“A NÃO RENOVAÇÃO DO CONTRATO DE SEGURO DE VIDA”
Thiago Raddi Ribeiro Moreira
Graduado em Direito pela Universidade Paulista
RESUMO
Este artigo é a abreviação de um estudo monográfico completo de mesmo título apresentado como trabalho de conclusão de curso na Faculdade de Direito da Universidade Paulista, sob orientação do Professor Arilson Garcia Gil, Procurador do Estado de São Paulo e mestrando pela UNESP.
O presente trabalho procurou demonstrar a necessidade de uma reforma legislativa no que tange à matéria securitária, mormente quanto a não renovação do contrato de seguro de vida.
O Código Civil de 2.002 e a SUSEP – Superintendência de Seguros Privados – dispõem que o contrato de seguro de vida tem duração, de maneira geral, de 1 (um) ano, permitindo-se sua renovação, mas facultando à seguradora a possibilidade de comunicar o seu desinteresse pelo prosseguimento do contrato.
Tal falha legislativa permitiu a criação, pelas seguradoras, de um mecanismo de resolução do contrato de seguro de vida, não renovando os contratos de segurados mais idosos, que pagavam os prêmios, em certos casos, há décadas, o que lesa sobremaneira os segurados, consumidores de fato e parte frágil na relação contratual.
Tentou-se comprovar que tal mecanismo de extinção contratual não se atém à função social desta modalidade jurídica e fere o princípio da boa-fé objetiva, bem como diversos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, do Código Civil e da própria Constituição Federal.
O contrato de seguro de vida, por sua importância econômico-social, necessita de maior intervenção estatal, para que fique assegurada a tutela especial para os segurados-consumidores.
Enfim, primou-se pela demonstração de que o princípio contratual da autonomia da vontade deve ser relevado quando em manifesto confronto com a função social do contrato e com os princípios de dignidade, solidariedade e justiça que regem um Estado Democrático de Direito.
INTRODUÇÃO
O contrato de seguro é negócio jurídico antigo e de muita prática, de modo que é praticamente incontroversa sua definição básica: é o contrato pelo qual o segurador assume um risco e se obriga, mediante o pagamento de um prêmio, a indenizar o segurado em caso de ocorrência de sinistro predeterminado na apólice de seguro.
Contudo, quando se trata especificamente do seguro de vida e a extinção contratual, a matéria torna-se árdua e controversa, sendo muitas as normas que a regulam, de modo que os dois principais sujeitos obrigacionais, seguradora e segurado, dão interpretações diferentes à legislação vigente.
Ensina Pedro Alvim:
Não obstante a similitude dos seguros de pessoa com os contratos de mútuo, de depósito ou de capitalização, eles se distinguem pelo elemento essencial que é o risco. [...] Nos seguros de vida, qualquer que seja sua modalidade, o risco sempre ocorre, vinculado à responsabilidade do segurador. Todavia, se é certo o termo quanto à ocorrência, incerto é quanto à data. E justamente nessa peculiaridade se revela o seguro diferente daqueles contratos. [1]
De um lado, as seguradoras afirmam que a não renovação do contrato de seguro de vida está assegurada pelos artigos 760 e 774 do Código Civil de 2002 e pelo artigo 28 das Normas de Seguro de Vida em Grupo editadas pela Circular SUSEP – Superintendência de Seguros Privados – em 17 de julho de 1992, in verbis: “Art. 28. A renovação é feita automaticamente ao fim de cada período de vigência do contrato, salvo se a seguradora ou o estipulante, mediante aviso prévio de 30 (trinta) dias, comunicar o desinteresse pela mesma.”
Sustentam, ainda, que é da natureza do contrato de seguro um risco predeterminado. Em verdade, colorário lógico das relações contratuais é a possibilidade de não renovação, afinal, nenhum vínculo é eterno, o que traz a discussão do princípio constitucional da legalidade, definido na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso I.
De outro lado, tem-se a enorme massa de segurados, consumidores de fato, que interpretam a legislação securitária com base no Código de Defesa do Consumidor, em seus artigos 4º, 6º, 30, 31 e 51, inciso IV, além do artigo 422 do Código Civil, que versam sobre o princípio já consagrado da boa-fé objetiva.
Sobre tal princípio, assevera Cláudia Lima Marques:
Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização do interesse das partes. [2]
Diversos órgãos de proteção e defesa do consumidor, como o IDEC – Instituto de Defesa do Consumidor do Estado de São Paulo, afirmam que a não renovação do contrato de seguro de vida não é matéria simples e que a extinção da apólice por parte da seguradora é ilegal: o fato das cláusulas (e do Código Civil) estipularem que o contrato tem validade de um ano não legitima a seguradora, após sucessivas renovações contratuais celebradas com os consumidores, a rescindir o contrato unilateralmente.
Com efeito, para o IDEC, tais contratos são de trato sucessivo, de longa duração, dada a importância do bem maior protegido (a vida) e da expectativa depositada pelo consumidor-segurado.
Em verdade, tal relação deve ser tratada de modo especial devido à sua função social, na medida em que não apenas o interesse individual do segurado é protegido, mas, principalmente, de toda a sua família.
Ainda Cláudia Lima Marques:
Os contratos de seguro foram responsáveis por uma grande evolução jurisprudencial no sentido de conscientizar-se da necessidade de um direito dos contratos mais social, mais comprometido com a eqüidade e menos influenciado pelo dogma da autonomia da vontade. As linhas de interpretação asseguradas pela jurisprudência brasileira aos consumidores quanto à matéria de seguros são um bom exemplo da implementação de uma tutela especial para aquele contratante em posição mais vulnerável na relação contratual. [3]
É imprescindível um estudo mais aprofundado sobre o caso e uma conseqüente mudança na legislação securitária, pois a situação, mantida como está, é de imensa desvantagem ao consumidor, parte frágil da relação contratual.
Do modo como a legislação está colocada, pode-se chegar ao fato absurdo de o consumidor, após ter pagado mensalmente um prêmio de seguro durante toda a sua vida (e sem utilizá-lo), no momento em que realmente precise, quando em idade avançada, seja surpreendido por uma não renovação do contrato pela seguradora, deixando sua família completamente desprotegida.
Sendo assim, há patente incompatibilidade com a boa-fé objetiva, visto que fato lógico é o seguro realmente tornar-se necessário em fase de idade mais avançada do segurado. Todavia, clara é a autorização para o fornecedor rescindir a apólice.
Tais normas, incompatíveis entre si, necessitam urgentemente de estudo e revisão, sob pena de flagrante prejuízo aos milhões de segurados em todo o país.
1. A PROBLEMÁTICA DA NÃO RENOVAÇÃO DOS CONTRATOS DE SEGURO DE VIDA
O problema envolvendo a não renovação dos contratos de seguro de vida teve início no ano de 2001 e, até o momento, não há posição definitiva do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça a respeito.
Diversos Tribunais Estaduais já se manifestaram, especialmente os dos Estados do Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais. Todavia, todos estão longe de possuírem posicionamento unânime. Tampouco a doutrina apresenta posição inconteste.
O fato é que, no mencionado ano, seguradoras de porte nacional, como a Companhia de Seguros Aliança do Brasil, a Sul América Seguros e diversas outras, passaram a enviar correspondências aos seus respectivos segurados informando que não mais tinham interesse na renovação de seus contratos de seguro de vida e que aquele tipo de apólice seria extinta. [4]
Afirmavam que os valores dos prêmios estavam defasados, já que haviam sido estabelecidos há vários anos, pondo em risco a solvência da seguradora e a consequente capacidade de cumprir o estabelecido contratualmente, ou seja, o pagamento de indenização em caso de ocorrência de sinistro.
Todavia, as companhias seguradoras afirmavam na correspondência que não deixariam desprotegidos seus antigos segurados, oferecendo uma nova apólice, a partir de cálculos atuariais atualizados, com novas cláusulas que, de maneira geral, representavam um aumento no valor do prêmio pago pelo segurado e na exclusão de cobertura de diversos sinistros.
Ocorre que a grande maioria dos segurados afetados pela alteração em questão era já idosa e tinham seu contrato renovado automaticamente, em vários casos, há décadas.
A isso se seguiu uma avalanche de ações judiciais promovidas pelos segurados, pelos Ministérios Públicos Estaduais, pelos Procons e Institutos de Defesa do Consumidor, tanto em face das companhias seguradoras, como dos estipulantes (nos contratos coletivos) e contra a Superintendência de Seguros Privados – SUSEP.
A SUSEP apressou-se em emitir resoluções, circulares e notas de esclarecimento sobre o seguro de pessoas, mas a celeuma prossegue até os dias atuais.
2. A INTERPRETAÇÃO DAS COMPANHIAS SEGURADORAS
As companhias seguradoras alegam, de maneira geral, que todos os contratos foram cumpridos, não havendo alteração, cancelamento ou rescisão unilateral. Teria havido, sim, a legítima manifestação de vontade de não mais renová-los na data de seus vencimentos.
Note-se que algumas seguradoras como a Companhia de Seguros Aliança do Brasil, a Sul América Seguros e a Porto Seguro ofereceram aos segurados uma nova apólice, com cálculos atuarias revisados e consequente alteração nos valores dos prêmios e indenizações, bem como alterações nos riscos cobertos, o que garantiria a mutualidade.
Importante mencionar, ainda, a interpretação das companhias de que a cláusula permitindo que o contrato de seguro não seja renovado não seria abusiva, já que foi convencionado que qualquer das partes poderia deixar de renovar a apólice ao seu término.
Isso porque o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 51, inciso XI, reza que são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor.
Teorizando, se as duas partes poderiam não renovar a apólice, não haveria cláusula abusiva, desde que seguida à determinação da SUSEP, de que a denúncia deveria ser comunicada à outra parte em até trinta dias antes do vencimento da apólice.
Em que pese a nossa discordância, diversos Tribunais Estaduais decidiram ser impossível compelir as seguradoras a renovarem os contratos ad eternum, sob as mesmas condições contratuais anteriormente pactuadas, tendo-se em vista que tal prerrogativa lhes foi assegurada pelas cláusulas constantes da apólice e permitida pelo órgão regulamentador do mercado, a SUSEP.
Em tese, consoante os princípios da liberdade contratual e autonomia da vontade, as seguradoras não seriam obrigadas a contratar apenas para atender o interesse dos segurados, até porque, se assim obrigadas, poderiam ser levadas à insolvência, em prejuízo de toda a massa de segurados.
É por isso, contudo, que defendemos a intervenção estatal no mercado securitário, principalmente, no de seguros de vida, para que não haja a possibilidade de ocorrer o desequilíbrio financeiro alegado pelas seguradoras.
De qualquer modo, afirmam as seguradoras que não podem suportar indefinidamente os prejuízos decorrentes da desproporção da mutualidade do seguro, renovando apólice que lhes é totalmente desvantajosa, “já que são pessoas jurídicas de direito privado, com fins lucrativos, e não órgão governamental destinado a dar suporte médico àqueles que o necessitam em qualquer hipótese.” [5]
O trecho anterior foi retirado de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Estadual em defesa dos segurados da Companhia de Seguros Aliança do Brasil.
Em oposição ao nosso pensamento, prossegue o Desembargador Domingos Coelho:
Por isso mesmo, não se vislumbra conduta reprovável na nova contratação, que além do mais implicou, entre outros benefícios, a manutenção do segurado no mesmo grupo, independentemente de idade ou tempo de adesão ao contrato, desnecessidade de preenchimento de novo cartão-proposta, desnecessidade de declaração de saúde ou de submeter-se a exame prévio de saúde. [...] Nesta esteira de raciocínio, merece destaque a tentativa de continuidade do contrato anterior, por meio da atitude da Seguradora de não dar por extinto o contrato, mas de buscar uma solução adequada à situação atuarial, ao impedir que o consumidor da apólice extinta perdesse todas as vantagens do relacionamento contratual até então mantido, imprimindo ao contrato a sua função social. [6]
Ocorre que o grande descontentamento dos consumidores-segurados se deve ao fato de que a nova apólice oferecida possuía valores de prêmios mensais elevados e de indenizações por sinistros reduzidas, além de reduzida a cobertura para determinados riscos.
Mais delicada, contudo, e por isso merecendo melhor exame, é a questão levantada por diversas seguradoras, de que houve aumento de sinistro para o grupo de apólices não renovadas, ocorrendo o envelhecimento do grupo segurado, e de que grandes alterações na realidade econômica do país ao longo do período de vigência dos contratos lhes foram desfavoráveis.
É elemento essencial do contrato de seguro a mutualidade. Desta forma, o valor da indenização paga aos beneficiários de determinado segurado, devido à ocorrência de sinistro, advém dos prêmios pagos à seguradora pelos outros segurados.
Sendo assim, como, na maioria dos casos, a seguradora parou de comercializar determinado tipo de apólice, e os segurados esperam pagar os prêmios durante toda a sua vida, é conseqüência natural o envelhecimento do grupo segurado.
Quando a seguradora pára de oferecer o contrato de seguro para novos clientes e, certamente, mais jovens, é impossível não ocorrer o envelhecimento do grupo segurado e, naturalmente, a ocorrência de mais sinistros.
Não é, portanto, algo inesperado para as seguradoras, que oferecem apólices após grande estudo atuarial, de probabilidades e estatísticas.
Quanto à alteração da realidade econômica do país, é certo que houve. Contudo, os prêmios pagos pelos segurados não permanecem fixos; o próprio contrato estabelece como os prêmios serão reajustados e qual índice de reajuste será seguido.
Mais uma vez, se houve alteração econômica tal que resultou em desequilíbrio entre as partes, mesmo sendo os prêmios reajustados, tal responsabilidade é exclusiva das companhias seguradoras.
Contudo, em que pese os argumentos por nós já tecidos e os que se seguirão até o fim deste estudo, a voz do Desembargador mineiro anteriormente mencionado não é solitária.
Mister mencionar que o ementário a seguir tem o objetivo de demonstrar a grande divergência entre os Tribunais e entre suas próprias Câmaras internas, conforme será visto nos próximos tópicos desse artigo, provando a grande celeuma que se encontra na legislação securitária.
Decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em recentíssimos julgamentos:
Seguro de vida – Não prorrogação do contrato por parte da Seguradora. Licitude. [...] Age com liberdade de contratar a seguradora que, após sucessivas prorrogações do contrato de seguro de vida, a ele põe fim, recusando nova prorrogação. Ausência de ilicitude. Indenização indevida. Recurso desprovido. [7]
Apelação. Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos morais. Seguro de vida e acidentes pessoais em grupo. Pretensão do segurado à renovação do contrato. Impossibilidade de o Judiciário interferir na vida privada para determinar a renovação compulsória do contrato. Provido o apelo da ré; desprovido o recurso do autor. [8]
Ação de indenização. Seguro de vida em grupo. Não renovação da apólice. Dano moral não caracterizado. [...] O seguro de vida é espécie de contrato aleatório, com prazo de vigência determinado e, portanto, a cláusula que prevê a possibilidade de não renovação da apólice, não é abusiva. Dano moral. A não renovação de apólice de seguro de vida ao término de sua vigência e após prévia notificação do segurado, não gera direito à indenização, por ausência de ilícito civil. [9]
E o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
Seguro de vida em grupo. Renovação. Aviso prévio. Possibilidade contratual que não configura abusividade. Improcedência da ação. Sendo o contrato de seguro típico de adesão e prevendo este renovação com possibilidade de revisão de cláusulas, inclusive de cancelamento de seguro, com a rescisão do contrato, mediante aviso prévio por escrito, não há como acolher-se o pedido da mandatária dos segurados no sentido da manutenção do seguro por permanecerem imutáveis regras inicialmente estabelecidas. Necessidade de adequação dos contratos às condições de mercado e de cada época em que são celebrados. Precedentes da Corte. Apelação desprovida. [10]
Seguros. Saúde. Cancelamento da apólice. Denúncia no prazo contratual. Não renovação do contrato. Equilíbrio econômico-financeiro. Possibilidade de cancelamento da apólice e não renovação do contrato, por parte da seguradora, se a denúncia ocorreu no prazo estipulado no contrato, levando em consideração o equilíbrio econômico-financeiro, em virtude do princípio da continuidade das relações de trato sucessivo e de longa duração, como são os contratos de seguro. Preliminar rejeitada. Apelação desprovida. [11]
Agravo interno interposto contra decisão monocrática que deu provimento a agravo de instrumento para conceder antecipação de tutela. Contrato de seguro de vida não renovado. Novo contrato com modificação das condições anteriores. Tratando-se de contrato de longa duração, extinto o contrato por implemento do termo, nada impede a contratação de novo seguro com modificação das condições que permitam adequada realização atuarial. A possibilidade de renegociação está implícita em tal tipo de contrato, com vistas à preservação do princípio da continuidade. Tutela antecipatória revogada. Recurso provido. [12]
3. A INTERFERÊNCIA DA SUSEP
Como conseqüência da atitude das companhias seguradoras de não renovarem os contratos de seguro de vida quando dos seus vencimentos, milhares de consumidores-segurados tentaram promover a renovação forçada judicialmente.
No pólo passivo da demanda figuravam, além da seguradora, o estipulante e a própria Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), órgão que deveria fiscalizar e regular o mercado securitário.
Foi necessário que a autarquia emitisse resoluções, circulares e notas de esclarecimento, se não para orientar os segurados, ao menos para justificar-se.
A Resolução CNSP nº 117/2004, com vigência a partir de 1º de julho de 2005, alterou e consolidou as regras de funcionamento e os critérios para operação das coberturas de risco oferecidas em plano de seguro de pessoas. Todavia, a resolução, ainda em vigor, assim dispõe:
Art. 30. As apólices poderão ser renovadas automaticamente uma única vez, e por igual período, desde que haja previsão expressa nas condições gerais do respectivo plano, sendo as renovações posteriores realizadas de forma expressa.
Art. 31. A renovação expressa da apólice coletiva que não implicar em ônus ou dever para os segurados poderá ser feita pelo estipulante.
O artigo 30 da citada resolução apenas segue o determinado pelo artigo 774 do Código Civil.[13] No entanto, o artigo 31 traz velado o cerne da discussão da não renovação do contrato de seguro de vida: a SUSEP permite expressamente que a seguradora e o estipulante optem pela renovação ou não do contrato, sem a participação do consumidor-segurado.
Certo é que seria muito custoso às seguradoras obter o consentimento da renovação de forma expressa, de cada segurado. Contudo, deixando a questão da renovação a cargo apenas do estipulante e da seguradora, é criada a expectativa no consumidor-segurado que o contrato de seguro de vida é de prazo indeterminado, já que ele, pessoalmente, sequer sabia que havia aceitado a renovação do contrato.
Em outras palavras, por exemplo: o segurado assinou um contrato uma única vez, há mais de vinte anos, sendo agora surpreendido por correspondência da seguradora informando que o contrato não será mais renovado.
A discussão não está em se o dever de informação era da seguradora ou do estipulante (mesmo sabendo-se que, em se tratando de contrato regido pelo Código de Defesa do Consumidor, o dever de informação era de ambos), mas na incompetência da SUSEP para dirimir o problema da renovação.
Sendo assim, a SUSEP apenas deu argumentos para as seguradoras apresentarem nas milhares de ações judiciais promovidas pelos segurados, bem como ocasionou a entrada dos estipulantes nos pólos passivos das ações.
Permanecendo a celeuma, em 19 de setembro de 2005 foi publicada a Circular SUSEP nº 302, complementando a Resolução CNSP nº 117/2004.
Mais uma vez, a tentativa da entidade autárquica foi ineficaz. Pior ainda, levou a crer que a SUSEP, entidade que deveria proteger os consumidores dos abusos das companhias seguradoras, promovendo a transparência dos contratos, era conivente com as práticas desleais promovidas pelas empresas.
Sobre a renovação do contrato de seguro de vida, a Circular SUSEP nº 302/2005 dispunha que:
Art. 38. Respeitado o período correspondente ao prêmio pago, a cobertura de cada segurado cessa automaticamente no final do prazo de vigência da apólice, se esta não for renovada.
Art. 64. Deverão ser especificados nas condições gerais os procedimentos para renovação da apólice, quando for o caso.
§1º. A renovação automática do seguro só poderá ser feita uma única vez, devendo as renovações posteriores serem feitas, obrigatoriamente, de forma expressa.
§ 2º. Caso a sociedade seguradora não tenha interesse em renovar a apólice, deverá comunicar aos segurados e ao estipulante mediante aviso prévio de, no mínimo, sessenta dias que antecedam o final de vigência da apólice.
Como se vê, os artigos 38 e 64 não eram suficientes para dirimir a questão da renovação, já que, aos consumidores-segurados, de nada valia serem avisados de que o contrato de seguro de vida pelo qual pagavam, às vezes, por mais de vinte anos, não seriam mais renovados dentro de 60 (sessenta) dias.
Foi então emitida a Circular SUSEP nº 317, de 12 de janeiro de 2006, complementando a Resolução CNSP nº 117/2004 e a Circular SUSEP nº 302/2005. Dispôs seu artigo 11 que:
Art. 11. Para os seguros que não tenham cobertura vitalícia, deverá constar da proposta de contratação, da proposta de adesão, da apólice, do certificado individual e das condições gerais, em destaque, a seguinte informação: ‘Este seguro é por prazo determinado tendo a seguradora a faculdade de não renovar a apólice na data de vencimento, sem devolução dos prêmios pagos nos termos da apólice’.
O mencionado artigo trouxe de maneira expressa o que o órgão autárquico tentava dizer há mais de três anos: as seguradoras podiam, deliberadamente, deixar de renovar um contrato de seguro de vida que era renovado há décadas.
Em que pese a indignação dos segurados, dos Institutos de Defesa do Consumidor e dos Ministérios Públicos Estaduais, era clara a posição da SUSEP. As questões acabaram por dirimidas em uma Nota de Esclarecimento sobre a Nova Regulamentação dos Seguros de Pessoas[14], disponível no sítio eletrônico da autarquia.
A Nota de Esclarecimento foi resumida em uma série de perguntas e respostas que, de maneira geral, trazem os argumentos de defesa da SUSEP apresentados nas diversas contestações às ações judiciais promovidas em seu desfavor.
Cumpre-nos trazer algumas destas questões formuladas e respondidas pela SUSEP[15], já que serão objeto de crítica no próximo tópico desse estudo, tanto por nós como por órgãos do Ministério Público de vários Estados, pelos Institutos de Defesa do Consumidor e Procons, além de juízes e desembargadores.
Qual o prazo de vigência dos seguros de pessoas?
Os seguros de pessoas podem ser estabelecidos por prazo determinado (um ano, dois anos...) ou por toda a vida do segurado (seguro vitalício).
A apólice de seguro e o certificado individual deverão especificar o inicio e o fim de vigência do seguro.
A apólice com prazo determinado poderá ser renovada automaticamente uma única vez, pelo mesmo prazo contratado anteriormente. As renovações posteriores deverão ser feitas, obrigatoriamente, de forma expressa.
Nos seguros coletivos, a renovação que não implicar em alteração da apólice com ônus ou deveres adicionais para os segurados ou a redução de seus direitos, poderá ser feita pelo estipulante.
A seguradora é obrigada a renovar o meu seguro?
Não. A seguradora, assim como os segurados, não está obrigada a renovar apólices após o final de vigência, devendo comunicar sua decisão de não renovação com a antecedência prevista nas normas. É importante destacar que a não renovação de uma apólice na data de seu vencimento, nos termos do que dispõe o Código Civil, não caracteriza o cancelamento unilateral de um contrato durante sua vigência
Além disso, o fato de uma apólice ter sido renovada anualmente ao longo de vários anos, não implica, necessariamente, na obrigatoriedade de novas renovações.
Ressaltamos, ainda, que em geral, em casos de não renovação, é oferecida a possibilidade de contratação de uma nova apólice, a qual, entretanto, não necessariamente contém as mesmas coberturas, mesmas condições contratuais ou mesmas taxas de seguro. Isso ocorre até pela necessidade de que os novos contratos estejam adequados aos níveis de transparência e de respeito ao consumidor exigidos pela legislação atual, tanto a editada pela SUSEP e CNSP como o próprio Código do Consumidor e o Código Civil.
O valor do prêmio de seguro deve aumentar sempre na mesma proporção do valor do capital segurado?
Não. Para o cálculo do prêmio de seguro é adotada a seguinte fórmula:
Prêmio = Capital Segurado (valor da indenização) x Taxa (expressa a probabilidade de ocorrência do evento coberto na apólice). Destaca-se que, no caso dos seguros de vida, a probabilidade de ocorrência de morte aumenta com o aumento da idade dos segurados.
Da análise da fórmula acima, podemos observar que o prêmio sofre acréscimo de valor sempre que existe aumento do capital segurado e/ou da taxa. Portanto, o aumento do capital segurado não ocorre necessariamente na mesma proporção ou na mesma periodicidade do reajuste do prêmio.
Sendo assim, além da atualização monetária (aumento proporcional de valores de prêmio e de capital segurado), dependendo da estrutura do plano, o valor do prêmio pode ser recalculado em decorrência da mudança de idade do segurado [...].
4. A INTERPRETAÇÃO DOS SEGURADOS
A alegação dos consumidores-segurados, com a qual concordamos inteiramente, como já dito, é de que não pode a seguradora, após décadas de renovações contratuais sucessivas, dizer que o contrato não mais lhe convém e rescindi-lo.
De fato, a liberdade de contratar deve ser exercida nas razões e no limite da função social do contrato.
Assim sendo, em contratos de trato sucessivo, principalmente os contratos de massa, é de se esperar a renovação. As companhias seguradoras criam no segurado a legítima expectativa de que, sendo pago o prêmio, quando ocorrer o inevitável sinistro (nos casos de seguro de vida), a família do segurado estará protegida. É a essência do contrato de seguro de vida.
Argumentam as seguradoras que cumpriram sua obrigação, já que, durante toda a vigência do contrato, os segurados estavam protegidos, pois sua obrigação contratual é a garantia de que, havendo o sinistro, pagará a indenização; não havendo o sinistro, naquele período, não haveria indenização.
Em comparação, mencionam o contrato de seguro de automóvel. Nele, não ocorrendo nenhum imprevisto com o veículo, findo o contrato, não há que se falar em indenização.
Contudo, acreditamos que o seguro de vida não pode ser comparado com o seguro de dano, em razão do interesse garantido naquele tipo de contrato, ou seja, a vida do segurado.
O segurado espera a contínua renovação do contrato porque foi isso que a seguradora o fez crer. E é por esse produto que ele paga o prêmio mensalmente, ou seja, a seguradora captou muitos consumidores com a segurança da sucessiva renovação e com isso, certamente, auferiu lucro.
A professora Cláudia Lima Marques chama esse fenômeno de “catividade”, dizendo que ele ocorre principalmente em contratos de massa, onde empresas inspiram uma garantia ao consumidor, que acaba por depositar sua confiança em determinada empresa.
Em relação ao contrato cativo de longa duração, a renomada doutrinadora esclarece que:
[Essas empresas prestam] serviços que prometem segurança e qualidade, serviços cuja prestação se protrai no tempo, de trato sucessivo, com uma fase de execução contratual longa e descontínua, de fazer e não-fazer, de informar e não prejudicar, de prometer e cumprir, de manter sempre o vínculo contratual e o usuário cativo. [...] Estes contratos baseiam-se mais na confiança, no convívio reiterado, na manutenção do potencial econômico e da qualidade dos serviços, pois trazem implícita a expectativa de mudanças das condições sociais, econômicas e legais na sociedade nestes vários anos de relação contratual. A satisfação da finalidade perseguida pelo consumidor (por exemplo, futura assistência médica para si e sua família) depende da continuação da relação jurídica fonte de obrigações. A capacidade de adaptação, de cooperação entre os contratantes, de continuação da relação contratual é aqui essencial, básica.[16]
Nesses contratos devem ser obedecidos os princípios de boa-fé, lealdade e a função social dos contratos[17], e deve-se considerar, principalmente, a previsibilidade do conteúdo da prestação, cuja adequação e eficácia devem permanecer inalteradas ao longo do tempo.
Importante ater-se ao fato de que era previsível e inevitável que o grupo de segurados de determinada apólice envelhecesse e ocorresse mais sinistros, se a seguradora deixa de oferecer esse tipo de apólice no mercado.
As companhias seguradoras deveriam ter elaborado um contrato estruturado sobre um regime financeiro apto a formar um fundo de reserva suficiente para suportar a carteira de seguros antes de ofertá-lo no mercado.
Não é possível que, após anos de renovação, as empresas aleguem que o valor atual dos prêmios pagos pelos segurados torna inviável a manutenção do contrato.
Em substancioso voto proferido em embargos infringentes, o Desembargador Paulo Sérgio Scarparo, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, afirma que:
Em face dessas circunstâncias, afigura-se inadmissível a escusa apresentada pela seguradora de que o prêmio cobrado do segurado é muito baixo para a garantia do risco. [...] Ao perceber a sua redução de margem de lucro em razão do envelhecimento de seu cliente, agora simplesmente se recusa a renovar o contrato do consumidor idoso, que certamente encontrará dificuldades insuperáveis para contratar um seguro similar com outra companhia. [...] Como admitir uma prática comercial que desampara alguns dos consumidores mais vulneráveis da ré em homenagem à liberdade contratual? [18]
Como já dissemos, a liberdade contratual é exercida em razão e nos limites da função social do contrato. É fundamento do Direito a liberdade contratual; todavia, o interesse social prevalece sobre o interesse individual.
Sobre o tema, citamos o excelente estudo de Luiz Renato Ferreira da Silva:
a moderna noção de autonomia privada se insere dentro de um quadro onde os fins condicionam os meios. Supera-se a mera noção de poder individual para que se dê lugar a uma visão de poder-função, voltada para uma sociedade massificada onde o indivíduo perde como tal, mas ganha como membro da comunidade. Desvincula-se cada vez mais a solução dos problemas do domínio do dogma da vontade e aprende-se a tratá-los como conflitos de valores entre a tutela do indivíduo e a proteção do tráfico jurídico. [19]
Dessa forma, não é mais contrário ao direito individual de liberdade o fato de impor-se a contratação. O citado doutrinador diz a razão:
É que, em ambas as hipóteses, as normas constitucionais que visam a garantir a igualdade entre os cidadãos e a livre iniciativa como valor social, passam a ter incidência imediata. [...] Aqueles que exercem atividades de interesse comunitário (como por exemplo um dono de hotel), não podem deixar de contratar com quem os procure sem que para tanto haja um motivo significativo.
Apenas esse tipo de ‘intromissão’ no que era o amplo campo da autonomia privada pode ser eficiente para minorar os abusos e as pré-contratações feitas por vendas de máquinas, por contratos de adesão, por condições gerais dos negócios, etc.[20]
A justificativa das seguradoras para a não renovação do contrato de seguro de vida não é plausível. Como já dito, era previsível e inevitável a ocorrência de um maior número de sinistros, com o envelhecimento dos segurados de determinado tipo de apólice.
Não é possível, portanto, que as seguradoras argumentem que os valores dos prêmios estabelecidos por elas mesmas não eram suficientes e que os cálculos atuariais que deveriam prever o desequilíbrio da apólice, não o fizeram.
Como demonstrado fartamente neste estudo, a não renovação do contrato de seguro de vida estudado é uma conduta comercial desleal e abusiva, deixando desprotegida toda uma massa de segurados e beneficiários hipossuficientes contratualmente.
Da mesma forma que no tópico referente à interpretação das seguradoras, trazemos a seguir ementário que tem como objetivo demonstrar a grande divergência entre os Tribunais e entre suas próprias Câmaras internas, provando a grande celeuma que se encontra na legislação securitária.
Apelação Cível. Contrato de seguro de vida. Renovação da apólice. Nulidade de cláusula modificativa. Função social do contrato. Sentença de procedência. Prorrogação do ajuste. [...] Parcial procedência do apelo.
A liberdade de contratar tem limites na função social do contrato de seguro, caracterizado pela catividade, mostrando-se abusiva a interrupção deste, embasada em desajuste das despesas operacionais. Mantida sentença que declara a nulidade de cláusula contratual e determina a prorrogação do ajuste, nos termos originalmente pactuados. [...] [21]
Apelação cível. Seguros. Ação declaratória de nulidade de cláusula. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de seguro. É abusiva a cláusula contratual que prevê a possibilidade de cancelamento unilateral do contrato de seguro em caso de alteração da natureza dos riscos. O fato de a seguradora ter demonstrado seu prejuízo com a contratualidade não se mostra suficiente para configurar desequilíbrio, mas mera realização do risco assumido. Ou seja, não pode pretender a seguradora operar apenas com lucros ou denunciar o contrato em face da ocorrência do risco, pois isso está intrínseco na própria natureza e finalidade do contrato. Apelo provido. [22]
Apelação cível. Seguro de vida em grupo. Não renovação imotivada do contrato. Cláusula contratual abusiva.
1. É ônus da seguradora informar adequadamente os seus segurados a respeito das cláusulas que regem o contrato entabulado entre as partes. Não cumprida essa obrigação, os referidos dispositivos contratuais não obrigarão o consumidor. Inteligência do art. 46, do Código de Defesa do Consumidor. 2. Mostra-se abusiva, por contrária aos princípios da legislação consumerista, a cláusula que autoriza pura e simplesmente, à seguradora, a não renovar o contrato de seguro, imotivadamente, ao final de sua vigência. Ato que põe em risco a segurança das relações jurídicas. Apelo provido. [23]
Apelação cível. Ação ordinária. Contrato de seguro de vida. Não renovação. Imposição para readaptação à novas propostas. Impossibilidade.
A cláusula que faculta à Seguradora rescindir unilateralmente o contrato por meio de mera notificação é abusiva, ainda que igual direito seja conferido ao consumidor, pois estabelece vantagem excessiva à fornecedora, tendo em vista as peculiaridades do contrato de seguro. Tratando-se de contrato de adesão, que tem como escopo principal a continuidade no tempo, não há como se admitir a rescisão com o intuito de que o segurado contrate novo seguro, em condições mais onerosas. [24]
Seguro de vida em grupo. - Ação de manutenção de seguro de vida - Renovação automática por longos trinta e oito anos - Ré que alega a existência de expressa previsão contratual possibilitando a não renovação da apólice quando findo o seu prazo de vigência - Desinteresse imotivado da seguradora na renovação automática do contrato - Abuso de direito engendrado pela seguradora, impondo o prevalecimento de exagerada desvantagem para os consumidores, incompatível com os princípios da boa-fé, da equidade e do equilíbrio que devem presidir as relações de consumo [...] Recurso parcialmente provido, apenas para reduzir a verba honorária. [25]
5. A ATUAÇÃO DOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR
A atitude de diversas companhias seguradoras em não renovar os contratos de seguro de vida (ou rescindi-los unilateralmente) provocou um grande dano aos consumidores-segurados, que, desta forma, buscaram auxílio do Poder Judiciário promovendo milhares de ações judiciais.
Além disso, alguns órgãos de proteção ao consumidor ajuizaram ações de âmbito coletivo, com objetivo de garantir aos segurados a continuidade dos contratos de seguro.
Dentre esses órgãos, destacamos a atuação dos Ministérios Públicos Estaduais, do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), e de PROCONs.
As ações foram ajuizadas, principalmente, em face da Companhia de Seguros Aliança do Brasil, da Sul América Seguros e da Itaú Seguros, entre outras seguradoras, além da SUSEP.
CONCLUSÃO
A liberdade de contratar e a autonomia da vontade são princípios embasadores do Direito moderno e, consequentemente, da legislação contratual brasileira.
Todavia, não é diferente com os princípios da boa-fé contratual e da função social do contrato, bem como da relação de hipossuficiência dos consumidores perante as empresas.
Tentamos demonstrar que o contrato de seguro de vida é contrato de massa, típico de adesão, e que é regido, além do Código Civil e de normas da entidade autárquica responsável pelo mercado (a SUSEP), pelo Código de Defesa do Consumidor.
Apesar de todos os princípios mencionados fazerem parte da relação contratual entre as companhias seguradoras e os consumidores-segurados, devido à importância econômico-social do contrato de seguro de vida, os princípios da boa-fé e da função social do contrato devem prevalecer, limitar a autonomia da vontade e a liberdade contratual.
O que é totalmente estranho a um contrato de compra e venda mercantil, por exemplo, não o é para o contrato de seguro em geral, mormente o da modalidade vida, pois se trata aqui de uma imensa diferença de forças entre contratante e contratado.
Não se pode, assim, tolerar o cruel mecanismo de rescisão contratual praticado pelas companhias seguradoras e permitido pela SUSEP. Como pode um contrato de seguro de vida renovado há décadas ser simplesmente rescindido, quando o consumidor-segurado conta com mais de oitenta anos de idade, ou seja, quando necessita verdadeiramente proteger sua família?
Conforme ambicionamos demonstrar, a SUSEP normatizou que bastaria a mera comunicação da seguradora ao consumidor de que não mais desejaria renovar o contrato de seguro de vida para que ele fosse rescindido em seu próximo aniversário. Tal prática não é digna de quem se diz defensora dos direitos dos segurados.
Não consideramos o mais importante, nesse estudo, a mera denominação (rescisão ou não renovação); nem o fato de haver ou não, no contrato, cláusula tal que previa a renovação automática ano após ano (da qual os consumidores não tinham conhecimento), ou que o direito de rescindir cabia igualmente aos consumidores.
O principal nesse estudo foi demonstrar que a expectativa, a confiança, a vontade do contratante de pagar e de receber pelo que foi pago, deixaram de ser correspondidas com a não renovação do contrato de seguro de vida.
Ora, contrata-se um seguro de vida por toda vida. Era isso que esperaram em vão milhares de consumidores, na sua grande maioria, idosos, que foram iludidos pelas maiores companhias seguradoras do país.
Queremos ressaltar que os prêmios pagos mensalmente pelos segurados não tiveram valor imutável no decorrer de todos os anos do contrato, mas foram periodicamente ajustados por índices determinados contratualmente pelas próprias companhias seguradoras.
Tanto é que todos os seguros de vida existentes hoje no mercado brasileiro têm cláusulas de reajuste por idade. Assim, o que esperam as seguradoras, é aplicarem aos contratos de ontem, as regras dos contratos de hoje, para compensar seus cálculos atuarias que estariam, dizem, defasados.
Dito de outra forma, quando todo o grupo segurado de determinada apólice era jovem (e os sinistros, baixíssimos), ocorria a mutualidade, ou seja, os prêmios de vários segurados jovens cobriam a indenização que seria paga por um sinistro de um segurado provavelmente idoso.
Anos depois, após as seguradoras descobrirem um contrato que lhes era mais viável (no caso, com reajuste por faixa etária), simplesmente deixaram de comercializar aquele tipo de apólice. Consequentemente ocorreu o envelhecimento do grupo segurado e, portanto, mais sinistros.
Agora, as seguradoras deixam de renovar todos os contratos e apresentam outros, com valores dos prêmios mais elevados e com reajuste por faixa etária.
Frise-se: os valores dos prêmios não permaneceram sempre os mesmos, mas foram reajustados pelos índices que as seguradoras mesmas estipularam.
O que foi defendido nesse estudo não é uma indenização imposta judicialmente, ou a devolução dos prêmios pagos aos segurados, mas apenas a renovação desses contratos nos mesmos moldes que previstos inicialmente.
É necessária a intervenção estatal no mercado securitário, tornando a SUSEP realmente um órgão que proteja os segurados.
E, principalmente, é necessária uma alteração na legislação securitária, para que cesse essa injustiça que já atingiu e continua atingindo milhares de consumidores-segurados já idosos que pagaram prêmios por anos a fio, e agora vêem seus contratos rescindidos e sua família completamente desamparada.
REFERÊNCIAS
- ALVES, Jonas Figueirêdo. Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2002.
- ALVIM, Pedro. O contrato de seguro. 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999.
- DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18ª ed., São Paulo. Saraiva, 2002.
- FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995.
- GOMES, Orlando. Contratos. 13ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1994.
- HUBER, Fernanda Elaine; DETTMER, Brígida. O contrato de seguro e as implicações do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 274, 7 abr. 2004. Disponível em: . Acesso em: 22 dez. 2009.
- LOUREIRO, Carlos André Guedes. Contrato de seguro. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2010.
- MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.
- MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 34ª edição. São Paulo. Saraiva, 2003.
- MORETTI, Luciana Biembengut; SILVA, Sirvaldo Saturnino. Do contrato de seguro no Direito brasileiro e a interpretação de suas cláusulas limitativas em face ao Código de Defesa do Consumidor.Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2010.
- PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003
- RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 30ª edição. São Paulo. Saraiva, 2004.
- VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 6ª edição. São Paulo, Atlas, 2006.
[1] ALVIM, Pedro. O contrato de seguro. 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1.999, p. 98.
[2] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1.996, p. 175.
[3] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1.995, p. 133.
[4] Cada apólice tinha uma denominação, dependendo da companhia seguradora. Todavia, as coberturas, preços, e as próprias cláusulas e condições eram as mesmas. A apólice da Companhia de Seguros Aliança do Brasil, por exemplo, era denominada ‘Seguro de Vida em Grupo Ouro-Vida’ ou simplesmente ‘Apólice 40’.
[5] TJ-MG, 12ª Câmara. Cível, Apelação. nº 1.0194.02.018830-7/002, rel. Des. Domingos Coelho, j. 07.03.07.
[6] TJ-MG, 12ª Câmara. Cível, Apelação. nº 1.0194.02.018830-7/002, rel. Des. Domingos Coelho, j. 07.03.07.
[7] TJ-SP, 27ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Gilberto Leme, Apelação nº 992080626350, j. 26.10.10.
[8] TJ-SP, 29ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Pereira Calças, Apelação nº 992090318080, j. 27.10.10.
[9] TJ-SP, 28ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Mello Pinto, Apelação nº. 992080700585, j. 19.10.2010.
[10] TJ-RS, 2ª Câmara Especial Cível, rel. Des. Nereu José Giacomolli, Apelação nº 70005705249, j. 18.03.2003.
[11] TJ-RS, 5ª Câmara Cível, rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack, Apelação nº 70010935997, j. 07.04.05.
[12] TJ-RS, 6ª Câmara Cível, rel. Des. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, Agravo nº 70004667002, j. 18.12.02.
[13] Art. 774 do Código Civil. A recondução tácita do contrato pelo mesmo prazo, mediante expressa cláusula contratual, não poderá operar mais de uma vez.
[14] Disponível em , acesso em 20.11.10.
[16] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4ª ed., São Paulo: RT, p. 87.
[17] Esses princípios foram devidamente estudados no primeiro capítulo desse estudo monográfico.
[18] TJ-RS, 3º Grupo Cível, Embargos Infringentes nº 70019207281, rel Des. Paulo Sérgio Scarparo, j. em 04.05.07.
[19] SILVA, Luiz Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 32.
[21] TJ-RS, 6ª Câmara Cível, rel. Des. Artur Arnildo Ludwig, Apelação nº 70023741366, j. 25.03.2010.
[22] TJ-RS, 6ª Câmara Cível, rel. Des. Ney Wiedemann, Apelação nº 70011938594, j. 20.04.2006.
[23] TJ-RS, 6ª Câmara Cível, rel. Des. Artur Arnildo Ludwig, Apelação nº 70009542226, j. 13.04.2005.
[24] TJ-MG, 12ª Câmara Cível, relator Des. Domingos Coelho, Apelação nº 1.0702.07.358545-8/003, j. 26.03.2008.
[25] TJ-SP, 28ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Cesar Lacerda, Apelação nº 990093496232, j. 28.09.10.