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Resumo:
qual é o limite de abrangência da lei? será que em determinadas hipóteses o homem pode infringir uma determinação legal em nome de um bem jurídico maior? essas são as principais dúvidas debatidas nesta obra de profunda discussão jurídica.
Texto enviado ao JurisWay em 14/11/2015.
Última edição/atualização em 27/11/2015.
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O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNAS
RESENHA CRÍTICA
1.0 INTRODUÇÃO
Quando iniciamos os estudos na área jurídica, muitas questões nos são apresentadas: ética e justiça; norma e costume; e direito e moral, por exemplo. No entanto aquela que talvez não tenha uma resposta satisfatória e que nos acompanhará por toda vida acadêmica e profissional é discussão em torno da soberania do Direito Positivo, aquele que se baseia exclusivamente no que diz a lei, ou se é possível aplicar esta mesma lei a partir da análise concreta de cada caso em particular.
Se considerarmos a primeira possibilidade, todos os casos que chegarem a um tribunal legalmente constituído serão analisados apenas à luz do que determina a Lei. Era o que defendia Hans Kelsen, principal expoente desta corrente jusfilosófica, para ele “a norma jurídica é o alfa (α) e o ômega (Ω) do sistema normativo, ou seja, o princípio e o fim de todo o sistema”[1]. Dessa forma, é necessário que determinado comportamento humano esteja previsto em norma escrita, para que, a partir dela mesma, ele possa ser apreciado e julgado.
Isto dá uma maior segurança aos homens com relação ao poder punitivo do Estado, é o que defende o viés Garantista do Direito Penal. No entanto, nenhum ordenamento jurídico, por mais “evoluído e justo” que possa parecer, é capaz de prevê todas as ações humanas e as circunstâncias em que elas ocorrerão, podendo haver situações peculiares que deveram ser apreciados com base na lei, na jurisprudência e, também, considerando suas circunstâncias singulares.
Em casos simples e corriqueiros talvez não se perceba as diferenças entre uma e outra decisão, todavia em situações difíceis e de grande repercussão social poderão surgir dúvidas e questionamentos quanto aos limites da lei positiva e de sua capacidade de promover a justiça e estabelecer o consenso social.
É basicamente esta a discussão que “O Caso dos Exploradores de Caverna” vem propor. Trama criada pelo jurista estado-unidense Lon L. Fuller[2] , ocorrida numa cidade chamada Stowfield por volta do ano 4299 e que será objeto de nosso trabalho. Aqui, nos dedicaremos a analisar tal obra a partir dos fatos narrados e dos votos proferidos pelos juízes em ultima instância.
2.0 DOS FATOS
Segundo a narrativa, cinco membros de uma Sociedade Espeleológica local planejavam explorar uma caverna situada naquela cidade, mas, logo após adentrarem o recinto foram surpreendidos por um desmoronamento de terra que os deixou enclausurados. Devido aos rascunhos do planejamento que fizeram para explorar o local, e que ficou na sede da sociedade, logo uma equipe de socorro chegou ao local.
O trabalho de resgate foi complicado, pois o custo era alto, ocorreram outros deslizamentos, onde dez operários já haviam morrido, e não havia comunicação com os exploradores. Apenas no vigésimo dia se soube que havia um rádio transmissor com os prisioneiros, logo foi montado todo aparato tecnológico que permitisse a comunicação com eles. Que perguntaram quanto tempo ainda levaria até que fossem libertos, ao que lhes responderam que, se ocorressem novos deslizamentos, em torno de dez dias estariam soltos.
Ao conversar com um médico sobre suas condições físicas e a escassez de alimentos, Roger Whetmore perguntou se sobreviveriam por uma semana, ao que foi respondido que “dificilmente”, questionou ainda se estariam vivos por mais tempo se utilizassem como alimento a carne de um deles, o médico, a contra gosto, respondeu que “sim’. Em seguida, Whetmore buscou conselhos junto às autoridades ali presentes, “padre”, “juiz”, sobre a pertinência de tal decisão, ninguém se pronunciou, e logo depois o rádio silenciou.
No trigésimo segundo dia de confinamento os homens foram salvos e, para a surpresa de todos, faltava um, de acordo com relatos dos sobreviventes, Roger Whetmore foi abatido por eles, três dias após o diálogo com o mundo exterior, e servido de alimento aos demais. Ainda segundo os exploradores, foi ele o próprio quem propôs tal medida, e que a sorte de permanecer vivo seria tirada através do lance de dois dados que carregava consigo. Acontece que, após ter firmado o “contrato”, Whetmore quis desistir, mas o “consenso” já estava estabelecido. Todos jogaram os dados e na sua vez, outro jogou por ele, momento em que lhe foi perguntado se tinha alguma objeção, como a resposta foi negativa, os números foram revelados, e, tendo uma sorte inferior a dos demais, ele foi condenado.
Assim sendo, logo após receberem os devidos cuidados médicos, os quatro homens foram levados ao Tribunal do Condado de Stowfield, processados e condenados à morte. Sendo o caso julgado em primeira instância, os réus recorreram ao grau máximo daquele ordenamento, Suprema Corte de Newgarth, afim de que a sentença fosse reformada pelos juízes superiores.
3.0 DOS VOTOS
3.1 Presidente Truepenny, C. J.
Após ler os fatos que deram origem ao julgamento que presidia, o Juiz Truepenny decidiu pela manutenção da sentença proferida no tribunal de primeira instância, qualificando-a como o único caminho a ser seguido. É possível identificar no voto deste magistrado, fortes influencias tanto positivista quanto garantista, isto fica claro quando ele afirma que o dispositivo legal infringido, qual seja “quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a morte” (p. 8), não permite nenhuma exceção. Ou seja, independente da situação fática, para ele, a lei deve ser aplicada conforme está escrito.
3.2 Foster J.
A decisão proferida por este magistrado é contrária à sentença condenatória do primeiro Tribunal. A argumentação utilizada pelo Ministro Foster J. para absolver os réus pode ser dividida em dois momentos: no primeiro ele usa a ideia do estado natural e do contrato social , já no segundo ele tenta moldar a conduta daqueles homens à excludente de ilicitude.
Foster inicia seu voto dizendo que, por tudo que já foi relatado, a situação em que aqueles homens se encontravam, inclusive a vítima, não era compatível com o estado de sociedade civil, onde vigoram as leis positivas e as estruturas do Estado. Era uma nova realidade limitada pela prisão subterrânea, e que não era compatível com o ordenamento jurídico em vigor, se assemelhava, em muito, ao estado natural (p. 15) sendo necessário estabelecer um novo contrato social para que a vida fosse possível. E assim foi feito, inclusive tendo como mentor intelectual do ato a própria vítima.
Outro argumento utilizado pelo magistrado em questão para absolver os réus relaciona-se com a excludente de ilicitude, que é um instituto garantista, ele afirma que segundo um dos mais antigos aforismas da sabedoria jurídica “um homem pode infringir a letra da lei sem violar a própria lei” (p. 20). Partindo desta ideia o magistrado em questão apela para a jurisprudência fazendo um paralelo da situação julgada com outras em que os réus foram absolvidos pelo mesmo “princípio”, para ele, é razoável que se analise que aquela não era uma situação comum, um crime comum, que a realidade fática era extremamente desfavorável aos réus, onde não se podia exigir deles uma conduta diversa.
3.3 Tatting, J.
Embora tenha dito que dedicou a este caso mais atenção do que poderia, tendo até dormido pouco (p. 38), me parece que de nada adiantou tal esforço e desgaste. Se o Ministro Tatting escreveu alguma coisa sobre o processo não quis dividir com quem participou daquele julgamento.
Podemos analisar seu voto a partir dos seguintes questionamentos: “se aqueles homens não estavam em estado de sociedade e sim em estado natural, em que momento se deu esta passagem”? “e se estavam em estado natural qual seria então o tribunal competente para julgá-los”? “e, se Roger Whetmore tivesse reagido contra aqueles que tentaram contra sua vida, seria julgado por infringir as regras estabelecidas pelo novo contrato”? “e, qual seria o alcance da exceção estabelecida a este caso”? (p. 36).
Ao final de tantas perguntas, que ficaram sem respostas, o Magistrado Tatting nada defendeu e se absteve do voto. Das noites que perdeu e das horas, ou dias de estudo, pouco, ou nada, foi apresentado, o que ele fez foi apenas analisar o voto do seu antecessor. Fico penando no que ele iria dizer naquele tribunal se tivesse que votar logo depois do Presidente, talvez tivéssemos realmente a defesa de uma tese original.
3.4 Keen J.
Ao iniciar sua fala, Keen J. declara em bom tom que irá, apenas, cumprir sua função, aquilo para o qual foi designado, ou seja aplicar a lei. Para ele não função de um juiz discutir a validade ou aplicabilidade de uma lei, diz que isto já foi feito no processo legislativo.
Segundo ele a lei é evidente, tácita: “quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a morte” (p. 42). E a conduta dos exploradores de caverna se ajusta com este tipo penal, assim sendo não há o que discutir. A tese defendida pelo presente magistrado fixa suas bases no garantismo penal e no positivismo jurídico. Primeiro porque busca na lei e no direito penal, elementos de prevenção, controle social e garantia individual. E positivista porque se afasta, em seu posicionamento, qualquer questão que seja alheia ao direito: moral ou imoral, justiça ou injustiça, bom ou mau.
Para ele, o julgamento de qualquer questão judicial se resumi a adequação da conduta ao que determina a lei, e vai mais além ao afirmar que “a exceção ao cumprimento das leis, levada a efeito pelo poder judiciário, faz mais mal a longo prazo do que as decisões rigorosas” (p. 52). Assim, o ministro Keen J. ao concluir sua argumentação, decide pela “confirmação da sentença condenatória” (p. 54).
3.5 Handy, J.
Nas argumentações que usou para fundamentar seu voto, este juiz fez críticas ao poder judiciário e aos próprios colegas: segundo ele a “justiça” se afasta do homem comum e não cumpre bem seu papel perante a sociedade; já os juízes põem sobre qualquer caso que se apresente “uma obscura cortina de legalidade”, postura que deixa de lado influencias paralelas, como as circunstancias do fato e a opinião pública sobre o que se julga.
É possível associar o pensamento do ministro Handy com as ideias presente no viés abolicionista do direito penal, pois ambos entendem que o ordenamento jurídico positivo mais atrapalha do que ajuda na resolução dos conflitos entre os homens e que, partindo do princípio da subsidiariedade e da intervenção mínima, determinadas decisões, ora exclusivas do poder judiciário stricto sensu, deveriam ser compartilhadas com os demais ramos da sociedade. Para ele a opinião pública deveria ter importância fundamental nas decisões judiciais.
Dessa forma, tendo em vista o caso concreto e que, de acordo com uma pesquisa realizada naquela comunidade, “cerca de noventa por cento do povo entenderam que os réus deveriam ser perdoados” (p. 64), o Juiz Handy “concluiu que os réus são inocentes e que deveriam ter suas sentenças reformadas” (p. 72).
4.0 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enfim, diante de um empate ocorrido naquela Corte Superior, foi mantida a decisão condenatória da primeira instância. Decisão que considero injusta. Digo e justifico.
Primeiro porque apenas aqueles homens sabem o que sofreram no interior daquela caverna e quanto lutaram para sobreviver. Não havia nutrientes, animal ou vegetal, para manter suas vidas, havia dúvidas quanto ao tempo que duraria o resgate, e se seria possível com a iminência de ocorrerem novos deslizamentos. Entendo também que naquelas condições não era razoável exigir deles uma conduta estritamente legal, eles tinham que sobreviver, inclusive para responder pelo que aconteceu, algo que não seria possível se não tivessem adotado tal medida (como foi dito por um médico presente no acampamento – p. 5). Acredito que, caso resolvessem se acalmar e civilizadamente esperar o socorro que vinha do mundo externo, como queriam os sublimes magistrados que os condenaram, dificilmente estariam vivos para relatar os fatos ocorridos e, posteriormente, sentirem o peso da punição positivista.
A situação que acabamos de analisar, embora hipotética, nos fornece base para diversas discussões jurídicas (estado natural e estado civil, eficácia do direito positivo, a análise do caso concreto e da jurisprudência, os viés garantista e abolicionista do direito penal). Trata-se, sem dúvida, de uma bela aula de introdução ao estudo do Direito penal.
REFERÊNCIA BÁSICA
FULLER, Lon L. O Caso dos Exploradores de Cavernas. Tradução de Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre: Fabris, 1976.
REFERÊNCIA AUXILIAR
ALMEIDA, Guilherme Assis de; BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. 9ª Ed. São Paulo: Atlas, 2011. P. 388 - 403.
FONTE
http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Caso_dos_Exploradores_de_Caverna
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