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Resumo:
A efetivação da garantia constitucional do devido processo legal para o perfeito atingimento de sua finalidade solucionadora de conflito de interesses socialmente relevantes, quais sejam, o punitivo e o de liberdade.
Texto enviado ao JurisWay em 17/11/2014.
Última edição/atualização em 20/11/2014.
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A Magna Carta de João Sem-Terra e o devido processo legal
1. Contexto Histórico da Magna Carta
O contexto histórico da criação da Magna Carta se passa em um período de transição da alta idade média para a baixa idade média, em que o próprio modo de produção feudal começa a encontrar seus primeiros sinais de desgaste. Trata-se ainda, do período em que o rei Ricardo coração de leão, morto na 3º cruzada, teve sua coroa sucedida por João Sem-Terra, que ficou conhecido por este nome devido ao fato de não ter herdado nenhuma propriedade após a morte seu pai, Henrique II da dinastia dos Plantagenetas.
João Sem-Terra foi rei da Inglaterra do período de 1199 a 1216, e foi absolutamente irascível em seu reinado, impondo a todo o reino uma política tributária altamente onerosa cobrando de seus súditos impostos cada vez mais elevados. Toda essa política autoritária tinha como objetivo imediato cobrir os gastos na guerra contra a França em 1204, pois João Sem-Terra almejava proteger as terras perdidas para a coroa francesa, liderada pelo rei Filipe II. Como resultado dessa política desastrosa, no entanto, João Sem-Terra sofreu uma grande derrota e perdeu suas terras do norte para a França.
Outro ponto negativo do reinado de João Sem-Terra seria a sua relação conturbada com os representantes do alto clero, em que após sérias discussões, chegou a ser excomungado pelo Papa Inocêncio III, considerado pelos historiadores, o Papa mais poderoso da história. Esse conflitou só foi resolvido em 1213, quando João Sem-Terra, enfim, se submeteu a hegemonia papal. Posteriormente, em 1214, João Sem-Terra entra em uma nova guerra contra a França, desta vez para reconquistar as terras que havia perdido outrora.
Contudo, novamente falha nesse objetivo, e tem seu reinado fortemente enfraquecido. Posteriormente, os barões ingleses revoltados com os vários fracassos do Rei, em 10 de junho de 1215 tomam a cidade de Londres com apoio do clero, fazendo com que João Sem-Terra fosse forçado a assinar a Magna Carta, documento que determina que os reis ingleses tenham seus poderes limitados, garantindo que apenas poderiam elevar os impostos ou criarem novas leis mediante aprovação de um grande conselho formado por nobres. A carta recebeu o selo real no dia 15 de junho de 1215, ou seja, 5 dias após a tomada de Londres, e teve várias cópias enviadas a funcionários, xerifes e bispos. Em troca disso, os barões revigoraram seus juramentos de fidelidade ao rei João Sem-Terra 4 dias depois, no dia 19 de junho de 1215.
A Magna Carta estabelecia um comitê de 25 barões com poderes para reformar qualquer decisão real, até mesmo com o uso da força, se necessário, pois, os barões queriam garantir que João Sem-Terra não declinasse de sua decisão, uma vez que apenas tinha assinado tal documento devido a coerção dos próprios barões.
No entanto, assim que os barões se retiraram de Londres, João Sem-Terra impugnou a Magna Carta, gerando uma intensa guerra civil na Inglaterra. Contudo, após a morte de João Sem-Terra em outubro de 1216 por disenteria, seu filho e sucessor, Henrique III, repristinou a Magna Carta, retirando apenas algumas clausulas, como o artigo 61, que anulava as prerrogativas monárquicas. Quando completou 18 anos, Henrique III retalhou ainda mais a Magna Carta, reeditando-a, para que se reduzisse para apenas 37 artigos. Inicialmente a Magna Carta tinha 63 artigos.
Posteriormente, com a morte de Henrique III, a Magna Carta já havia sido incorporada ao direito inglês, se tornando mais forte e mais complicada de ser anulada. Em 21 de outubro de 1297, o filho de Henrique III a confirmou mais uma vez, como parte de um preceito versado como confirmatio cartarum, ratificando a versão curta dessa carta em 1225.
2. Magna Carta
A Magna Carta foi assinada em junho de 1215 entre os barões da Inglaterra medieval e o Rei João Sem-Terra. Foi um dos documentos mais importantes deste período.
O documento consistia em uma série de premissas escritas e afirma que o Rei governaria a Inglaterra e lidaria com o povo de acordo com os costumes feudais. A Magna Carta foi uma tentativa de fazer com que o Rei parasse de abusar do seu poder e fazer com que os ingleses sofressem com isso.
Um questionamento importante é o motivo de o Rei, que supostamente teria poderes absolutos em seu país, concordaria com as demandas dos barões, que eram hierarquicamente inferiores. A resposta para isso é o desgaste sofrido ao longo do tempo, e para que não fosse deposto, João Sem-Terra aceitou as condições impostas pelos barões.
A Inglaterra possuiu durante alguns anos terras na França. Os barões forneciam dinheiro e homens para que esses territórios fossem defendidos. Além disso, o Rei sempre os consultava quando os impostos eram aumentados. Assim funcionava o sistema feudal.
Enquanto os reis ingleses foram bem sucedidos militarmente com os territórios estrangeiros conquistados, as relações com os barões eram ótimas. Contudo, João Sem-Terra não obteve muito êxito nas suas campanhas. Suas demandas constantes para mais dinheiro e exército desagradaram aos barões. Por volta de 1204, ele perdeu terras no norte da França e, em consequência, introduziu impostos sem consultar os barões, o que contrariou a lei e os costumes feudais já estabelecidos. Além disso, João Sem-Terra também teve desentendimentos com a Igreja Católica.
O ano de 1214 foi desastroso para João Sem-Terra. Ele tentou recuperar os territórios perdidos no norte da França, mas não conseguiu e no retorno à Inglaterra exigiu ainda mais impostos. Todavia, desta vez os barões não aceitaram e se rebelaram. Eles não venceram o Rei, e em 1215 as duas partes desejavam discutir essas questões. O resultado foi a Magna Carta.
A Magna Carta traz 63 cláusulas sobre diversas matérias, incluindo a posição da Igreja Católica na Inglaterra, que o Rei seria menos severo com os barões, várias disposições sobre o sistema jurídico inglês. Estabeleceu que as leis seriam boas e justas, que todos teriam acesso às cortes e que custos e dinheiro não deveriam ser um empecilho caso alguém quisesse discutir um problema nessas cortes. A nova lei dizia que o Rei não poderia mais criar impostos ou alterar as leis sem antes consultar o Grande Conselho, órgão que seria integrado por representantes do clero e da nobreza. Também afirma nos dispositivos finais como ela seria posta em prática. 25 barões ficaram responsáveis de ter certeza que o Rei a respeitaria, e que poderiam usar da força se necessário.
O ponto da Carta que mais interessa para este trabalho é o descrito no artigo 28 da Carta Magna de 1215 foi o que afirmou que nenhum homem livre (leia-se: nenhum servo) seria preso ou punido sem antes a questão ser avaliada pelo sistema jurídico:
“No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his rights or possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his standing in any other way, nor will we proceed with force against him, or send others to do so, except by the lawful judgement of his equals or by the law of the land.“[1] (grifo nosso)
Com o passar dos anos, a expressão “homem livre” foi substituída por “ninguém”, para que realmente todos os indivíduos fossem incluídos. É exatamente aqui que surge o princípio do devido processo legal.
A Magna Carta também é considerada um marco constitucional importante, o primeiro da história europeia, servindo inclusive de base para que outros países elaborassem suas próprias Constituições. Foi também o marco do sistema common law inglês. Ela foi continuamente revisada para adaptar-se ao contexto de cada época, mas até hoje algumas disposições originais integram as leis inglesas.
3. Legado Jurídico
Apesar do principal e mais notório legado deixado pela Carta Magna ser o marco inicial do due processo f law ou o devido processo legal, ela também influenciou diversos outros pontos jurídicos relevantes, contendo disposições que já continham de forma rudimentar os ideais acerca da proporcionalidade entre o delito e a pena (artigos 20 e 21 da Carta Magna), a vedação do confisco legal (artigos 28, 30 e 21, da Carta Magna), declaração de intenção (artigo 60 da Carta Magna), e anterioridade de lei tributária (artigos 12 e 14 da Carta Magna).
O princípio do devido processo legal percorreu vários ordenamentos jurídicos numa evolução histórica até alcançar o amplo sentido que encontra hoje. Por meio das emendas V e XIV, a cláusula do devido processo legal foi introduzida na Constituição dos Estados Unidos da América e vigora até hoje nesses termos:
V – “No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall any person be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation”. (grifo nosso)
XIV – “Section 1. All persons born or naturalized in the United States, and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws. [...]” (grifo nosso)
A Constituição Política da Monarquia Espanhola de 1812, conhecida como Constituição de Cádis, trazia nos seus artigos 242 a 308 várias garantias judiciais e regras de processo penal hoje consideradas essenciais em democracias para um sistema processual justo, refletindo o conteúdo do princípio do due process of law.
Após a Segunda Guerra Mundial, na segunda metade do século XX, quatro importantes tratados internacionais previram a cláusula do devido processo legal, sendo eles:
i) a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, artigos 5º e 6º;
ii) o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966 - Pacto de Nova York, artigos 9º e 14;
iii)a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969 - Pacto de São José da Costa Rica, artigos 7º e 8º;
iv)a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981 - Carta de Banjul, artigo 6º.
No Brasil, apesar de não constante no ordenamento jurídico, essa garantia é conhecida desde o período colonial. Nos moldes da Magna Carta de João Sem-Terra, da Inglaterra, no reinado de D. João VI (1767-1826), rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, veio o Decreto de 23 de maio de 1821, uma espécie de Bill of Rights brasileiro, que antecipava os benefícios da Constituição liberal portuguesa de 1822, influenciada pela Constituição de Cádis de 1812. Em sua segunda determinação, constava o que seria o art. 39 da Carta Magna de João Sem-Terra, in verbis:
“Hei por bem excitar, por a maneira mais efficaz e rigorosa, a observancia da sobre mencionada legislação, ampliando-a, e ordenando, como por este Decreto Ordeno, que desde a sua data em diante nenhuma pessoa livre no Brazil possa jamais ser presa sem ordem por escripto do Juiz, ou Magistrado Criminal do territorio, excepto sómente o caso de flagrante delicto, em que qualquer do povo deve prender o delinquente.”[2] (grifo nosso)
No Brasil, apesar da Carta de Dom João VI e de seu histórico de várias Constituições, somente com a Constituição de 1988 veio explicitamente deduzido o princípio do devido processo legal dentro do rol dos direitos e garantias fundamentais, apesar de parte da doutrina considerar que já se encontrava implícito na Constituição anterior,
Nesse sentido, a Carta Federal de 1988 consagrou expressamente o princípio do devido processo legal, dispondo em seu artigo 5°, inciso LIV, que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Dessa forma, assegurou-se a todos os cidadãos, de forma expressa, a garantia de não ser privado de sua liberdade ou da propriedade de seus bens sem a tramitação de um processo segundo a forma prescrita em lei.
4. O devido processo legal e o devido processo penal
O devido processo legal, que veio inicialmente trazido pela Magna Carta, é hoje, uma garantia prevista no art. 5º, inc. LIV da nossa Constituição Federal. Trata-se de garantir um processo legitimamente instituído e regularmente desenvolvido observando a plena contraditoriedade entre as partes, ou seja, um contraditório não somente formal, mas também substancial, no qual as partes sejam cientificadas da iniciativa judicial e postas em condição de cumprir as determinações tidas pelo órgão jurisdicional como necessárias.
O devido processo legal apresenta-se como um conjunto de elementos indispensáveis para que o processo judicial possa atingir, devidamente, sua já aventada finalidade compositiva de litígios ou sua solucionadora de conflito de interesses de alta relevância social (no campo penal).
O devido processo legal no âmbito do direito penal pode ser verificado diante das seguintes garantias:
a. Acesso à Justiça Penal: considerado tanto sob o aspecto econômico, como sob o técnico, expresso nos incisos LXXIV e LXXVII do art. 5º da CF, compreende a garantia de assistência jurídica gratuita aos necessitados, promovendo o princípio da igualdade, além da imprescindibilidade de atuação técnica, uma vez que essa assistência jurídica deve ser promovida por profissional devidamente habilitado para tanto;
b. Juiz Natural em matéria penal: presente nos incisos XXXVII, XXXVIII e LIII do art. 5º da CF, consubstancia-se por meio da pré-constituição de órgão jurisdicional competente, o juiz natural. Assim o indivívuo envolvido numa persecutio criminis só pode ser validamente processado e julgado por agente do Poder Judiciário dito autênctico, ou seja, legitima e regularmente investido no exercício da jurisdição penal, além de dotado das garantias ao normal e autônomo desempenho de seu cargo.
c. Tratamento paritário dos sujeitos parciais do processo penal: disposto no caput do artigo 5º da CF, que dispõe sobre o direito à igualdade de todos perante a lei , além do inciso I que sobreleva a igualdade de gêneros. Assim, está garantia impõe a necessidade de haver equilíbrio de situações entre os ofícios da acusação e da defesa, em uma situação de reciprocidade e não apenas de mera igualdade formal. Acentua, assim, a necessidade de a equidistância do juiz ser adequadamente temperada, mercê da atribuição ao magistrado de poderes mais amplos, a fim de estimular a efetiva participação das partes no contraditório e, consequentemente, sua colaboração e cooperação no justo processo.
d. Plenitude de defesa do indiciado, acusado, ou condenado, com todos os recursos a ela inerentes: presente nos incisos LV e LVI. O direito de defesa, conforme define Faustin Hélie, não é um privilégio, tampouco uma simples conquista da humanidade, mas um autêntico direito originário e, por isso, inalienável. Abrange não só a defesa em seu aspecto subjetivo, consistente na faculdade de, em abstrato, infirmar a imputação deduzida, mas também o objetivo, que conduz à defesa concretamente exercida, consubstanciada na autodefesa (por meio de interrogatório, participação na audiência, etc.), na defesa técnica e no direito de produzir provas lícitas e o direito dessas provas serem apreciadas e influírem no convencimento do julgador.
e. Publicidade dos atos processuais penais e a motivação dos atos decisórios penais: presentes nos incisos LX do art. 5º e IX do art. 93, também são meios para que possa oferecer e garantir a amplitude da defesa do imputado. Além disso, é por meio da motivação que o magistrado mostra como apreendeu os fatos e interpretou a lei que sobre eles se incide, propiciando, com as indispensáveis clareza, lógica e precisão a perfeita compreensão da abordagem de todos os pontos questionados e, consequentemente, a conclusão atingida.
f. Fixação de prazo razoável de duração do processo penal: compreende não só a obrigação de que haja um prazo, mas também que esse prazo seja adequado para a parte desenvolver a sua atividade e, em relação ao acusado, para que se realize a ampla defesa garantida pela Constituição.
g. Legalidade da execução penal: garantia que faz-se com ela, indispensável e inarredável complemento de todas as outras, reiteráveis no processo de execução da sentença penal condenatória. Uma vez transitada em julgado, a sentença assume a natureza de título executivo, sendo o único pressuposto da execução penal, e reclamando, portanto, estrita observância, não só do seu próprio conteúdo, bem como das disposições legais e regulamentares atinentes ao respectivo procedimento.
Assim, com base nelas pode-se inferir que a pessoa física integrante da coletividade não pode ser privada de sua liberdade ou de outros bens a ela correlatos, sem o devido processo penal, em que se realize a ação judiciária.
E tudo isso com o pleno vigor de três postulados básicos, quais sejam, os atinentes à inadmissibilidade de sujeição à persecutio criminis sem que tenha ocorrido a prática de fato típico, antijurídico e culpável, e haja, correlatamente, indícios de autoria, à jurisdicionalização da imposição de pena ou de medida de segurança; e à vedação de realização satisfativa do ius puniendi provisória ou definitivamente, antes de transitada em julgado sentença condenatória.
Portanto, podemos concluir que a garantia constitucional do devido processo legal, especificada ao processo penal, reclama, para a sua efetivação, que o procedimento em que este se materializa, observe, rigorosamente, todas as formalidades em lei prescritas, para o perfeito atingimento de sua finalidade solucionadora de conflito de interesses socialmente relevantes, quais sejam, o punitivo e o de liberdade.
5. Referências Bibliográficas
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