Vem de muito tempo a noção de certas declarações que apesar de não estarem escritas são inerentes ao ser humano, embora que os fundamentos disso fossem diversos no transcorrer da História. Também é de longa data que se reconhece a idéia de um ordenamento posto pelo homem, com o argumento de que “o homem é a medida de todas as coisas”.[1]
Para os romanos, essa primeira idéia era atribuída à reta razão (recta ractio), principal postulado do pensamento estóico, escola filosófica fundada em Atenas, em 312 a.C., por Zenão de Chipre[2], o qual afirmava ser a Natureza e a Razão um todo, sendo, portanto, normal que o homem vivesse conforme essa natureza racional, manifestação da lei universal. O estoicismo sustentava que o universo seria conduzido por um princípio geral: logos, a razão. Os estóicos, portanto, fizeram derivar do logos a lei natural que rege o mundo físico e a lei natural que rege as ações humanas. Tais conclusões estoicas serviram de ponto de partida filosófico para as grandes construções escolásticas de um direito natural centrado na idéia de um Deus transcendente e pessoal. O pensamento romano acima apontado pode ser constatado nas palavras de Cícero ( 107 a.C.- 43 a.C) em sua abra Das Leis, citado por Eduardo C. B. Bittar e Guilherme Assis de Almeida[3]:
[…] a lei é a razão suprema da Natureza, que ordena o que se deve fazer e proíbe o contrário. Esta mesma razão, uma vez confirmada e desenvolvida pela mente humana, se transforma em lei.
Se tudo isto é certo, como creio que é, de um modo geral então para falar de Direito devemos começar pela lei; e a lei é a força da Natureza, é o espírito e a razão do homem dotado de sabedoria prática, é o critério do justo e do injusto.
Para os gregos a idéia de lei natural e eterna, reguladora de todo o Universo, iniciou-se com Heráclito de Éfeso, filósofo do eterno devir. Segundo ele o universo moral, que era distinto do universo material, seria regido por uma razão ordenadora, cuja regra básica seria obedecer a uma “lei divina comum a todos”. Professava uma lei universal e fixa (o Lógos), que regeria todos os acontecimentos particulares e fundamentaria a harmonia universal, harmonia feita de tensões. Segundo Bernadette Siqueira Abrão[4] para ele “O divergente consigo mesmo concorda; harmonia reciprocamente tensa, como a do arco e da lira”. Escondia um pensamento aristocrático que visava manter o status quo vigente nas Polis gregas.
Importante ressaltar que havia já entre os clássicos, diferença entre direito natural e direito positivo no sentido, não da natureza do direito, mas sim, da linguagem trazendo o problema da distinção entre aquilo que é por natureza (physis) e aquilo que é por convenção ou posto pelo homem (thesis). É o esclarecimento de Bobbio[5] citando Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C) no capitulo VII do livro V de sua Ética a Nicômaco :
Da justiça civil uma parte é de origem natural, outra se funda em a lei. Natural é aquela justiça que mantém em toda parte o mesmo efeito e não depende do fato de que parece boa a alguém ou não; fundada na lei é aquela, ao contrario, de que não importa se suas origens são estas ou aquelas, mas sim como é, uma vez sancionada.
No pensamento romano também se percebeu a dicotomia entre o direito natural e positivo, isso expresso na diferença entre o “jus getium” e o “jus civile”, nas lições de Bobbio[6] :
O jus gentium e o jus civile correspondem à nossa distinção entre direito natural e direito positivo, visto que o primeiro se refere à natureza (naturalis ratio) e o segundo às estatuições do populus. Das distinções ora apresentadas temos que são dois os critérios para distinguir o direito positivo (jus civile) do direito natural (jus gentium):
a) o primeiro limita-se a um determinado povo, ao passo que o segundo não tem limites;
b) o primeiro é posto pelo povo (isto é, por uma entidade social criada pelos homens), enquanto o segundo é posto pela naturalis ratio. (Grifo do autor)
No período medieval diverso era o fundamento para o pensamento do Direito natural. Era um direito de inspiração cristã, embora tenham por premissa os clássicos; na concepção de Jacques Maritain[7], aqui citado como exemplo, cujas obras influenciaram a ideologia da Democracia cristã, a idéia de direito natural era herança do pensamento cristão e do pensamento clássico. Ela não decorre da filosofia do século XVIII que mais ou menos a deformou. Procedeu de Grotius, e antes dele, de Suarez e Francisco Vitorino; e mais longe de S. Tomaz de Aquino, de S. Agostinho e dos Padres da Igreja e de S. Paulo; e mais longe ainda de Cícero, dos estóicos, dos grandes moralistas da antiguidade e de seus grandes poetas, de Sófacles, em particular Antígona é a heroína eterna do direito natural, a que os Antigos chamavam lei não escrita, nome aliás, segundo o autor, que melhor lhe convém.
Para Maritain[8], não havendo tempo de discutir disparates (sempre se encontram filósofos bem inteligentes para defendê-los brilhantemente) pressupõe seja admitido geralmente que existe uma natureza humana, e que esta natureza humana é a mesma entre os homens.
Diz que há uma ordem ou disposição que a razão humana pode descobrir, e segundo a qual a vontade humana deve agir a fim de se pôr de acordo com os fins necessários do ser humano. A lei não escrita, ou direito natural, não é outra coisa. Segundo esse autor “a natureza deriva de Deus, e que a lei não escrita deriva da lei eterna, que é a própria sabedoria criadora”
O período pós-medieval foi marcado, pelo surgimento de correntes jusnaturalistas que compartilharam idéias centradas na razão.
Se, na Antigüidade clássica, a fundamentação do Direito Natural tinha como referência a natureza de suas leis, de tal modo que não seria demais afirmar que as mesmas leis que valiam para o cosmos, para os animais e plantas deveriam valer também para os homens. Na Modernidade, a novidade será a separação dessas instâncias, com a afirmação de que o homem possui uma natureza específica, distinta das demais criaturas e que, portanto, por isso mesmo, requer um tratamento diferenciado, porque é governado por leis próprias.
O jusnaturalismo moderno fundamentará o direito na natureza de um homem racional e passível de socialização, quer esteja inscrita de maneira inata na sua natureza, quer se apresente como uma espécie de superação dos obstáculos que a sua natureza individual não consegue superar.
A Escola Clássica do Direito Natural, que teve como fundador o jurista holandês Hugo Grócio[9], idealizava um Direito Natural fundamentado essencialmente na razão, imutável, universal. Num momento de grandes transformações sociais, essa ideologia anulou a influência que Igreja Medieval mantinha sobre os assuntos jurídicos e contribuiu enormemente para a secularização do poder na Europa e por conseqüente os direitos naturais mudaram de fundamentação. Para Puffendorf[10], a lei natural não decorria da inferioridade dos homens, como pensava Grócio, mas de forças exteriores que os vinculava à sociedade, para ele o Direito Natural é o ponto de partida do direito das gentes e de todo o direito positivo. “Há deveres naturais absolutos de todos contra todos”. Na visão de Hobbes[11], são as leis naturais que levam o homem a delinear as normas possibilitadoras de sua convivência em sociedade através de um contrato. Para Rosseau, o homem nasce naturalmente bom, porém a sociedade o corrompe. Para este último, o homem é um ser naturalmente a-social.
Após alcançar o apogeu no séc. XVIII, o Jusnaturalismo dessa época sofreu uma queda na sua importância e influência. A promulgação dos códigos austríaco, prussiano e francês colocou por terra o objetivo da Escola Clássica de criar um Direito universal válido para todas as épocas.
Segundo Steudel[12]:
“o direito natural racionalista converte-se em uma teoria dos direitos subjetivos, os direitos naturais são obtidos do Direito Natural e o novo prisma trará a inspiração revolucionária e o fundamento teórico das modernas Declarações de Direitos”.
E arremata aludindo a percepção da autora Maria Helena Diniz:
O direito natural tornou-se subjetivo enquanto radicado na regulação do sujeito humano, individualmente considerado, cuja vontade cada vez mais assume o sentido de vontade subjetiva e absolutamente autônoma. Nesta concepção jusnaturalista a natureza do homem é uma realidade imutável e abstrata, por ser-lhe a forma inata, independente das variações materiais da conduta.
Observe-se que até esse ponto não havia diversidade de qualificação entre direito natural e positivo. Isso ocorreu quando esse último passou a ser considerado de maneira reducionista todo o direito, é o que nos ensina Bobbio[13]:
[...] o positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito. A partir deste momento o acréscimo do adjetivo ‘positivo’ ao termo ‘direito’ torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma formula sintética,
o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo. (grifo do autor)
Essa nova concepção do direito positivo deu-se intimamente em função da nova concepção do Estado moderno, visto que esse concentra em si todos os poderes, inclusive de criar o direito.
Por consequência, um positivista, de acordo com o Positivismo Jurídico que Norberto Bobbio[14] descreve, tem a característica de atitude científica frente ao direito, considerando que ele estuda o direito tal qual é, não tal qual deveria ser. Nas palavras desse autor:
“quando identificamos o direito com as normas postas pelo Estado, não damos uma definição geral do direito, mas damos uma definição haurida de uma particular situação histórica, aquela na qual vivemos”
Cujo único criador de direito é o Estado, salientamos. Ensina mais esse autor[15] :
“Na linguagem juspositivista o termo ‘direito’ é então absolutamente avalorativo, isto é, privado de qualquer conotação valorativa ou ressonância emotiva: o direito é tal que prescinde do fato ser bom ou mau, de ser um valor ou um desvalor”.
O juspositivista teve seu clímax com a teoria do ordenamento jurídico de Kelsen que tinha como caracteres fundamentais: unidade, coerência e completude. Para Bobbio[16] são “características que fazem com que o direito no seu conjunto seja um ordenamento e, portanto, uma entidade nova, distinta das normas singulares que o constituem”.
Nessa concepção aqui colocada de “direito positivo”, os Direitos Fundamentais procederiam da vontade de quem tem força para impor, de um jeito ou de outro, suas decisões no ordenamento jurídico, simplesmente isso.
Por fim, esclarecedora são as diferenças genéricas das várias concepções de direito natural em relação ao positivo, apresentadas por Bobbio[17] , ou critérios, como prefere designar o autor, quais sejam: o direito natural é sempre universal enquanto o positivo é particular. Esse é mutável, potestas populis, conhecido através da vontade alheia, indiferente ao comportamento regulado e útil, aquele, por sua vez, é imutável, natura potestas, conhecido através da razão, o comportamento regulado por ele é considerado bom ou mau em si mesmo e é essencialmente aquilo que é bom.
Silva, Moisés Santos da. Fundamentos dos Direitos e Garantias Fundamentais –Correntes. Por favor, citar. Qulaquer imprecisão, crítica ou sugestão : falecomigo@drmoisessantos.com