu o que fora estabelecido na Carta Magna, acrescentando algumas outras consequências de caráter material e processual. Já a Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente estipulou pena, em seu art. 233, em caso de tortura contra criança, o que restou inaplicável, em ambas as leis, por ausência de acepção legal do que seria tortura. Note-se, inclusive, que o último dispositivo mencionado foi revogado, por ocasião da edição da lei em comento.
Estabelece a Lei de Tortura em seu art. 1º o conceito de tortura repartindo-o nas várias situações que configuram a tortura, assim, tem-se como primeira conduta que caracteriza o delito:
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
A “violência” e a “grave ameaça” são os atos ou elementos do crime, que tem por consequências as aflições físicas e mentais concomitantemente. A doutrina aponta a infelicidade do legislador quando da edição de tal dispositivo, vez que se omitiu quanto ao nível de intensidade do sofrimento causado por referidos elementos. O que permite a elevação de algumas ações à crime de tortura por um critério meramente subjetivo, por mero clamor social.
Segue o artigo primeiro, apresentando os objetivos que levaram o autor ao cometimento do crime:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
A informação a que se refere a aludida alínea, deve constituir a finalidade precípua do agente e não um meio para se concretizar outra ação, pois, do contrário, haveria imprecisão em igualar-se essa ação, com o roubo mediante o uso da força com o intuito de receber informações que possibilitarão a apropriação de coisa alheia, e.g..
Em seguida, há outra finalidade para o cometimento da conduta descrita no inciso primeiro:
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
A utilização da tortura, neste caso, revela-se como meio permissivo ao cometimento de outro ilícito, ou impedimento para que a vítima da tortura preste auxílio a alguém na iminência de sofrer uma ação criminosa, ou que já esteja submetida a ela, retinindo cabalmente na ação ou omissão da vitima da tortura em um crime.
Há ainda uma última motivação para o cometimento do crime de tortura nos termos do inciso primeiro:
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
Perfeitamente plausível essa determinação, pois não há nada mais injusto do que atentar contra a raça ou a crença religiosa de alguém. O racismo há muitos anos era prática trivial e não importava em qualquer penalidade. Essa permissividade concedida à discriminação contribuiu para as desigualdades sociais. A Carta Magna afirma seu repúdio à discriminação ao defini-la como crime quando vá contra os direitos fundamentais e a liberdade de crença.
Segue o art. 1º apresentando outra conduta que configura o crime de tortura, qual seja:
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
Apresentou o legislador todos os elementos essenciais do crime de tortura configurado neste inciso, i.e., guarda, poder ou autoridade, bem como, a essência do principio da dignidade humana, implícita quando se refere ao “intenso sofrimento”.
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
Equiparam-se aos previstos no Código Penal, os casos de omissão previstos no parágrafo supra.
Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
Dando seguimento ao art. 1º da Lei de Tortura, apresenta-se o parágrafo terceiro, razão de certa divergência doutrinária.
§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
O dispositivo supra segue a tendência do Código Penal acerca da natureza grave e da gravíssima. Corrobora com nitidez o crime preterdoloso, i.e., o crime com dolo na ação e culpa no resultado. Visivelmente discutido, principalmente, em razão da natureza do crime de tortura.
Assim dispõe o Código Penal:
Lesão corporal de natureza grave,
§ 1º Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II - perigo de vida;
III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV - aceleração de parto:
Lesão corporal de natureza gravíssima,
§ 2° Se resulta:
I - Incapacidade permanente para o trabalho;
II - enfermidade incuravel;
III perda ou inutilização do membro, sentido ou função;
IV - deformidade permanente;
V - aborto:
Voltando à Lei de Tortura
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
Revela-se como medida de inteira justiça um acréscimo na penalização quando o ato haja sido praticado por pessoas que exerçam atividade pública, uma vez que possuem acesso aos meios repressivos, seja em razão de seus poderes que foram intitulados com seu cargo, ou instrumentos técnicos de que dispõe. O agente público é encarregado de cooperar com a atividade estatal, cuja finalidade é o amparo ao interesse público. Violando qualquer bem jurídico, deve ser penalizado com maior gravosidade, e assim a lei impôs.
II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;
Dependentes de proteção especial por razões evidentes, que os limitaram físico ou psicologicamente, para resguardarem ou evitarem sofrimentos da natureza desse crime, um acréscimo com respaldo legal. Essa preocupação é ocasionada por índoles culturais, que cada vez mais se insurgem contra essas pessoas com características específicas, carecendo de maiores cuidados e práticas preventivas.
III - se o crime é cometido mediante sequestro.
O desgaste físico e a prévia pressão psicológica exercida pelo sequestrador contribuem e muito para o aumento da intensidade do sofrimento do agredido, razão pela qual merece pena mais gravosa.
§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
Seria de todo inconveniente permitir que uma pessoa, cuja função atribuída era para proteger os interesses da coletividade, e tenha cometido tamanha atrocidade, permaneça com suas funções.
§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
O legislador obedeceu ao que preceitua a Constituição Federal em seu artigo 5º, LXIII, considerando inafiançável e insuscetível o crime de tortura.
§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.
Vis-à-vis a repressão internacional e um sensato equilíbrio jurisdicional extraterritorial, o legislador conseguiu abarcar os crimes previstos nesta lei, quando envolvendo os nacionais, mesmo cometido fora do território nacional.
Art. 2º O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 4º Revoga-se o art. 233 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.
Mesmo diante da revogação do dispositivo que criminalizava a tortura contra crianças, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, o principio da especificidade está garantido, uma vez que, esta lei já agrava os atos de tortura cometidos contra os sujeitos da lei nº 8.069 – Estatuto da Criança e do Adolescente.
V. CONCLUSÃO
A prática do crime de tortura é algo que, indubitavelmente, provoca repulsa e comoção social, haja vista, ser algo que gera intenso sofrimento para suas vítimas, como supradescrito.
O crime de tortura é algo vil, que agride não só a pessoa submetida à tortura, como também toda a humanidade, por atentar contra os princípios humanitários e a própria dignidade da pessoa humana, que são defendidos não só pelo país, mas por toda a esfera internacional, é o conhecido, ius cogens, erigido como valor de observância obrigatória, por ser indispensável à sobrevivência humana.
É tocante, no seio social, o cometimento de tortura, e não busca-se aqui defender os que a cometem, mas há de se ponderar que punir de modo cruel e destituído de qualquer objetivo, precipuamente aqueles a que a pena se propõe, jogando esses indivíduos em prisões, sem qualquer atividade produtiva, não trará progresso à função estatal.
È mister que se conscientize a sociedade, para evitar um retrocesso social, para impedir que a humanidade enverede por caminhos não humanizados, onde o uso da força supera e substitui o da razão.
VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- BRUNO, Aníbal. Direito Penal - Parte Especial, Volume I, Tomo IV, p. 81.apud CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A definição do crime de tortura no ordenamento jurídico penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1789, 25maio2008 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11304>. Acesso em: 18 nov. 2012.
- GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993. apud BIAZEVIC, Daniza Maria Haye. A história da tortura. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1074, 10jun.2006 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8505>. Acesso em: 18 nov. 2012.
- GOULART, Valéria Diez Scarance Fernandes. Tortura e prova no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2002. apud BIAZEVIC, Daniza Maria Haye. A história da tortura. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1074, 10jun.2006 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8505>. Acesso em: 18 nov. 2012.
- HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Volume V, p. 167. apud CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A definição do crime de tortura no ordenamento jurídico penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1789, 25maio2008 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11304>. Acesso em: 18 nov. 2012.
- MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, Volume II, p. 72. apud CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A definição do crime de tortura no ordenamento jurídico penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1789, 25maio2008 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11304>. Acesso em: 18 nov. 2012.
- NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal, Volume 2, p. 23. apud CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A definição do crime de tortura no ordenamento jurídico penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1789, 25maio2008 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11304>. Acesso em: 18 nov. 2012.
- SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Vol. IV. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 1986.p. 1571. apud CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A definição do crime de tortura no ordenamento jurídico penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1789, 25maio2008 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11304>. Acesso em: 18 nov. 2012.
- SZNICK, Valdir. Tortura: histórico, evolução, crime. São Paulo: Leud, 1998. apud BIAZEVIC, Daniza Maria Haye. A história da tortura. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1074, 10jun.2006 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8505>. Acesso em: 18 nov. 2012.
- VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. Tradução de Federico Carotti. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. apud BIAZEVIC, Daniza Maria Haye. A história da tortura. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1074, 10jun.2006 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8505>. Acesso em: 18 nov. 2012.
Nenhum comentário cadastrado.
Somente usuários cadastrados podem avaliar o conteúdo do JurisWay. | |