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O PODER JUDICIÁRIO E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS - THE JUDICIARY POWER AND THE EFFICACY OF THE SOCIAL RIGHTS


Autoria:

Leonardo Augusto Gonçalves


Graduado e Pós-Graduado (Mestrado em Ciência Jurídica) pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro (Jacarezinho-PR), instituição onde também atua como Professor Voluntário. Promotor de Justiça no Estado de São Paulo desde 2000.

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Texto enviado ao JurisWay em 08/12/2009.



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SUMÁRIO: Introdução; 1. “O jurídico” e “o político”: pontos de contato (ou de atrito?) entre os Poderes do Estado no campo da efetivação dos direitos fundamentais; 1.1. O Poder Judiciário no Estado liberal; 1.2. O Poder Judiciário no Estado social; 1.3. O Poder Judiciário no Estado pós-social; 2. O Poder Judiciário e a efetivação dos direitos fundamentais nos países de modernidade tardia; 3. Direitos sociais e políticas públicas; 4. Tutela jurisdicional dos direitos sociais; Considerações finais.
 
 
RESUMO: Iniciando pela abordagem do processo que levou à constitucionalização dos direitos sociais, o presente texto avança e passa a discorrer, sempre pela ótica da concretização dos direitos fundamentais, a respeito da relação entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo desde o Estado liberal, passando pelo Estado social, chegando até nossos dias, quando vivenciamos um momento de crise deste último modelo estatal. Desenvolvendo uma linha de argumentação acerca da importância do Poder Judiciário no campo da busca da efetividade dos direitos fundamentais, este trabalho lança seu olhar, de maneira especial, para a forma de atuação dos tribunais nos países de modernidade tardia, sobretudo no campo da implementação dos direitos sociais. Destacando, na seqüência, a estreita relação entre as políticas públicas e os direitos sociais, discute-se a possibilidade e os limites da tutela jurisdicional desta espécie de direitos fundamentais, destacando-se a necessidade de que, sobretudo no âmbito dos países periféricos, a atuação do Poder Judiciário seja marcada pela mais absoluta necessidade de se buscar a concretização das previsões constitucionais inerentes ao tema, procurando garantir a transição da igualdade dos indivíduos desde uma concepção meramente formal para uma realidade substancial. Em conclusão, aponta-se que o Poder Judiciário deve se mostrar disposto a evoluir no campo da efetivação dos direitos fundamentais, procurando cumprir o papel que o texto constitucional lhe atribui, exercendo com retidão a parcela do poder estatal que lhe é outorgada pelo povo, sob pena de, a exemplo do que se verifica atualmente com os Poderes Executivo e Legislativo, passar a ser fortemente questionado pelos cidadãos acerca de sua verdadeira função no âmbito da sociedade, se a de garantir privilégios a uma minoria ou de concretizar direitos em prol da maioria.
 
“ABSTRACT”: Beginning from the approach to the process that has taken to the social rights constitutionalism, the text moves forward and begins to explain, always by the accomplishment view of the fundamental rights, in respect to the relationship between the Judiciary Power and the Executive Power since the liberal State, passing by the social State, coming up to our days, when we face a moment of crisis in this last state-owned model. Developing an argumentation line concerning the importance of the Judiciary Power in search of the fundamental rights effectiveness, this work heads its view, in a special manner, for the way the courts act in the countries of late modernity, especially in what refers to the social rights implementation. Pointing out, in the sequence, the narrow relationship between the public politics and the social rights, it discusses about the possibility and the limits of the jurisdictional guardianship of this kind of fundamental rights, pointing out the importance that, especially in the scope of the peripheral countries, the performance of the Judiciary Power is determined by the most absolute need to look for the achievement of the constitutional forecasts inherent in the subject, trying to assure the evolution of the right to the equality between the human beings, leaving behind a merely formal conception to achieve the condition of substantial reality. In conclusion, it points out that the Judiciary Power must seem willing to developing in the efficacy field of the fundamental rights, trying to fulfill the role that the constitutional text awards to it, using with efficiency the parcel of the state-owned power that is granted by the people, under sentence of, in example of what is checked currently with the Executive and Legislative Powers, being powerfully questioned by the citizens concerning its truly social role, if it is to assure privileges to a minority or if it is to ensure the respect to the fundamental rights of the majority.
 
 
PALAVRAS-CHAVE: Poder Judiciário; direitos sociais; efetivação.
 
            
KEY WORDS: Judiciary Power; social rights; efficacy.
 
 
Introdução
Sob o império da economia de mercado e do fenômeno da globalização, a sociedade vem passando por transformações profundas a respeito das formas pelas quais o Estado promove intervenções em seu âmbito.
Após a implosão do socialismo como modelo puro de governo, a prevalência do sistema capitalista e, mais recentemente, a adoção do modelo estatal neoliberal, intensificaram as desigualdades entre os diversos estratos da pirâmide social, quer nos países desenvolvidos, em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, acarretando uma cada vez mais acentuada concentração de riquezas, fazendo com que uma legião de pobres e miseráveis sejam privados dos direitos fundamentais à educação, saúde, trabalho e segurança.
O estudo do caminhar histórico do universo jurídico aponta que apenas os direitos individuais, as liberdades públicas, não eram suficientes para a garantia dos direitos fundamentais pois havia a necessidade da implementação de condições para o seu efetivo exercício. Foram definidos e assegurados os direitos sociais, econômicos e culturais buscando garantir condições sociais razoáveis a todos os homens para o exercício dos direitos individuais. Os sociais são chamados de direitos fundamentais de segunda geraçãoe caracterizam-se por outorgarem aos indivíduos direitos a prestações sociais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho, etc., revelando uma transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas. (BREGA FILHO, 2002, p. 22 seq.)
A previsão constitucional, nos termos em que restou consignada na Constituição Federal de 1988, revela o traço concernente à indisponibilidade dos direitos sociais, bem como a característica da auto-aplicabilidade da regra prevista no art. 6º, segundo a qual “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados”.
Os direitos sociais são direitos subjetivos. Entretanto, não são meros poderes de agir – como é típico das liberdades públicas de modo geral – mas sim poderes de exigir. São direitos de crédito. (FERREIRA FILHO, 2006, p. 49 seq.)
Os sociais são abrangidos pelo conceito de direitos prestacionais posto que tal expressão serve para rotular qualquer dos direitos a prestações materiais (excluídas, portanto, as prestações normativas) do Estado. (GOUVÊA, 2003, p. 07)
 
                                      Se os direitos humanos foram originariamente constituídos como forma de proteção contra o risco de abusos e arbítrios praticados pelo Estado, concretizando-se somente por intermédio desse mesmo Estado, os direitos sociais surgiram juridicamente como prerrogativas dos segmentos mais desfavoráveis – sob a forma normativa de obrigações do Executivo, entre outros motivos porque, para que possam ser materialmente eficazes, tais direitos implicam uma intervenção ativa e continuada por parte dos poderes públicos. A característica básica dos direitos sociais está no fato de que, forjados numa linha oposta ao paradigma kantiano de uma justiça universal, foram formulados dirigindo-se menos aos indivíduos tomados isoladamente como cidadãos livres e anônimos e mais na perspectiva dos grupos, comunidades, corporações e classes a que pertencem. Ao contrário da maioria dos direitos individuais tradicionais, cuja proteção exige apenas que o Estado jamais permita sua violação, os direitos sociais não podem simplesmente ser “atribuídos” aos cidadãos; cada vez mais elevados à condição de direitos constitucionais, os direitos sociais requerem do Estado um amplo rol de políticas públicas dirigidas a segmentos específicos da sociedade – políticas essas que têm por objetivo fundamentar esses direitos e atender às expectativas por eles geradas com sua positivação.
                                      Enquanto direitos cuja efetividade pressupõe a substituição da “repressão” pela “promoção” e da sanção penal ou punitiva pela sanção premial, os direitos sociais não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam um tratamento formalmente uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios; um direito descontínuo, pragmático e por vezes até mesmo contraditório, quase sempre dependente da sorte de determinados casos concretos. Trata-se de um tipo específico de direitos, cujas práticas judiciais pressupõem a legitimidade processual e o reconhecimento da personalidade jurídica dos grupos e representações coletivas; consagrando um novo padrão de racionalidade, de natureza essencialmente material ou substantiva, que colide com os limites estritos da racionalidade formal das leis e dos códigos típicos do Estado liberal clássico, os direitos sociais são politicamente editados com o objetivo de socializar riscos, neutralizar perdas e atenuar diferenças, mediante tratamentos diversificados por parte das múltiplas instâncias do setor público. (FARIA, 1994, p. 54)
                                                                                                                                                        
Os operadores do direito devem perquirir sobre as alternativas possíveis na busca do efetivo respeito aos direitos sociais, fazendo com que o Estado cumpra o seu dever de garantir ao cidadão o direito de viver em uma sociedade que caminhe, por meio da atuação dos Poderes constituídos, rumo à erradicação da pobreza e da marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais e promovendo o bem de todos, nos exatos termos do que estabelece o art. 3º, incisos III e IV, da Constituição Federal.
Para que os direitos sociais possam ter real implementação, mostra-se necessário que o Poder Executivo, enquanto responsável pelos atos de administração do Estado, promova a elaboração das chamadas políticas públicas, traçando estratégias de atuação na busca da efetividade dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, etc.
A Administração conta com o poder discricionário para decidir sobre a prática dos atos inerentes a suas atividades e funções, tendo liberdade para a escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo.
Entretanto, no âmbito dos direitos sociais, o poder discricionário da Administração deve ser analisado com profunda cautela posto que a elaboração das políticas públicas, bem como a realização dos atos administrativos tendentes à efetiva implementação de tal modalidade de direitos, estão vinculadas ao cumprimento de dispositivo constitucional de ordem pública (art. 6º), arraigado aos critérios da imperatividade e inviolabilidade, possuindo natureza de norma auto-aplicável e, assim, não podendo ser afastada pela discricionariedade do administrador.
Surge, então, o conceito de “políticas públicas constitucionais vinculativas”, a partir do qual se chega ao entendimento de que, para a garantia dos direitos sociais, a Administração estará compelida à elaboração de estratégias de atuação visando implementá-los.
Desta forma, temos que o Poder Executivo não poderá furtar-se à elaboração das políticas públicas relacionadas aos direitos sociais, bem como à efetiva implementação destes, sob pena de descumprir norma constitucional de ordem pública, imperativa, inviolável e auto-aplicável.
Na hipótese da Administração não cumprir tais deveres, deixando de elaborar (ou elaborando de maneira inadequada) as políticas públicas relacionadas aos direitos sociais, ou, ainda, deixando de cumprir (ou cumprindo de forma ineficaz) as políticas públicas elaboradas, abre-se espaço para a análise e discussão acerca da possibilidade de intervenção do Poder Judiciário no âmbito da tutela dos direitos sociais.
 
                                      Nos burocratizados tribunais brasileiros, cujos integrantes parecem acreditar que os conflitos podem ser solucionados pelo simples apego a certas formas e/ou pela ritualização de certos atos, os direitos humanos e os direitos sociais vêm dificultando a rotina da aplicação da lei. Além das inúmeras iniciativas de movimentos sociais, políticos, comunitários e religiosos, que nos anos 70 e 80 exerceram um papel decisivo conscientizando setores sociais mais desfavorecidos de seus direitos e os estimulando a bater nas portas do Judiciário para conquistá-los, o agravamento da crise econômica da década de 90 também está obrigando a magistratura a refletir um pouco mais sobre suas funções sociais. (FARIA, 1994, p. 47)
 
Neste trabalho, nossa proposta é a de discutir em que medida o Poder Judiciário está em condições de assumir uma posição de protagonismo no campo da defesa dos direitos fundamentais, sobretudo daqueles de segunda geração (ou dimensão), os sociais.
 
1. “O jurídico” e “o político”: pontos de contato (ou de atrito?) entre os Poderes do Estado no campo da efetivação dos direitos fundamentais
 
Fixar o sentido e o alcance de uma determinada lei, na sua aplicação a um caso concreto, de algum modo sempre implica poder normativo não muito distinto daquele existente no próprio ato de legislar (FARIA, 1994, p. 49). Assim, temos como relevante a análise da relação existente entre os universos jurídico e político.
Inegável que o Direito possui uma função política, sendo que tal função consiste em analisar o estágio de desenvolvimento da sociedade em determinado momento histórico, tudo para que, na seqüência, procurando ajustar o modo de atuação dos indivíduos quanto ao exercício do poder, solucionando conflitos e promovendo o consenso no que tange à tomada de decisões, seja alcançado o objetivo de que os superiores interesses da comunidade sejam implementados de maneira justa e eficiente, ensejando uma melhor qualidade de vida para os seus membros, fazendo com que estes possam exercer todas as suas potencialidades em busca do pleno desenvolvimento pessoal que leva à dignidade e, conseqüentemente, ao exercício da cidadania.
 
                                      O Direito é uma realidade social. É um componente das atividades humanas marcado, como todas as atividades humanas, pela cultura e pelas formas de organização de cada sociedade. Mas é uma realidade singular. Ele é a um só tempo o reflexo de uma sociedade e o projeto de atuar sobre ela, um dado básico do ordenamento social e um meio de canalizar o desenrolar das relações entre os indivíduos e os grupos. O Direito adere, assim, intimamente ao estado da sociedade por ele representada, mas dela se distingue para exercer sua missão de organização, sua tarefa normativa. Se o Direito é uma realidade social, é também uma teoria ativa da sociedade, uma avaliação do que existe cuja meta é determinar o que deverá existir. Portanto, o Direito é uma realidade social de feição dupla. Como teoria, como modo de encarar as relações sociais, ele produz grande quantidade de saberes apropriados. Como forma de organização, produz instituições e especializa a seu serviço certo número de membros da sociedade. (ASSIER-ANDRIEU, 2000, XI)
 
   É preciso reconhecer que o Direito e seus operadores possuem como missão primeira e fundamental a implementação das garantias fundamentais do indivíduo, assegurando a este a possibilidade de viver dignamente, tendo respeitadas suas necessidades, tudo para que a sociedade caminhe rumo ao desenvolvimento.
   Entretanto, o cumprimento de tal missão mostra-se profundamente prejudicado em virtude das inúmeras dificuldades enfrentadas no âmbito do sistema judicial. Como sabemos, “no cotidiano dos escalões inferiores da Justiça, são os magistrados lotados no interior e nas periferias das regiões metropolitanas os que sofrem o choque mais direto nas contradições entre o sistema jurídico-positivo e as condições reais da sociedade”. (FARIA, 1994, p. 48)
   O sistema judicial, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, vem presenciando a expansão tanto do escopo dos direitos sociais quanto de um padrão descentralizado de intervenção pública na área social, envolvendo, inclusive, significativas mudanças na estrutura tributária e nas atribuições do Estado. Tais alterações, no entanto, por vezes não conseguem ser implementadas por falta de leis complementares e/ou por uma forma extremamente formal de administração da justiça, “a ponto de não se preocupar com a solução dos litígios de modo a um só tempo legal, eficaz e legítimo”. (FARIA, 1994, p. 48)
 
                                      Eis aí, de modo esquemático, o dilema hoje enfrentado pelo Judiciário brasileiro, ao menos em suas instâncias inferiores: cobrir o fosso entre esse sistema jurídico-positivo e as condições de vida de uma sociedade com 40% de seus habitantes vivendo abaixo da linha da pobreza, em condições subumanas, na consciência de que a atividade judicial extravasa os estreitos limites do universo legal, afetando o sistema social, político e econômico na sua totalidade. Com a expansão dos direitos humanos, que nas últimas décadas perderam seu sentido “liberal” originário e ganharam uma dimensão “social”, ficou evidente que pertencer a uma dada ordem político-jurídica é, também, desfrutar do reconhecimento da “condição humana”. Quando essas condições não são efetivamente dadas, os segmentos mais desfavorecidos se tornam parias [...]. Esse tem sido o grande paradoxo dos direitos humanos – e também dos direitos sociais – no Brasil: apesar de formalmente consagrados pela Constituição, em termos concretos eles quase nada valem quando os homens historicamente localizados se vêem reduzidos à mera condição genérica de “humanidade”; portanto, sem a proteção efetiva de um Estado capaz de identificar as diferenças e as singularidades dos cidadãos, de promover justiça social, de corrigir as disparidades econômicas e de neutralizar uma iníqua distribuição tanto de renda quanto de prestígio e de conhecimento. (FARIA, 1994, p. 48)
 
Dentro desta linha de raciocínio, surge o momento de formularmos duas questões que nortearão o desenvolvimento deste trabalho: em que medida o operador do Direito, depois de esgotadas outras instâncias, pode buscar a tutela jurisdicional visando a concretização dos direitos fundamentais? As políticas públicas, enquanto instrumentos de implementação dos direitos sociais, podem ser alvo do controle jurisdicional?
A partir de tais indagações, mostra-se necessário investigar qual o papel do Poder Judiciário quando o tema em debate é a proteção dos direitos fundamentais.
 
                                      O Poder Judiciário cumpre um determinante papel na construção, proteção e garantia da efetividade dos direitos humanos, dentro da tradicional estrutura tripartite de poderes herdada da modernidade. Se uma sociedade na qual a cidadania se realiza é aquela que tem amplo acesso aos direitos, significa afirmar que estes direitos são realizados ou respeitados, e também que, quando são violados, aos mesmos é atribuída a devida proteção e garantia jurisdicional, o que torna a questão do papel do Judiciário um ponto central das discussões sobre o tema dos direitos humanos e, ainda mais, da eficácia dos direitos humanos. (BITTAR, 2005, p. 306)
 
Ao longo do nosso século, os tribunais sempre se revestiram de uma aura de polêmica e foram objeto de debate público. Neste sentido, recordarmos os tribunais da República de Weimar logo depois da revolução alemã (1918) e os seus critérios duplos na punição da violência política da extrema direita e da extrema esquerda; o Supremo Tribunal dos Estados Unidos e o modo como tentou anular a legislação do New Deal de Roosevelt no início dos anos 30; os tribunais italianos de finais da década de 60 e da década de 70 que, através do “uso alternativo do Direito”, procuraram reforçar a garantia jurisdicional dos direitos sociais; o Supremo Tribunal do Chile e o modo como tentou impedir o processo de nacionalizações levado a cabo por Allende no princípio da década de 70. (SANTOS et al, 2009, on line
Contudo, referidos momentos de notoriedade do Poder Judiciário se distinguem do protagonismo dos tempos mais recentes em dois aspectos fundamentais.
 
                                      Em primeiro lugar, em quase todas as situações do passado os tribunais se destacaram pelo seu conservadorismo, pelo tratamento discriminatório da agenda política progressista ou dos agentes políticos progressistas, pela sua incapacidade para acompanhar os processos mais inovadores de transformação social, econômica e política, muitas vezes sufragados pela maioria da população. Em segundo lugar, tais intervenções notórias foram, em geral, esporádicas, em resposta a acontecimentos políticos excepcionais, em momentos de transformação social e política profunda e acelerada. 
                                      Em contraste, o protagonismo dos tribunais nos tempos mais recentes, sem favorecer necessariamente agendas ou forças políticas conservadoras ou progressistas, tal como elas se apresentam no campo político, parece assentar num entendimento mais amplo e mais profundo do controle da legalidade, que inclui, por vezes, a reconstitucionalização do direito ordinário como meio de fundamentar um garantismo mais ousado dos direitos dos cidadãos. Por outro lado, ainda que a notoriedade pública ocorra em casos que constituem uma fração infinitesimal do trabalho judiciário é suficientemente recorrente para não parecer excepcional e para, pelo contrário, parecer corresponder a um novo padrão do intervencionismo judiciário. (SANTOS et al, 2009, on line)
 
Apesar destas distinções, o novo protagonismo do Poder Judiciário partilha com o anterior uma característica fundamental: traduz-se num confronto com a classe política e com outros órgãos de poder soberano, nomeadamente com o Poder Executivo. Por esta razão a doutrina e a jurisprudência abrem-se para o que se costuma denominar “judicialização dos conflitos políticos”. Sendo certo que na matriz do Estado moderno o Judiciário é um poder político, titular de soberania, a verdade é que ele só se assume publicamente como poder político na medida em que interfere com outros poderes da mesma ordem. Ou seja, a política judiciária, que é uma característica matricial do Estado moderno, só se afirma como política do Judiciário quando se confronta, no seu terreno, com outras fontes de poder político. Daí que a judicialização dos conflitos políticos não possa deixar de se traduzir na politização dos conflitos judiciários. (SANTOS et al, 2009, on line)
 
A judicialização da política e das relações sociais, se significar a delegação da vontade do soberano a um corpo especializado de peritos na interpretação do Direito e a “substituição” de um Estado benefactor por uma justiça providencial e de moldes assistencialistas, não será propícia à formação de homens livres e nem à construção de uma democracia de cidadãos ativos. Contudo, a mobilização de uma sociedade para a defesa dos seus interesses e direitos, em um contexto institucional em que as maiorias efetivas da população são reduzidas, por uma estranha alquimia eleitoral, em minorias parlamentares, não pode desconhecer os recursos que lhe são disponíveis a fim de conquistar uma democracia de cidadãos. Do mesmo modo, uma vida associativa ainda incipiente, por décadas reprimida no seu nascedouro, não se pode recusar a perceber as novas possibilidades, para a reconstituição do tecido de sociabilidade, dos lugares institucionais que lhe são facultados pelas novas vias de acesso à justiça. (VIANNA, 1999, p. 43)
 
1.1.1.1 O poder hermenêutico do juiz é fundamental na construção do sentido a ser imprimido ao ordenamento jurídico, sendo que o termômetro do desgaste de um sistema judicial é o próprio Judiciário posto que é o poder responsável por exercer a função de decidir, concretizando as normas abstratas, atendendo, assim, as demandas reais e históricas nas quais agentes sociais se encontram envolvidos. Trazendo este tema para um enfoque a partir da realidade brasileira, temos que o Poder Judiciário é aquele que mais se vê acossado pela enormidade dos problemas, sendo constantemente instigado a decidir conflitos de natureza social, que deveriam ser tratados e implementados politicamente (a priori), e não jurisdicionalmente (a posteriori), diga-se de passagem, lidando com questões dessa natureza dentro de uma cultura liberal, de conflitos individuais, de demandas de interesse privado, sem aparelhamento e/ou preparo devidos, bem como dentro de um sistema engessado por formalismos e procedimentos processuais incapazes de satisfazer a questões de dimensão difusa e/ou coletiva. (BITTAR, 2005, p. 306-307)
1.1.1.2 A ampliação das franquias democráticas tem conferido ao Judiciário uma notoriedade muito grande. O poder nunca foi tão exposto ao crivo da mídia e da população em geral como nos tempos atuais. É natural que a magistratura, antes tão ensimesmada, sinta o embaraçoso choque do novo. (CAMPILONGO, 1994, p. 121)
1.1.1.3  
1.1.1.4                          A expectativa é de que, na ânsia de fazer do Judiciário um bastião não da forma da lei, mas sim do conteúdo do Direito, os magistrados não se arvorem na condição de novos demiurgos das aspirações nacionais. Ampliar os poderes do Juiz (o que parece ser uma tendência mundial) não significa transformá-lo numa figura arbitrária. (CAMPILONGO, 1994, p. 121)
1.1.1.5  
1.1.1.6 “Parece existir, por enquanto, uma via de mão dupla na relação entre o Poder Judiciário e o cidadão. O cidadão deposita no Judiciário a confiança que perdeu nos outros Poderes. E os Magistrados dão guarida às pretensões dos que buscam os tribunais”. (CAMPILONGO, 1994, p. 121)
1.1.1.7                         Esse jogo, que garante momentos de recíproca legitimação aos envolvidos, possui limites evidentes. Respostas positivas a demandas cada vez mais exigentes acabariam constrangendo os demandados à impossibilidade de cumprimento das sentenças, o que ofende a racionalidade do Direito.
1.1.1.8                         O Judiciário tem dificuldades para lidar com essa situação. Temeroso da “contaminação política do juiz”, procura distinguir, corretamente, o magistrado do político. Contudo, na ânsia de delimitar esses territórios, menospreza o peso político inerente à atividade jurisdicional. Não há dúvida de que a função do juiz não se confunde com a do político profissional, mas isso não significa que o papel do Magistrado deixe de ser político.
1.1.1.9                                Por isso, mais do que insistir na tese da ausência de politização da magistratura, talvez fosse o caso de se refletir sobre a nova conjuntura. (CAMPILONGO, 1994, p. 121)
1.1.1.10  
1.1.1.11  
1.1.1.12 E assim, buscando refletir sobre esta nova conjuntura, surgem novos questionamentos: de que modo resguardar a legitimidade do Judiciário sem decepcionar os que procuram os tribunais? Como garantir direitos e serviços sociais sem exigir o impossível do Estado? De que forma contribuir para a consolidação da democracia sem comprometer as políticas antiinflacionárias? “São perguntas que atormentam tanto o ministro do Supremo quanto o juiz da Comarca. São questões, data venia, jurídicas e políticas”. (CAMPILONGO, 1994, p. 121)
1.1.1.13 Dentro desta perspectiva, mostra-se interessante analisarmos os contextos em que o Poder Judiciário vem atuando desde o Estado liberal até nossos dias, destacando sua relação com os demais Poderes do Estado, sobretudo com o Executivo, ao longo de tais períodos, trazendo à tona os pontos de contato (ou de atrito?) entre o “político” e o “jurídico”.
1.1.1.14  
1.1.1.15 1.1. O Poder Judiciário no Estado liberal
1.1.1.16  
1.1.1.17 O liberalismo percorreu todo o século XIX, prolongando-se até a Primeira Guerra Mundial. Em razão de seu longo período de duração, o liberalismo mostrou-se importante para a consolidação do modelo judicial moderno dentro de um contexto onde, em razão da teoria da separação dos poderes, o Poder Legislativo assume o papel de protagonista em relação aos demais, circunstância que neutraliza o Poder Judiciário do ponto de vista político. (SANTOS et al, 2009, on line)
1.1.1.18  
1.1.1.19                                A teoria clássica da divisão dos poderes, construída com um claro acento anti-hierarquizante e com a finalidade de implodir a concepção mono-hierárquica do sistema político, iria garantir, de certa forma, uma progressiva separação entre política e direito, regulando a legitimidade da influência política no governo, que se torna totalmente aceitável no Legislativo, parcialmente no Executivo e fortemente neutralizada no Judiciário, dentro dos quadros ideológicos do Estado de Direito.
1.1.1.20                                [...]
1.1.1.21                             De fato, a neutralização do Judiciário é uma das peças importantes na caracterização do Estado de Direito burguês. Ela se torna, no correr do século XIX, a pedra angular dos sistemas políticos desenvolvidos. Em consonância com o princípio da tripartição dos poderes, ela será o eixo que permitirá a substituição da unidade hierárquica, concretamente simbolizada pelo Rex, por uma estrutura complexa de comunicação e controle entre forças mutuamente interligadas. A neutralização assinalará a importância da imparcialidade do juiz e o caráter necessariamente apartidário do desempenho de suas funções. (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 14-15)
1.1.1.22  
1.1.1.23           A neutralização política do Poder Judiciário decorre da estrita observância do princípio da legalidade, impedindo que os tribunais decidam em descompasso com o ordenamento jurídico posto, e do princípio da subsunção racional-formal, por meio do qual se estabelece que a aplicação do direito é uma subsunção lógica de fatos a normas e, como tal, desprovida de referências sociais, éticas ou políticas. Desta forma, no âmbito do liberalismo, os tribunais atuam dentro de um quadro jurídico-político pré-constituído, apenas lhes competindo garantir concretamente a sua vigência. Assim, o poder dos tribunais possui a característica da retroatividade, ou seja, atuam no sentido de reconstituir uma realidade normativa plenamente constituída. (SANTOS et al, 2009, on line)
1.1.1.24  
1.1.1.25                                O sistema de valores inerentes à função judiciária do Estado liberal é marcado pela ideologia da fidelidade à lei. A rígida delimitação da competência do sistema judicial – marcadamente distinta da competência administrativa e legislativa – reforça a imagem do juiz técnico, esterilizado politicamente e que faz da adjudicação um silogismo capaz de garantir, dogmaticamente, a certeza do Direito. Essa tipificação já foi chamada de “folclore judicial[1]”. A hermenêutica jurídica do Estado liberal, vale dizer, de uma concepção de Estado de Direito exclusivamente preocupada com a preservação da liberdade jurídica, “tinha uma orientação de bloqueio – interpretação de bloqueio – conforme princípios de legalidade e estrita legalidade como peças fundantes da constitucionalidade[2]”. O juiz liberal é aquele que circunscreve as atividades do Estado e as funções do próprio Judiciário. (CAMPILONGO, 1994, p. 123-124)
1.1.1.26  
1.1.1.27           O Poder Judiciário, no contexto liberal, é reativo, isto é, atua somente a partir de uma provocação das partes ou de outros setores do Estado e, por este motivo, a disponibilidade dos tribunais para a solução das lides mostra-se abstrata, somente se convertendo numa oferta concreta na medida em que ocorre uma procura social efetiva. De se destacar que os tribunais não devem exercer qualquer influência a respeito do tipo e do nível concretos da procura de que são alvo. (SANTOS et al, 2009, on line)
1.1.1.28           No liberalismo, o Poder Judiciário ocupa-se de litígios individualizados no duplo sentido de que têm contornos claramente definidos por critérios estritos de relevância jurídica e de que ocorrem entre indivíduos. De se destacar, ainda, que as decisões judiciais a respeito de tais conflitos de interesses somente possuem força, a priori, para aqueles que participam diretamente da lide, não tendo validade geral, sendo que na solução dos litígios prioriza-se o respeito do princípio da segurança jurídica, este calcado na generalidade e na universalidade da lei e na aplicação, idealmente automática, que ela possibilita. A insegurança substantiva do futuro é assim contornada, tanto pela estrita observância das regras de processo quanto pelo princípio da coisa julgada. (SANTOS et al, 2009, on line)
1.1.1.29           De se destacar, ainda, que no Estado liberal a independência dos tribunais reside em estarem total e exclusivamente submetidos ao império da lei. Tal forma de independência mostra-se como uma garantia eficaz da proteção da liberdade, entendida esta como vínculo negativo, ou seja, como prerrogativa de não-interferência. Nestes termos, a independência dos Tribunais diz respeito ao controle do processo decisório e, desta forma, ganha a possibilidade de coexistir com a dependência administrativa e financeira dos Tribunais face ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo. (SANTOS et al, 2009, on line)
1.1.1.30  
1.1.1.31                                Nesses quadros, a neutralização do Poder Judiciário transforma o sentido da aplicação do Direito. Antes encarava-se o Direito como uma expectativa ética de padrão de comportamento, predeterminado por valores-fins, donde o juízo como um ato da razão e a jurisdição como uma atividade decorrente da virtude da justiça: agora, o Direito é visto como um programa funcional, hipotético e condicional (se... então), donde uma certa automaticidade do julgamento, que se libera de complicados controles de finalidades de longo prazo e se reduz a controles diretos, caso a caso [...]. Só assim é possível lidar-se, no Judiciário do Estado de Direito burguês, com altos graus de insegurança concreta de uma forma suportável: a segurança abstrata, como valor jurídico, isto é, como certeza e isonomia, é diferida no tempo pela tipificação abstrata dos conteúdos normativos (generalidade da lei) e pela universalização dos destinatários (igualdade de todos perante a lei), aparecendo como condição ideologicamente suficiente para a superação das decepções concretas que as decisões judiciais trazem para as partes. (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 16)
1.1.1.32  
1.1.1.33                      Cumpre observar, entretanto, que o perfil da atuação do Poder Judiciário sofreu profundas modificações com o surgimento do welfare State, conforme destacamos a seguir.
1.1.1.34  
1.1.1.35 1.2. O Poder Judiciário no Estado social
1.1.1.36  
1.1.1.37 Após a Segunda Guerra Mundial surgiu nos países centrais uma nova forma de Estado, o social.
1.1.1.38 Neste novo modelo há uma predominância do Poder Executivo, circunstância que acarreta uma mudança na conformação da teoria da separação dos poderes. O Executivo passa a se utilizar de novos instrumentos jurídicos que entram em confronto com o âmbito judicial clássico, acarretando uma sobrejuridificação da realidade social, que põe fim à coerência e à unidade do sistema jurídico. Surge um caos normativo, que torna problemática a vigência do princípio da legalidade e impossível a aplicação da subsunção lógica”. (SANTOS et al, 2009, on line)
1.1.1.39  
1.1.1.40                                A passagem do Estado liberal para o Estado social revelará, constantemente, os limites da “ideologia da fidelidade à lei”. A “complicada convivência” do Estado de Direito com o chamado Estado de bem-estar social fica evidenciada pelo necessário recurso a novas categorias cognitivas da parte do intérprete. Caminha-se, assim, da hermenêutica de bloqueio para a hermenêutica de “legitimação de aspirações sociais” (cf. Tercio Sampaio Ferraz Jr.). A força persuasiva da ideologia do juiz subordinado à lei não se coaduna mais com a difusão de uma cultura sociológica que, geralmente de modo sutil, incorpora-se à tradição jurídica legalista. (CAMPILONGO, 1994, p. 124)
1.1.1.41  
1.1.1.42           O principal fator de distinção entre o modelo de Estado social e o modelo de Estado liberal é o forte componente promocional do bem-estar existente no primeiro, caminhando ao lado de uma acentuada tendência repressiva. A previsão constitucional dos direitos sociais e econômicos acarreta a “juridificação da justiça distributiva”. A concretização desta modalidade de direitos passa a exigir prestações positivas, sendo que o Estado traz para si a responsabilidade de gerir a tensão, que ele próprio cria, entre justiça social e igualdade formal; dessa gestão são incumbidos, ainda que de modo diferente, todos os órgãos e poderes do Estado. (SANTOS et al, 2009, on line)
1.1.1.43  
1.1.1.44                                No campo jurídico, o tribunal, tradicionalmente uma instância de julgamento e responsabilização do homem por seus atos, pelo que ele fez, passa a ser chamado para uma avaliação prospectiva e um “julgamento” do que ele é e poderá fazer. É nesse quadro de projeção do sentido do Direito para o futuro, para a sua realizabilidade mais do que para a sua consistência pré-constituída, que se há de entender o advento do chamado Estado do bem-estar-social.
1.1.1.45                             O crescimento do Estado social ou Estado do bem-estar-social reverteu alguns dos postulados básicos do Estado de Direito, a começar da separação entre Estado e sociedade, que propiciava uma correspondente liberação das estruturas jurídicas das estruturas sociais. Nessa concepção, a proteção da liberdade era sempre da liberdade individual enquanto liberdade negativa, de não impedimento, do que a neutralização do Judiciário era uma exigência conseqüente. O Estado social trouxe o problema da liberdade positiva, participativa, que não é um princípio a ser defendido, mas a ser realizado. Com a liberdade positiva, o direito à igualdade se transforma num direito a tornar-se igual nas condições de acesso à plena cidadania. Correspondentemente, os Poderes Executivo e Legislativo sofrem uma enorme expansão, pois deles se cobra a realização da cidadania social e não apenas a sustentação do seu contorno jurídico-formal. (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 18)
1.1.1.46  
1.1.1.47 Os direitos sociais, que se caracterizam como produtos típicos do welfare State, não são somente normativos, na forma de um a priori formal, mas têm um sentido promocional prospectivo, colocando-se como exigência de implementação. Tal circunstância modifica a função do Poder Judiciário, a quem, perante os direitos sociais ou sua violação, não cabe apenas julgar no sentido de estabelecer o certo e o errado com base na lei (responsabilidade condicional do juiz politicamente neutralizado), mas também e sobretudo examinar “se o exercício discricionário do poder de legislar conduz à concretização dos resultados objetivados (responsabilidade finalística do juiz que, de certa forma, o repolitiza)”. (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 18)
1.1.1.48 Devemos observar, neste ponto, que a extensa massificação social gerou uma sociedade de consumidores, onde constatamos a presença de um processo de produção massificada, comercialização massificada e consumo massificado, reduzindo quase todas as atividades humanas, da arte ao lazer, da ciência à cultura, a objetos de consumo, ou seja, a objetos descartáveis após o uso. Por esta razão, transformou-se a velha concepção dos direitos subjetivos como direitos individuais, uma vez que passaram a ser exigidas proteções coletivas – direitos coletivos – e até proteções impossíveis de ser individual ou coletivamente identificadas – direitos difusos. (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 18-19)
1.1.1.49  
1.1.1.50                                Em conseqüência, os litígios judiciais passam a admitir e a exigir novas formas de direito de ação (class action, ação civil pública). Altera-se, do mesmo modo, a posição do juiz, cuja neutralidade é afetada, ao ver-se ele posto diante de uma co-responsabilidade no sentido de uma exigência de ação corretiva de desvios na consecução das finalidades a serem atingidas por uma política legislativa. Tal responsabilidade, que, pela clássica divisão dos poderes, cabia exclusivamente ao Legislativo e ao Executivo, passa a ser imputada também à Justiça.
1.1.1.51                             Em suma, com base em condições sociopolíticas do século XIX, sustentou-se por muito tempo a neutralização política do Judiciário como conseqüência do princípio da divisão dos poderes. A transformação dessas condições, com o advento da sociedade tecnológica e do Estado social, parece desenvolver exigências no sentido de uma desneutralização, posto que o juiz é chamado a exercer uma função socioterapêutica[3], liberando-se do apertado condicionamento da estrita legalidade e da responsabilidade exclusivamente retrospectiva que ela impõe, obrigando-se a uma responsabilidade prospectiva, preocupada com a consecução de finalidades políticas das quais ele não mais se exime em nome do princípio da legalidade (dura lex sed lex). Não se trata, nessa transformação, de uma simples correção da literalidade da lei no caso concreto por meio de eqüidade ou da obrigatoriedade de, na aplicação contenciosa da lei, olhar os fins sociais a que ela se destina. A responsabilidade do Juiz alcança agora a responsabilidade pelo sucesso político das finalidades impostas aos demais poderes pelas exigências do Estado Social. Ou seja, como o Legislativo e o Executivo, o Judiciário torna-se responsável pela coerência de suas atitudes em conformidade com os projetos de mudança social, postulando-se que eventuais insucessos de suas decisões devam ser corrigidos pelo próprio processo judicial. (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 19)
1.1.1.52  
1.1.1.53 Atualmente, vivenciamos período marcado pela crise do Estado social, circunstância que enseja a necessidade de uma nova abordagem a respeito da missão do Poder Judiciário no âmbito da sociedade pós-moderna.
1.1.1.54  
1.1.1.55 1.3. O Poder Judiciário no Estado pós-social
1.1.1.56  
1.1.1.57           Já no final da década de 1970 e início da década de 1980 começaram a surgir nos países centrais os primeiros indicadores de uma crise do Estado social, crise esta que se prolonga até os dias atuais e se caracteriza, fundamentalmente, pela “incapacidade financeira do Estado para atender às despesas sempre crescentes da providência estatal, tendo presente o conhecido paradoxo de esta ser tanto mais necessária quanto piores são as condições para a financiar”. (SANTOS et al, 2009, on line)
1.1.1.58 Constatada esta realidade, a pergunta que se mostra pertinente é a seguinte: qual a influência da crise do Estado social no âmbito do Poder Judiciário?
Em primeiro plano, vale destacar as conseqüências da desregulamentação da economia. Com a consolidação do modelo neoliberal, foi ganhando importância na agenda política a idéia da desvinculação do Estado enquanto elemento regulador da economia. Depois de décadas de absoluto controle estatal, houve a necessidade de se promover uma nova produção legislativa tendente à desregulamentação da economia, acarretando, assim, uma nova sobrecarga legislativa. (SANTOS et al, 2009, on line)
De se observar, ainda, o surgimento do fenômeno da globalização econômica, assumindo, hoje, proporções sem precedentes, dando azo à emergência de um novo direito transnacional, trazendo mais um elemento complicador ao já alarmante caos normativo na medida em que este novo direito deve conviver com o direito nacional, ainda que em algumas situações mostrem-se contraditórios. Desta forma, surge um pluralismo jurídico de natureza transnacional. Esta nova característica do pluralismo jurídico é, simultaneamente, causa e conseqüência da erosão da soberania do Estado nacional que verificamos em nossos dias, trazendo consigo a erosão do protagonismo do Poder Judiciário na garantia do controle da legalidade. (SANTOS et al, 2009, on line)
No que diz respeito mais diretamente aos direitos fundamentais sociais, o problema que se põe, nesse momento de redefinição das funções do Estado, é o de se saber quais as correspondentes inovações no plano da atividade judicial. (CAMPILONGO, 1994, p. 124)
 
                                      Com a afirmação do Estado social, inúmeras expectativas materiais transformaram-se em autênticas pretensões jurídicas. No Brasil, especialmente ao longo da década de 80, tanto a Constituição de 1988 quanto a legislação infra-constitucional caminharam nessa mesma direção. Ainda que tardiamente, nem bem terminado o trabalho da Assembléia Nacional Constituinte, recrudesceu a discussão sobre a “crise do Estado” e, no seu bojo, o debate sobre a intervenção no domínio econômico, a carga tributária e, em última análise, a viabilidade do sistema compensatório e redistributivo nacional.
                                      Desformalização, deslegalização e desregulamentação são algumas das palavras de ordem desse momento de crise do Estado. Remanesce a impressão de que tanto o primado da norma geral e abstrata utilizada para a “interpretação bloqueio” quanto as normas programáticas, as políticas públicas e as regras promocionais instrumentalizadas para a “interpretação de legitimação” são inadequados para o enfrentamento de parte da nova seletividade do sistema jurídico. Os filtros restritivos da racionalidade formal e os inclusivos da racionalidade material são criticados exatamente por suas limitações na promoção dos ajustes entre uma sobrecarga de demandas sociais e um contexto de crescente escassez de recursos a serem distribuídos socialmente. Ora, é exatamente nesse momento de luta hobbesiana pela manutenção de nacos dos poucos recursos partilháveis que entram em cena novos critérios seletivos. Dentre eles, as várias estratégias desregulamentadoras vão facilitar, então, uma redistribuição despida de transparência e de imparcialidade. É esse o grande risco da racionalidade jurídica conjuntural.
                                      Ao combinar as hermenêuticas de bloqueio e legitimação com uma interpretação reflexiva – isto é, que espelhe a correlação de forças sociais, o momento econômico e a capacidade circunstancial de resposta do sistema político –, as práticas do Estado pós-social nada mais fazem do que calibrar, em função da escassez de recursos, as expectativas e pretensões jurídicas. Começam a ganhar corpo, no discurso jurídico, teses como a da “impossibilidade material” de aplicação do direito, da “ineficácia absoluta das decisões”, do “direito supralegal”. Dois aspectos podem ser ressaltados: primeiro, que esse esforço conceitual é produto da “crise do Estado”, das dificuldades de enfrentamento das questões jurídicas daí decorrentes, e das limitações dos instrumentos que a vulgata do formalismo jurídico coloca à disposição do exegeta; segundo, que a “flexibilização” do Direito provocada pela interpretação reflexiva multiplica a instabilidade interna do sistema normativo e a insegurança externa dos destinatários da regra jurídica. (CAMPILONGO, 1994, p. 124-125)
 
Diante deste quadro, o Poder Judiciário assume papel de profunda relevância. Existe uma tendência dos sistemas jurídicos contemporâneos voltada para a criação de novas técnicas de garantia de efetividade a sempre novos direitos vitais. Por esse motivo, mostra-se acertada a afirmação de que o progresso da democracia mede-se precisamente pela expansão dos direitos e pela sua afirmação em juízo. (CAMPILONGO, 1994, p. 125)
 
                                      A multiplicação de subsistemas jurídicos diferenciados e que rejeitam a intervenção do Direito estatal traz consigo uma perigosa arma de invalidação do Direito por meio de ameaças privadas. A universalização dos direitos sociais é trocada pelo favorecimento de setores sociais específicos. Se a ordem jurídica aspirar à supressão de seus vazios de eficácia, longe do caminho da regulação auto-referencial, poderá encontrar no resgate da norma jurídica um importante critério objetivo de redistribuição de direitos e de justiça social. Daí a importância, para a consolidação da democracia entre nós, da afirmação de um Judiciário sintonizado com as características do seu tempo. (CAMPILONGO, 1994, p. 124-125)
 
Dentro desta perspectiva, importante se mostra uma análise mais detida a respeito da atuação do Poder Judiciário nos países periféricos, onde a necessidade imperiosa da concretização dos direitos fundamentais, sobretudo os de segunda dimensão, mostra-se ainda mais evidente quando em comparação com a realidade dos países centrais.
 
2. O Poder Judiciário e a efetivação dos direitos fundamentais nos países de modernidade tardia
 
                  A análise da atuação do Poder Judiciário no âmbito dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento (países de modernidade tardia), deve tomar em consideração fatores distintos daqueles utilizados para a mesma espécie de análise quando o objeto de estudo são os países centrais.
O nível de desenvolvimento econômico e social afeta o desempenho dos tribunais por duas vias principais.
Em primeiro plano, temos que o nível de desenvolvimento afeta a modalidade e o grau de litigiosidade social e, portanto, de litigiosidade judicial. Inegável a constatação de que uma sociedade rural, marcada por uma economia de subsistência, não gera o mesmo tipo de litígio que uma sociedade fortemente urbanizada e com uma economia desenvolvida. De se destacar, ainda, que os sistemas políticos nos países de modernidade tardia têm sido, em geral, muito instáveis, com períodos mais ou menos longos de ditadura alternados com períodos mais ou menos curtos de democracia de baixa intensidade. Tal circunstância acarreta forte impacto no âmbito da função judicial. (SANTOS et al, 2009, on line)
Tomando em conta a inter-relação entre a função judicial e o sistema político, temos que os três períodos anteriormente abordados não se adequam de forma exata às trajetórias históricas dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento.
 
                                      Durante o período liberal, muitos desses países eram colônias e continuaram a sê-lo por muito tempo (os países africanos); outros só então conquistaram a independência (os países latino-americanos). Por outro lado, o Estado providência é um fenômeno político exclusivo dos países centrais. As sociedades periféricas e semi-periféricas caracterizam-se em geral por chocantes desigualdades sociais que mal são mitigadas pelos direitos sociais e econômicos, os quais, ou não existem, ou, se existem, têm uma deficientíssima aplicação. Aliás, os próprios direitos da primeira geração, os direitos cívicos e políticos, têm uma vigência precária, fruto da grande instabilidade política em que têm vivido esses países, preenchida com longos períodos de ditadura. (SANTOS et al, 2009, on line
 
A precariedade dos direitos revela-se como conseqüência direta da fragilidade do regime democrático, e, desta forma, o tema relativo à independência dos tribunais se coloca de forma diversa nos países da periferia e nos países centrais. Nestes últimos, os três períodos correspondem a três tipos de prática democrática desenvolvidos em um ambiente de estabilidade, o que não ocorreu nos países periféricos, que viveram, nos últimos cento e cinqüenta anos, longos períodos de ditadura. (SANTOS et al, 2009, on line).
 
                            A independência, segundo a matriz liberal, dominante no primeiro período, é atribuída aos tribunais na exata medida em que estes são politicamente neutralizados por uma rede de dependências de que destacamos três: o princípio da legalidade que conduz à subsunção lógico-formal confinada à microlitigação; o caráter reativo dos tribunais que os torna dependentes da procura dos cidadãos; e a dependência orçamental e administrativa em relação ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo. Ora, é este o tipo de independência que domina nos países periféricos e semi-periféricos até os nossos dias e talvez só agora esteja a ser confrontado com os tipos mais avançados de independência.
                                      [...]
                                      Como se compreende, as situações variam enormemente de país para país. No que respeita ao caso que mais nos interessa, o dos países semi-periféricos, a consolidação dos direitos cívicos e políticos é muito superior à dos direitos da segunda ou da terceira geração. Essa discrepância é fundamental para compreender o desempenho judicial nesses países e as vicissitudes da luta pela independência face aos outros poderes.
                                      Nesses países que passaram por processos de transição democrática nas três últimas décadas, os tribunais só muito lenta e fragmentariamente têm vindo a assumir a sua co-responsabilidade política na atuação providencial do Estado. A distância entre a Constituição e o direito ordinário é, nesses países, enorme, e os tribunais têm sido, em geral, tíbios em tentar encurtá-la. Os fatores dessa tibieza são muitos e variam de país para país. Entre eles podemos contar, sem qualquer ordem de precedência: o conservadorismo dos magistrados, incubado em faculdades de Direito intelectualmente anquilosadas, dominadas por concepções retrógradas da relação entre Direito e sociedade; o desempenho rotinizado assente na justiça retributiva, politicamente hostil à justiça distributiva e tecnicamente despreparado para ela; uma cultura jurídica “cínica” que não leva a sério a garantia dos direitos, caldeada em largos períodos de convivência ou cumplicidade com maciças violações dos direitos constitucionalmente consagrados, inclinada a ver neles simples declarações programáticas, mais ou menos utópicas; uma organização judiciária deficiente com carências enormes tanto em recursos humanos como em recursos técnicos e materiais; um Poder Judicial tutelado por um Poder Executivo, hostil à garantia dos direitos ou sem meios orçamentais para a levar a cabo; a ausência de opinião pública forte e de movimentos sociais organizados para a defesa dos direitos; um direito processual hostil e antiquado. (SANTOS et al, 2009, on line)
 
Tal constatação não impede o reconhecimento de que, no Brasil, desde a década de 1980, alguns membros do Poder Judiciário assumiram uma postura mais ativa e agressiva na defesa dos direitos fundamentais. Esta nova forma de interpretar o ordenamento jurídico mostra-se mais presente entre os juízes de primeira instância, ou seja, entre os que estão mais próximos das flagrantes discrepâncias entre igualdade formal e justiça social, que criaram uma corrente jurisprudencial assente na constitucionalização do direito ordinário e orientada para uma tutela mais efetiva dos direitos, valendo destacar as questões inerentes aos direitos fundamentais de segunda dimensão, os sociais. (SANTOS et al, 2009, on line)
1.1.1.59  
1.1.1.60 3. Direitos sociais e políticas públicas
Sobretudo nos países periféricos, a busca da defesa e, mais do que isso, da construção de um legítimo Estado Democrático de Direito, passa por uma atuação marcante e eficaz no que tange às discussões em torno das políticas públicas concernentes às áreas que são relevantes para a garantia da cidadania.
Dentro deste panorama, tal atuação deve se mostrar presente tanto no que diz respeito à formulaçãoquanto na busca do efetivo cumprimento das políticas públicas.
Referidas formas de participação passam, em primeiro plano, pelo conhecimento da realidade de cada um dos Municípios, Estados e da União no que concerne ao atendimento aos direitos sociais, buscando, em conjunto com os Poderes Executivo e Legislativo, Conselhos de Gestão e sociedade civil organizada, definir prioridades a fim de que eventuais falhas nesse atendimento sejam devidamente corrigidas, indicando a melhor forma de fazer com que os orçamentos públicos contemplem recursos suficientes para tanto.
Neste ponto, deve-se abordar o problema concernente aos instrumentos que podem ser colocados à disposição do operador do direito para que, de maneira eficaz, possa atuar no campo dos debates e formulação das políticas públicas, gerando instrumentos capazes de ensejar, na hipótese de descumprimento, a busca da tutela jurisdicional dos direitos sociais.
É importante observar que o campo de discricionariedade do Chefe do Poder Executivo no que tange ao cumprimento das políticas públicas é bastante amplo, sobretudo diante do fato de que o orçamento, atualmente, não possui natureza impositiva.
De se questionar, portanto, até que ponto, depois de esgotadas outras instâncias (de natureza política e administrativa), pode-se buscar a tutela jurisdicional visando o cumprimento das políticas públicas.
Tradicionalmente, o próprio Poder Executivo, por meio do planejamento de suas estratégias de atuação, é quem elabora as políticas públicas.
Atualmente, porém, o Executivo muito tem se auxiliado das atividades dos chamados Conselhos de Gestão no que diz respeito à elaboração das políticas públicas, sobretudo nas áreas da saúde, crianças e adolescentes, educação e assistência social. Tais Conselhos, que contam com a participação de diversos segmentos da sociedade (poder público, entidades de classe, associações, clubes de serviço, etc.), contribuem para o diagnóstico das prioridades do ente público nas áreas correspondentes aos direitos sociais, formulando projetos, encaminhando sugestões e requerimentos ao referido Poder no sentido de que sejam implementados.
Também o Poder Legislativo, por meio das atividades de seus membros, sobretudo na elaboração e votação de projetos de leis (mormente de natureza orçamentária), possui papel fundamental na elaboração de tal modalidade de políticas.
A sociedade civil organizada, em especial as instituições que atuam no chamado “terceiro setor”, também colaboram no encaminhamento de diversas questões inerentes aos direitos sociais, promovendo gestões a respeito do tema junto aos órgãos do Poder Executivo e demonstrando quais as prioridades a serem implementadas em suas respectivas áreas de atuação.
É importante notar que no campo das políticas públicas a questão orçamentária revela-se como de especial relevância posto que todo e qualquer projeto a ser desenvolvido pela Administração demanda investimento.
Neste ponto, vale acentuar a necessidade de que todos os envolvidos na elaboração e cumprimento das políticas públicas tenham como ponto de partida o conhecimento da forma pela qual o orçamento é elaborado e executado. É de extrema importância compreender o papel da Lei Orçamentária Anual (LOA), do Plano Plurianual (PPA) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) posto que desempenham funções relevantes na definição e priorização das ações governamentais. De se destacar, aqui, que sem uma correta compreensão do funcionamento do ciclo orçamentário toda e qualquer discussão em torno da elaboração e cumprimento das políticas públicas tende a se revelar absolutamente inócua, posto que dificilmente serão implementadas sem recursos para tanto.
Ao cuidar do que denomina “questões de justiça”, José Reinaldo de Lima Lopes indica que, entre as espécies de conflitos que estão emergindo com maior freqüência e intensidade nos últimos anos, vindo a desaguar em controvérsias judiciais, estão as exigências de políticas públicas. Tais exigências, segundo referido autor, partem:
 
                                      [...] de grupos organizados que reivindicam benefícios sociais ou individuais coletivamente fruíveis (saúde, moradia, educação, transporte, etc.). Nestes casos, a solução natural não é um ato de adjudicação (típico do Judiciário), mas uma política pública. Trata-se de uma solução que requer não apenas um reconhecimento de um direito subjetivo e de um dar/entregar ou obrigar a dar/entregar alguma coisa ou alguma quantia de dinheiro, mas um fazer ou prover um serviço público (contínuo, ininterrupto, impessoal, etc.). Serviços públicos exigem meios: receita para seu custeio, pessoal e material para uma execução, poder ou competência para sua efetividade (desapropriação, policiamento, fiscalização, regulação administrativa, resoluções, etc.). Tais conflitos encontram no Judiciário um canal para sua visibilidade, para se criar impasses que obriguem a negociações: evitaram que demandas básicas levassem a revoltas populares contínuas. (LOPES, 1994, p. 24)
 
A possibilidade de se buscar no Poder Judiciário provimento voltado para a efetiva implementação de políticas públicas, sobretudo daquelas relacionadas à concretização dos direitos sociais, traz ao foco de discussão uma forma de administração do que se pode denominar “justiça distributiva”.
Continuando a abordagem anteriormente mencionada, José Reinaldo de Lima Lopes explica que:
 
                                      Os temas que têm chegado ao Judiciário são predominantemente de justiça distributiva.
                                      [...]
                                      Aqui está uma das dificuldades enfrentadas pelo Judiciário hoje: a discussão judicial, a discussão política, faz-se ainda sob o signo do confronto de vontades, de interesses, de atores individualizados (mesmo que os atores sejam sindicatos, corporações). Uma política pública (uma política industrial, um regime de importações, uma política educacional, um plano de estabilização monetária) não pode ser compreendida se não em referência plurilateral, e às disputas em torno de um bem comum que não é o interesse do Estado, nem da maioria, nem dos mais ruidosos detentores de espaços privilegiados nos meios de comunicação. Neste sentido, chegam ao Judiciário, como fórum de discussão pública, questões que o sistema representativo brasileiro e a sociedade não têm conseguido resolver. (LOPES, 1994, p. 27 seq.)
 
Dentro desta perspectiva e considerando que as políticas públicas revelam-se instrumentos diretamente relacionados à proteção dos direitos fundamentais, passaremos a abordar a questão concernente à possibilidade de se reivindicar a tutela jurisdicional dos direitos sociais.
 
4. Tutela jurisdicional dos direitos sociais
 
Tomando como ponto de partida o fato de que a efetiva implementação dos direitos sociais demanda a elaboração e o cumprimento de políticas públicas e, além disso, a circunstância de que a previsão orçamentária de recursos para tanto se revela absolutamente imprescindível, mostra-se necessária a discussão em torno da possibilidade do Chefe do Poder Executivo ser compelido, por força de decisão judicial, a dar cumprimento às “políticas públicas constitucionais vinculativas”.
1.1.1.61  
1.1.1.62 A atuação administrativa está sujeita a dois limites essenciais, quais sejam, o interesse público e a legalidade. Necessário o Judiciário observar a lei não apenas formalmente, mas também a observar substancialmente, nos seus direcionamentos. Daí as afirmações de que a razoabilidade / proporcionalidade podem ser vistas como desdobramentos da legalidade, chamada legalidade substancial. Em outros termos, através do princípio da proporcionalidade / razoabilidade, modernamente concebe-se a cláusula do devido processo legal, no seu sentido substancial, como um mecanismo de controle axiológico da atuação do Estado e seus agentes. Por isso constitui instrumento típico do Estado Democrático de Direito, de modo a impedir toda restrição ilegítima aos direitos de qualquer homem sem um processo previamente estabelecido e com possibilidade de ampla participação. Os atos administrativos só estarão cumprindo a lei se realmente se mantiverem dentro dos padrões da razoabilidade e proporcionalidade. Se não se mantiverem, esses atos serão ilegais, não estarão realizando os objetivos da lei. Mesmo que formalmente aparentem legalidade, serão ilegais se não tiverem se mantendo dentro dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Há também na doutrina alemã a expressão “proibição do excesso” que para muitos é sinônima desses princípios. Desta forma, em determinadas situações é possível um controle da discricionariedade administrativa, como no caso de implementação de políticas públicas, desde que se tratem de políticas públicas específicas, socialmente necessárias e constitucionalmente exigidas. (AUTRAN, 2009, on line)
 
Na lição de Cláudia Maria da Costa Gonçalves:
 
                                      Analisar a possibilidade de se reivindicar direitos fundamentais sociais, diretamente a partir da dicção ou da normatividade constitucional, é matéria que desafia uma série de obstáculos. Dentre eles, ressaltam-se: o Judiciário não é o gestor do orçamento geral das entidades federadas e, por conseguinte, em um só processo não se pode discutir e ter a visão global dos quadros de receitas e despesas públicas; por outro lado, o Judiciário, considerando-se o regime constitucional democrático – pluralista, não pode, em igual medida, ser o idealizador solitário das políticas sociais. A isso cabe agregar, em suma, que a função judicante não tem competência para, de maneira ampla, definir o conjunto das políticas públicas. [...] Mas que fique registrado. Se o Judiciário não pode formular e executar políticas sociais, pode, contudo, controlá-las sob o prisma constitucional, especialmente no que tange ao núcleo dos direitos fundamentais. É dizer-se: alguns direitos fundamentais sociais podem ser reivindicados em juízo, sem que isso afronte qualquer estrutura de competência constitucional ou cerceie os pilares da democracia pluralista. (GONÇALVES, 2006, p. 216 seq.)
 
Dentro deste quadro, questiona-se, portanto, até que ponto, depois de esgotadas outras instâncias (de natureza política e administrativa), pode-se buscar a tutela jurisdicional visando a implementação dos direitos sociais, sem que a intervenção do Poder Judiciário neste campo venha a se caracterizar como afronta à divisão e independência dos poderes que constituem o Estado Democrático de Direito.
 
                                      Preparado somente para lidar com questões rotineiras e triviais, nos planos cível, comercial, penal, trabalhista, tributário e administrativo, por tratar o sistema jurídico com um rigor lógico-formal tão-intenso que inibe os magistrados de adotar soluções fundadas em critérios de racionalidade substantiva, o Judiciário se revela tradicionalmente hesitante diante das situações não-rotineiras; hesitação essa que tende a aumentar à medida que, obrigados a interpretar e aplicar os direitos humanos e sociais estabelecidos pela Constituição, os juízes enfrentam o desafio de definir o sentido e o conteúdo das normas programáticas que expressam tais direitos ou considerar como não-vinculante um dos núcleos centrais do próprio texto constitucional. É aí, justamente, que se percebe como os direitos humanos e sociais, apesar de cantados em prosa e verso pelos defensores dos paradigmas jurídicos de natureza normativa e formalista, nem sempre são tornados efetivos por uma Justiça burocraticamente inepta, administrativamente superada e processualmente superada; uma Justiça ineficiente diante dos novos tipos de conflito – principalmente os “conflitos-limite” para a manutenção da integridade social; ou seja, os conflitos de caráter inter-grupal, inter-comunitário e inter-classista; uma Justiça que, revelando-se incapaz de assegurar a efetividade dos direitos humanos e sociais, na prática acaba sendo conivente com sua sistemática violação. É aí, igualmente, que se constata o enorme fosso entre os problemas socioeconômicos e as leis em vigor.
                                      Trata-se do fosso revelado pela crônica incapacidade dos tribunais de aplicar normas de caráter social ou de alargar seu enunciado por via de uma interpretação praeter legem, com finalidade de fazer valer os direitos mais elementares dos cidadãos situados abaixo da linha de pobreza. (FARIA, 1994, p. 50)
 
Caminhando pelo tema ora proposto, mostra-se importante ressaltar o conceito de reserva do possível, oriundo do direito alemão, fruto de uma decisão da Corte Constitucional daquele país, em que ficou assente que a construção de direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição da disponibilidade dos respectivos recursos. Neste sentido, a disponibilidade desses recursos estaria localizada no campo discricionário das decisões políticas, através da composição dos orçamentos públicos. (SCAFF, 2005, p. 219)
1.1.1.63  
1.1.1.64 Nos países periféricos onde a situação socioeconômica acarreta amplas desigualdades sociais, com déficits de condição econômica para grande parte da população, há de haver uma estreita vinculação entre a teoria do mínimo existencial (status positivus libertatis) e os direitos fundamentais sociais.
1.1.1.65 A aplicação dos direitos fundamentais sociais decorre da necessidade de dotar esta parcela da população excluída dos patamares mínimos de condições para o exercício de suas capacidades (Amartya Sen), ou, por outras palavras, de condições para realizar a liberdade real a fim de poder gozar da liberdade jurídica (Robert Alexy). Sem tais condições reais (fáticas) para o exercício da liberdade jurídica, esta se tornará letra morta.
1.1.1.66 A teoria da “reserva do possível” é condicionada pelas disponibilidades orçamentárias, porém os legisladores não possuem ampla liberdade de conformação, pois estão vinculados ao princípio da supremacia constitucional, devendo implementar os objetivos estabelecidos na Constituição de 1988, que se encontram no art. 3º, dentre outras normas-objetivo. Esta teoria somente pode ser argüida quando for comprovado que os recursos públicos estão sendo utilizados de forma proporcional aos problemas enfrentados pela parcela da população que não puder exercer sua liberdade jurídica, e de modo progressivo no tempo, em face de não conseguir a liberdade real necessária para tanto (Robert Alexy), ou não puder exercer suas capacidades para exercer tais liberdades (Amartya Sen).
1.1.1.67 Tal procedimento não implica judicialização da política ou ativismo judicial, pois se trata apenas de aplicação da Constituição brasileira. (SCAFF, 2005, p. 226)
 
Assim, sempre que junto ao Poder Judiciário for deduzida pretensão relacionada à efetiva implementação de políticas públicas “específicas, socialmente necessárias e constitucionalmente exigidas”, nos dizeres de Marcos Felipe Holmes Autran, o Poder Judiciário deverá marcar o seu papel de efetivo garantidor dos direitos sociais, não deixando ao desamparo o cidadão.
 
                                      Alguns paradigmas que antes serviam de escudo à isenção do Poder Judiciário, sobretudo em fases caracteristicamente marcadas pelo liberalismo e pela ideologia burguesa, hoje, tornam-se empecilhos à realização da justiça. Eram seus paradigmas: a distância política do magistrado; a tripartição estática de poderes; o julgamento cego conforme a lei; o formalismo procedimental; a eqüidistância dos juízes das partes; o impedimento de produção de provas pelo juiz, característico do chamado processo inquisitivo, entre outros. Tem-se, portanto, que considerar a necessidade de re-adequação do Poder Judiciário, para o cumprimento de suas metas, às necessidades imediata e gritantemente presentes no sentido da politização de suas funções, algo que, na prática, por vezes, já ocorre, mas que, em teoria, ainda parece ser uma idéia inaceitável. (BITTAR, 2005, p. 311)
 
Analisando a possibilidade da tutela jurisdicional dos direitos sociais à luz do conceito de direitos prestacionais e da doutrina da reserva do possível, Flávio Dino de Castro e Costa desenvolve o seguinte raciocínio, bastante esclarecedor:
 
                                      A reserva do possível (uma leitura em países periféricos):
                                      Suponhamos que um juiz aquiesça aos convites para adotar uma postura de “ativismo judicial", construa uma identidade mais livre dos padrões normativistas e se convença, em determinado caso, de que a discricionariedade pode ser afastada de modo consistente. [...] Caso se trate de impor uma abstenção à autoridade administrativa normalmente não se apresentam outras dificuldades. Contudo, quando se cuida de determinar o cumprimento de um direito prestacional ergue-se a limitação à “reserva do possível”.
                                      Segundo tal doutrina, há um limite fático ao exercício dos direitos sociais prestacionais, concernente à disponibilidade material e jurídica de recursos financeiros necessários ao adimplemento da obrigação. Demais disso, a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável.
                                      Não discordo dessas teses se, por exemplo, cogitarmos de uma decisão judicial, proferida em uma ação civil pública, que – em nome do direito à moradia previsto no art. 6º da Constituição – determina ao Governo Federal a construção de dois milhões de casas no espaço de um ano. A mobilização de recursos financeiros para tanto implicaria um impacto orçamentário não previsto nem previsível, de grande monta, resultando provavelmente no cancelamento de outras políticas referentes à concretização de outros direitos igualmente fundamentais.
                                      Todavia, na trilha do que defende Andreas J. Krell, entendo que “a discussão européia sobre os limites do Estado social, a redução de suas prestações e a contenção dos respectivos direitos subjetivos não pode absolutamente ser transferida para o Brasil, onde o Estado providência nunca foi implantado”. Assim, a reserva do possível é um limite realmente existente, mas que não deve ser visto no Brasil do mesmo modo que nos países centrais, os quais possuem distribuição de renda menos assimétrica, políticas públicas mais universalizadas e controles sociais (não-jurisdicionais) mais efetivos.
                                      Em conseqüência, a margem de manobra do Judiciário, no exercício do controle em exame, é bem mais larga no nosso país (sem que evidentemente seja absoluta). Dois parâmetros devem ser observados na atividade judicial nesse âmbito, quais sejam, a garantia de um “padrão mínimo social” aos cidadãos e o razoável impacto da decisão sobre os orçamentos públicos. Em nome do citado “padrão mínimo social”, os juízes não devem hesitar em inclusive determinar a realização de obras públicas, quando isso se revelar imprescindível e factível. Quanto ao impacto no orçamento público, a razoabilidade deve ser demonstrada à luz do caso concretamente analisado, podendo ser adotadas saídas criativas, como a fixação de prazos flexíveis e compatíveis com o processo de elaboração orçamentária. O que é fundamental é não ignorar este aspecto, sob pena de a decisão ser frágil e condenada à cassação ou à inexecução. Por outro lado, os aspectos orçamentários relativos aos direitos prestacionais não devem ser mitificados, transformados em uma “esfera sagrada”, pois não é assim quando o Judiciário declara a inconstitucionalidade de tributos e frustra parcelas expressivas das receitas públicas, em favor – do ponto de vista imediato – de setores socialmente mais fortes. Com efeito, em tais casos nunca se cogitou de o Judiciário decidir de outro modo em nome da reserva do possível. [...] Verificamos então que aquilo que é possível ao Judiciário fazer, em sociedades com nível mais alto de implementação de direitos, é menos do que em países em situação oposta, como o Brasil – em que a meta de um “padrão social mínimo” exige que os juízes façam mais. (COSTA, 2006, on line)
 
Ao Poder Judiciário caberá não se afastar dos superiores interesses sociais, mostrando-se aberto às decisões que repercutirão de maneira relevante no cotidiano do cidadão, deixando no passado concepções doutrinárias e jurisprudenciais que hoje se mostram despidas da realidade a que o juiz deve estar atento quando julga e, assim, decide os caminhos que serão trilhados pela sociedade.
 
                                      Se é certo que o Judiciário não fez muito para implementar os direitos humanos e sociais conseguidos pela Constituição de 1988, há que se valorizar o “pouco” que realizou. Obrigados a enfrentar o desafio de ajustar sua função judicante a uma sociedade em mudança e em crise, os segmentos sociais mais jovens da magistratura, situados na primeira instância dos tribunais, têm alguma consciência de que o crescimento econômico do país não levou ao que deveria ter sido um de seus resultados mais importantes – uma sociedade equilibrada, integrada, harmoniosa e solidária. Embora não concentrem necessariamente sua atenção no problema da efetivação dos direitos humanos e sociais, alguns juízes de primeira instância estão provocando certas mudanças no funcionamento da Justiça. Ainda que de modo nem sempre consciente, vêm contribuindo para ampliar o campo de atuação judicial dos movimentos sociais e dos grupos de assessoria jurídica popular. São mudanças de caráter processual, permitindo a tais movimentos jurídicos provocar decisões baseadas em critérios de racionalidade material e bloquear sentenças ditadas exclusivamente com base em critérios lógico-formais. (FARIA, 1994, p. 52)
 
Dentre as mudanças necessárias para que o Poder Judiciário mostre-se mais aberto à possibilidade da tutela dos direitos sociais, José Eduardo Faria cita três que, ao nosso ver, merecem destaque no âmbito do presente texto:
 
                                      Eis algumas mudanças, cujo alcance ainda precisa ser melhor analisado e compreendido:
                                      - conscientes de que em toda interpretação sempre há algum grau de discricionariedade e, portanto, de criatividade, alguns magistrados convenceram-se de que dispõem hoje de um poder normativo superior ao que detinham no passado recente, em face das “zonas cinzentas” representadas pelas antinomias, pelas lacunas e pelas “cadeias normativas” de uma ordem jurídico-positiva recheada de conceitos polissêmicos e de normas que, intercruzando-se, adquirem sentidos inéditos;
[...]
                                      - a abstração normativa, tão valorizada pelos métodos exegéticos que dominaram o cenário judicial brasileiro até o final dos anos 80, começa agora a dar lugar à tópica e à teoria da argumentação, como estratégia de superação do dedutivismo lógico-formal, e à teoria da concreção, como critério de decidibilidade; a uma hermenêutica crítica, que não concentra sua atenção nas respostas, mas sim nas indagações que deram origens aos problemas que dependem de sentenças judiciais e que parte das distorções estruturais existentes na vida material, afirmando que só pela crítica ideológica é que se conseguirá depurar o direito de seus condicionamentos socioeconômicos implícitos;
                                      - o formalismo tem sido temperado por algumas atitudes pragmáticas, que permitem a certos juízes posicionar-se diante das normas promulgadas, porém não regulamentadas – como é o caso de certos direitos humanos e sociais assegurados pela Constituição –, mas que são letra morta por não terem sido objeto de leis complementares; [...]. (FARIA, 1994, p. 52 seq.)
 
Ainda com José Eduardo Faria:
 
                                      Se toda a corporação judicial não renovar a sua cultura técnico-profissional, permanecendo atrelada a uma visão de mundo liberal-clássica sem compreender que quanto mais programáticas forem as normas dos direitos sociais maior é o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciais, o Judiciário corre o sério risco de ver a ordem jurídico-positiva fragmentada e despedaçada por uma sociedade dividida, contraditória e explosiva; uma sociedade que, nos segmentos mais desfavorecidos, não tem achado socorro tanto na Constituição quanto na imensa profusão de leis e códigos em vigor. [...] Se o Judiciário não souber despertar para a realidade social, política e econômica do país, aprendendo a lidar com os conflitos grupais, comunitários e classistas nela subjacentes, mais cedo do que se imagina poderá passar a ser considerado uma instituição irrelevante ou até mesmo “descartável”, por parte da sociedade. O grau de descartabilidade corresponderá, nesse caso, ao grau de fraqueza do Estado de Direito tão arduamente conquistado. (FARIA, 1994, p. 56 seq.)           
 
Citando, uma vez mais, Flávio Dino de Castro e Costa, “os juízes não podem tudo, nem devem poder. Mas podem muito, e devem exercer esse poder em favor da grandiosa e inesgotável utopia de construção da felicidade de cada um e de todos”. (COSTA, 2006, on line)
 
Considerações Finais
 
A conquista da cidadania plena passa, sem dúvida, pela compreensão de que os direitos proclamados no texto constitucional devem pautar o exercício do poder que, em um Estado Democrático de Direito, emana do povo e é regulamentado pelo ordenamento jurídico.
Os limites relativos às esferas de atuação dos três poderes do Estado, que existem e devem ser respeitados, não podem impedir que o Poder Judiciário, guardião maior da integridade do direito posto, atue em consonância com o que o texto constitucional e demais diplomas legais lhe permitem.
No caso brasileiro, os magistrados, desde o juiz da mais distante e pequena das Comarcas até o presidente da mais alta das Cortes de Justiça, devem ter em conta que os dispositivos da Constituição Federal em vigor que tratam dos direitos sociais não se afiguram como meras declarações de vontade, de natureza estritamente programática, despidas de força normativa capaz de garantir a sua efetiva implementação por intermédio da atividade jurisdicional.
Respeitados os limites impostos pela razoabilidade da aplicação dos recursos provenientes dos orçamentos, o Poder Judiciário deve se atentar para o fato de que garantir ao povo os direitos, consagrados constitucionalmente, à saúde e à educação, por exemplo, não se afigura como atividade que ultrapassa os limites da parcela de poder que lhe foi outorgado pelo contrato social vigente.
O Poder Judiciário deve considerar que sua atuação visando garantir a efetivação dos direitos sociais em nada interfere nas esferas de atribuições dos Poderes Executivo e Legislativo, mas sim corresponde à aplicação das regras constitucionais e infra-constitucionais inerentes ao tema, atividade esta que, à toda evidência, corresponde ao poder de dizer o direito no caso concreto, finalidade precípua de todos aqueles investidos nos cargos da magistratura.
Uma última consideração deve ser feita, sobretudo em tempos como estes onde uma evidente crise de representatividade assola tanto o Executivo quanto o Legislativo: o Judiciário deve se mostrar disposto a evoluir no campo da efetivação dos direitos fundamentais, procurando cumprir o papel que o texto constitucional lhe atribui, exercendo com retidão a parcela do poder estatal que lhe é outorgada pelo povo, sob pena de, a exemplo do que se verifica atualmente com os outros dois Poderes, passar a ser fortemente questionado pelos cidadãos acerca de sua verdadeira função no âmbito da sociedade, se a de garantir privilégios a uma minoria ou de concretizar direitos em prol da maioria.
     
  
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
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[1] A expressão é de Giorgio Rebuffa. La funzione giudiziaria. Torino: Giappichelli, 1988, p. 145.
[2] A citação é de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Aplicabilidade e interpretação das normas constitucionais. In: Interpretação e Estudos da Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1990, p. 12.
[3] Na esteira deste entendimento: “O papel inovador do juiz estaria, portanto, não na política, mas na reestruturação do tecido da sociabilidade, especialmente nos ‘pontos quentes’, como os do menor, das drogas e da exclusão social em geral. Nesses lugares socialmente estratégicos, o juiz procederia como o engenheiro e o terapeuta social, comportando-se como foco de irradiação da democracia deliberativa, e vindo a desempenhar uma função essencial na explicitação de um sentido do direito, que não se encontraria mais referido a uma ordem ideal de onde, por reflexo, deveria provir”. (VIANNA, 1999, p. 27)
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