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Resumo:
Nesse debate, contrapuseram-se duas concepções de Estado: a democracia constitucional, protegida por um Tribunal Constitucional, de Kelsen, e o Estado total, no qual o Presidente do Reich é o guardião da Constituição, de Carl Schmitt.
Texto enviado ao JurisWay em 30/03/2017.
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Hüter der Verfassung[1]
Sérgio Ricardo de Freitas Cruz[2]
1. Kelsen vs. Schmitt (Wer soll der Hüter der Verfassung sein?)[3]
Após a Suprema Corte ter se tornado a guardiã da Constituição de 1787, nos Estados Unidos da América, bem como depois do Parlamento ter emergido como principal instituição do Reino Unido, houve um dos debates mais importante da história do constitucionalismo, no qual Hans Kelsen e Carl Schmitt discutiram sobre quem deveria ser o guardião da Constituição de 1919, durante a crise da República de Weimar, que levaria ao poder, na Alemanha, o Partido Nazista, de Adolf Hitler[4].
Nesse debate, contrapuseram-se duas concepções de Estado: a democracia constitucional, protegida por um Tribunal Constitucional, de Kelsen, e o Estado total, no qual o Presidente do Reich é o guardião da Constituição, de Carl Schmitt.
Kelsen proferiu, na Associação dos Constitucionalistas Alemães, a Conferência sobre "a natureza e o desenvolvimento da Justiça Constitucional". Nessa conferência, expôs a justificação do cabimento e da necessidade de um tribunal independente para apreciar a conformidade das leis com a Constituição, fundando, assim, uma noção alargada de "Justiça Constitucional" (autônoma), que se substituía à noção limitada de "Justiça do Estado", até então predominante nos estudos constitucionais alemães.
Em reação a conferência de Kelsen, no princípio de 1931, Carl Schmitt, publica um artigo intitulado Der Hüter der Verfassung (O guardião da Constituição), além de outros escritos nos quais critica a teoria de Kelsen e a democracia parlamentar. Pouco tempo depois, Kelsen publica, em resposta, Wer soll der Hüter der Verfassung sein? (Quem deve ser o guardião da Constituição?).[5]
2. O Führer e o apoio da Constituição de Weimar
Diz o artigo 48 º da Constituição de Weimar[6]:
“Art. 48.º da Constituição de Weimar de 1919: "No caso de um estado não cumprir os deveres que lhe são prescritos pela Constituição e pelas leis do Império, compete ao Presidente decretar intervenção, ainda que com auxílio de força armada. No caso de perturbação ou ameaça graves à segurança e ordem pública no Império compete ao Presidente decretar as medidas necessárias ao restabelecimento da ordem e da segurança, mesmo com o recurso à força armada. Para esse fim, pode suspender total ou parcialmente, os direitos fundamentais dos artigos 114.º, 115.º, 117.º, 118.º, 123.º, 124.º, e 153.º Essas medidas devem ser levadas pelo Presidente imediatamente ao conhecimento do Parlamento, o qual pode exigir um relatório circunstanciado acerca delas. Verificada urgência, o governo de qualquer estado pode, dentro do território deste adoptar medidas provisórias da mesma natureza das que estão indicadas no § 2.º."[7]
Para uma compreensão mais detida, necessário se faz entender que Hitler tinha o respaldo da Constituição de Weimar:
O Presidente é eleito "por todo o povo alemão." Ele deve ter pelo menos 35 anos de idade (Art. 41). A duração do mandato do presidente é de sete anos, o Reichstag pode com uma maioria de dois terços para um referendo sobre a destituição do presidente decidir (Art. 43). Representantes legais internacionais do presidente do Império (Art. 45), comandante ao longo de toda a Wehrmacht do Reich (Art. 47). Ele pode colocar para restaurar os direitos fundamentais Império de paz suspensas e o necessário para restaurar as medidas de ordem pública (Art. 48 par. 2). Esta última competência foi entendida em prática estatal e da jurisprudência que o poder de adoptar regulamentos de emergência.[8]
Na década de 1930, as concepções de Carl Schmitt dominam a Alemanha. Em 1932, eleições transformaram o Partido Nacional-Socialista, de Hitler, no maior partido do Parlamento. Em 30 de janeiro de 1933, Hitler torna-se chanceler e nas eleições que se seguiram, o Partido Nacional-Socialista obtêm dezessete milhões de votos ou 44% do eleitorado. Em 1934, Hitler torna-se Presidente do Reich e implanta o seu regime totalitário que dura até 1945, quando houve invasão da Alemanha pelas democracias ocidentais e pela ditadura comunista soviética.
“Wenn man die Weimarer Verfassung rückblickend überschaut, dann erkennt man, daß sie nicht ohne Mängel und Fehler ist. Aber von welcher Verfassung könnte und müßte man das nicht sagen, überhaupt von welchem Menschenwerke gilt das nicht? Jedenfalls war sie ein Segen für unser Volk schon dadurch, daß sie zustande kam. Denn ohne sie wären wir nicht so schnell zu einer einigermaßen ruhigen staatlichen Tätigkeit gekommen. Und mag auch manchmal unter dem Zwang der Verhältnisse von der Verfassung abgewichen worden sein, in den großen Linien hat man sich daran gewöhnt, daß sie unser oberstes Recht darstellt. Jeder, der sein Vaterland wahrhaft liebt, wird nicht frevelhaft es etwa dahin kommen lassen, daß die Ehrfurcht vor dem Werte einer Verfassung schwindet und man sie mit unlauteren Mitteln bekämpft. Das darf naturgemäß nicht heißen, daß sie starr und unabänderlich ist. […] Nicht Umsturz, sondern naturgemäße Um- und Weiterbildung führt in gesunder Weise weiter.“[9] – Friedrich Stahl
Com base nesse contexto histórico, Carl Schmitt inicia sua obra O Guardião da Constituição destacando que o exame judicial material não se constituía na Alemanha em um guardião da Constituição. Em outras palavras, o poder conferido aos tribunais, por meio da decisão de 4 de novembro de 1925, de examinarem as leis ordinárias em sua coerência material com os comandos constitucionais e, em caso de conflito, negarem à lei ordinária sua aplicação, não teria o condão de transformá-los em guardiões da Constituição.
Dessa forma, não obstante o juiz estar vinculado à lei, seria seu dever deixar de aplicar determinada lei ordinária ao caso concreto devido à sua incompatibilidade com a Constituição. Esse exame judicial do tribunal do Reich alemão, todavia, teria uma importância modesta em comparação ao controle judicial de normas exercido pelo tribunal norte-americano. Ele não possuiria como escopo os princípios gerais da Constituição, tais como a boa-fé e a razoabilidade, mas dependeria de normas que possibilitassem uma subsunção correspondente ao fato típico. Tratar-se-ia, portanto, de um controle exercido por qualquer juiz (difuso) e concreto ou incidental (presta-se à solução de determinada lide), exercendo, para as decisões de outras instâncias, um efeito como precedente de certa maneira previsível.
No entanto, esse exame judicial material não implicaria na politização da justiça, ao invés da juridicização da política? O jurista alemão era contrário à defesa da Constituição por parte do Judiciário porque o mesmo sempre julgaria a posteriori e analisaria apenas a subsunção de um fato a uma norma. Como salienta Bercovici, “como a questão central é a determinação do conteúdo a norma, para Schmitt este problema é da legislação, não da justiça (...) Carl Schmitt entendia que o controle judicial de constitucionalidade só poderia existir em um Estado Judicialista, em que toda a vida política fosse submetida ao controle dos tribunais”[10]
3. Sem conclusão (Por enquanto)
A questão do controle de constitucionalidade pressupõe o estudo de quem seria o verdadeiro guardião da Constituição, isto é, aquele responsável pela análise de sua eventual violação pela edição de leis e atos normativos. Com base no caráter contramajoritário da jurisdição constitucional, Carl Schmitt defendia que o controle judicial abstrato das leis pelas Supremas Cortes guardaria grave tensão com a democracia, eis que atribuído a um reduzido número de indivíduos. Percebe-se que Schmitt procurava opor o político ao jurisdicional, como o exercício do poder em face o exercício do direito.
Por outro lado, Hans Kelsen defendia a existência de um Tribunal Constitucional que assumiria a função de guardião da Constituição. Para o autor, o legislador autorizaria o juiz a utilizar uma espécie de poder legiferante, permitindo que os magistrados criassem o direito dentro de limites. Dessa forma, o judiciário exerceria uma função política, diferenciando-se do legislativo apenas quantitativamente, não qualitativamente.[11]
O articulista aqui entra no círculo vicioso de ouroboros. Frente à instigação levantada pelo eminente MSc. Thiago Pádua, temos um positivista democrata e um democrata positivista. Aspectos históricos ainda do século XIX, serão atacados em outro artigo posterior.
Em uma não conclusão, todavia, provocação acadêmica, reflito texto de PEDRO DA SILVA MOREIRA que desinquieta os espíritos e nos leva a ponderar com mais oxigênio. Diz ele:
Se a Corte Constitucional passa a atuar à luz do espírito da nação, da moralidade das leis ou do objetivo puro de uma iniciativa popular, a missão contramajoritária dilui-se e, na consagração da autonomia do político, passamos de Kelsen a Schmitt. E, se isto é assim, se o Supremo Tribunal Federal converte-se em guardião de uma decisão política, devendo considerar, nas palavras do Ministro Fux, o “espírito do povo brasileiro”, seria honesto com Carl Schmitt reconhecer que ele tinha razão e indagar se é um órgão judicial, não eleito, o mais indicado para captar essa tal substância nacional, a moralidade da Constituição como manifestação eminentemente política. É precisamente nesse contexto que ressurge a pergunta do Ministro Ayres Britto, que abriu este trabalho: “Nós vamos segurar pela cauda a eficácia de uma lei concretizadora da moralidade”? Esse questionamento não tem sentido no horizonte kelseniano da jurisdição constitucional. Se a função da Corte é contramajoritária, a pergunta não deveria ter sido formulada, pela simples razão de ser inútil e irrelevante para solucionar a controvérsia. Todavia, se o contexto é schmittiano, se nada de jurídico há na justiça constitucional, mas apenas o espaço para uma decisão política fantasiada de solução normativa, então a pergunta do Ministro Ayres Britto é central. Mas talvez, sendo este o cenário, modificar-se-ia o sujeito e não a pergunta. Afinal, por que razão não poderia ser o Führer o guardião da Constituição?[12]
Para esta, uma ordem, ou neste caso, um governo coercitivo não pode ser avaliado como injusto, baseado nos princípios de valores, mas sim se este é legitimo perante a lei. Contudo o governo totalitário, em especial a Lei de Cidadania do Reich na constituição de Weimar, é a mais perfeita exemplificação de uma norma perfeita do ponto de vista jus positivista, mas trágica do ponto de vista fático. Eis o dilema.
Bibliografia:
KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ROMANO, Roberto. Conservadorismo romântico: origem do totalitarismo. 2. ed., São Paulo: Editora da Unesp.
SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
[1] Guardião da Constituição.
[3] Quem deve ser o guardião da Constituição?
[4] Segundo Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Branco, o European Communities Act, de 1972, atribuiu hierarquia superior ao direito comunitário em face das leis formais aprovadas pelo Parlamento. Além disso, com a aprovação do Human Rights Act, em 1998, confiou-se aos tribunais britânicos a aferição da legitimidade das leis em face da Convenção de Direitos Humanos. Apesar de não ser possível a declaração da nulidade da norma, os tribunais podem constatar a incompatibilidade. Além disso, em 1º de outubro de 2009, passou a funcionar a Suprema Corte do Reino Unido. (Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 1050)
[5] KELSEN, Hans. Quem deve ser o guardião da Constituição? in: Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[6] Artikel 48. Wenn ein Land die ihm nach der Reichsverfassung oder den Reichsgesetzen obliegenden Pflichten nicht erfüllt, kann der Reichspräsident es dazu mit Hilfe der bewaffneten Macht anhalten.
Der Reichspräsident kann wenn im Deutschen Reiche die öffentliche Sicherheit und Ordnung erheblich gestört oder gefährdet wird, die zur Wiederherstellung der öffentlichen Sicherheit und Ordnung nötigen Maßnahmen treffen, erforderlichenfalls mit Hilfe der bewaffneten Macht einschreiten. Zu diesem Zwecke darf er vorübergehend die in den Artikeln 114, 115, 117, 118, 123, 124 und 153 festgesetzten Grundrechte ganz oder zum Teil außer Kraft setzenVon allen gemäß Abs. 1 oder Abs. dieses Artikels getroffenen Maßnahmen hat der Reichspräsident unverzüglich dem Reichstag Kenntnis zu geben. Die Maßnahmen sind auf Verlangen des Reichstags außer Kraft zu setzen.Bei Gefahr im Verzuge kann die Landesregierung für ihr Gebiet einstweilige Maßnahmen der in Abs.2 bezeichneten Art treffen. Die Maßnahmen sind auf Verlangen des Reichspräsidenten oder des Reichstags außer Kraft zu setzen.
Das Nähere bestimmt ein Reichsgesetz.In: Verfassungen des Deutschen Reichs.(1918-1933)
[7] (Cf. MIRANDA, Jorge. Textos Históricos de Direito Constitucional. 2.º. ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990. p. 277.) Os direitos constitucionais aos quais o artigo faz referência são: a liberdade, a inviolabilidade do domicílio, sigilo de correspondência, liberdade de expressão do pensamento, liberdade de reunião, liberdade de associação, e direito de propriedade, respectivamente.
[8] Der Reichspräsident wird „vom ganzen deutschen Volke“ gewählt. Er muss mindestens 35 Jahre alt sein (Art. 41). Die Amtszeit des Reichspräsidenten beträgt sieben Jahre, der Reichstag kann mit einer Zweidrittelmehrheit eine Volksabstimmung über die Absetzung des Reichspräsidenten beschließen (Art. 43). Der Reichspräsident ist völkerrechtlicher Vertreter des Reiches (Art. 45), Oberbefehlshaber über die gesamte Wehrmacht des Reichs (Art. 47). Er kann zur Wiederherstellung des Reichsfriedens Grundrechte außer Kraft setzen und die zur Wiederherstellung der öffentlichen Sicherheit und Ordnung nötigen Maßnahmen treffen (Art. 48 Abs. 2). Letztere Kompetenz wurde in Staatspraxis und Rechtswissenschaft als Befugnis verstanden, Notverordnungen zu erlassen.
[9] "Se alguém pode ignorar a Constituição de Weimar, em retrospecto, percebe-se que não é sem falhas e erros. Mas de qual estado pode e deve claramente não ser dito, em tudo de que o homem trabalha, não é? Enfim, foi uma bênção para o nosso povo já na medida em que surgiu. Porque sem eles não teríamos em breve chegar a algum tipo de atividade estatal tranquila. E às vezes pode ter sido dispensada sob a pressão das circunstâncias da Constituição, nas longas filas para se acostumar com isso, que representa a nossa lei maior. Quem ama seu país verdadeiramente não é um sacrilégio deixar as coisas no sentido de que a reverência desaparece antes que os valores da Constituição e para combatê-los com meios desleais. Isso não deve significar que é da natureza rígida e imutável. [...] Não revolução, mas a natureza correcta aplicação e formação continua de uma forma saudável ".
[10] BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. In: LIMA, Martonio Mont’ Alverne Barreto et. al. Teoria da Constituição: Estudos sobre o Lugar da Política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 75.
[11] Cfr. O guardião da Constituição segundo as concepções de Carl Schmitt e Hans Kelsen in: https://jus.com.br/artigos/21201/o-guardiao-da-constituicao-segundo-as-concepcoes-de-carl-schmitt-e-hans-kelsen/1 (em 25 de março de 2017)
[12] O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ENTRE SCHMITT E KELSEN: O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO NO JULGAMENTO DA “FICHA LIMPA” (BRAZILIAN SUPREME COURT BETWEEN SCHMITT AND KELSEN: THE GUARDIAN OF THE CONSTITUTION IN THE JUDGMENT OF “CLEAN RECORD LAW”).
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