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CIDADANIA: PARA ALÉM DOS DIREITOS POLÍTICOS


Autoria:

Letícia Gheller Zanatta Carrion


Mestre em Direito pela URI, Especialista em Direito Público pela UNIJUÍ, Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pelotas, Advogada, Professora na FAI Faculdades de Itapiranga-SC.

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Resumo:

A realidade multicultural amplia a Cidadania, alarga seu papel, âmbito de proteção e atuação. Esta nova Cidadania agrega o respeito à diversidade de identidades, a convivência com as diferenças e, fundamentalmente, à observância dos Direitos Humanos.

Texto enviado ao JurisWay em 02/12/2014.

Última edição/atualização em 04/12/2014.



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CIDADANIA: PARA ALÉM DOS DIREITOS POLÍTICOS

 

Letícia Gheller Zanatta Carrion [1]

 

SUMÁRIO: 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS. 2 A IDEIA DE CIDADANIA. 3 OS DIREITOS POLÍTICOS COMO EXPRESSÃO ÚNICA. 4 A NOVA CONCEPÇÃO A PARTIR DO MULTICULTURALISMO E DOS DIREITOS HUMANOS. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.

 

RESUMO:O presente trabalho pretende demonstrar que a Cidadania deixou de ser reduzida somente aos direitos políticos, uma vez que estes representam apenas uma de suas facetas. Diante desta realidade multicultural, a Cidadania amplia-se, alargando seu papel, seus âmbitos de proteção e atuação. Esta nova Cidadania agrega o respeito à diversidade de identidades, a convivência com as diferenças e, fundamentalmente, à observância dos Direitos Humanos.

 

Palavras-chave:Cidadania, Direitos Políticos e Direitos Humanos.

 

 

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

 

Historicamente, a cidadania caracteriza-se por se tratar de um conceito em aberto, que se adequa e se desenvolve de acordo com as necessidades e particularidades de dado momento político e social. Desde o surgimento desta idéia, muito se conceituou e teorizou acerca de quais bens e direitos ela engloba. Atualmente, faz-se imprescindível que tal fundamento seja reavaliado, uma vez que está ampliando seus domínios ao ligar-se, definitiva e invariavelmente, aos Direitos Humanos.

Com a realidade que se impõe, torna-se fundamental a reavaliação e reformulação de conceitos fundamentais que norteiam e embasam a sociedade mundial, dentre os quais destaca-se, sobremaneira, a questão da cidadania, sua representação, seu significado e o papel que ocupa no mundo multicultural.

É necessário analisar a cidadania, bem como seu papel e sua contribuição social na conquista dos direitos políticos. Deve-se, também, verificar como a cidadania tem ampliado seu conceito e seu foco quanto aos bens a serem tutelados e protegidos, uma vez que votar e poder ser votado deixaram de ser as únicas condições para a definição de cidadania, que atualmente volta sua atenção aos Direitos Humanos.

A ampliação dos horizontes conceituais da idéia de cidadania faz com que se pretenda, sob este pretexto, a definição de uma realidade com efetivo alcance de direitos no plano do exercício de vários aspectos da participação na justiça social, de concretas práticas de igualdade, no envolvimento com os processos de construção do espaço político, do direito de ter voz e de ser ouvido, da satisfação de condições necessárias ao desenvolvimento dos indivíduos e da coletividade, do atendimento a prioridades e exigências de Direitos Humanos.  

Tem-se que transpor a dimensão tradicional que marca a idéia e o conceito de cidadania, a fim de superar suas limitações e deficiências. Ao invés de manter tal definição, cujo sentido vem de seu princípio, o que se quer é expandir o sentido da cidadania, em direção às questões sociais, às questões da política contemporânea e aos grandes desafios dos Direitos Humanos, diante da realidade multicultural.

 

2 A IDEIA DE CIDADANIA

 

O tema “cidadania” vem sendo muito discutido e abordado sob diversas perspectivas. Para se entender as alterações das representações e práticas políticas, faz-se necessário destacar que a cidadania não é apenas uma condição jurídica com definições rígidas, ao contrário, está em franca evolução e mutação, abarcando novos elementos ao seu conceito e à sua prática, associada ao estágio atual da globalização, à crise do modelo moderno do Estado-Nação e ao impacto das novas tecnologias de comunicação no exercício cidadão. Esta globalização abala a noção de cidadania de forma paradoxal, uma vez que transita entre o político e o cultural, ao mesmo tempo em que se difunde como centrada nos direitos humanos e sociais, no respeito à diversidade cultural e à institucionalidade liberal-democrática.

O conceito e os conteúdos da cidadania têm sido objeto de reflexão filosófica e de desenvolvimento político em três grandes linhas complementares, sendo que a liberal remete seu conteúdo aos direitos civis e políticos, a social-democrata estende o conceito e a sua normativa aos direitos econômicos, sociais e culturais e a republicana a associa a mecanismos e sentimentos de pertença do indivíduo a uma comunidade ou Nação e à participação dos sujeitos na “coisa pública” e na definição de projetos de sociedade.

João Martins Bertaso afirma que a cidadania, tanto civil quanto política, abarca os direitos individuais, pressupondo a igualdade formal ao considerar o sujeito de modo abstrato, como sujeito de direitos, sendo “direitos iguais para pessoas formalmente iguais”. Mais além, ao tratar da cidadania social, compreendida como direitos sociais e econômicos, encara o sujeito de direitos como estando inserido, de forma concreta, no contexto social (2002, p. 420 e 421).

Parte da sociologia faz um estudo para verificar a possibilidade dos indivíduos, ao serem considerados como cidadãos, como detentores de direitos universalmente reconhecidos pelo Estado e por outros indivíduos, fazendo a análise a partir da noção de cidadania como um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade.

A cidadania é entendida como o conjunto de direitos estabelecidos pelo Estado aos seus membros integrais e seu exercício é identificado com o uso desses direitos legalizados. Sob este prisma, a cidadania é o reconhecimento, por parte do Estado, de um conjunto de direitos através da legislação. O Estado, atribuindo direitos a determinado grupo de indivíduos, concede e reconhece o status de cidadãos. Mas é mais que um conjunto de direitos, cidadania é também um sentimento de pertencimento a uma dada comunidade, a uma sociedade política com determinados valores comuns.

A idéia de cidadania está associada a direitos legitimados pelo Estado, mas também vinculada a uma identidade social, a um sentimento de pertencimento a uma determinada comunidade de sentidos, o que independe do reconhecimento por parte do Estado e que está muito mais vinculado ao campo do simbólico. A cidadania não se dá apenas nas relações formais entre Estado e sociedade. Nesta perspectiva, cidadão é o sujeito histórico que cobra do Estado, por meios formais ou informais, o reconhecimento daquilo que julga um direito seu independente de estar, esse princípio, regulamentado juridicamente pelo Estado.

Alain Touraine afirma que a cidadania necessita de integração social, uma consciência de filiação a uma sociedade, mas também a uma comunidade identificada com uma cultura e uma história. Para ele, a idéia de cidadania refere-se à responsabilidade política de cada um, defendendo “a organização voluntária da vida social contra as lógicas não políticas, que alguns acham ser ‘naturais’, do mercado ou do interesse nacional”. Desse modo, a cidadania não pode ser reduzida à consciência nacional, uma vez que não é a nacionalidade, e sim o fundamento ao direito de participar, direta ou indiretamente, na gestão da sociedade (1996, p. 97).

Vera Regina Pereira de Andrade refere que o caráter de estratificação da cidadania é estabelecido pelo Direito, que, ao fazer uso do discurso da igualdade de todos perante a lei, permite que, na prática, a indivíduos desiguais sejam concedidos direitos desiguais, afirmando que “existem direitos de cidadania formalmente desiguais para indivíduos desiguais” (1993, p. 69).

A mesma autora dispõe que a cidadania liberal lato sensu “pode ser vista como um conjunto de direitos naturais/contratuais, incluindo os correlatos direitos erigidos em torno da liberdade individual, inclusive o direito à representação política” (1993, p. 111). Mais adiante, ela define a cidadania stricto sensu como sendo a participação no poder, através de representação, como forma de proteger a liberdade.

 

3 OS DIREITOS POLÍTICOS COMO EXPRESSÃO ÚNICA

 

A cidadania tem sido conceituada de forma vaga e imprecisa. Uns identificam-na com a nacionalidade, outros com os direitos políticos, o Direito Constitucional a relaciona aos dois conceitos. A Teoria Geral do Estado liga a cidadania ao elemento povo, como parte integrante do conceito de Estado. Dessa forma, torna-se fácil perceber que no discurso jurídico dominante, a cidadania está relacionada a estes três elementos (nacionalidade, direitos políticos e povo), apresentando-se como algo ainda indefinido.

Constitucionalistas referem que a primeira manifestação da cidadania é a idéia de representação política, como base do conceito de democracia representativa, qualificando os participantes da vida do Estado e colocando o cidadão como indivíduo dotado do direito de votar e ser votado.

A modernidade trouxe uma noção de cidadania que se afirmava por demarcar diversos tipos de tradicional identidade, pois pretendia combinar os direitos universais com o espaço territorial da nação, que introduzia os princípios da liberdade e da igualdade perante a lei, universalizando os direitos. A modernidade inaugurou uma cidadania que, no início, era tão-só passiva, haja vista o domínio das concepções políticas. O exercício ativo dos direitos políticos voltava-se, nesta fase, a confinar-se às elites proprietárias ou de especial estrato social.

A afirmação da cidadania dita ativa deve-se ao crescimento dos movimentos sociais e de massa, bem como à luta pela conquista dos direitos universais. A participação política ganha real cidadania histórica a partir do século XX, o século das ideologias.

A cidadania reflete a combinação de várias práticas sociais, como forma de exercício, não se resumindo às relações formais entre Estado e sociedade. A cidadania não se resume ao voto e cidadão não é apenas o eleitor, mas o sujeito histórico que cobra do Estado, por meios formais ou informais, o reconhecimento do que julga um direito seu.

Ocorre uma transformação significativa na sociedade em que se desenvolveu a cidadania ativa e a participação política. Vivemos num mundo onde as tradicionais concepções de pertencimento, que serviam de cobertura à atividade e à participação política, quer as de caráter ideológico ou sociológico, entraram em colapso sem que se vislumbre um substituto agregador, mobilizador, um substituto capaz de estimular e alavancar novas identidades ou afinidades coletivas.

Esse processo de relativização da política acarreta mudanças profundas, no próprio conceito de cidadania. Assim, o exercício da cidadania já não significa só ação na esfera exclusiva da política, discurso político, lógica de poder ou de contrapoder. Não se confunde com comunitarismo nem com exercício puro da liberdade.

Alain Touraine refere que a cidadania exige a integração social, a consciência de filiação a uma sociedade, mas também a uma comunidade ligada por uma cultura e história. A representatividade faz referência a interesses particulares associados a uma concepção instrumental do poder político (1996, p. 45).

O mesmo autor assim se manifesta:

 

Não há cidadania sem a consciência de filiação a uma coletividade política, na maior parte dos casos, a uma nação, assim como a um município, a uma região, ou ainda a um conjunto federal (...). A democracia se apóia na responsabilidade dos cidadãos de um país. Se estes não se sentem responsáveis pelo seu governo, porque este exerce seu poder em um conjunto territorial que lhes parece artificial ou estranho, não pode haver representatividade dos dirigentes ou livre escolha destes pelos dirigidos. (1996, p. 93)

 

A cidadania no mundo contemporâneo não se reduz à simples afirmação da liberdade diante do Estado. Trata-se de um conceito muito mais amplo, uma vez que remete à participação fora de contextos necessariamente comunitários e supõe uma visão participada de cultura política sob uma matriz constitucional. Esta cidadania é ao mesmo tempo inclusiva, por compreender um consenso mínimo em torno de valores constitucionais, e exclusiva, por reconhecer o direito à afirmação da diferença. Inclusão significa consenso constitucional, simples adesão de princípio. Exclusão significa afirmação da diferença no interior do universo múltiplo de programas que cabem no máximo denominador comum dos princípios objeto de consenso, tudo isso, claro, no interior da cultura democrática. Assim, a cidadania inclui a diferença, para que esta não se transforme em exclusão.

Deve-se compreender que as sociedades e as democracias contemporâneas são muito complexas e diferenciadas e que, por essa razão, não podem ficar reféns de conceitos finalistas e totalizantes, que as amarre, restrinja ou simplifique, tirando sua característica fundamental. A idéia de cidadania no mundo contemporâneo não pode limitar-se à componente do ativismo político, nem mesmo se pode reduzir à simples idéia de recepcionar os direitos garantidos por via externa.

 

4 A NOVA CONCEPÇÃO A PARTIR DO MULTICULTURALISMO E DOS DIREITOS HUMANOS

 

A cidadania tem sido objeto de muita reflexão filosófica, social e política, estando seu conteúdo vinculado ora aos direitos civis e políticos, ora aos direitos econômicos, sociais e culturais, e, ainda, a mecanismos e sentimentos de que o indivíduo pertence a uma comunidade ou Nação, e à participação dos mesmos como sujeitos na vida pública e nos projetos da sociedade.

Liszt Vieira aborda duas correntes críticas, concebendo a cidadania de duas maneiras distintas, sendo que uma parte de “diferentes posições, salienta a necessidade de complementar ou equilibrar a aceitação passiva dos direitos com o exercício ativo das responsabilidades e virtudes cívicas”, e a outra, leva em consideração “a fragmentação e o pluralismo cultural das sociedades contemporâneas”, colocando em discussão o conceito de cidadania em relação ao papel dos direitos e deveres universais, reclamando que as identidades culturais sejam levadas em conta, da mesma forma que as diferenças de grupos que se consideram produto da opressão e da exclusão da cultura hegemônica, mesmo tendo os direitos comuns da cidadania (2001, p. 219 e 220).

O mesmo autor acrescenta que “os direitos de cidadania são direitos exercidos no interior de um Estado-nação. Tradicionalmente, o Estado Nacional é o lar da cidadania” (2001, p. 220 e 221).

Ao definir e situar a idéia de cidadania, Clóvis Gorczeski menciona que a mesma deve ser entendida como o somatório de atributos que autorizam o indivíduo a agir socialmente, de acordo cós as exigências sociais, pautando sua postura na solidariedade, no bem comum e da coletividade onde a mesma é exercida. E lembra que o fundamento da cidadania está na sociedade livre, sendo a democracia um de seus pressupostos, acompanhada pela “liberdade de manifestação, de contestação, respeito ao indivíduo, a sua cultura e a sua vontade” (2005, p.29).

O exercício da cidadania deve ser investigado nas relações dialéticas estabelecidas dentro da sociedade, pela legitimação de valores universais. Essa relação tem uma dimensão institucional evidente na legislação sobre os direitos e deveres do cidadão.

A partir da internacionalização dos Direitos Humanos, passou-se a considerar cidadão não apenas aquele detentor de direitos civis e políticos, mas todos os que se encontram no âmbito da soberania de um Estado e dele recebem uma carga de direitos (civis e políticos; sociais, econômicos e culturais) e deveres, dos mais diversos.

A normatização internacional de proteção dos Direitos Humanos foi fruto de incansáveis lutas, formalizada por inúmeros tratados, realizados com este fim, sendo que este processo de internacionalização e universalização desses direitos deu-se de forma lenta e progressiva. Com o amadurecimento e a evolução deste processo, os Direitos Humanos, a ultrapassar os interesses que, até então, eram de exclusividade dos Estados, para resguardar, internamente, os interesses dos seres humanos por eles protegidos. O desenvolvimento da teoria e da prática dos Direitos Humanos ocorreu, basicamente, em duas direções:

1) Na de sua universalização, que foi ponto de partida à transformação do direito das “gentes” em direitos dos “indivíduos”, indivíduos estes que adquiriram o direito de questionar o Estado e transformarem-se, de cidadãos de um Estado particular, em cidadãos do mundo.

2) Na de sua multiplicação, que ocorreu por três razões:

a) Em decorrência do aumento de bens considerados merecedores de tutela, havendo a transição dos direitos de liberdade aos direitos políticos e sociais, os quais requerem uma intervenção direta do Estado.

b) Em razão da extensão da titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem. Ocorreu a passagem da consideração do indivíduo, da “pessoa”, para sujeitos diferentes do indivíduo (família, minorias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto) e, até mesmo, para sujeitos diversos dos homens, como os animais.

c) Devido ao fato de que o próprio homem deixou de ser considerado como ente genérico, passando a ser visto na especificidade ou na concreticidade de suas várias maneiras de ser em sociedade. Mais bens, mais sujeitos, mais status do indivíduo. Estes três processos são interdependentes e revelam a necessidade de que sejam referidos a um contexto social determinado. Ocorreu a passagem do homem genérico para o homem específico, este tomado na diversidade de seu status social, com base em variados critérios de diferenciação, sendo que cada qual revela diferenças específicas, os quais não permitem igual tratamento e proteção.

Diante da realidade multicultural que se apresenta, torna-se inevitável a reavaliação dos conceitos de cidadania, uma vez que não se pode ignorar a necessidade de avaliar as novas bases do conceito e da prática desta nova cidadania, associada às mudanças advindas da globalização, a crise do modelo de Estado-Nação e ao efeito causado pelas novas tecnologias. A globalização atinge a cidadania em um ponto que está entre o político e o cultural, difundindo-se nos Direitos Humanos e sociais, no respeito à diversidade cultural e às instituições democráticas. Está protegida nos seus direitos civis, políticos e culturais não somente pelo Estado, mas por uma sorte de fiscalização global cujos agentes são os meios massivos e interativos de comunicação, a sociedade civil global (expressa nas ONGs internacionalizadas) e o sistema das Nações Unidas.

Carlos Alberto Torres afirma que:


(...) as teorias do multiculturalismo referem-se ao principal propósito analítico das teorias da cidadania. Uma e outra tentam identificar o sentido e as fontes da identidade, e as formas competitivas da identidade nacional, regional, étnica e religiosa. Mas as teorias do multiculturalismo ocuparam-se com as implicações de classe, raça e sexo para a constituição de identidades e para o papel do estado, como em geral não o fizeram as teorias hegemônicas da cidadania. Embora estas conexões entre identidade e cidadania não apareçam com tanta evidência na bibliografia especializada, ela têm uma base prática que as leva para mais perto das teorias da democracia. Isto é assim, porque as teorias da democracia se ocupam não apenas com participação, representação e conferência e equilíbrio de poder, mas também com maneiras de promover a solidariedade para além dos interesses particulares ou das formas específicas de identidade. (2001, p. 16)

 

A cidadania contemporânea requer uma inequívoca vontade de aceitar e realizar mudanças. Como bem refere Hanna Arendt, Cidadania "é a consciência que o indivíduo tem o direito a ter direitos". Exercício que se refere a direitos e deveres. A prática da cidadania está vinculada à instauração da democracia, conforme o Direito e a vontade expressa na Constituição, estando comprometida com a efetivação dos direitos positivados, através da cooperação entre indivíduos e grupos. Esta cidadania preocupa-se com a emergência dos novos sujeitos de direitos, a ampliação do espaço participativo e a efetivação dos Direitos Humanos.

Liszt Vieira aborda a relação entre cidadania, nacionalidade e identidade cultural estabelecendo que, quanto à participação política:

 

O Estado-nação é um Estado de cidadãos que se emanciparam da condição de súditos. Os cidadãos participam da polis, têm participação ativa na formação dos governos pelo exercício de direitos políticos. Mas, com a interdependência global, o poder foi deslocado do local/nacional para o global. A participação ativa tornou-se um direito simbólico, sem substância real. Cidadania com participação igual é mais ideal do que real” (2001, p. 223).

 

O mesmo autor esclarece que o ponto inicial da idéia de multiculturalismo é a problemática entre o papel exercido como cidadão de um Estado nacional e o de membro de outra comunidade, pois o Estado-nação passa, de alguma maneira, uma identidade cultural. Para ele, a Cidadania representa, nas sociedades multiculturais, uma dimensão política diferente da que serve de base ao Estado-nação, pois o Estado é o lugar dos cidadãos, sendo fundamental a ressalva que o ser humano é mais do que um cidadão nacional. Assim, a nova forma de conflito está expressa nas lutas pelo reconhecimento, já que o Estado não protege os diferentes indivíduos e a diferença surge como principal fonte de identidade (2001, p. 232 e 233).

Diante de tantas mudanças e dessa nova configuração, surge a idéia de uma nova cidadania, definida além de um conjunto de direitos e liberdades, a cidadania mundial, que está baseada na idéia de sustentabilidade, solidariedade, diversidade, democracia e Direitos Humanos, em nível global.

Essa cidadania mundial começa com a aceitação da unidade da família humana e a interconexão das nações da Terra, “nosso lar". Ao mesmo tempo em que incentiva um patriotismo saudável e legítimo, insiste também numa lealdade mais ampla, num amor à humanidade como um todo. Não implica, entretanto, no abandono de lealdades legítimas, na supressão da diversidade cultural, na abolição da autonomia nacional ou na imposição da uniformidade. Ela é caracterizada pela "unidade na diversidade". A cidadania mundial engloba os princípios de justiça social e econômica, entre as nações e dentro das mesmas; a tomada de decisões de maneira cooperativa em todos os níveis da sociedade; a igualdade dos sexos; a harmonia racial, étnica, nacional e religiosa; e, a disposição de sacrificar-se pelo bem comum. Outras facetas da cidadania mundial, todas voltadas à promoção da honra e da dignidade humanas, enaltecem a compreensão, a amizade, a cooperação, a confiabilidade, a compaixão e o desejo de servir, podem ser deduzidas daquelas já mencionadas.

Fomentar a cidadania mundial é uma estratégia prática para promover o desenvolvimento sustentável. Enquanto a desunião, o antagonismo e o provincialismo caracterizarem as relações sociais, políticas e econômicas dentro e entre as nações, um padrão global e sustentável de desenvolvimento não poderá ser estabelecido. Uma sociedade global sustentável somente poderá ser construída sobre o alicerce de unidade, harmonia e compreensão verdadeira entre os diversos povos e nações do mundo. As pessoas precisam considerar-se cidadãos do mundo, entender sua responsabilidade de promoverem o desenvolvimento sustentável.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Como se pode ver, faz-se imprescindível a discussão e o debate acerca de questões contemporâneas que envolvem a redefinição de conceitos fundamentais como o da cidadania e o que a mesma significa na nova realidade mundial. A diversidade e a amplitude que os novos conceitos estão imprimindo, na sociedade mundial, torna necessário que os cidadãos sejam encarados de maneira condizente e coerente, de modo a acompanhar a velocidade das transformações mundiais desta realidade multicultural, a qual vem imprimindo novos paradigmas em diversos campos sociais.

Esta crise coloca em discussão a identidade e o papel do novo cidadão do mundo, qual é o espaço por ele ocupado, qual a dimensão de seus direitos e deveres, já que o respeito à diversidade e aos Direitos Humanos é o cerne do Multiculturalismo. O reconhecimento da cidadania, como ideia de exercício dos direitos políticos e de participação política, já não é suficiente para defini-la, uma vez que se torna necessária a redefinição de conceitos e papéis nesta nova realidade mundial e multicultural.

A cidadania está tendo seu significado ampliado, significativamente, face às transformações da sociedade mundial, à reformulação de conceitos e à necessidade de reavaliação do papel do cidadão nesta nova realidade. Deve-se reconhecer que a cidadania tem ampliado seu conceito e seu foco quanto aos bens a serem tutelados e protegidos, uma vez que votar e poder ser votado deixou de ser a única condição para a definição da mesma, que volta sua atenção aos Direitos Humanos.

O alargamento do conceito de cidadania faz com que se pretenda, sob este pretexto, a definição de uma realidade com efetivo alcance de direitos no plano do exercício de vários aspectos da participação na justiça social, de concretas práticas de igualdade, no envolvimento com os processos de construção do espaço político, do direito de ter voz e de ser ouvido, da satisfação de condições necessárias ao desenvolvimento dos indivíduos e da coletividade, do atendimento a prioridades e exigências de Direitos Humanos e da significativa alteração de conceitos e idéias decorrentes da nova realidade multicultural.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania: Do Direito aos Direitos Humanos. São Paulo: Acadêmica, 1993.

 

BERTASO, João Martins. A cidadania moderna: a leitura de uma transformação. In: DAL RI JÚNIOR, A.; OLIVEIRA, O.M. (org.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectivas nacionais, regionais e globais. Ijuí: Unijuí, 2002.

 

BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. São Leopoldo: UNISINOS, 2000.

 

GORCZEVSKI, Clovis. Direitos fundamentais, educação e cidadania: Tríade inseparável. In: GORCZEVSKI, C.; REIS, J. R. (org.). Constitucionalismo contemporâneo: Direitos fundamentais em debate. Porto Alegre: Norton Editor, 2005.

 

RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. O (ab) uso da tolerância na produção de subjetividades flexíveis. In: SIDEKUM, A. (org.). Alteridade e multiculturalismo. Ijuí: Unijuí, 2003.

 

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.

 

TOURAINE, Alain. O que é a democracia? Trad. Ghilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1996.

 

TORRES, Carlos Alberto. Democracia, educação e multiculturalismo: Dilemas da cidadania em um mundo globalizado. Trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes, 2001.

 

VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001.

 

 



[1] Mestre em Direito URI – Santo Ângelo, Especialista em Direito Público pela UNIJUÍ, Advogada, Professora na FAI Faculdades de Itapiranga-SC.

 

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