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Resumo:
O presente ensaio procura dialogar com as concepções positivas e negativas a respeito dos marcos doutrinários de um dos temas de grande repercussão nacional - a possibilidade legal de antecipação terapêutica de parto.
Texto enviado ao JurisWay em 16/04/2012.
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O presente ensaio procura dialogar com as concepções positivas e negativas a respeito dos marcos doutrinários de um dos temas de grande repercussão nacional - a possibilidade legal de antecipação terapêutica de parto em que os fetos apresentem anencefalia. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54 foi ajuizada no Supremo Tribunal Federal, em 2004, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS) que defende a descriminalização do aborto em caso de feto anencéfalo.
Um dos argumentos apontados pela CNTS é a ofensa aos preceitos constitucionais como: ofensa direta à dignidade a pessoa humana da mãe, que se vê obrigada a carregar, no ventre, um feto que não sobreviverá depois do parto; caso análogo à tortura, legalidade, liberdade e autonomia da vontade; e ofensa ao direito à saúde em petição inicial subscrita pelo Dr. Luís Roberto Barroso. Em 2004, o então relator, Ministro Marco Aurélio, em decisão monocrática, concedeu liminar para autorizar a antecipação do parto, quando a deformidade fosse precedida de laudo médico. O Plenário do Supremo, por maioria de votos, revogou a liminar em que reconhecia o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica, ficando vencidos os Ministros Marco Aurélio, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.
Como a matéria em análise suscitou questionamentos múltiplos, o relator, oportunamente, submeteu o processo à Audiência Pública, ouvindo, assim, diversas entidades da sociedade, representantes do governo, especialistas em genética, entidades religiosas, pesquisadores e doutrinários quanto à admissibilidade da ADPF. O objetivo é angariar argumentos para construção de uma decisão coletiva.
Nas decisões das Cortes Constitucionais, no âmbito supranacional, tem prevalecido o entendimento da legalidade do aborto e de possibilidade de aborto, em circunstâncias específicas. Nos Estados Unidos, reconhece-se o direito constitucional amplo de realizar aborto no primeiro trimestre de gravidez. A Corte Canadense reconheceu às mulheres o direito fundamental da prática de aborto. A Corte Portuguesa reconheceu a constitucionalidade da lei que permitia o aborto em circunstâncias específicas, dentre elas, feto com doença grave e incurável. A Corte Espanhola considerou inconstitucional a lei que permitia o aborto, por esta não exigir o prévio diagnóstico médico, nos casos de má-formação e risco à saúde da gestante.
Já a Corte Francesa permite o aborto até a 10º semana de gestação ou a qualquer momento, por motivos terapêuticos e tem sido considerada compatível com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. A Corte Alemã entende que o direito do feto à vida, embora tenha valor elevado, não se estende a ponto de eliminar todos os direitos fundamentais da gestante, havendo casos em que deve ser permitida a realização do aborto.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem concedido a segurança, com base no artigo 4º[1] da Lei de Introdução ao Código Civil e no artigo 128 II[2] do Código Penal. Grande parte dos processos com pedidos de interrupção de gravidez requeridos pelos pais têm perdido o objeto, em virtude da chegada a termo da gravidez.
Pela literatura médica, anencefalia é definida como má-formação fetal congênita por defeito do tubo neural durante a gestação, onde o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo de tronco encefálico[3]. Conhecido como “ausência de cérebro”, importa na inexistência de todas as funções do sistema nervoso central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade, sendo fatal em 100 % dos casos[4]. A questão da anencefalia foi regulada também pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), em 2003, através do parecer de nº 24, onde “o anencefálico não tem as mínimas condições de sobrevida”.
Neste ponto é importante mencionar que a autonomia da vontade é um ponto do debate interessante, pois poderiam os pais levar a gravidez do anencefálico até o final, com o objetivo de fazer doação de órgãos daquele recém nascido?
O Conselho de Medicina do Estado do Rio de Janeiro chegou a conclusão definida em parecer, onde seria permitida a doação de órgãos do anencéfalo, satisfazendo a vontade dos pais, vem exatamente ao encontro do espírito da Lei dos Transplantes, entendendo que o oposto nega tal espírito[5].
As implicações decorrentes do tema ensejam percepções filosóficas, religiosas e sociais, o que não permite uma acepção como “correta” ou “incorreta”. Somos surpreendidos, constantemente, com novas certezas provisórias que tem o condão de superar o conhecimento anterior. Em nenhuma outra época se acumulou tanto conhecimento e, paradoxalmente, nunca houve tanta insegurança diante das consequências de sua aplicação[6].
Procurando demonstrar que, na maioria das vezes, os argumentos escolhidos não são verdadeiros, mas uma opção do legislador, do juiz, do cidadão, e não podendo ser os únicos detentores de uma verdade metafísica transcendental. Correspondendo a uma mera doxa, ou seja, opinião, Pereira[7] rechaça o posicionamento de que o fato do feto ser anencéfalo, mesmo não tendo uma vida de relação com o mundo exterior, não alteraria sua possível condição humana, considerando o feto como “ser humano”. Pensar diferente seria pensar em um escalonamento de seres humanos, onde uns seriam mais humanos, pelo fato de já terem nascidos, em detrimento de outros, ainda em gestação.
Outra questão, referente à defesa dos fetos, seria a origem da vida, onde as teorias existentes são apenas “teorias”, que, conforme Aristóteles, seriam “apenas candidatas à verdade” e não a verdade em si. Pensando na questão relacional e que a vida começaria quando este ser relaciona-se, não há como saber se há ou não, efetivamente, alguma relação entre o feto e sua mãe e, mesmo que não haja, seria justo retirar-lhe a condição de humano?
Apresentam-se, assim, os argumentos em contraposição ao entendimento defendido pelo CNTS, onde escolhendo quem deve ou não nascer, estaria-se defendendo, também, uma eugenia. A liberdade prevalece sobre o direito à vida? Não, pois a dor da gestante não é de estar gerando um “não ser”, mas um “ser”, que é, que existe[8].
A quem compete a decisão? Ao juiz, que deve aplicar a letra da lei visando o benefício da comunidade e do indivíduo? Aos órgãos legiferantes? Ao referendo popular? Para a democracia, pesa a autonomia da vontade?
Questões que carecem de repostas... a proposta da complexidade é a abordagem transdisciplinar dos fenômenos e o poder sobre a vida, a morte e a continuidade da humanidade exige um novo papel do saber[9]. E nas palavras de Streck[10] “a realidade não pode ser aprisionada no paraíso dos conceitos do pragmatismo positivista dominante”, o direito instrumentalizado pelo discurso dogmático consegue aparecer seguro, justo, abrangente, sem fissuras, e acima de tudo técnico e funcional. Eles não fazem o Direito: apenas entretêm o mistério divino do Direito.
O que se busca é um mínimo ético, revelador de consenso, em meio a pluralidade capaz de nortear eticamente o direito, como uma das formas de concretização de um projeto de democracia cosmopolita, capaz de nortear não só no âmbito dos direitos humanos, mas no âmbito dos direitos fundamentais, o estabelecimento de limites à ação humana[11].
Em vista da decisão colegiada de uma Corte Constitucional, espera-se a imperatividade do reconhecimento da dignidade como postulado de uma democracia justa, seja do feto, seja da mãe!
[1]Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
[2]Aborto no caso de gravidez resultante de estupro - II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
[3]BEHRMAN, Richard E.; KLIEGMAN, Robert M; e outros. Tratado de Pediatria. Ed. Guanabara Koogen, 2002, p. 1777.
[4]Informações extraídas da Petição Inicial – ADPF 54, subscrita pelo Dr. Luís Roberto Barroso.
[5]Parecer CREMERJ nº 115/2002. Interessado: Instituto Municipal da Mulher Fernando Magalhães.
[6]KLEVENHUSEN, Renata Braga. Sociedade Global, Direitos Humanos e Responsabilidade Intergeracional. In. KLEVENHUSEN, Renata Braga (Org.). Temas sobre Direitos Humanos em homenagem ao professor Vicente de Paulo Barretto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 139.
[7]PEREIRA, Thiago Rodrigues. Bioética, limites da Jurisdição Constitucional e a ADPF nº 54. JurisPoiesis, ano 10, n. 10, 2007 ISSN 1516-6635, p. 306.
[8]Idem, idibem.
[9]KLEVENHUSEN, Renata Braga. Sociedade Global, Direitos Humanos e Responsabilidade Intergeracional. In. KLEVENHUSEN, Renata Braga (Org.). Temas sobre Direitos Humanos em homenagem ao professor Vicente de Paulo Barretto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 142.
[10]STRECK, Lênio, Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p.8.
[11]KLEVENHUSEN, Renata Braga. Sociedade Global, Direitos Humanos e Responsabilidade Intergeracional. In. KLEVENHUSEN, Renata Braga (Org.). Temas sobre Direitos Humanos em homenagem ao professor Vicente de Paulo Barretto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 151.
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