JurisWay - Sistema Educacional Online
 
Kit com 30 mil modelos de petições
 
Cursos
Certificados
Concursos
OAB
ENEM
Vídeos
Modelos
Perguntas
Eventos
Artigos
Fale Conosco
Mais...
 
Email
Senha
powered by
Google  
 

A Evolução Histórica da Propriedade no Brasil sob a ótica do Direito Constitucional


Autoria:

Heloisa Helena Quaresma


Heloisa Helena Quaresma - Advogada, colaboradora na Defensoria Pública do Estado de São Paulo,pós-graduada em Direito Processual Penal e Direito Penal

envie um e-mail para este autor

Texto enviado ao JurisWay em 22/01/2010.



Indique este texto a seus amigos indique esta página a um amigo



Quer disponibilizar seu artigo no JurisWay?

RESUMO

 

O presente artigo se propõe a repensar o direito de propriedade à luz do novo paradigma constitucional – social, humano e coletivo - emplacado pela Carta Constitucional de 1988. Nesse contexto, o direito de propriedade é lido sob uma ótica-tópico com base nos novos valores ao logo da evolução histórica.

Diante desse quadro, a propriedade só deve existir para o sistema jurídico e ser tutelada pelo Estado na medida em que, no exercício empregado pelo seu proprietário, for verificado o cumprimento da sua finalidade social. Para além da dimensão patrimonial da titularidade, o direito de propriedade deve ser reconhecido como um direito à propriedade, ou seja, de acesso para toda a coletividade ao mínimo existencial que ela materializa através dos direitos fundamentais à moradia, alimentação, renda mínima, ao trabalho na terra e à dignidade humana.

 

Palavras-chave: propriedade, direito de propriedade, Constituição.

 

1. INTRODUÇÃO

 

A Constituição de 1988 criou, através de seus dispositivos, um verdadeiro Estado Jurídico Social. O texto constitucional em sua sistemática estabelece como primordial a prevalência do interesse social.

O bem da coletividade é a finalidade que muitos artigos se propõem quando o legislador constituinte tratou dos Direitos e Garantias Fundamentais. Tendo a forma que a Constituição deu à propriedade, como "fundamento" foi garantido o direito de propriedade, e, deste modo, ela será protegida juridicamente.

No entanto, se a Constituição protegeu a propriedade como um direito individual inviolável, ao mesmo tempo cunhou sua função social estabelecendo um Estado Social no Brasil. Várias teorias, durante toda a evolução da sociedade procuraram explicar a natureza do direito à propriedade, justificando sua existência.

Portanto, a propriedade na medida em que a sociedade evolui, tem sofrido uma série de mudanças e restrições no que tange a sua função diante aos interesses político-sociais, daí serem geradas intermináveis polêmicas. De modo que o direito à propriedade se funda na lei que o institui, atendendo as exigências sociais que cada período apresenta.

A partir do momento em que a Constituição incorporou em sua essência valores sociais próprios do Estado social, obviamente impôs obediência de todos aos ditames, a fim de que realmente se possa edificar uma sociedade justa. Predisse que os indivíduos devem procurar a satisfação de seus interesses particulares com liberdade, mas de modo que os harmonizem com o sentimento que a comunidade tem acerca de bem comum.

 

As mudanças demográficas, representadas pelo aumento significativo da população, a industrialização e as transformações  econômicas  e sociais do século XX demandaram significativas alterações dos paradigmas do Direito. Apesar  das várias restrições impostas, o direito de propriedade ainda goza de situação privilegiada no sistema jurídico pátrio.

 

Dentre tantos os direitos conquistados pelos homens, inspirados nas necessidades de cada tempo, escolhemos o direito à propriedade, para ser analisado durante a sua evolução no Brasil. Como já dizia Norberto Bobbio:

 

“Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidas em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa e novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez. As Constituições apenas os certificam, declaram e garantem. E acrescenta: O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das Constituições democráticas modernas “[1].

 

2. ETIMOLOGIA E CONCEITO DE PROPRIEDADE

 

O sentido etimológico do termo propriedade para alguns estudiosos se origina do vocábulo em latim “proprietas”, derivado de “proprius”, significando o que pertence a uma pessoa. Desta forma, em sentido amplo, propriedade designaria toda relação jurídica de apropriação de certo bem corpóreo ou incorpóreo.

Outros estudiosos defendem que o termo propriedade advém de “domare”, indicando sujeitar ou dominar, respectivo à “domus” ou casa onde o senhor desta é conhecido por “dominus”. A propriedade é a relação fundamental do direito das coisas, abrangendo todas as categorias dos direitos reais sobre coisas alheias, sejam direitos reais limitados de gozo ou fruição, sejam os de garantia ou de aquisição.

A propriedade consagra a plenitude do direito de senhores sobre uma coisa, sendo, portanto, todas as inúmeras faculdades que nela se distinguem manifestações da referida plenitude. Sendo a propriedade um direito real, seu exercício independe de prestação de quem quer que seja.

É conferida ao titular de tal direito a prerrogativa de usar, gozar e dispor da coisa, bem como de reivindicá-la de quem quer que injustamente a detenha.

3. DIREITO À PROPRIEDADE

 

3.1 Natureza e fundamento do direito à propriedade

 

Quanto à natureza ensina-se que o direito à propriedade tem as seguintes características: absolutismo, exclusivismo e perpetuidade. O caráter absoluto atribuído ao direito à propriedade, deve ser analisado com atenção, em razão de que, embora seja tal direito oponível “erga omnes” e ainda pelo fato de que seu titular pode dispor e desfrutar da coisa com bem aprouver, se sujeita este às limitações impostas em razão do interesse público ou a coexistência do mesmo direito de outros titulares.

Quanto à exclusividade, entende-se que, o direito de um sobre determinado bem exclui o direito de outro sobre o mesmo bem. A perpetuidade caracteriza-se pela observância de que, independentemente, do exercício do domínio, sem titular pode excluir terceiros da utilização do bem. Sua oponibilidade tem abrangência “erga omnes”.

4. DAS FONTES HISTÓRICAS DO DIREITO À PROPRIEDADE

 

4.1. Origem

 

Desde época pretérita, a propriedade tem sido objeto de estudo de historiadores juristas, sociólogos, filósofos, economistas e políticos, a fim de que possa determinar-lhe sua origem, caracterizar-lhe os elementos distinguir-lhe modalidades e, seguindo sua evolução, dar-lhe função individual ou social.

A origem histórica da propriedade emanou do direito romano, quando então dotada de misticismo imperava o individualismo no que tangia à propriedade. Nas terras distribuídas, anualmente, entre os germanos, o titular do direito não era a pessoa física, mas a “gens” ou a família.

Três espécies de propriedades foram distintas pelo direito romano: a “quiritária”, protegida pelo direito civil e que recaía sobre bens imóveis situados em solo itálico e respectiva titularidade a cidadãos romanos; a “pretoriana ou bonitária”, que se fundamentava na igualdade aplicada pelos magistrados ao conceder proteção especial àqueles que embora não fossem titulares do domínio, situavam-se como verdadeiros proprietários; e, por fim, a “provincial” que consistia em incorporação das províncias ao Senado, cujo uso e gozo das terras eram efetivados pelo Imperador e demais autoridades.

Mais tarde, Justiniano extinguiu a distinção até então, existente entre as diversas modalidades de propriedades, sendo despontado com isso um novo conceito unitário de domínio, ao qual se caracteriza por sua exclusividade.

Durante a Idade Média o romanista conceito exclusivista de propriedade foi abolido e a hierarquia oriunda do direito público feudal foi introduzida na técnica privatista, havendo, portanto, uma enorme vinculação entre a soberania e a propriedade. Incumbiu à Revolução Francesa (1789), objetivando democratizar a propriedade fundar os privilégios inerentes à nobreza, revigorando o conceito romanista de propriedade exclusiva que continha titular único.

Assim, o direito à propriedade desligou-se dos direitos políticos sendo, então, conferida a utilização econômica do bem com garantia de ampla liberdade, nos parâmetros legais, ao seu titular. Voltando ao Brasil, à época do descobrimento, recordamos que entre os silvícolas havia domínio comum das coisas úteis entre os habitantes duma mesma oca, individualizando-se, apenas, objetos e utensílios de uso pessoal; no entanto, quanto ao solo não havia pessoalidade, pois este pertencia a toda tribo enquanto nele habitavam (eram em geral, nômades).

Contemporaneamente, a propriedade apresenta-se, intrinsecamente, vinculada ao regime político vigorante. Desse modo, subsiste nos países ocidentais a propriedade individual distanciando-se da sua origem histórica inerente ao absolutismo peculiar às épocas remotas ao qual são afetadas, cada vez mais, pelas restrições legais manifestadas pela proliferação de servidões legais de interesse privado, ou, ainda, outras restrições no uso e gozo do domínio.

A propriedade privada, na medida em que a sociedade evolui, tem sofrido uma série de mudanças e restrições no que tange a sua função diante aos interesses político-sociais, daí serem geradas intermináveis polêmicas. Várias teorias, durante toda a evolução da sociedade procuraram explicar a natureza do direito à propriedade, justificando sua existência a da vontade divina, a do assentamento universal, a da ocupação, a da função social, dentre outras.

Para as teorias clássicas ou realistas, há uma relação concreta entre o titular da coisa e a própria coisa. Para a teoria moderna, que na condição de proprietário vê o sujeito ativo e um sujeito passivo indeterminado e universal, há uma relação abstrata de quem detém a propriedade em face de quem pode eventualmente contestá-la.

O direito à propriedade se funda na lei que o institui, atendendo as exigências sociais que cada época apresenta.  

5. EVOLUÇÃO NAS CONSTITUIÇÕES PÁTRIAS 

 

5.1 O direito à propriedade diante à evolução constitucional pátria

 

O ordenamento constitucional sobre a propriedade no Brasil apresenta uma evolução que a partir de uma posição claramente individualista, ao melhor estilo da concepção clássica, e acaba chegando a uma concepção que proclama não apenas as vantagens para o proprietário, mas também obrigações a que está sujeito e que condiciona o uso da propriedade ao interesse geral, sua função social. Desta forma, no Brasil, o direito de propriedade tem estado ininterruptamente considerado em nível constitucional desde a instituição da nossa primeira Carta Magna em 1824.

Até a independência, regeu-se o Brasil pela legislação portuguesa corporificada nas Ordenações Manuelinas, Afonsinas e Filipinas.

5.2 Constituição de 1824

 

A Constituição de 1824, sob expressa influência do liberalismo francês, apresentava caráter individualista de propriedade, e assegurava em seu artigo179, § 22, o direito de propriedade em toda a sua plenitude, sem qualquer restrição ou limitação, com ressalva à hipótese de desapropriação por necessidade ou utilidade social.

Logo ressalvava, porém, que esta era a única exceção à dada garantia e prudentemente recomendava que a lei marcasse não só os casos em que a mesma exceção teria lugar, como as regras para se determinar a indenização. Com base no citado preceito constitucional, é definido a propriedade como:

“A senhoria de um sujeito de direito sobre determinada coisa garantida pela exclusividade da ingerência alheia, ou, o direito perpétuo de usar, gozar e dispor de determinado bem, excluindo de qualquer ingerência no mesmo todos os terceiros”.

 

Consagrava assim, a propriedade como direito inviolável, na linha do artigo 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:

 

“Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indenização”.

 

5.3 Constituição de 1891

 

Seguindo a mesma concepção da Constituição Imperial, prelecionava o artigo 72, §17 da Constituição Republicana de 1891:

 “O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude... As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria”.

              

De cunho nitidamente liberal, garantia o direito de propriedade em toda a sua plenitude, a única restrição que admitia era a da desapropriação por necessidade pública mediante indenização prévia. Mantendo o direito de propriedade na forma anterior.

Contudo uma reforma constitucional em 1926 especificou outras restrições, assim enunciadas:

a) as minas pertencem aos proprietários do solo, salvo as limitações estabelecidas por lei e a bem da exploração das mesmas;

b) as minas e jazidas minerais necessárias à segurança e defesa nacionais e as terras onde existirem não podem ser transferidas a estrangeiros.

5.4 Constituição de 1934

 

A Carta Magna de 1934 é precursora ao introduzir, a garantia do poder de propriedade não ser exercido contra o interesse social ou coletivo, inserindo pela primeira vez a idéia de função social, conforme o artigo 113, § 17:

 

“É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização posterior”.

 

Elaborada num período pós-revolucionário (Revolução de 1930), numa fase de intensa e profunda reconstrução social, orientados, pelos novos valores econômicos e pelos novos ideais jurídicos, há muito em voga na Europa, assegurava de maneira completa e radical, a prevalência do interesse público sobre o individual, e modificava explicitamente o conceito de propriedade, cujo conteúdo e limites passariam daí por diante, a ser definidos nas leis que lhes regulassem o exercício.

             

5.5 Constituição de 1937

 

A Constituição de 1937 assegurou o direito à propriedade, incumbindo à lei ordinária à definição de seu conteúdo e seus limites (artigo 122, § 14). Ou seja, na esteira das demais Cartas, reafirmou o direito de propriedade, deixando ao encargo do legislador ordinário o dever de regulamentá-lo.

5.6 Constituição de 1946

 

O Código Supremo de 1946 foi o primeiro texto constitucional pátrio a efetivamente reconhecer o caráter supra-individual da propriedade e introduzir a definição de função social condicionando o direito de propriedade ao bem-estar social. Preconizando, em seus artigos 141, §16, e 147, que se promovesse a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.

 

Além de se referir à função social, estabelece a possibilidade de desapropriação de terras por interesse social, visando à justa distribuição da propriedade. No entanto, este dispositivo somente foi regulamentado em 1962, dezesseis anos após a promulgação da Constituição de 1946, com a edição da Lei nº. 4132, que passou a regular a desapropriação por interesse social, embora de forma insuficiente no que diz respeito aos imóveis rurais para fins agrários.

             

Em seguida, em 1964, com a Emenda Constitucional nº. 10, garantindo autonomia legislativa ao Direito Agrário, propiciou-se o surgimento do Estatuto da Terra (Lei 4.504/64), que foi a primeira dentre todas as legislações latino-americanas sobre reforma agrária, se não a definir a função social da propriedade, aquela que, ao menos, estabeleceu os seus requisitos essenciais.

 

Elaborada após a queda do Estado Novo instituído por Getúlio Vargas, a Constituição de 1946 não se afastou do que já vinha disposto sobre o direito de propriedade nas Constituições de 1934 e 1937, mas, conferiu ao direito de propriedade um sentido social amplo. Este Diploma foi de grande importância para a evolução do direito de propriedade no Brasil, pois, através de seu artigo 141, §16, acresceu às hipóteses autorizadoras da desapropriação – necessidade e utilidade pública - o interesse social.

5.7 Constituição de 1967

 

No art. 167 da Constituição de 1967, foram repetidos os ditames preceituados pela carta constitucional anterior, sendo a função social erigida ao status de princípio da ordem econômica e social, cuja finalidade é promover o desenvolvimento nacional e a justiça social, restando como segue o respectivo texto constitucional:

“A ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) III- função social da propriedade”.  

 

5.8 Constituição de 1969

 

Para alguns, a Constituição de 1969 é apenas um “emendão” à Constituição de 1967. Porém, para nós este texto é sim, uma nova Carta Magna, e será desta forma definido neste presente trabalho.

O Texto Magno de 1969, em seu artigo 153, § 22 referiu-se ao direito à propriedade, reproduzindo, literalmente, o previsto na Carta Constitucional de 1946. Todavia o mesmo texto, em seu artigo 160 evoluiu, legislativamente, acerca do reconhecimento do princípio da função social da propriedade.

Por conseguinte, manteve mesma linha de garantir principalmente o direito de propriedade com as ressalvas da desapropriação e da requisição.

Seguindo, em parte, o conteúdo do dispositivo anterior, procurando adaptá-lo à situação vigente, sem afastar a propriedade de sua característica básica, qual seja o cumprimento da sua função social.

5.9 Constituição de 1988

 

A Constituição Federal de 1988, também conhecida como “Constituição Cidadã”, tem por escopo a prevalência do interesse social. E o direito à propriedade vem estampado no “caput” do art. 5º da Lei Maior vigente, encontrando-se repetidamente, expresso no inciso XXII, ao qual, pretendeu o legislador constituinte reforçar a garantia à inviolabilidade de tal direito.

 Atualmente, percebemos que a propriedade, considerada como um direito subjetivo do proprietário até o final do século XVIII foi elevada a assumir o caráter de socialização ou destinação social. Há na propriedade uma indispensável função social objetivando formar e administrar os capitais por meio dos quais, cada geração prepara os trabalhos da seguinte.

Está a propriedade, em conseqüência da perda do caráter absoluto e intangível dos primórdios, assumindo uma situação objetiva, constituída, precipuamente, de deveres impostos aos proprietários, cujas prerrogativas vinculam-se ao cumprimento desses deveres, submetidos, entretanto, à utilidade pública. O texto constitucional pátrio vigente, embora garanta reiteradas vezes o direito à propriedade, ressalva a possibilidade de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro (artigo 5º, inciso XXIV).

A inclusão no capítulo dos direitos fundamentais é o que distinguiu a Constituição atual e a anterior. Fica claro que o pacto político – ideológico constitucional mudou.

A propriedade socialmente funcionalizada foi reconhecida como um direito fundamental dos brasileiros e estrangeiros aqui residentes. A propriedade passou a ser, de um lado, o direito fundamental do seu titular em ver preservado seus interesses individuais, e do outro lado, o direito fundamental da sociedade em ver seus direitos e interesses incidentes sobre a primeira.

É farta a regulamentação sobre o direito de propriedade na atual Carta Constitucional, a matéria está regulada no capítulo dos direitos fundamentais e no da ordem econômica. Havemos de inferir, todavia, que vivemos na era da inclusão universal, que se deu através de pressupostos políticos e jurídicos. Porém, um fato que nos intriga é a contínua necessidade de produção legislativa inadequada à realidade social.

A luta pelo acesso a terra é a luta pela felicidade, pela fraternidade, pela igualdade, pela justiça. Todos os sentimentos altamente improváveis e, por isso, possíveis. Assim como é possível construir um novo Brasil, apesar de todas as improbabilidades.

6. CRONOLOGIA DO DIREITO DE PROPRIEDADE

 

6.1 Evolução sócio - jurídica do acesso a terra no Brasil

 

Tratado de Tordesilhas: (1494) primeiro marco divisório das terras brasileiras. Conquista da nova terra através da invasão, luta e extermínio da população já existente. Colonização realizada através de sesmarias, monoculturas e utilização do trabalho de índios e escravos.

Feitorias: (1511) processo de ocupação do território nacional. Inegável importância econômica. Definição do modelo de ocupação das terras brasileiras. Feitorais mais importantes: em 1511, no Cabo Frio e em 1516, em Pernambuco.

Capitanias Hereditárias: Depois das feitorias, as terras brasileiras passaram a ser “doadas” aos portugueses que deixavam Portugal em busca da fortuna. Deste modo, em 1534, nobres portugueses ganharam do rei porções significativas de terra as quais foram denominadas  “Capitanias Hereditárias”.

Regimento de Tomé de Souza: (1548) permitia o acesso a terra por meio de doações. Note-se que a distribuição das terras dependia da Coroa, a qual tinha a propriedade da terra brasileira como fundamento do seu poder político, social e econômico. O acesso a terra poderia ser alcançado por ocupação, que era uma forma ilegal de acesso a terra, ou por doação real, que era a forma legal. O que ocorreu no Brasil foi que os fazendeiros obtinham acesso a terra através de doações e às demais “raças e povos”, através da ocupação. Os grandes proprietários podem comprar mais e mais terras e os trabalhadores rurais têm acesso a terra através da “invasão”.

Governo-Geral: (até 1808) neste período se implementaram as sesmarias e a política de colonização;

Expedições estrangeiras: (de 1550 a 1650) países lutavam pela posse das terras brasileiras;

Colônia do Açúcar e o Ciclo do Ouro: (1500 até final de 1600)  período em que se solidificaram os latifúndios e formaram-se os quilombos;

Sesmarias: (de 1702 a 1822) modelo de distribuição de terras;

Colonização do Sul do Brasil por imigrantes: (início de 1800) que exerciam o trabalho agrário;

Independência do Brasil: (1822) foi proibida a concessão de sesmarias até a Lei de Terras. Até este ano as terras brasileiras, exceto as doadas em sesmarias, faziam parte da Coroa Portuguesa. No ano anterior à Independência, o Brasil gozava da condição jurídica de “Reino Unido”. Por meio de decretos, D. Pedro fez vigorar algumas mudanças importantes. Ainda em 1822, houve a proibição da concessão de sesmarias, que permaneceu até a Lei de Terras do ano de 1850. Então, entre os anos de 1822 a 1850, a única forma de acesso legal a terra era a posse.

Constituição de 1824: primeira Constituição brasileira, a qual conhecia os princípios da Revolução Francesa. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção, e dará as regras para se determinar a indenização.

Lei de Terras de 1850: definia a compra como único meio de aquisição de terras. Tira dos índios qualquer direito sobre a terra que ocupavam há muitos séculos. Foi uma lei feita para beneficiar os grandes fazendeiros, que tinham não somente um poder econômico, mas também influenciavam o sistema do direito e definiam o sistema da política.

Constituição de 1891: criou a transferência das terras de uso público da União para os Estados. Quer dizer, buscam-se alternativas para resolver o problema agrário, mas a cada tentativa de solução criam-se novos problemas. Multiplicaram-se dezenas de atos legislativos diversos, nos diferentes Estados. Cada Estado pretendia uma política fundiária própria. 

Lutas pela terra no final de 1800 e início de 1900: tem-se a formação de núcleos de trabalhadores agrários que, para tentar sobreviver, se unem a líderes que vão surgindo, como o que ocorreu em Canudos.

Código Civil de 1916: estabeleceu a discriminação das terras devolutas pertencentes ao Estado e às propriedades particulares. Conforme os artigos:

Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.

Art. 526. A propriedade do solo abrange a do que lhe está superior e inferior em toda a altura e em toda a profundidade, úteis ao seu exercício, não podendo, todavia, o proprietário opor-se a trabalhos que sejam empreendidos a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse algum em impedi-los.

 

Constituição de 1934: limitou negativamente o direito de propriedade;

Constituição de 1937: omissa quanto à função social da propriedade;

Constituição de 1946: baseada nas Constituições anteriores. Esta Constituição nasceu em um contexto pós-guerra, e foi de inegável importância para a redemocratização do país e a reafirmação do constitucionalismo. A base para a formação da Constituição foi buscada nas anteriores Cartas Constitucionais, mas refletiu o momento de turbulência em que foi elaborada, sendo, por isso, muitas vezes, contraditória.

Estatuto da Terra: (1964) de relevante importância porque legitima a luta pela terra no Brasil.

Art. 2 - É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.

Reforma Agrária: necessárias ainda hoje e pela quais movimentos sociais lutam de forma organizada;

Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional Nº. 1 de 1969:  consagrou a função social da propriedade como princípio constitucional;

Ato Institucional n. 5 (AI5), de 1968, o qual foi o responsável pela maior concentração do autoritarismo que se conheceu no Brasil e seus reflexos são evidentes em todos os segmentos sociais. Na política agrária, o acesso à propriedade da terra estava condicionado a que os proprietários defendessem a integridade da Nação e a segurança nacional. Assim, com integridade e segurança, poder-se-ia fazer a “justa” distribuição da propriedade.

A partir dos anos 70, surgiram decretos-leis para a implementação e viabilização da reforma agrária;

Constituição de 1988: Ainda vigente, estabelece como norma e princípio o atendimento à função social da propriedade;  

 

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXII - é garantido o direito de propriedade;

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

 

A função social da propriedade restringe o direito de propriedade e se estabelece como um direito social e um dever individual do proprietário. No que diz respeito aos indígenas, a Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã, refere, em seu artigo 20, que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são bens da União.

 

Banco da Terra: (1998) a ser utilizado como meio para solucionar o problema da distribuição das terras no Brasil;

 

Novo Código Civil Brasileiro: (Lei nº. 10.406, que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003)  a inovação do Código Civil vigente está no § 1º do art. 1.228, o qual enfatiza as finalidades econômicas e sociais do direito de propriedade:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. 


Toda a produção legislativa que ocorreu no Brasil, desde o seu “descobrimento” até os dias atuais, não foi capaz de solucionar o grande problema agrário brasileiro. A produção legislativa no Brasil - Colônia foi protetora e criadora dos grandes latifúndios que ainda hoje perduram.  Temos hoje, no Brasil, aproximadamente 4 milhões de famílias sem terra, sendo que 2,8% das propriedades rurais ocupam 56,7% de todas as terras cadastradas enquanto que 62,2% das propriedades ocupam 7,9% das terras. 

 

7. CONCLUSÃO

 

Considerando o envolver do conceito de propriedade através do tempo, é de deduzir-se que, cada vez com maior intensidade, a propriedade vai deixando de ser um direito pleno e ilimitado. A idéia da função social alterou a estrutura do direito de propriedade, convertendo-o em poder-dever voltado à destinação do bem a objetivos que, transcendendo o simples interesse do proprietário, venham a satisfazer indiretamente as necessidades dos demais membros da comunidade.

A propriedade foi concebida como um instrumento de garantia da liberdade individual, contra a intrusão dos Poderes Públicos. As transformações do Estado contemporâneo deram à propriedade, além da função social, também a de servir como instrumento de realização da igualdade social e da solidariedade coletiva.

Não pode esse direito ser exercido de maneira absoluta, egoística, mas, sim, com o objetivo de atender não apenas aos interesses do proprietário, como também de toda a coletividade. Isso impõe ao proprietário não apenas a obrigação de se abster, de não violar uma regra, mas também a obrigação de fazer, isto é, utilizar a coisa em conformidade com os anseios coletivos, pois somente a necessidade, utilidade publica ou interesse social permitirão a desapropriação.

Mesmo assim, jamais pode ser esquecido que a propriedade continua sendo privada e, portanto, deve ser respeitada. Tanto é que o proprietário, mesmo tendo seu bem desapropriado pela Administração em decorrência da inobservância da finalidade social preceituada, tem direito a receber uma indenização, justa e prévia, segundo o texto constitucional, pela perda da propriedade.

E havendo arbitrariedade estatal, há medidas judiciais cabíveis para a defesa do direito de propriedade. Os direitos dos homens e, por conseguinte, dos povos, espelham os anseios, as conquistas, o espírito de cada época, retratados nas legislações vigentes respectivas e que, para serem respeitados e aplicados prescindem, preliminarmente, de interpretação teleológica e axiológica de todo o sistema jurídico-social.

Diante ao direito constitucional o direito à propriedade apresenta-se bem mais amplo, não se limitando a sua garantia a um direito real, incidindo também sobre os direitos pessoais, de fundo patrimonial. A propriedade é regida pela tutela jurídico-constitucional, não apenas, como manifestação do direito objetivo, mas, também como direito subjetivo da pessoa.

O direito de propriedade teve sua evolução marcada pela morosidade. Antes era um direito absoluto, hoje, deve cumprir com um papel social, sob pena de não ser protegido pelo Direito Positivo. É a passagem do Estado proprietário para Estado solidário, transportando-se do monossistema para o polissistema do uso do solo. Isso contribuirá para a erradicação da pobreza, bem como para redução das desigualdades sociais e regionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 

HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

 

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23ª Edição. São Paulo: Atlas, 2000.

 

GOMES, Orlando. Direitos reais. Atualização de Humberto Theodoro Júnior. 14ª Edição.  Rio de Janeiro: Forense, 1999.

 

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12ª Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2000.

 

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direitos reais. 4ª Edição. São Paulo: Atlas, 2002. 

 

REVISTAS:

 

BERCOVICI, Gilberto. A Constituição de 1988 e a propriedade. In: Revista de direito privado. Coordenação Nelson e Rosa Maria Nery. Ano 2 (2001).

 

COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. In: Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, nº. 10. Ano 5 (1997).

 

TEXTOS PESQUISADOS:

 

Drª. Sandra Regina Martini Vial

Socióloga, Doutora pela Università Degli Studi di Lecce - Itália

Professora de Sociologia Jurídica na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – São Leopoldo/RS e na UNIVATES – Lajeado/RS, Brasil e Assessora da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul.



[1] BOBBIO, Norberto. A  era dos direitos. 10ª Edição. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

 

Importante:
1 - Conforme lei 9.610/98, que dispõe sobre direitos autorais, a reprodução parcial ou integral desta obra sem autorização prévia e expressa do autor constitui ofensa aos seus direitos autorais (art. 29). Em caso de interesse, use o link localizado na parte superior direita da página para entrar em contato com o autor do texto.
2 - Entretanto, de acordo com a lei 9.610/98, art. 46, não constitui ofensa aos direitos autorais a citação de passagens da obra para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor (Heloisa Helena Quaresma) e a fonte www.jurisway.org.br.
3 - O JurisWay não interfere nas obras disponibilizadas pelos doutrinadores, razão pela qual refletem exclusivamente as opiniões, ideias e conceitos de seus autores.

Nenhum comentário cadastrado.



Somente usuários cadastrados podem avaliar o conteúdo do JurisWay.

Para comentar este artigo, entre com seu e-mail e senha abaixo ou faço o cadastro no site.

Já sou cadastrado no JurisWay





Esqueceu login/senha?
Lembrete por e-mail

Não sou cadastrado no JurisWay




 
Copyright (c) 2006-2024. JurisWay - Todos os direitos reservados