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Resumo:
A vítima detém longa trajetória na qual ocupou posições diversas em razão de acontecimentos históricos. Devido ao aprimoramento dos estudos, originou-se a criação da Vitimologia, ciência de autonomia questionada, intencionando a análise das vítimas.
Texto enviado ao JurisWay em 07/07/2018.
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Vitimologia no processo penal sob a ótica dos Direitos Humanos
Autora: Angélica Soares Niza; Acadêmica do 9° período do curso de Direito no CEULJI. E-mail: angelicapity@hotmail.com;
Professor orientador: Marcos Antônio Duarte Silva; Doutorando em Ciência Criminal; Mestre em Filosofia do Direito e do Estado (PUC/SP); Especialista em Direito Penal e Processual Penal; Graduado em Direito e Teologia; Docente na Ulbra/ Ji-Paraná/RO, professor titular de Direito Penal e Criminologia; pesquisador da CNPq e da PUC/SP.
Resumo: A vítima detém longa trajetória na qual ocupou posições diversas em razão de acontecimentos históricos. Devido ao aprimoramento dos estudos, originou-se a criação da Vitimologia, ciência de autonomia questionada, intencionando a análise das vítimas. Quando de seu surgimento, analisava o ofendido conjuntamente ao ofensor, sendo entendida como meio para a prática do delito. Não detinha assídua participação na persecução penal do delito em que sofrera, figurando como mero informante. Hodiernamente, denota-se a interação entre a Vitimologia e Direitos Humanos, conferindo às vítimas maiores prerrogativas decorrentes à compreensão como sujeito de direitos, tendo por consequência maior e efetiva participação no processo, bem como meios reparatórios aos danos suportados. Em razão dessa perspectiva, intenciona-se averiguar neste trabalho a respeito da presença dos ideais vitimológicos no Ordenamento Jurídico Brasileiro e a real efetivação destes, haja vista a nítida descrença da sociedade brasileira frente às instâncias formais, demonstrada na entoada frase popular Direitos Humanos só servem para defender bandido.
Palavras-chave: Vitimologia. Direitos. Humanos. Processo. Penal.
Abstract: The victim has long held many statuses over time due to historic events. Thanks to improvements in research, Victimology was created, a science whose autonomy is much debated, and it meant to analyze victims. At the time of its conceiving, it analyzed both the offender and the offended all together, the latter being perceived as a means for the practice of a crime. Victims had no active participation in criminal persecution of the undergone offenses, then, acting as but mere informants. Nowadays, the interaction between Victimology and Human Rights is visible, which grants the victims with major prerogatives, resulting in the understanding of their condition as legal subjects, and leading to a greater and effective participation in the process, as well as to means to repair the harms endured. Because of this perspective, this works intends to investigate the presence of the victimological ideals in the Brazilian Legal System and their real effectiveness, given the clear disbelief by the Brazilian society towards the formal instances, which can be drawn from the common saying “Human Rights are only useful to those who break the law”.
Keywords: Victimology. Human. Rights. Criminal. Process.
Introdução
O tema pesquisado tem como findo a busca de uma análise da sistemática empregada pelo Estado no trato com as vítimas de crimes, lembrando ser do ente exposto a obrigação de zelar pela segurança de todos os cidadãos.
Em linhas gerais, o agrupamento de seres humanos mantendo mútua relação uns para com os outros constitui a sociedade. Mencionada interação mostra-se de grande valia para o desenvolvimento humano, haja vista consistir em elemento essencial a sua natureza, vindo a ratificar a máxima nenhum homem é uma ilha isolada.
Imagina-se que dessa interação estabelecida entre os seres humanos, resulte em convivência pacífica, agradável e que sejam observados e respeitados os direitos inerentes a todos. Contudo, tal pensamento destoa da realidade vivenciada, especialmente em âmbito brasileiro.
Diariamente configuram como conteúdo midiático a ocorrência de crimes em todo o território nacional, estes cometidos por diversos tipos de pessoas, nas mais variadas formas, de múltiplas intensidades em desfavor de vasto contingente de indivíduos.
No lugar da pretendida paz e coesão social, nota-se sobre o indivíduo diretamente atingido pela criminalidade, bem como seus familiares e a sociedade como um todo a lesão a bem juridicamente tutelado, acarretando-lhe prejuízos, sejam patrimoniais, físicos e/ou psíquicos, dos quais as vezes superficiais e outros de grande impacto à vida de quem os suporta.
Mediante a violação ocasionada, seja qual for a força resultante sobre o lesado, é certo que a este sejam conferidos meios para que extirpem ou amenizem os danos suportados, intencionando o seu retorno ao status quo ante. Dentre aludidos meios, consistem, a título exemplificativo, conferir à vítima efetiva participação em processo judicial acerca da apuração do delito, bem como garantir a esta tratamento adequado extrajudicialmente, oferecendo-lhe o apoio devido ante a transgressão de seus direitos outrora vivenciada.
Todavia, frente ao dissabor experimentado aliado ao aparato disposto à satisfação dos danos ocasionados, denota-se, quanto à sistemática brasileira, procedência contrária.
É evidente o descontentamento social frente à criminalidade vivenciada e o pouco esforço estatal para a sua prevenção e ressarcimento dos prejuízos oriundos daquela à vida de quem atingido foi, seja direta ou indiretamente. Prova disto, é a constante reprodução, por meios de comunicação ou conversas cotidianas, da afirmativa popular de que Direitos Humanos só servem para defender bandido.
Ocorre que, sob a análise do prisma jurídico, aludida afirmação é errônea, haja vista a concessão indistinta de direitos e garantias a todos, consequência do emprego do Estado Democrático de Direito sob o qual se funda o Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Diante desse quadro pode se fazer uma digressão: as medidas providenciadas pelo Estado para a reparação de danos causados às vítimas de crimes, são eficazes ou ineficazes? Os ideais defendidos pelos estudos da vitimologia são observados pelo sistema processual brasileiro? No caso de não haver este respeito pode se considerar que há inobservância dos ditames dos direitos humanos?
1. Retrato histórico acerca da trajetória das vítimas no tempo
Os direitos e garantias fundamentais carregam consigo a universalidade, de modo que são aplicados para os ofensores, bem como para os ofendidos, por conclusão lógica. Nesse aspecto é de suma importância se rever a história até para melhor compreensão da temática Vitimologia.
Em tempos hodiernos, é nítida a centralização das vítimas em debates jurídicos dos quais buscam questionar acerca da violação de direitos suportada por aquele bem como a criação de mecanismos que lhes garantam maior proteção em todos os aspectos.
Contudo, nem sempre a vítima ocupou a posição de destaque no olhar jurídico, sendo a trajetória desta, até os tempos atuais, dividida em três fases: protagonismo, neutralização e redescobrimento.
Consoante Ana Sofia Schmidt de Oliveira (1999), a era do protagonismo, conhecida também por Idade do Ouro, ressalta o poder e a posição de destaque que detinha a vítima na resolução dos conflitos. Marcada desde as primeiras civilizações até a Alta Idade Média, as normas penais então vigentes detinham a natureza teocrática, demonstrando o interesse maior da divindade em relação ao das partes.
Todavia, mediante Alline Pedra Jorge (disponível em
Assim, considera Oliveira (1999, p. 22):
Como se vê, ainda que a vítima participasse dos rituais punitivos, a finalidade maior de tais práticas era restabelecer a coesão social abalada pela prática do crime. O interesse do grupo na manutenção da coesão social – especialmente por suas raízes religiosas – sobrepunha-se ao interesse individual.
A vingança privada, exercida pelo próprio ofendido na compensação pelos danos por ele suportados, detinha caráter retributivo, como bem atesta o dito “olho por olho e dente por dente”, presente na lei de Talião, bem como nas demais legislações primitivas. Contudo, tal direito era exercido em âmbito coletivo, e não apenas face ao cometedor do ilícito, de modo que propiciava a dizimação da tribo mediante ao emprego exacerbado da violência (FERNANDES, 1995).
Com o passar do tempo, viu-se a necessidade do auxílio de um representante da comunidade ou autoridade pública para que este pudesse verificar o exercício correto da vindicta de acordo com as normas vigorantes, buscando evitar sua utilização imoderada (JORGE, disponível em
Cumpre destacar também a normativa atinente ao direito germânico, o qual considerava o ilícito praticado como quebra da paz. Segundo Oliveira (1999, p. 28)
O antigo direito dos bárbaros germânicos era baseado na vingança de sangue e na noção de perda da paz. A paz era a ordem imperante no âmbito de uma tríplice relação: casa, família e comunidade. O direito identificava-se com a ordem, com a paz; daí ser o crime identificado como a quebra da paz. A pena conhecida como ‘perda da paz’ era, portanto, consequência inevitável do princípio de talião: quem quebrasse a paz, merecia perder a paz.
Mencionado sistema adotava o meio de composição dos delitos, este dependendo, nas palavras deOliveira (1999, p.29) “[...] do status da pessoa ofendida e o inadimplemento ocasionava a conversão em sanção corporal ou devolução, ao ofendido, do direito de vingança.”
Cite-se ainda a presença do Direito Canônico sobre a trajetória histórica das vítimas, o qual passou a adotar o processo inquisitório a partir do século XII, tendo por consequência o início da marginalização das vítimas, transformando-se de protagonista a simples informante.
Ademais, consoante Antônio Scarance Fernandes (1995), este em conjunto com os senhores feudais e os reis da Baixa Idade Média, passaram a controlar o poder punitivo bem como a responsabilização pelos danos provenientes da criminalidade, sendo adotadas penas severas frente aos infratores e retido o monte patrimonial obtido em condenação pecuniária em quase sua totalidade, repassado às vítimas parcela ínfima ou até mesmo nada. Conforme mencionado autor,
As vítimas valiam segundo sua classe social ou posição religiosa, tanto assim que as penas eram diversas na dependência de quem fosse atingido pelo crime: um homicídio de um excomungado não era crime e a morte de um herético ou de israelita importava em pena menor. (1995, p.15)
A decadência das vítimas tem como marco a ascensão do Estado e a consequente publicização do direito penal, detendo assim as normas penais conotação de ordem pública (OLIVEIRA, 1999).
Na medida em que o Estado tomou para si o ius puniendi, consequentemente afastou a vítima da posição que ocupava outrora, na qual lhe era possibilitado solucionar o impasse por seus próprios meios. Assim, a conduta desta tida como cabível e correta, converteu-se em tipificação criminal, a saber, o exercício arbitrário das próprias razões, constante no artigo 345 do Código Penal Brasileiro (JORGE, disponível em
2. Movimento vitimológico
Desponta nessa fase, o surgimento do Soberano, o qual representado pelo procurador, substituía a vítima e alegava legitimidade para tal em virtude da qualidade de representante da ordem pública e do direito lesado pelo cometimento do crime, exigindo reparação de igual forma (FOUCAULT, disponível em
Destarte, resta evidente a distinção entre dano e infração, vez que após a ascensão do Estado ao posto de detentor da força punitiva, considera-se além dos prejuízos causados em entre as partes, a transgressão à norma imposta por aquele, motivo bastante para a aplicação de medida punitiva. Tem-se a criação do princípio da reserva legal, portanto, vinculando a ocorrência do crime à infração legal estabelecida (JORGE, disponível em
Acerca do assunto, discorre Michel Foucault (disponível em
Enquanto o drama judiciário se desenrolava entre dois indivíduos, vítima e acusado, tratava-se apenas do dano que um indivíduo causava ao outro. A questão era de saber se houve dano, quem tinha razão. A partir do momento em que o soberano ou seu representante, o procurador dizem: ‘Também fui lesado pelo dano’, isso significa que o dano não é somente uma ofensa de um indivíduo a outro, mas também a ofensa de um indivíduo ao Estado, ao soberano como representante do Estado. Assim, na noção de crime, a velha noção de dano será substituída pela infração. [...] é uma ofensa ou lesão de um indivíduo à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano.
Cumpre destacar, consoante Oliveira (1999) a produção científica das Escolas Penais Clássica e Positivista, as quais tinham sob enfoque o criminoso, seja para lhe conferir penas humanizadas, seja para estudar sua personalidade, ao passo em que a vítima cai em esquecimento. A isso justifica-se pela afirmação de que “[...] sua atuação era movida por sentimento de vingança, não de justiça, e, por isso, devia ser limitada a sua participação no processo criminal.” (FERNANDES, 1995, p. 16).
Deveras, os motivos que acarretaram a marginalização da vítima frente à reparação de seus danos por meios próprios, vão além da publicização do Direito Penal e consequente preservação da boa ordem social, estando envolvidos aspectos econômicos em virtude da arrecadação estatal com as sanções pecuniárias e resultante lucratividade. Segundo Jorge (disponível em
De fato, existiam outros interesses, que não somente a justificativa do crime como ofensa à boa ordem social. Em sendo o estado responsável pela punição do agressor, era o mesmo também quem deveria arrecadar os recursos provenientes do confisco e das multas penais. A punição do crime passa a ser lucrativa e conveniente aos cofres públicos, sendo aplicadas, frequentemente, medidas penais de caráter pecuniário.
Ademais, destaca-se a presença e contribuição de fatores psíquicos para o afastamento das vítimas, haja vista o desejo vingativo desta e o decorrente surgimento de crimes motivados por este sentimento, bem como critério de identificação social, conferindo ao ofendido, ainda que inconscientemente, a qualidade de perdedor. Assim explica Oliveira (1999, p. 55):
É possível que o afastamento da vítima, na criminologia, deva-se à incorporação de uma justificativa mais adequada à ciência do direito penal: a neutralização da vítima seria a maneira de neutralizar também a cadeia da violência ou da vingança. [...] Se à vítima corresponde a representação psicológica da derrota, da passividade, da fragilidade, do medo, é, em suma, ‘the loser’. Ao criminoso, por outro lado, corresponderia a imagem da ousadia, da força, da agressividade, do dominador. É evidente que essas representações não são elaboradas e podem ser reconstruídas ou desmentidas por determinada realidade. Essa possibilidade, no entanto, não deslegitima a hipótese de formarem uma repulsa geral inconsciente à identificação com a vítima.
Destarte, observam-se os fatores contribuintes à retirada da vítima do centro de discussões penais, percorrendo sozinha e sem amparo nos efeitos negativos do pós-crime.
2.1 Origem da Vitimologia
Após a ocorrência da Segunda Guerra Mundial, esta marcada pelas barbáries e atrocidades cometidas, resultante na macrovitimização realizada quanto aos judeus, “[...] poloneses, ciganos, deficientes, homossexuais, negros; entre outras ‘classes’ eleitas pelo III Reich como indesejáveis [...]” (MAZZUTTI, disponível em
Assim, a vítima retoma lugar de destaque conferido pela vasta produção jurídica desencadeada, nesta sendo abordado quanto às mazelas suportadas, bem como questões relativas aos seus interesses. Fala-se na fase do redescobrimento, portanto.
Contudo, insta salientar a posição contrária sustentada por Oliveira (1999) face à terminologia aplicada, qual se mostra indevida, pois remete tal expressão movimento retrógrado, buscando-se assim, os mesmos aspectos da vingança privada outrora pertencida à vítima.
Sustenta que o ideal de vítima hodiernamente detém outras feições, conforme a transcrição a seguir:
Em primeiro lugar, deve-se considerar que a vítima que hoje desponta no campo do direito penal, independentemente do impacto teórico ou prático que vá causar nesse ramo do direito, não é a mesma vítima da história distante. A ela foram agregados os atributos que integram a ‘dignidade da pessoa humana’, no exato sentido e extensão conferidos ao termo no art.1oda Constituição do Brasil. E mais. O contexto social em que está inserida não é formado por grupos vinculados só pelas urgências da vida, nem dominado por um soberano centralizador. É o contexto do Estado Democrático de Direito. Aí já reside uma distinção fundamental que torna, no mínimo, perigosa a utilização da expressão ‘redescobrimento’. (OLIVEIRA, 1999, p. 58)
No mesmo sentido, preleciona Shigueo Kuwahara (disponível em
As concepções que temos hoje sobre os direitos da vítima somente passariam a fazer algum sentido com a noção de individuo e subjetividade, o que surgiu apenas a partir da modernidade. A mentalidade antiga não podia conceber a subjetividade do indivíduo, seu sofrimento individual, seus direitos subjetivos. Toda ofensa era a ofensa da tribo, da comunidade, do pater familias. Não se poderia dizer de uma vítima, individualmente considerada e em relação a direitos subjetivamente exercidos.
Devido às horripilantes práticas realizadas contra determinados grupos distintos e rejeitados pela raça ariana, de acordo com Vanessa de Biassio Mazzutti (disponível em
Dessa fase, aponta-se a obra The origins of the Doctrine of Victmimology, datada em 1947, de autoria pertencente ao advogado israelita Benjamin Mendelshon, na qual lançou os primeiros ideais acerca da Vitimologia em Congresso realizado em Bucareste naquele ano. Oportuno mencionar também a contribuição fornecida por Hans Von Heiting mediante a obra The Criminal and his Victim, de 1948, tendo nela exposto sobre estudos referente às vítimas (MAZZUTTI, disponível em
Destaca-se, mediante a efervescência do tema, a realização do I Simpósio Internacional de Vitimologia, ocorrido em Jerusalém no ano de 1973, resultando na definição da Vitimologia como ciência e, posteriormente, a instituição da Sociedade Internacional de Vitimologia, em 1980, consoante João Felipe da Silva (disponível em
Resultante a tais avanços e intensa produção científica e literária acerca dos interesses vitimários, fora criada a Declaração sobre Princípios Fundamentais de Justiça para Vítimas de Delitos e Abusos de Poder, datada em 1985, pela Resolução n. 40/35 aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, visando a adoção desta pelos Estados membros através da implementação de políticas públicas que buscassem reduzir a vitimização, o incentivo à comunidade a participar na prevenção do crime e o reexame periódico de suas legislações (FERNANDES, 1995).
Tais acontecimentos acima descritos integram o período denominado por movimento vitimológico, este caracterizado, de acordo com Shigueo Kuwahara (disponível em
Cumpre ressaltar, mediante Oliveira (1999, p. 66), como fatores contribuintes para o progresso do movimento vitimológico
[...] o legado dos pioneiros da Vitimologia, Von Heiting, Mendelsohn e outros, que demonstraram a recíproca integração entre autor e vítima. Menciona também o desenvolvimento, no campo da psicologia social, de uma área de estudos apta a fornecer um referencial científico com a elaboração de vários modelos teóricos baseados nos dados empíricos fornecidos pela pesquisa vitimológica. Menciona ainda, como importante impulso, os estudos experimentais de Latané e Darley na década de 70 relacionados à dinâmica da intervenção dos espectadores nas situações de emergência e estudos de psicólogos sociais referentes a atitudes de assistência (ou abandono) das vítimas de delitos. Aduz também a crescente credibilidade das denominadas ‘pesquisas de vitimização’ e o movimento feminista como outros importantes impulsionadores do movimento vitimológico.
Destaca-se, ademais, o surgimento da Vitimologia como aliado ao progresso do movimento vitimológico, conforme preceitua Mazzutti (disponível em
2.2 Vitimologia tradicional e moderna: conceitos, finalidades, objeto e tipologia das vítimas e seus graus
Acerca do abolicionismo penal, aduzOliveira (1999) a existência de 03 (três) vertentes, quais sejam: a) abolicionismo institucional, propondo a abolição das prisões e demais instituições segregadoras; b) reducionismo penal, sugerindo um decréscimo na esfera jurídico-penal e c) abolicionismo penal radical, idealizando a extirpação do direito e sistema penais, configurando-se como vertente mais ampla face às demais.
Sobre os ideais abolicionistas, posiciona-se Louk Hulsman (disponível em
É preciso abolir o sistema penal. Isto significa romper os laços que, de maneira incontrolada e irresponsável, em detrimento das pessoas diretamente envolvidas, sob uma ideologia de outra era e se apoiando em um falso consenso, unem os órgãos de uma máquina cega cujo objeto mesmo é a produção de um sofrimento estéril. Um sistema desta natureza é um mal social. Os problemas que ele pretende resolver - e que, de forma alguma, resolve, pois nunca faz o que pretende - deverão ser enfrentados de outra maneira. [...] Na minha mente, abolir o sistema penal significa dar vida às comunidades, às instituições e aos homens.
Aludido autor preserva referido ideário não somente pelo estudo dos delinquentes e os meios repressivos aplicados, mas também a partir da incidência de análise sobre as vítimas e os procedimentos legais que as aguardam em prol da realização da persecução criminal, exemplificada a seguir:
As vítimas da criminalidade, ou as pessoas que se sentem diretamente ameaçadas, reivindicam uma ajuda e uma proteção eficazes. Isto é o que elas querem. E, neste aspecto, sua relação com o sistema repressivo atual é complexa. Muitos sabem - e alguns já tiveram a experiência - que, no estado atual, o dito sistema não traz nem esta ajuda, nem esta proteção. E, não há dúvida de que as pessoas pedem uma mudança na situação atual. [...] Trata-se de uma instituição que cria e reproduz a ideia - aliás, totalmente falsa - de que pode dar às vítimas a ajuda e a proteção que elas, com razão, reclamam. A confiança das pessoas no discurso oficial - e as pessoas só a têm porque sabem quão sem fundamento é essa confiança - leva a que efetivamente reivindiquem um aumento da intervenção do sistema penal. Elas não têm condições de desenvolver por si mesmas uma visão de conjunto que permita um discurso alternativo, com um enfoque diferente. (HULSMAN, disponível em
Destarte, a ciência vitimológica vem de encontro aos anseios daqueles que lesados foram em bem juridicamente tutelado resultante do cometimento da prática delituosa, lançando sobre estas o olhar cauteloso e reparador ao dano suportado.
Todavia, à época de seu surgimento, a Vitimologia não detinha tal conotação, posteriormente aprimorada até a obtenção do perfil atual.
Conforme exposto, as primeiras manifestações acerca da Vitimologia resultam de Benjamin Mendelsohn, o qual as mencionou na obra The origins of the Doctrine of Victmimology apresentada na conferência Um Horizonte Novo na Ciência Biopsicossocial: a Vitimologia, em 1947, na Universidade de Bucareste, além de ser o primeiro a utilizar o termo, conferido por parcela majoritária de doutrinadores como pioneiro da ciência vitimológica (MAZZUTTI, disponível em
Contudo, como bem esclarece Vanessa de Biassio Mazzutti (disponível em
No Brasil, de acordo com Oliveira (1999) a produção literária acerca da ciência vitimológica detém como precursor Edgard de Moura Bittencourt por meio da obra Vítima, datada em 1971, não obstante a criação de artigos anteriores relativos ao tema mediante resultados do seminário da Organização Mundial da Saúde, sobre o Tratamento Psiquiátrico de Delinquentes. Cumpre destacar, ademais, a realização do I Congresso Brasileiro de Vitimologia em 1973, resultante na conscientização acerca de mudança legislativa a fim de observar os ditames vitimológicos, bem como a fundação, em 1984, da Sociedade Brasileira de Vitimologia no Rio de Janeiro.
Em que pese a dissonância acerca do fundador de questionada ciência, é certo que a Vitimologia surgiu objetivando a análise da vítima sob a perspectiva do delito, ou seja, sua relação para com o delinquente e contribuição para o ato criminoso. Nas palavras de Jorge (disponível em
É fato que a Vitimologia nasceu no intuito de estudar o comportamento da vítima, inserindo neste contexto a análise de sua culpa ou colaboração na execução do crime, muitas vezes desamparando-a e a colocando numa posição desconfortável, talvez até pior do que a fase de neutralização, onde a vítima encontrava-se totalmente esquecida.
A análise supracitada refere-se à denominada parelha penal, resultante dos estudos de Benjamin Mendelsohn, consistindo em
O objeto da Vitimologia, por conseguinte, encarado, sob um prisma mais amplo, fora do seu sentido puramente etimológico, é, em apertada síntese, o estudo da “parelha penal”, designação que se conhece em todo o mundo, a dupla criminoso/vítima. Ou seja, a pareja penal, como a denominam juristas de língua espanhola, seria, em comparação não ideal, mas de cunho indiscutivelmente pragmático, como a dupla de conceitos contábeis “débito/crédito”: um é inconcebível sem ou outro, sem um não se pode analisar o outro, os reflexos da ação de um se fazem sentir, inescapavelmente, sobre o outro, e assim por diante. Dependendo do caso, haverá um “encontro de contas”. E, necessariamente, ao final, existirá um “saldo”, que, segundo as circunstâncias, poderá ser “credor” ou “devedor”, conforme, ao fim e ao cabo, o imputado venha a ser absolvido ou condenado. (POLIDORO, disponível em
Corroborando aludido entendimento, são os dizeres de Newton Fernandes e Valter Fernandes (FERNANDES e FERNANDES, 1995, p. 458-459):
Malgrado o criminoso seja o ponto principal na apuração do fato delituoso, urge, mercê do fato concreto, analisar também a possibilidade de culpa da vítima ou de sua participação inconsciente no crime, circunstância em que o ilícito poderia inexistir ou assumir inexpressivo significado. Demais, o liame delinquente-vítima pode, com legitimidade, beneficiar o autor pelo seu comportamento com respeito à vítima, inclusive depois do crime. Além da relevância dos aspectos ligados à conduta da vítima e do delinquente, também são valiosos os elementos inerentes à personalidade moral, antecedentes e condições pessoais da vítima, que exercem influência na classificação do crime e na aplicação da sanção penal.
Considerando a análise das vítimas sob mencionado aspecto, urge mencionar acerca das tipologias conferidas a estas quando da origem da ciência vitimológica. De acordo com os estudos de Benjamin Mendelsohn, as vítimas são enquadradas em 05 (cinco) categorias, devidamente estruturadas, as quais descritas a seguir:
A classificação de Mendelsohn parte de um esquema gráfico em que se encontram, nos polos opostos, a vítima inteiramente inocente (ou vítima ideal) e a vítima inteiramente culpável. A graduação de culpa vai de 0% a 100%, de modo que a uma vítima 0% culpável corresponde um autor 100% responsável e a uma vítima 100% culpável, correspondente a um autor 0% responsável. Entre estas duas categorias, estão as seguintes variações: vítima de culpabilidade menor ou ignorante: é aquela que dá um certo impulso não voluntário ao crime, expondo-se ao risco; vítima tão culpável quanto o infrator (ou vítima voluntária): é aquela que adere à conduta do infrator ou a sugere, sendo exemplos o suicídio por adesão e a eutanásia; a vítima provocadora: seria aquela que incita, com sua conduta, a prática do crime ou, por imprudência, dá causa à ocorrência de um delito. A categoria de vítima inteiramente culpável admite uma subclassificação: a vítima infratora ( é o caso do sujeito que comete uma infração e termina sendo vítima – hipótese do homicídio em legítima defesa); a vítima simuladora (aquela que imputa falsamente a prática de um delito a outrem) e a vítima imaginária (pessoa com alguma psicopatia de caráter e conduta, que imagina ter sido vítima de um crime) (OLIVEIRA, 1999, p. 97)
Em relação a Hans von Hentig, há classificação vitimária elaborada por este, consistindo em 13 (treze) espécies, dispostas abaixo:
Von Hentig, ao elaborar a tipologia das vítimas, as enquadra em treze categorias, como, por exemplo, os jovens, as mulheres, os idosos, os deficientes mentais, os imigrantes, as minorias, os indivíduos de pouca inteligência, os deprimidos, os solitários, etc.; depois as engloba em certos grupos que não chega a classificar de uma maneira precisa e as considera elementos causais do delito; refere a existência de vítimas deprimidas, desenfreadas, libertinas, solitárias, atormentadas, lutadoras, etc. Depois, ao tratar do crime específico de estelionato, divide as vítimas em duas classes: resistentes e cooperadoras. (OLIVEIRA, 1999, p. 97).
Das classificações expostas pelos pioneiros da Vitimologia acima transcritas irradiam influências acerca do alcance de questionada ciência, bem como a matéria por esta tratada e sob o prisma a ser analisada. Deste modo, fala-se em perspectivas universal e criminológica, explicitadas de acordo com Kuwahara (disponível em
Assim mesmo, se é possível classificar, parece que Mendelsohn tende a conceber a vitimologia de uma maneira mais universal, como uma ciência que trata de todos os tipos de vítimas, vítimas da natureza, da tecnologia, do meio ambiente, do trânsito, da energia cósmica e do crime, ampliando o conceito de vítima de uma perspectiva criminológica para uma perspectiva geral e universal. [...] A perspectiva criminológica, alinhada a Von Hentig, autor da obra O Criminoso e sua Vítima, de 1948, tende a afirmar que a vítima molda e forma o criminoso e, por isso, os cientistas devem olhar para a interação entre os dois. A partir de este olhar, esta corrente desenvolve a ideia de que a vítima tem a responsabilidade de não contribuir para que outros a vitimizem, da mesma forma que se espera que ela atue de forma ativa para se prevenir da vitimização. Assim, tende-se prevenir o crime a partir da identificação da colaboração da vítima no evento criminógeno. Nesta perspectiva, a vitimologia tende a ser apenas um ramo da criminologia que procura compreender a contribuição da vítima para o evento criminoso, como uma das causas que influenciam na produção de um delito.
Consequentemente, as finalidades da Vitimologia, quando de sua criação, foram traçadas mediante a perspectiva da vítima frente ao delito e ao criminoso, sendo as tais, na visão de Mendelsohn, descritas a seguir:
Estudar a personalidade da vítima, de modo a apurar se ela foi vítima de um delinquente ou de outros fatores, como consequência de suas inclinações subconscientes; descobrir os elementos psíquicos do complexo criminógeno existente na dupla-penal, em potencial receptividade vitimal; analisar a personalidade das vítimas, sem intervenção de terceira pessoa, tendo em atenção especial às vítimas de acidentes de trabalho e de circulação; estudar os meios de descoberta dos indivíduos com tendência a tornarem-se vítimas e dos métodos psico-educativos correspondentes para organizar sua própria defesa, sendo estes os fins mais importantes dessa ciência ou doutrina; descobrir os meios terapêuticos, a fim de evitar a reincidência vitimal. (KUAWAHARA, 2015, p. 187)
Face à sistemática adotada pela Vitimologia em sua origem são direcionadas críticas acerca da indevida contemplação dispensada às vítimas de delitos, as quais analisadas sob perspectivas de outros elementos envolvidos junto à prática criminosa. Conforme Fernandes (1995, p. 37),“é certo que tais estudos tiveram importância na evolução da Vitimologia, mas representam maneiras de enxergar a vítima na perspectiva do réu, do delinquente, não sob uma ótica da própria vítima.”
Outrossim, oportuno destacar o pensamento de Jorge (disponível em
A Vitimologia quando classifica suas vítimas em inocentes, provocadoras ou voluntárias e agressoras, tem um esqueleto discriminatório que não protege as vítimas de qualquer crime, fazendo com que a sociedade pré-selecione aquelas que pretende apoiar ou não. As vítimas deveriam ser classificadas quanto a sua vulnerabilidade de se tornarem vítimas, não quanto a sua conduta na execução do crime. Deveriam ser classificadas quanto ao sexo, idade, cor, classe social ou qualquer espécie de diferença que as tornasse passíveis de serem vitimizadas, o que não as discriminaria.
Todavia, ainda que as vítimas sejam alcançadas pelo estudo científico em conjunto com o delinquente e o crime cometido, reconhece-se a contribuição deste enfoque, sobretudo a ampla tipologia de vítimas elaborada por Benjamin Mendelsohn, as quais, segundo Kuwahara (disponível em
No panorama atual, denota-se o aprimoramento dos estudos vitimológico de modo que a observação das vítimas ultrapassa o âmbito criminológico, consistindo na análise acerca dos danos por ela suportados e o método reparatório cabível quanto a estes. Não obstante, a visão adotada no surgimento da ciência vitimológica resta preservada, a qual fora transformada em vertente desta, denominada de Vitimodogmática, consoante Kuwahara (disponível em
Deste modo, a Vitimologia é conceituada, consoante Fiorelli e Mangini (2009, p. 184) em
[...] ciência que estuda a vítima sob os pontos de vista psicológico e social, na busca do diagnóstico e da terapêutica do crime, bem como da proteção individual e geral da vítima. Tem por objetivo estabelecer o nexo de causalidade na dupla penal, o que determinou a aproximação entre vítima e delinquente, a permanência e a evolução desse estado.
A Vitimologia confere ao seu objeto de estudo, qual seja a vítima, enfoque sobre si, afastando-se da análise conjunta a demais elementos do evento criminoso a fim de apurar sua participação. Observa a vítima como sujeito de direitos, estes transgredidos pela prática criminosa e que consequentemente lhe acarretam danos, sejam imediatos ou mediatos.
Sob mencionado enfoque, oportuno destacar as novas finalidades da ciência vitimológica, elencadas por Shigueo Kuwahara (disponível em
Do estudo da dupla vítima-delinquente, para o estudo da vítima e sua inserção macrossocial; da participação da vítima na gênese do crime, para a participação da vítima na gênese dos direitos; da perspectivação da vítima no contexto criminológico, para a perspectivação da vítima no contexto fenomenológico; do planejamento da política criminal, para o planejamento de uma política para vítimas; da prevenção do crime e tratamento das vítimas, para a prevenção da vitimização e tratamento de todas as vítimas, considerando a dignidade da pessoa e a proteção dos direitos humanos.
Resulta em ponto controvertido e de calorosa discussão quanto à autonomia científica da Vitimologia.
Em meio doutrinário, há em que defenda a sua independência face à Criminologia, outros sustentam a ideia de mero ramo da Criminologia, ou ainda, sua inexistência em âmbito jurídico (NIZA, 2017).
Aludidas classificações são influenciadas mediante a consideração e abrangência acerca do conceito de vítimas, segundo Oliveira (1999). Os que defendem a ideia da autonomia vitimológica, propugnam pelos ideais de Mendelsohn quanto à amplitude do conceito de vítimas, intencionando assim, maior abrangência de situações pela ciência. Entretanto, os adeptos ao conceito restrito de vítimas, sendo estas correlatas à prática criminosa, sustentam o cabimento da Vitimologia à Criminologia, haja vista ser a vítima analisada por esta ciência posto que consiste em elemento do evento crime.
Em que pese a dissonância acima apresentada, sustenta Oliveira (1999) a predominância da interdisciplinaridade entre os saberes, de modo a realçar os conhecimentos proporcionados. Ideia corroborada por Mazzutti (disponível em
Outrossim, defendia Mendelsohn mencionada relação frente à Vitimologia, aduzindo ser respectiva ciência de caráter biopsicossocial, devendo as análises feitas quanto a outros saberes no tocante as vítimas partirem desta ótica.
Por outro lado, entendendo que a Vitimologia se estrutura em fundamentos de variegadas ciências, Benjamim Mendelsohn aduz que ela é fundamentalmente biopsicossocial, estudando a vítima sob os prismas que a possam conduzir a essa condição. Assim, sob o enfoque criminológico, a personalidade da vítima deverá ser auscultada em relação biopsicológica e social, com a problemática da criminalidade e sobretudo levando em conta os aspectos terapêutico vitimal e preventivo. Sob o enfoque propriamente jurídico, a vítima haveria que ser considerada também em relação à legislação civil e trabalhista, nas hipóteses em que ocorrer reclamação de ressarcimento. Lembra Mendelsohn que o estabelecimento desses três primados evidentemente que estará sempre voltado para a pesquisa da vítima enquanto sujeito passivo do delito, da vítima nos casos em que inexiste a participação a qualquer título de terceiros (infortúnio do trabalho, por exemplo), da vítima em consonância com os fatores que lhe são comuns, da vítima recidivante e das inúmeras categorias de vítimas. (FERNANDES e FERNANDES, 1995, p.457)
Ademais, a questão não se revela de suma importância, quando comparada aos ideais vitimológicos apregoados e sua contribuição para a ordem jurídica, como bem atestam Fernandes N. e Fernandes V. (1995, p. 456-457):
Releva salientar, isto sim, a valia de seus propósitos que visam não apenas o estudo da vítima ou do delito, mas da vítima em geral, ou seja, da pessoa que sofreu um dano, uma lesão a destruição de um bem, seja por culpa de terceiro ou própria.
Oportuno se faz o estudo acerca do centro da Vitimologia, qual seja, a vítima. Em sentindo etimológico, é pacífico em meio doutrinário a origem de aludida palavra da língua latina, havendo dissonância, contudo, acerca da palavra primitiva. Consoante Antônio Scarance Fernandes (1995, p. 31)
Derivaria ela de vincire, que significa atar, ligar, referindo-se aos animais destinados ao sacrifício dos deuses após a vitória na guerra e que por isso, ficavam vinculados, ligados, atados a esse ritual, no qual seriam vitimados. Adviria do vocábulo de vincere, que tem o sentido de vencer, ser vencedor, sendo vítima o vencido, o abatido. Fala-se ainda no termo vigere, que quer dizer ser vigoroso, ser forte, pois a vítima era um animal robusto e grande em comparação com a “hóstia”, que era um animal pequeno.
Todavia, considera mencionado autor acerca da origem dominante:
Mas, apesar dessas possíveis significações, preponderou a afirmação de que vítima era o animal abatido aos deuses, fosse o “animal vigoroso e forte”, ou aquele “separado, ligado ao ritual de sacrifício”, ou ainda o animal que representasse o agradecimento aos deuses pela vitória na guerra. (1995, p. 31)
Remetendo às origens da ciência vitimológica, Benjamim Mendelsohn conferia amplitude ao conceito de vítima, de modo que seriam abarcadas pela Vitimologia todo “[...] tipo de vítimas, vítimas da natureza, da tecnologia, do meio ambiente, do trânsito, da energia cósmica.” (FERNANDES, 1995, p. 35)”, consistindo em vítimas penais e não penais, portanto.
Em que pese a denotação acima transcrita, destaca-se a contribuição vitimológica quanto à compreensão da criminalidade pautando-se pela vítima e os danos por ela suportados, consoante Luciano Mariz Maia (disponível em
Uma vez estabelecida a adoção de vítima de crime para análise da Vitimologia em âmbito penal, esta é assim definida de acordo com a Resolução n. 40/35 de 29 de novembro de 1985 da Assembleia Geral das Nações Unidas então denominada Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder (disponível em
Entendem-se por "vítimas" as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como consequência de atos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem o abuso de poder. Uma pessoa pode ser considerada como "vítima", no quadro da presente Declaração, quer o autor seja ou não identificado, preso, processado ou declarado culpado, e quaisquer que sejam os laços de parentesco deste com a vítima. O termo "vítima" inclui também, conforme o caso, a família próxima ou as pessoas a cargo da vítima direta e as pessoas que tenham sofrido um prejuízo ao intervirem para prestar assistência às vítimas em situação de carência ou para impedir a vitimização.
Frente à denominação de vítima, considera Oliveira (1999) a existência de dois sujeitos passivos, sendo estes o Estado de modo constante, em virtude da transgressão da norma penal quando do cometimento do delito, e o titular do bem juridicamente tutelado então desrespeitado, sob a forma eventual. Ademais, realiza ponderações acerca do prejudicado, conceituando-o como aquele que suporta os prejuízos, geralmente econômicos, da prática criminosa, não sendo, contudo, o sujeito passivo. Concretiza o exposto por meio da ocorrência de homicídio, sendo a vítima o de cujus e o prejudicado aquele que dependia deste financeiramente.
3. Medidas de consagração aos direitos das vítimas no sistema processual penal brasileiro
Não obstante a aludida divisão adere-se, para fins penais e processuais, ao conceito restritivo, não inserindo o prejudicado à denominação de vítima, visto que, conforme assevera Fernandes (1995, p. 49), “[...] nem todo prejudicado será considerado vítima, mas somente o prejudicado que, ao mesmo tempo, é sujeito passivo da infração penal e tem direito à reparação do dano.”
Mediante ao já exposto, denota-se em relação às vítimas de crime maior preocupação hodierna frente à dispensada na origem da Vitimologia. Ao passo em que os estudos de referida ciência foram aprimorados, aprofundaram-se as pesquisas e os olhares para além do cometimento do crime, configurando como alvos os impactos imediatos e mediatos deste em relação àqueles que vislumbram a violação de bem jurídico a eles pertencente.
Destarte, consiste como ponto investigativo a vitimização, a qual assim conceituada:
Vitimização, ou vitimação, ou processo vitimizatório, é a ação ou efeito de alguém (indivíduo ou grupo) se autovitimar ou vitimizar outrem (indivíduo ou grupo). É processo mediante o qual alguém (indivíduo ou grupo) vem a ser vítima de sua própria conduta ou da conduta de terceiro (indivíduo ou grupo), ou de fato da Natureza. No processo de vitimização, salvo no caso de autovitimização quando ocorre a autolesão, necessariamente, encontra-se a clássica dupla vitimal, ou seja, de um lado o vitimizador (agente) e de outro a vítima (paciente). (MAZZUTTI, disponível em
A causa da vitimização pode advir de fatores criminais e não criminais, ocasionada mediante atos geradores de danos em si ou em terceiros, consoante a explicação de Jorge (disponível em
Verificamos, então, que a vitimização nem sempre decorre de um delito, por vezes decorrendo de atitudes outras. Nem sempre o que causa prejuízo, agride, ofende, traumatiza, está previsto como crime. Vitimizar é infligir um prejuízo a alguém. E este prejuízo pode ser de diversas ordens: físico, econômico, intelectual ou moral.
Sendo assim, a vitimização é apresentada de forma subdividida mediante graus e formas em que é ocasionada, classificação esta consistente em vitimização primária, secundária, terciária e quaternária, conforme asseveram Larissa Rosa e Renan Posella Mandarino (disponível em < http://www.direitorp.usp.br> - acesso em: 01.03.2018, In SAAD-DINIZ, 2017, p. 319,):
A primária tem origem a partir das consequências diretas do próprio crime. A vitimização secundária é resultante da atuação das instâncias formais de controle social que podem se concretizar por meio de um tratamento desrespeitoso por parte das autoridades com a vítima, da demora no processamento do feito, das cerimônias degradantes a que são submetidas as vítimas. A terciária é a vitimização resultante do desamparo e da falta de assistência pública e social à vítima. E a vitimização quaternária está sendo considerada como aquela gerada pelo medo de se tornar vítima de crime novamente.
Pormenorizando os conceitos, aduz Shigueo Kuwahara (disponível em
Sem incorrer em generalizações, pode-se afirmar que o dano que experimenta a vítima não se esgota, desde logo, na lesão ou no perigo de lesão do bem jurídico e, eventualmente, em outros efeitos colaterais e secundários que possam acompanhar ou suceder a lesão. A vítima sofre, com frequência, um severo impacto “psicológico” que se acrescenta ao dano material ou físico provocado pelo delito. A vivência criminal se atualiza, revive e perpetua. A impotência frente ao mal e o temor de que se repita produzem ansiedade, angústia, depressões, processos neuróticos etc.. A tudo isso se acrescentam, não poucas vezes, outras reações psicológicas, produto da necessidade de explicar o fato traumático: a própria atribuição da responsabilidade ou auto-culpabilização, os complexos, etc.. A sociedade mesma, por outra parte, “estigmatiza” a vítima. Não a contempla com solidariedade e justiça, tratando de neutralizar o mal sofrido, senão com mera compaixão e, às vezes, com desconfiança e receio. O entorno próximo da vítima a vê depreciativamente como pessoa “tocada”, como “perdedora”. A vitimização produz isolamento social e, em último caso, marginalização. Tudo isso costuma provocar uma modificação dos hábitos e estilos de vida, com frequentes transtornos nas relações interpessoais.
Oportuno destacar o grande enfoque direcionado às vitimizações secundária e terciária pela doutrina sob a perspectiva de indignação, haja vista consistir em ações que martirizam ainda mais a vítima já violada, contrárias à finalidade em que foram criadas.
No tocante à vitimização secundária, aponta Jorge Luis Nassif Magalhães Serretti ser “[...] resultado da relação da vítima com o sistema jurídico-penal e o aparato repressivo controlador do Estado, traduzidos na figura da polícia e da Jurisdição Penal.” (disponível em
Aludida forma de vitimização acaba por intensificar a dor e os danos dos quais afligem a vítima em razão da desconsideração que possui frente à sistemática investigativa e judicial, sendo enxergada como apenas mais uma, sem ater-se ao saneamento de suas necessidades. Como bem explica Molina (1992, p. 59):
A atuação das instâncias de controle penal formal (polícia, juízes, etc.) multiplica e agrava o mal que ocasiona o delito mesmo. Em parte porque estas repartições altamente burocratizadas parecem esquecer os danos já experimentados pela vítima, sua psicologia, sua especial sensibilidade e suas legítimas expectativas, necessidades, etc.. Em parte, também, porque a vítima se sente menosprezada, maltratada por elas, como se fosse simplesmente o objeto ou pretexto de uma rotineira investigação. Algumas situações processuais como confrontação pública da vítima com o agressor são experimentadas por ela como uma verdadeira e injustificada humilhação. Com razão já disse que, por desgraça, a vítima do delito costuma ser convertida com demasiada frequência em vítima do sistema legal; e que esta “vitimização secundária” é mais preocupante ainda que a “primária”.
Quanto à mencionada afirmativa acerca de maior preocupação resultante da vitimização secundária face à primária, são esclarecidas as razões para tal nas palavras de Oliveira (1999, p.113):
O primeiro deles diz respeito ao desvio de finalidade: afinal, as instâncias formais de controle social destinam-se a evitar a vitimização. Assim, a vitimização secundária pode trazer uma sensação de desamparo e frustração maior que a vitimização primária (do delinquente, a vítima não esperava ajuda nem empatia). Há que consignar também que a vitimização secundária causa uma grave perda de credibilidade nas instâncias formais de controle social e a vítima não encontra uma resposta para a pergunta: “em quem confiar?”. Mais um motivo que confere gravidade à vitimização secundária é que a atuação das instâncias formais de controle social, especialmente dos órgãos policiais, dependem fundamentalmente da atuação da vítima. A grande maioria dos inquéritos policiais é instaurada em razão de registro de ocorrência feitos pelas vítimas que assumem, depois, relevante papel na obtenção de provas.
Atrelada à sensação de vulnerabilidade e rejeição sentidas pela vítima frente às instâncias formais, denota-se ampla taxa de subnotificação de crimes que não chegam ao conhecimento dos órgãos oficiais, não ocorrendo, assim, a aplicação da devida persecução penal a fim de punir o infrator e dirimir os danos resultantes. Fala-se, portanto, na denominada cifra negra, como bem atesta Mazzutti (disponível em
As cifras negras reportam-se principalmente à opacidade de determinadas comportamentos desviantes e são produzidas tanto pela vítima (instância informal de controle social), como pelas instâncias formais (mormente a polícia), traduzindo o desfasamento entre a criminalidade socialmente reconstruída (conhecida pelo sistema) e a criminalidade real. Consubstanciam, dessarte, a criminalidade não registrada pelas instâncias formais de controle, tendo vindo a sua constatação, dentre outras coisas, a pôr em causa o valor das estatísticas oficiais que não podem mais ser consideradas como um campo totalmente claro (Hellfeld), perceptível e livre de sombras, uma vez que representam tão-só uma parcela da criminalidade existente.
No tocante à vitimização terciária, Oliveira a qualifica como (1999, p. 114)
[...] falta de amparo dos órgãos públicos (além das instâncias de controle) e da ausência de receptividade social em relação à vítima. Especialmente diante de certos delitos considerados estigmatizadores, que deixam sequelas graves, a vítima experimenta um abandono não só por parte do Estado, mas, muitas vezes, também por parte do seu próprio grupo social.
Em decorrência ao delito em que fora alvo, padecem as vítimas quanto às tratativas necessárias à extinção ou amenização dos prejuízos decorrentes da prática do crime. Ao contrário, segundo Luciana de Freitas (disponível em < http://www.direitorp.usp.br> - acesso em: 01.03.2018, In SAAD-DINIZ, 2017), são referenciadas por críticas, brincadeiras e informações negativas provenientes e propagadas pelo meio social em que convive, resultando no agravamento de sua dor e consequente marginalização.
Por fim, Oliveira (1999) considera ainda como grau de vitimização a sensação de medo que aflige a sociedade, assim denominada quaternária. Nas palavras de aludida autora tal sentimento vai além do temor de tornar-se vítima, sendo algo incutido em meio social hodierno. Aduz que mencionado temor é externado referindo-se a criminalidade convencional relatada em pesquisas de opinião, com isso dificultando a descoberta dos motivos mais profundos causadores desse mal. Ademais, externa a potencialização do medo em meio social, sendo feito sob diversas formas, dentre elas a mídia.
Destarte, ante a observação do sofrimento em que afligem as vítimas resultante a violação de bem juridicamente tutelado a ela pertencente mediante a prática do crime, posteriormente agravado devido à tratativa que recebe das instâncias formais e sociais, relegada ao esquecimento, em meio internacional denota-se mobilização em prol aos lesados, resultando na criação da Resolução n.40/34 de 29 de novembro de 1985, aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, então denominada Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Delitos e Abuso de Poder.
Referida Declaração, ratificada mediante voto do Brasil, cuida em proporcionar às vítimas medidas de caráter humanitário, posto que estas também são consideradas como sujeito de direitos. Segundo Oliveira (1999, p.116),
[...] traz disposições referentes ao tratamento digno que deve ser dispensado às vítimas, aos seus direitos nos procedimentos administrativos e judiciais (direito à informação, à expressão de suas opiniões e preocupações, à assistência, à proteção de sua intimidade e de sua pessoa, bem como de seus familiares e testemunhas) e à utilização de mecanismos informais tendentes a facilitar a conciliação e a reparação. É também dada grande importância ao ressarcimento, tanto nos casos de vítimas individualizadas como difusas (existe previsão expressa, por exemplo, da reabilitação do meio ambiente quando verificado dano considerável). O ressarcimento compreende a devolução dos bens e pagamento das perdas e danos decorrentes da vitimização. É também prevista a indenização por parte do Estado, quando o ressarcimento feito pelo delinquente não é suficiente, e o direito à assistência social, material, médica e psicológica, por parte de entidades governamentais ou não governamentais.
Destarte, persegue-se a ideia de zelo para com as vítimas de crime, procurando proporcionar-lhes meios amenizadores dos danos suportados, bem como conferir maior atuação no processo penal, visto que possuem o interesse maior no deslinde e resolução de certo delito. Assim, trata-se, de acordo com Carlo Velho Masi (2014, p.98) na “[...] construção de uma política criminal de (re) valorização da vítima, que encontra ampla aceitação a nível mundial”.
Revalorizar a vítima significa reconhecê-la como ser humano, este sujeito de direitos que padece pelo mal ocasionado advindo do crime e suas consequências. Assim, justo que seja conferido tratamento digno, proporcionando ativa e efetiva participação no processo. Nos dizeres de Fernandes (1995, p. 56):
Mas não se pode manter mais uma visão meramente abstrata de vítima, considerada um mero sujeito passivo do delito, forçado a colaborar com a Justiça criminal. É ela, antes de tudo, um sujeito de direitos que deve ter no processo meios de defendê-los de maneira concreta e eficaz, sejam direitos ligados a interesses civis e criminais, seja mesmo direito à tranquilidade, à sua vida privada, à sua intimidade.
Contudo, não se enquadra como objetivo da Vitimologia a exclusão de direitos concernentes ao ofensor assegurados em lei para que prevaleçam garantias destinadas às vítimas, não obstante o excessivo protecionismo conferido àquele se comparada a esta. Ao contrário, pretende a harmonização de direitos aplicados a ambas as partes, extirpando, assim, a desigual distinção entre vítima e delinquente em matéria de garantias fundamentais, prática destoante da ideia central dos Direitos Humanos. Destarte, pontua Jorge (disponível em
A intenção da participação da vítima na justiça criminal, e da sua interpretação como ser humano dotado de vida e de voz não surge na perspectiva de se prejudicar outros direitos, os do acusado, por exemplo. A Vitimologia preza pela valorização da vítima como ser humano, não como sujeito para o qual as atenções devem se voltar a partir de agora. Não se trata de substituir o respeito ao delinquente exclusivamente pelo respeito à vítima, ou de lhe atribuir papel principal. Trata-se da defesa dos direitos humanos enquanto vítimas de uma determinada ação delitiva, e nesse contexto se inserem, inclusive os condenados à pena privativa de liberdade, vítimas de uma série de violações de direitos, frequentemente.
Conforme se extrai das ponderações acima feitas, nota-se o bom relacionamento existente entre a Vitimologia e os Direitos Humanos. Contudo, para melhor compreensão, mister a realização de breves apontamentos sobre a gênese deste.
3.1 Gênese dos Direitos Humanos e Vitimologia
Tem-se estabelecido que a origem dos Direitos Humanos advém do Cristianismo em respeito a difusão dos ideais de igualdade e salvação a todos destinados, ocasionando a “[...] ideia da supremacia da lei eterna, baseada na concepção de um Direito não dependente da vontade do homem e na crença de que cada pessoa possui um valor absoluto no plano da espiritualidade. ” (MAZZUTTI, disponível em
Segundo mencionada autora, o domínio de referida percepção perdurou até o final do século XVIII, período em que desponta a Escola do Direito Natural e das Gentes, conferindo grande valoração à razão humana. Nesse sentido, preleciona Noberto Bobbio (disponível em
A doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia jusnaturalista, a qual — para justificar a existência de direitos pertencentes ao homem enquanto tal, independentemente do Estado — partira da hipótese de um estado de natureza, onde os direitos do homem são poucos e essenciais: o direito à vida e à sobrevivência, que incluí também o direito à propriedade; e o direito à liberdade, que compreende algumas liberdades essencialmente negativas.
Ademais, mister o destaque acerca da contribuição conferida pela memorável Magna Carta de 1215, oriunda de conflitos existentes no reinado de João Sem-Terra, à trajetória e consolidação dos Direitos Humanos, exposta por Mazzutti (disponível em
Foi na Inglaterra que se iniciou o processo de materialização dos Direitos Fundamentais, advindos da luta entre a monarquia absoluta e a nobreza latifundiária. Nesse ponto, a Magna Carta de 1215 foi um importante marco para a história do constitucionalismo, impondo limites ao poder absoluto do soberano e garantindo aos indivíduos certos direitos fundamentais, outrora não existentes.
Igualmente, cumpre informar acerca das fases surgidas ao longo do desenvolver dos Direitos Humanos, traduzidas em gerações de direitos, estas motivadas em decorrência ao momento histórico vivenciado, as quais a seguir descritas:
Sequencialmente surgiram as gerações de direitos fundamentais, motivadas por acontecimentos históricos à época. Os direitos de primeira geração, marcados pela Revolução Francesa e Independência Norte-americana, clamavam pelo afastamento estatal e consequente respeito aos diretos individuais ante a concentração de poder nas mãos da monarquia na época do Absolutismo Francês. Já os direitos fundamentais de segunda geração apregoavam a respeito da necessária intervenção estatal de modo assistencial a fim de efetivar as liberdades individuais conquistadas. Quanto aos direitos de terceira geração, surgidos após a Segunda Guerra Mundial, consistem em conferir garantias que vão além da esfera individual, cuja titularidade pertence à coletividade, tratando-se de questões relativas ao meio ambiente equilibrado, vida saudável e pacífica, o progresso, a autodeterminação dos povos, o avanço da tecnologia. (NIZA, 2017, p. 13)
Consoante Mazzutti (2011, disponível em
Agora portanto a Assembléia (sic) Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.
Acerca do teor universal contido nas garantias asseguradas em referida Declaração, bem como a sua importância para o alcance de vida digna, oportuno destacar o comentário de Noberto Bobbio (disponível em
Com a Declaração de 1948, tem inicio uma terceira e última fase, na qual a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. No final desse processo, os direitos do cidadão terão se transformado, realmente, positivamente, em direitos do homem. Ou, pelo menos, serão os direitos do cidadão daquela cidade que não tem fronteiras, porque compreende toda a humanidade; ou, em outras palavras, serão os direitos do homem enquanto direitos do cidadão do mundo.
No que tange a nomenclatura, denota-se aparente similitude entre as expressões Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, a qual se mostra indevida, conferindo conceitos distintos em razão da área em que atuam. Consoante Mazzutti (disponível em
Vislumbra-se, que, a despeito da aparente sinonímia entre as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos”, tem-se que a primeira liga-se diretamente ao direito reconhecido pelo direito positivo e constitucionalmente previsto em uma Nação; enquanto que a segunda refere-se ao direito instituído no direito internacional, na medida em que o tema envolve a pessoa humana independentemente de vinculação a um determinado Estado.
Conforme dito alhures, denota-se a interação entre a Vitimologia e os Direitos Humanos, resultando em perspectivas de grande valia, posto que propiciam a ambas ciências, mutuamente, melhores aparatos acerca da compreensão e análise das vítimas, como bem atesta Ester Kosovski (disponível em <
O campo dos direitos humanos pode oferecer à vitimologia uma concepção mais ampla de vitimização e direito das vítimas. Pode também ajudar a melhor conceituar a vitimização definida como criminal, comparativamente às não consideradas criminais, apesar de seus efeitos danosos. O enfoque de direitos humanos pode ajudar a examinar as fontes de vitimização e a relação entre causas do crime e causas da opressão. [...] Uma análise do ponto de vista dos direitos humanos é detectar as condições adversas, políticas, sociais e econômicas provocadas da vitimização. [...] Em contrapartida a vitimologia oferece instrumental (sic) para o estudo científico de direitos humanos, que abrange mais direitos qualitativamente e quantitativamente, sendo que a vitimologia tem mais profundidade e produziu uma série de teorias e metodologias que podem fundamentar a compreensão da opressão, seus aspectos, causas, impactos e soluções.
Entretanto, consoante Niza (2017), ressalta-se, sobretudo, o olhar humanístico lançado sobre as vítimas, reconhecendo-as como sujeito de direitos, ocasionando, consequentemente, na busca de medidas amenizadoras e reparatórias frente aos danos imediatos e mediatos suportados em decorrência da prática delituosa. Nesse sentido, preleciona da Silva (disponível em
A Vitimologia e o resguardo dos Direitos Humanos têm estreita ligação no sentido de que o objetivo de ambas as áreas do conhecimento é a concretização das bases para o resgate ao respeito pelo ser humano e seus direitos fundamentais, oportunizando assim, a mitigação dos danos causados àqueles indivíduos que sofreram violações e abusos de seus direitos.
Portanto, intenciona-se garantir ao lesado meios que atendam aos prejuízos causados em virtude de crime, sejam de ordem física, econômica, moral, social e/ou psíquica. Objetiva-se proporcionar à vitima amparo quanto à dor, desespero e angústia suportados advindos da violação de bem juridicamente tutelado, bem como a existência de medidas que possibilitem seu retorno ao status quo ante, contrárias ao consequente agravamento dos danos pelas instituições formais, conferindo, assim, tratamento condizente à consideração de sujeito de direitos. Em verdade, busca-se a aplicação e efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana sobre as vítimas.
Visando resguardar o mínimo existencial a qualquer indivíduo a fim de que possua vivência digna, aludido princípio perfaz em condição inerente ao ser humano, de caráter universal, indisponível e irrenunciável. Por sua força e valor agregados em seu conceito e objetivos, pertinentes as palavras de Immanuel Kant (disponível em
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.
Ante a importância que assume, sendo parâmetro a ser observado em todas as legislações, nítida se faz a presença do princípio da dignidade da pessoa humana no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Decorrente do império do atual Estado Democrático de Direito, mencionado princípio é erigido como fundamento da República Federativa do Brasil, assegurado pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1o, inciso III “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana;”.
3.2 Participação da vítima na sistemática penal/processual brasileira
Por conseguinte, referido comando exerce grande força sobre o sistema jurídico brasileiro de modo que seus efeitos são irradiados a todos os diplomas legais e jurisprudenciais, devendo sua criação e interpretação ser pautadas em sua observância e preservação.
Logo, considerando a valoração de todo e qualquer ser humano como sujeito de direitos, destinatário de prerrogativas que assegurem o mínimo existencial para a sua sobrevivência e usufruto de vivência digna, sendo as vítimas de crimes alcançadas por tais garantias, denota-se, pois, a incidência e aplicação dos ideais vitimológicos no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
O Brasil, atento à filosofia vitimológica mundial na qual se voltam os olhares aos sujeitos fragilizados pela passividade na prática criminal, possuindo violados bens juridicamente tutelados a si pertencentes, dos quais muitas vezes agravados pela tratativa do pós-crime que recebem das instâncias formais quando procuradas, bem como a estigmatização social gerada, buscou atender em suas legislações normativas que forneçam as vítimas o acalento dos quais necessitam, bem como meios para a amenização dos danos suportados, quando não puderem ser resolvidos.
Sob tal enfoque, oportuno mencionar o art. 245 da Constituição Federal, o qual confere à sistemática jurídica brasileira influências vitimológicas, descrito a seguir:
Art. 245. A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimizadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito.
Todavia, como bem ressalta Marisa Helena D’Arbo Alves de Freitas (disponível em
Tendo em vista a ideia de afastamento da vítima quanto ao procedimento apuratório do delito em que, infortunadamente, resultou como alvo, bem como objetivando combater o agravamento de seus danos pelas instâncias formais, então denominada vitimização secundária, medidas foram adotadas em favor dos vulneráveis por meio da inserção de normativas presentes no Código Penal e Processual Penal brasileiros, garantindo-lhes o devido direito.
No tocante ao Código Penal, presencia-se a atuação referente às vítimas de crime por meio do estabelecimento da agravante contida no artigo 61, inciso II, alínea c, parte final, no qual, “Art. 61. São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: [...] II – ter o agente cometido o crime: [...] c) à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido;”
Acerca de maior e efetiva atuação na persecução penal, o Código de Processo Penal, em seu artigo 201, incluído pela lei 11.690/2008, estabelece garantias às vítimas de crime concernentes a maior participação processual, oitiva e informação a respeito da situação processual, além de encaminhamento a atendimento multidisciplinar e preservação de sua intimidade, vida privada, honra e imagem, conforme detona-se a seguir:
Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações. [...]§2o O ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem. §3o As comunicações ao ofendido deverão ser feitas no endereço por ele indicado, admitindo-se, por opção do ofendido, o uso de meio eletrônico. §4o Antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço separado para o ofendido. §5o Se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado. §6o O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação.
Em que pese, conforme assevera Mazzutti (disponível em
[...] cabe constatar que o processo penal contemporâneo, muito embora bem marcante a tendência atual de outorgar certos direitos processuais às vítimas, ainda permanece excessivamente orientado para o autor, podendo observar-se que a assimilação pelo Ministério Público, Juízes e Tribunais, a respeito da necessidade de conferir uma maior atenção às vítimas, é bastante lenta. Em fórmula mais sintética: a presumida vítima, até o presente, de um modo geral não é vista como cliente digno de muita atenção. (disponível em
Mencionada autora ainda dirige críticas acerca da tratativa dispensada ao ofendido na fase investigativa, o qual se mostra insatisfatório mediante a morosidade dos procedimentos, bem como despreparo funcional e estrutura defasada, fatores contribuintes para o sentimento de descrédito da vítima para com a justiça brasileira.
Somado a tais elementos, acrescenta-se a discrepante valoração ao delito cometido em comparação à vítima e a autoridade policial, como também a pronta desconfiança lançada sobre o lesado, consoante Fernandes (1995, p. 68-69):
A vítima, quando é atendida por um órgão policial na rua após a prática do delito, ou quando se dirige a um estabelecimento policial para noticiar o crime, alimenta grande expectativa em relação ao que lhe será fornecido: espera pronta e rápida apuração do fato criminoso, imaginando por exemplo em crimes patrimoniais que haverá imediata recuperação e devolução da coisa subtraída; aguarda uma dedicação especial ao seu problema, ao seu trauma, ao seu nervosismo, às suas lesões físicas, à sua dor moral; acha que as providências burocráticas, como elaborar um boletim de ocorrência, anotar os nomes das testemunhas, marcar uma data para o retorno, serão logo efetivadas, podendo assim voltar rapidamente ao seu ritmo normal de vida. Mas a experiência é normalmente frustrante. Há uma grande diferença entre o anseio da vítima, vinculada a um só caso, para ela especial, significativo, raro, e o interesse da autoridade ou agente policial, que tem naquele fato um a mais de sua rotina diária, marcada muitas vezes por outros de bem maior gravidade; ainda, assoberbada pelo volume, impõe-se naturalmente à autoridade a necessidade de estabelecer prioridades. [...] Mais do que tudo isso, muitas vezes a vítima é vista com desconfiança, suas palavras não merecem, logo de início, crédito, mormente em determinados crimes como os sexuais. [...]
Em razão à perspectiva vislumbrada pela vítima acerca das consequências advindas da passividade, sendo acrescidos o aparelhamento estatal disponível à resolução do delito ocorrido, bem como aos meios programados à reparação, denota-se, sobretudo nos delitos sexuais, vasta quantia de subnotificação de crimes, conforme observado pela Associação Portuguesa da Amparo às Vitimas (disponível em:
Os diversos estudos de vitimação criminal indicam que os crimes sexuais representam a tipologia de ilícitos com as taxas de denúncia mais reduzidas. A ausência de denúncia às autoridades não pode ser interpretada como indicativa do descrédito do relato da vítima ou da não veracidade da sua experiência de vitimação. A decisão de denúncia de uma experiência sexualmente violenta representa um momento de enorme dificuldade e desafio para a vítima, existindo diversos obstáculos que dificultam a sua concretização, tais como: desconhecimento relativamente ao assunto e/ou aos procedimentos legais para oficializar a denúncia; desvalorização da experiência de vitimação ou não reconhecimento enquanto crime; vergonha, receio de ser desacreditada e/ou responsabilizada pelo que lhe aconteceu; receio da estigmatização social; receio de prejudicar o/a agressor/a (particularmente nos casos em que é alguém próximo); receio das ameaças do/a agressor/a; desconfiança em relação à capacidade de atuação do sistema de justiça criminal.
Pertinente à reparação, cuidou a legislação processualista penal em abarcar dispositivos que visam assegurar maior amparo às vítimas de crimes, atuando conforme os ideais vitimológicos, portanto. Tal meio garantidor é analisado sob os enfoques de composição privada, sanção penal e finalidade da pena, prevalecendo o ideal sancionador, haja vista os benefícios ocasionados entre vítima e agressor, repercutindo também em âmbito social, como bem atestam Rosa e Mandarino (disponível em < http://www.direitorp.usp.br> - acesso em: 01.03.2018, In SAAD-DINIZ, 2017, p.319-320):
Há, basicamente, três noções sobre a reparação: a primeira avalia a reparação como composição privada do conflito, representando um modelo de solução a partir de uma despenalização parcial, desvinculando a reparação do direito penal; a segunda indica a reparação como sanção penal autônoma (terceira via), a ser alcançada por meio de prestações pecuniárias ou trabalhos de utilidade para a comunidade, sendo somada às penas privativa de liberdade e multa (primeira via) e à medida de segurança (segunda via); e, por fim, a reparação proposta como um novo fim da pena, que seria somado à retribuição e à prevenção geral e especial. Considera-se que a noção da reparação como sanção penal alternativa à pena privativa de liberdade e multa é a melhor opção, pois possibilita a restauração e a reconciliação das partes envolvidas no conflito, contribuindo para a pacificação social, na medida em que a reparação será construída conjuntamente e de acordo com as especificidades do caso concreto.
Dentre os comandos legais dispostos menciona-se o contido no artigo 91, inciso I do Código Penal, enquadrando a reparação como efeito da condenação, dispondo que “Art. 91. São efeitos da condenação: I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; [...]”. Ademais, pontua-se que referido encargo oferece ao ofensor a possibilidade da incidência de causa de diminuição da pena, atenuante, ocorrência do livramento condicional, suspensão da pena, reabilitação e extinção da punibilidade, consoante aos artigos 16, 65, inciso III, alínea b, 83, inciso IV, 78, §2o, 94, inciso III e 312, §3o, ambos de referido diploma legal.
Na seara processualista, denota-se a atribuição destinada ao magistrado quanto à fixação de valor reparatório à vitima na sentença condenatória, constante no artigo 387, inciso IV do Código de Processo Penal, incluído pela lei 11.719/2008, preceituando “Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória: [...] IV – fixará valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido;”.
De tal garantia, emana às vítimas a possibilidade de obter pretendida reparação por meio de ação civil ex delicto, assim conceituada por Leonardo Barreto Moreira Alves (2017, p. 235):
A ação civil ex delicto é a ação ajuizada pelo ofendido, na esfera cível, para obter indenização pelo dano causado pelo crime, quando existente. Nesse contexto, esclareça-se que ela envolve tanto a execução, no juízo cível, da sentença penal condenatória (art. 63 do CPP), a qual, por tornar certa a obrigação de reparar o dano causado pelo crime (art. 91, inciso I, do Código Penal), servirá de título executivo judicial, com base no [...] art. 515, inciso VI, do Código de Processo Civil de 2015, como também a ação civil de conhecimento (ação para ressarcimento do dano), em que se pleiteia reparação dos danos causados à vítima (art. 64 do CPP).
Na forma executória, é assegurado sua promoção na esfera civilista por meio do ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros, tendo por base o montante fixado em sentença condenatória transitada em julgado proveniente do meio penal, podendo ainda aludido valor ser submetido a liquidação judicial, conforme preceitua o artigo 63 do Código de Processo Penal.
Ademais, é possibilitado ao ofendido e demais legitimados a propositura de ação de conhecimento no juízo cível concomitante à ação penal em devida jurisdição. Destaca-se acerca da faculdade conferida ao magistrado da área civil suspender o curso desta até que haja julgamento definitivo nos autos penais, pelo prazo máximo de 01 (um) ano, ou ainda condicionando a propositura de ação penal no prazo de 03 (três) meses, conforme depreende-se dos artigos 64 do Código de Processo Penal e 315 do Código de Processo Civil.
Destaca-se, ainda, a existência de demais dispositivos inseridos no Código de Processo Penal, cujo objetivo coaduna ao ideal reparatório questionado, a exemplo do sequestro (art. 125), hipoteca legal (art. 134), arresto (art. 136) e busca e apreensão (art. 240).
3.3 Efetivação das prerrogativas conferidas às vítimas
Oportuno também apontar a existência de normativas destinadas às vítimas em legislações especiais. Cita-se a multa reparatória disposta no artigo 297 do Código de Trânsito Brasileiro, preceituando o adimplemento pelo ofensor à vítima ou seus aos seus sucessores quantia relacionada aos prejuízos materiais suportados. Atenção se deve também à lei 9.605/98, relativa aos crimes ambientais, especialmente ao artigo 12, estabelecendo pagamento pecuniário às vítimas ou à entidade pública ou privada com fim social. Outrossim, mister o destaque de preceitos constantes na lei 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, quanto à atuação conjunta dos entes federativos e ações não governamentais (art. 8o), bem como a medidas protetivas proporcionadas (arts. 18 – 24).
Todavia, conforme assevera Oliveira (1999, p. 157), a prática reparatória não se mostra habitual, o que não denota prejuízo ao cumprimento da finalidade repressiva e preventiva da condenação:
Em que pese ter sido prevista em vários artigos, a efetiva reparação do dano não tem sido prática comum e sua ausência, no mais das vezes, não constitui empecilho algum à obtenção do fim pretendido, bastando a juntada do atestado de pobreza. Considerando que a grande maioria dos acusados e condenados pela justiça criminal é formada por pessoas pobres, defendidas por advogados públicos, com frequência nem mesmo a juntada de declaração se faz necessária. Existe, pode-se dizer, uma presunção de pobreza, de modo que, na prática, somente diante de algum indício de possuir o condenado meios suficientes é que lhe é exigida a comprovação de reparação de danos.
Outro mecanismo presente na legislação brasileira em prol das vítimas de crimes consiste na criação dos Juizados Especiais Criminais, instituídos pela lei 9.099/95.
Aludido sistema, nas palavras de Mazzutti (disponível em
Sem dúvida alguma, a Lei 9.099/95 representou a introdução da questão vitimológica no direito penal brasileiro. Não que o nosso ordenamento a desconhecesse. [...] Mas a Lei 9.099/95 é efetivamente o diploma legal que refletiu, no ordenamento penal brasileiro, o movimento vitimológico internacional de uma maneira mais evidente.
Como meios alternativos à resolução do conflito, menciona-se a existência do instituto da composição civil realizada entre vítima e ofensor, disposta no artigo 74 da lei 9.099/95, a qual frutífera e realizada em ação penal privada ou pública condicionada à representação, será posteriormente homologada pelo magistrado, importando em renúncia quanto à apresentação de representação ou queixa. Caso não haja acordo e se tratando de ação penal pública incondicionada ou feita a representação em momento pretérito, preleciona o artigo 76 de aludido diploma legal quanto à possibilidade de aplicação da transação penal, consistente em pena restritiva de direitos ou multa. Todavia, sendo ainda assim infrutífera, inicia-se o procedimento judicial de forma célere e simplificada, reunindo todos os atos na mesma audiência, conforme depreende-se artigo 81de referida legislação.
No tocante aos benefícios gerados pela submissão de conflitos à resolução consensual, denotam-se de grande impacto e valia sobretudo às vítimas, assim demonstradas nas palavras de Mazzutti (disponível em
O modelo de consenso apresenta enormes vantagens para a vítima criminal. A possibilidade de obtenção da pacificação social para a vítima é sem precedentes se formos compará-la com a Justiça Comum. Lá, ela simplesmente não existe, pois a vítima tem um papel secundário no modelo clássico. Não podendo dar a Justiça Criminal comum solução para todas as causas criminais, o caminho da Justiça Consensual abre-se como perspectiva rápida de solução dos problemas.
Entretanto, vale ressaltar a crítica apontada por Rosa e Mandarino (disponível em < http://www.direitorp.usp.br> - acesso em: 01.03.2018, In SAAD-DINIZ, 2017, p. 322), na qual aduzem o não atendimento efetivo da verdadeira ideologia e intensão originárias da lei, relegando as pretensões da vítima a segundo plano:
Apesar de ter surgido como uma esperança na implementação de um diálogo entre a vítima e o ofensor e de construção de uma solução conjunta para os danos gerados pelo conflito, pesquisas têm demonstrado a aplicação afobada da composição, visando apenas o rápido encerramento do procedimento, sem a preocupação com a verdadeira finalidade do instituto que é a participação da vítima e do ofensor na construção conjunta de um acordo de composição dos danos.
Malgrado tal apontamento, caminha a sistemática dos Juizados Especiais ao encontro dos preceitos da Justiça Restaurativa. Segundo Mazzutti (disponível em
Contudo, ante aos pontos benéficos gerados pela Justiça Restaurativa e o surgimento desta em razão da aparente ineficácia do Direito Penal, não é defendida a total substituição deste por aquela, em virtude de suas características necessárias a certos tipos de delitos, como bem atesta Marcelo Gonçalves Saliba (disponível em < https://uenp.edu.br> - acesso em: 03.05.2018, 2007, p. 123,):
A superação do paradigma retributivo pelo paradigma restaurativo está embasada no saturado sistema penal, ante sua crise e a conseqüente (sic) deslegitimação. A abolição do sistema, todavia, não é defendida e sequer aceita como medida viável, porque vivemos numa nova época de “modernidade tardia” ou “pós-modernidade”, em que os conflitos sociais exigem medidas amargas para pacificação e mantença da liberdade dentro do grupo social. Ainda não se vislumbra algo melhor que o Direito penal, porém podem-se vislumbrar medidas alternativas e complementares como adequadas ao Estado Democrático de Direito.
Visando aos danos oriundos da prática criminosa os quais se estendem a diversas áreas além da patrimonial e física, como moral, psíquica e social, além da recomendação feita por legislações nacional e internacional acerca do integral amparo às vítimas de crime, menciona-se a criação da lei 9.807/99, a qual estabelece a criação do Programa Federal de Assistência à Vítimas e à Testemunhas Ameaçadas, destinados ainda aos “[...] acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal.” (disponível em
É objetivada a participação não somente das vítimas diretas mas também as que alguma forma foram alcançadas pelos efeitos crime, a exemplo de familiares. Tal finalidade é observada no programa acima supracitado (art. 2o da lei 9.807/99), tal qual em outros programas assistenciais, como o Centro de Referência às Vítimas de Violência (CNRVV), Centro de Referência de Apoio à Vítima (CRAVI) e o Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (PROVITA).
Segundo Mazzutti (disponível em
Em razão de política assistencialista, bem como preventiva da vitimização realizada por programas assistenciais, aponta Jorge (http://www.liber.ufpe.br> - acesso em 07.03.2018, 2002, p. 116) um dos benefícios oriundos de tal sistemática:
A primeira delas é a intervenção não-penal dos poderes públicos para evitar o delito. A prevenção criminal, aquela da ameaça da aplicação da pena, ou da efetiva aplicação, além de ser dispendiosa, pois o Estado tem que manter todo o aparato da justiça criminal, é também coercitiva, em sendo aplicada pelos poderes públicos, e não pela comunidade. É também tardia, porque, em regra, o delito já aconteceu e as pessoas não deixam de cometer os delitos que desejam devido à ameaça da aplicação de uma pena.
Nada obstante à criação de medidas assistenciais que buscam dirimir os danos muito além da esfera física e econômica apresentados pela vítima, estas são objeto de críticas em respeito ao não alcance do objetivo pretendido, como bem atesta Shigueo Kuwahara (disponível em
Há uma grande complexidade envolvida na atuação destes Centros de Atendimento à Vítima. Na forma como foram idealizados, se tornaram inviáveis sob o ponto de vista de políticas públicas, uma vez que tem alto custo e poucos resultados. Ademais, não há interesse político no investimento nestes centros, uma vez que não dão retorno eleitoral.
Cumpre informar, segundo Mazzutti (disponível em
Considerações finais
A vítima, até os dias atuais, percorreu por longa trajetória histórica, sendo percebida ao longo desta por diversas conotações convertidas em fases, quais sejam, protagonismo, neutralização e redescobrimento. Detinha, a princípio, o poder de resolução dos conflitos dos quais se encontrava envolvida, retribuindo proporcionalmente ao ilícito praticado, por meio da vingança privada, posteriormente amenizada em face do surgimento de representantes da comunidade, cuja função era fiscalizar a vindicta a ser empregada.
Sequencialmente, em decorrência à publicização do Direito Penal, fora retirado das mãos da vítima o ius puniendi, estabelecendo o seu exercício como atribuição exclusiva do Estado. Assim, ante à incumbência destinada, passou-se a observar intensa movimentação estatal na perseguição do acusado, de modo que consistia como centro das escolas criminológicas o estudo da tríade crime – criminoso – pena.
Destarte, a vítima presencia seu esquecimento frente à sistemática estatal, não sendo a esta destinado amparo às mazelas ocasionadas pela passividade criminal. Todavia, reascende na história após a Segunda Guerra Mundial, tendo as atenções mundiais sido dirigidas a sua existência e comportamento, haja vista as atrocidades cometidas.
A partir desse período desponta o movimento vitimológico, havendo intensa movimentação mundial acerca da compreensão das vítimas. Contudo, os ideais difundidos pertencentes à Vitimologia, encarregavam-se quanto à análise conjunta da vítima e o criminoso, apurando a contribuição daquela para a ocorrência criminal. Logo, a vítima era entendida como meio, ofuscada mediante a permanente atenção demasiada ao criminoso, não detendo conotação de sujeito de direitos.
Entretanto, à medida que os estudos vitimológicos foram aprimorados, originou-se nova vertente, lançando sobre a vítima olhar humanizado. Passou-se a entender que esta também consiste em ser humano e que seus direitos, dentre eles o devido amparo em decorrência aos efeitos imediatos e mediatos do crime, devem ser resguardados, consoante ao valor humano universal apregoado pelos Direitos Humanos.
Resultante a isso, fora criada a Declaração sobre Princípios Fundamentais de Justiça para Vítimas de Delitos e Abusos de Poder, de 29 de novembro 1985, pela Resolução n. 40/35 aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, abarcando as devidas tratativas de inclusão da vítima ao processo administrativo e judicial, bem como a garantia de assistência aos danos suportados, sendo recomendada a adoção dos preceitos desta por todos os Estado membros da Organização das Nações Unidas.
Consequentemente, cuidou o Brasil em inserir em seu Ordenamento Jurídico ideais vitimológicos, assegurando maior participação da vítima na persecução penal e a adoção de medidas reparatórias à gama de prejuízos que padece oriundos da passividade criminal.
Não obstante à presença de dispositivos atinentes aos direitos das vítimas, denota-se que a proteção legal desta ainda é falha, haja vista a pouca quantidade de normativas exclusivas a estas. Frisa-se, ainda, a precariedade estrutural e funcional disponível ao atendimento das vítimas, resultante no agravamento de sua dor pelas instâncias formais, consequente vitimização secundária.
Ademais, observa-se a predominância do caráter econômico das reparações concedidas, nem sempre efetivadas, todavia, haja vista a baixa condição econômica do ofensor.
No tocante às medidas de assistência social, moral e psíquica fornecidas às vítimas diretas e indiretas, destaca-se sua contribuição para amenização dos danos e alcance da pacificação social, contudo, não detém a capacidade de atendimento à grande demanda existente, posto que faltam recursos para operacionalização, estes de alto custo ao Poder Público.
Considerando tais fatores, é extraído a percepção de agravamento pelos danos suportados pelas vítimas, resultante do desamparo e da insatisfatória resposta obtida frente à apuração do delito, levando-a desacreditar nas instâncias formais brasileiras, bem como a propagar a falsa ideia de que Direitos Humanos só servem para defender bandido.
Vê-se a real necessidade de criação e efetivação de medidas governamentais em prol dos interesses das vítimas, atendendo-os satisfatoriamente, sem com isso minorar as garantias destinadas ao ofensor.
Infelizmente, o olhar jurídico permanece voltado ao criminoso em demasia, resguardando-o diversas prerrogativas, não detendo as vítimas igual tratativa, em que pese figurar de igual modo ao posto de sujeito de direitos.
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