Alessandro Baratta e as Teorias Liberais Contemporaneas na Criminologia
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo tem, sem embargos, o objetivo de analisar de maneira clara a importância de um capítulo (ou poderíamos chamar de uma pequena passagem), no vasto saber criminológico de Alessandro Baratta, um dos professores europeus que sem dúvida mais contribuíram para o estudo epistemológico da Criminologia durante o século passado.
Um grande defensor da Criminologia Crítica, Baratta fez do seu Livro “Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal” o estandarte desta luta por um estudo criminológico independente e eficaz frente à Técnica Jurídica. Demonstrando o valor que as ciências sociais alcançaram ao longo das últimas décadas e a separação destas com as ciências jurídicas.
No entanto em meio à profusão e quantidade de teorias apresentadas em sua obra, o leitor pode passar despercebido por um capítulo em especial que tem um grande valor teórico, didático e estrutural. Este capítulo é o de número XI da já citada Obra do Mestre Criminal. Tal capítulo de tamanho diminuto, frente ao resto da obra, trata das Teorias Criminológicas liberais Contemporâneas.
Em um primeiro momento o leitor desatento pode passar despercebido por esta parte da Obra, entretanto acreditamos que com isso a leitura queda-se incompleta e o entendimento da CRIMINOLOGIA CRÍTICA resta prejudicado.
Muitos livros de Criminologia são escritos na Europa e mesmo no Brasil. Autores respeitados e consagrados tratam o tema com respeito e com cuidado, entre eles podemos citar os respeitados, Antonio Garcia Pablos de Molina, Sergio Salomão Shecaira, Lola Aniyar de Castro, Álvaro Mayrink, Santiago Redondo, Alfonso Serrano e por último Juarez Cirino dos Santos, sendo este responsável pela tradução da obra em discussão neste artigo e também um dos maiores estudiosos da Criminologia Critica na América Latina.
Embora muitos tentem ser imparciais, concordamos com o eminente Sergio Salomão Shecaira quando afirma que “toda classificação tem um que de discricionariedade”, ou seja, toda tentativa de se classificar a pensamento criminológico ao longo dos séculos, não escapa ao subjetivismo de cada autor.
Mas podemos asseverar que tais subjetivismos e discricionariedades são por vezes salutares e importantes no progresso da Criminologia como Ciência. Pois são destes subjetivismos que deriva a Crítica e desta nasce a desconstrução do nefasto pensamento Cartesiano que tanto domina às Ciências Criminais ao longo dos séculos.
E é nesta fonte que bebeu Alessandro Baratta imprimindo a Criminologia com sua interpretação, o dinamismo, a criatividade e principalmente a dialética que lhe é característica.
Tal discricionariedade fica clara com o capítulo que ora analisaremos, o qual o autor edifica o agrupamento das teorias sociológicas da Criminologia, situadas no pós-positivismo em uma só etiqueta “teorias liberais contemporâneas”, é importante deixar claro que tal etiquetamento, não se encontra em outras obras ou compêndios que dissertam sobre criminologia ou mesmo sobre o pensamento criminológico.
A partir disso dissertaremos de maneira breve sobre as Teorias Liberais Contemporâneas partindo da Visão de Alessandro Baratta.
AS TEORIAS LIBERAIS CONTEMPORÃNEAS
Em primeiro lugar, temos que ressaltar que a despeito do que possa parecer, estas teorias não podem ser linearmente consideradas como uma teoria única ou independente, sendo sim, um capítulo de passagem, no qual o autor Alessandro Baratta faz um resumo crítico descritivo de todas as teorias situadas entre um período que podemos chamar de pós-positivismo e anterior a Teoria Crítica.
Tais Teorias são também consideradas por alguns autores como sendo as Teorias Sociológicas. É vital acrescentar que Baratta é um dos autores, que se utiliza desta definição para conceituar as diversas teorias que surgiram depois do positivismo Italiano. E não o faz sem sentido, mas sim pelo valor didático-funcional, almejando preparar o leitor para a Teoria Crítica, que tem o seu valor muito mais claro ao nos depararmos com as críticas às Escolas Liberais Contemporâneas.
Podemos então, nas palavras de Baratta, conceituar as teorias liberais como uma etiqueta de diversas teorias que por suas peculiaridades não se integram, sendo que cada uma das quais representa uma alternativa apenas parcial à Ideologia da Defesa Social, defendida pelos clássicos e também pelos positivistas.
Tais teorias tiveram a inserção da perspectiva sociológica, se contrapondo às teorias positivistas, esse esforço tinha como objetivo focar o fenômeno do crime a partir de uma definição sociológica do desvio e não mais deixar a definição de criminoso a mercê do Direito Penal.
Embutiu, então, a consciência da autonomia do próprio objeto em face das definições legais, ampliando assim a investigação para a estrutura social como um todo, deslocando o foco da investigação criminológica para as instâncias detentoras do poder de definição e de estigmatização.
Em um primeiro momento fica claro o avanço das teorias liberais frente às concepções patológicas de Lombroso, rompendo assim com o pensamento burguês vigente desde a escola Positivista. Esta tomava do Direito a definição de criminoso, e a Criminologia tinha função auxiliar em uma engrenagem que privilegiava a função conservadora e racionalizante.
As teorias Liberais sustentaram o caráter normal e funcional da pena (Teoria Funcionalista), abordaram a estratificação social (Teoria da subcultura), deslocaram o foco do comportamento para a função punitiva e para o Direito Penal (Teoria Psicanalítica), consideraram a estigmatização do sujeito, a autonomia da definição de criminoso em face da lei e deslocaram a investigação para as instâncias detentoras do poder de definição (Teoria do Labelling).
Baratta, em nenhum momento, nega os avanços das Teorias Liberais, mas tece várias críticas em uma dialética que lhe é peculiar. Entre estas críticas podemos dizer que apesar do progresso com relação à ideologia burguesa, as assertivas liberais não desenvolveram uma crítica objetivamente eficaz e orgânica contra a ideologia penal da Defesa social.
O autor acrescenta que em nenhum momento estas Teorias tem condições de fornecer uma ideologia que combata (de maneira eficaz) a ideologia negativa da defesa social. Oferece apenas um sistema repressivo mais atualizado.
Continuando neste caminho, aferimos que a racionalização, apresentada pelas Teorias Liberais, nada mais é que a integração do sistema penal (estabelecido pela classe dominante) com o sistema de controle social, para no fim contribuir com as relações sociais de produção, o que significa a manutenção da escala social vertical, perpetuando assim a desigualdade social e patrocinando a estratificação social (grifo nosso).
Essa ideologia racionalizante que condena a engrenagem social a se perpetuar em uma eterna desigualdade é considerada por Baratta como tendo, em seu papel protagonista, a universalidade do fenômeno criminoso (grifo nosso) e a função punitiva.
Doravante as críticas recebidas, uma das saídas possíveis seria a conjunção das Teorias Liberais. No entanto por serem heterogêneas e agirem de forma e em setores totalmente distintos não podem ser integráveis em um sistema sem que esse sistema não se torne contraditório.
E mesmo por amor ao debate, se as considerássemos conjuntamente, o resultado seria de manutenção da verticalização social. Exatamente por defenderem a universalidade do delito, tais teorias acabariam por oferecer uma nova legitimação para um sistema penal que se edificaria ainda mais repressivo.
A impossibilidade da conjunção de tais Teorias se torna mais clara quando acrescentamos ao pensamento de Baratta o viés teórico das teorias do consenso (da qual fazem parte Teoria Funcionalista, Teoria da subcultura entre outras) e das Teorias do conflito (Labelling approach). A primeira destas Teorias, parte do principio do funcionamento das instituições e indivíduos, onde se aceita e se compartilha regras; já as Teorias conflitivas surgem do argumento que a coesão da sociedade é fundada na força e na sujeição, ou seja, não é a cooperação que faz a coesão, mas sim a coerção. Claro está que tais teorias são por si só excludentes.
A ideologia das Teorias Liberais pode ser resumida da seguinte maneira: a superação da ideologia penal da defesa social na qual se colocou uma plataforma tecnocrática e eficientista.
Após essa avalanche de teorias do século XX, a maioria delas pertencente às Teorias Liberais, restou clara a dificuldade que a ciência Jurídico-Penal encontrava em criticar efetivamente tais teorias e analisá-las de maneira pormenorizada.
As Ciências Jurídico-Penais, devido a essa inaptidão, passaram a representar o momento conservador e deixou para as Ciências Sociais o papel inovador. Acrescentemos a isso que no sistema de controle social do desvio, o papel do jurista tende a perder importância, pois, vão se criando outras formas de controle que não o direito, tais como a publicidade, a propaganda.
Infelizmente tal atraso dá sinais de não ser recuperável, uma vez que a Ciência Jurídica não se mostra em condições de refletir ou mesmo edificar uma outra teoria afastada da sua própria teoria negativa.
Após apresentadas às teorias Liberais, comprovadas as suas críticas e também seus avanços, o Direito penal se mostra anacrônico e atrasado, demonstrando estar em profunda crise. Pois se torna claro que tal instituição não consegue hoje identificar e atuar nas raízes da sociedade criminógena (parafraseando Álvaro Mayrink).
Uma das saídas seria um modelo integrado entre Ciência Social e Técnica Jurídicadevido à dependência clara demonstrada pela Ciência Jurídica face os novos tempos e sua dificuldade de se atualizar e propor soluções a modernidade. Tais soluções o direito hoje já busca das Ciências Sociais.
Então a saída seria deixar para a área jurídica os instrumentos legislativos, interpretativos dogmáticos. Vale lembrar que a Ciência social teria também de vir acompanhada de um adjetivo que seria “comprometida” e este adjetivo na prática é a mudança de foco de todo o pensamento da Teoria Liberal, que se baseou sempre na classe verticalmente superior, na burguesia e na manutenção da engrenagem capitalista como conhecemos. A mudança, portanto, seria uma emancipação da realidade social, na qual o ponto de vista da criminologia seria o interesse das classes subalternas.
CONCLUSÕES
Por fim o Professor Alessandro Baratta deixa claro ao leitor depois da passagem deste capítulo que os avanços feitos pelas escolas sociológicas foram muitos e importantes, no entanto tais teorias não trouxeram mudanças significativas a ponto de realmente modificar o pensamento e principalmente obstar a manutenção do ideário Burguês.
Concluindo então, após dissertar sobre as Teorias Liberais, que estas nada mais fazem do que manter o quadro social irretocado, não apresentando em nenhum momento um avanço objetivo contra a ideologia da defesa social, se desprendendo dos pensamentos biopsicopatológicos do positivismo, mas nada fazendo para a criação de uma ideologia positiva na perspectiva das classes subalternas.
Após a leitura do capítulo objeto de estudo deste artigo o leitor terá elementos palpáveis para entender de maneira mais clara a Teoria Crítica como resposta efetiva na perspectiva de suprir as faltas da Teoria Liberal.
Se a aclamada Teoria Crítica, ou mesmo a Criminologia Radical vão realmente representar um avanço e um salto qualitativo na maneira de se conceber, entender e consequentemente melhorar a sociedade criminógena, nós só vamos ter certeza daqui algumas décadas. Pois os valores burgueses e cartesianos estão nocivamente arraigados na sociedade judaico-cristã-ocidental.
Não é demais lembrar que tal avanço representado pelos críticos apenas será vislumbrado quando efetivamente esses novos ideais forem digeridos pela doutrina, pelos juristas e por todos os personagens da engrenagem social, principalmente se tal Criminologia Radical conseguir, a contento, penetrar e dissuadir as classes dominantes modificando de uma vez a práxis social.
BIBLIOGRAFIA
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