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CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE DIGNIDADE ANIMAL NO ORDENAMENTO PÁTRIO


Autoria:

Ricardo Dos Reis Tavares


Formado em Pedagogia e em Direito. Pós graduado em Direito, Políticas e Gestão de Segurança Pública.

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Resumo:

Apesar de o direito brasileiro não reconhecer personalidade jurídica aos animais, a crueldade contra estes goza de vedação constitucional, também havendo uma série de instrumentos legais e normativos em favor.

Texto enviado ao JurisWay em 16/03/2014.



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Resumo: cada vez mais os temas relacionados aos animais vem ganhando espaço na doutrina e jurisprudência, ao ponto de hoje, apesar de o direito brasileiro não reconhecer personalidade jurídica aos animais, a crueldade contra estes goza de vedação constitucional, também havendo uma série de instrumentos legais e normativos em favor destes. Enfim, trata-se de tema ainda pouco abordado pela doutrina mas passível de ser entendido como caminho de evolução natural de um direito garantidor do domínio do homem para um direito protetor da vida.

 

Palavras chave: direito, animais, abolicionismo, crueldade.

 

 

 

Sumário: Introdução. 1 – Considerações históricas. 2 – O direito dos animais como evolução dos direitos fundamentais. 3 – A tutela dos animais no direito brasileiro.4 – Classificação dos animais no direito brasileiro. 5 – A Declaração Universal dos Direitos dos Animais. 6 – Especismo e antropocentrismo do Direito em desfavor dos animais. 7 – O direito dos animais em juízo. 7.1 – Da possibilidade de concessão de habeas corpus em favor de grandes primatas. 7.2 – A vedação à crueldade contra os animais como limite à liberdade de manifestação cultural. 7.3 – O caso da maior “serial killer” de animais do Brasil. 7.4 – O abate de animais para consumo humano. 7.5 – O uso de animais como cobaias. O abate sanitário de animais vadios. Conclusão. Referências.

 

 

 

 

Introdução

 

 

 

O presente artigo busca analisar o processo de reconhecimento da dignidade animal como um prolongamento natural da evolução do direito, buscando identificar as principais barreiras para a consolidação de tal conceito no Brasil. Destacando a crescente preocupação social e científica em relação ao direito dos animais; sempre que possível, relacionando e analisando os principais julgados, sobretudo do STF e do STJ, além de projetos de lei da Câmara Federal e do Senado, afetos à matéria, buscando identificar os principais argumentos favoráveis e contra o reconhecimento dos animais enquanto portadores de direitos.

 

O tema da presente pesquisa bibliográfica possui crescente envergadura, principalmente após a aprovação pela UNESCO da Declaração dos Direitos dos Animais, até a presente data não ratificada pelo Brasil. Cada vez mais recebendo atenção doutrinária, legislativa e jurisprudencial.

 

Entretanto, ainda que as decisões judiciais, sobretudo dos principais tribunais superiores ainda não reconheçam expressamente o direito à dignidade em favor dos animais, ao menos os reconhece como merecedores de proteção diferenciada no que se refere à condição de bem, propriedade.

 

Destarte, apenas para ficar em alguns exemplos da abrangência desta temática na contemporaneidade brasileira, cita-se os embates jurídicos em torno do uso de animais em circos, da forma de abate de animais nos centros de zoonoses municipais, as rinhas de galo, farra do boi, os rodeios e vaquejadas, a impetração de habeas corpus em favor de chimpanzés lastreada na proximidade genética, a proibição da criação de cães da raça pit-bull, a utilização em experimentos da indústria cosmética e farmacológica, dentre outros temas que, com maior ou menos destaque, serão abordados e analisados ao longo do presente estudo.

 

Priorizando-se o levantamento bibliográfico, confrontando-o sempre que possível com decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) relacionadas à matéria em foco. Sem prejuízo a, quanto possível e necessário, a consulta a decisões tanto da justiça comum federal como da estadual. Sempre através de pesquisa por meio da internet, além da analise, também através de meio digital, de leis nacionais, estaduais e municipais que venham a ser relacionadas ao objeto, além de pesquisa em bibliotecas e, sempre que possível, em jornais e revistas.

 

Lógico que se trata de tema bastante controverso e que esbarra em uma série de interesses tanto ideológicos como financeiros uma vez que, não raro, eventos e manifestações de cunho supostamente cultural e que envolvem atos de crueldade contra animais, envolvam milhões em dinheiro. Mas, enfim, a partir do presente estudo, espera-se, no mínimo, contribuir para que se pense até que ponto o Direito deve servir como um instrumento de proteção à vida, e até que ponto como instrumento de dominação do homem sopre todos demais seres vivos.

 

O presente estudo se justifica frente à crescente preocupação com o tema dos direitos dos animais, perceptível diante da quantidade de vezes cada vez maior que fatos como a rinha de galo, rodeios, utilização de animais em circos, maus tratos contra animais, dentre outros, vem sendo abordados tanto pela imprensa como tem chegado à porta dos tribunais. Circunstâncias que destacam tanto a atualidade como a importância do tema para as Ciências Jurídicas e cujo estudo se torna mais viável em virtude da facilidade de acesso à jurisprudência correlata através da internet.

 

Ressaltando-se que tanto a matéria vem cada vez mais fervilhando nos tribunais superiores que mesmo após a redação final do desenvolvimento do presente estudo, o Supremo Tribunal Federal fez publicar com destaque em sua página na internet a matéria “Contestada lei de AL sobre proteção de animais abandonados”, referente à Ação Direta de Inconstitucionalidade 4959, relator Ministro Celso de Mello, acerca da qual, por imperativos de tempo e espaço, apenas faz-se a justa menção da existência.

 

Assim, ressalta-se como aspecto inovador da proposta a defesa de que o Direito não deve se portar como um instrumento de domínio do homem sobre o mundo, mas acima de tudo como robusta ferramenta em prol da defesa da vida digna, humana ou não.

 

 

 

1.0 – Considerações históricas

 

                        Urge salientar que resistência similar à hoje existente quanto à extensão do reconhecimento de direitos aos animais não se trata de fenômeno histórico isolado, mas de reflexo do que pode ser referido como uma postura global antropocêntrica referendada por uma série de argumentos de cunho religioso e filosófico. Inclusive com referências bíblicas, a exemplo da existente no versículo 28 do capítulo 1 do Gênesis no sentido de que Deus teria conferido aos homens “poder sobre os peixes do mar, sobre as aves que voam no ar e sobre os animais que se arrastam no chão”.

 

                        Sintoniza-se com o exposto, o lapso temporal existente entre a descoberta da célula pelo cientista inglês Robert Hooke em 1667 e a aceitação de que homens, plantas e animais são igualmente formados por células. O que somente foi pacificado no final do século XIX, com a aceitação da Teoria Unificadora de Schleiden e Schwann, pautada em dois axiomas básicos: o de que a célula é a unidade estrutural de todos os seres vivos e de que a célula é a unidade de reprodução, desenvolvimento e hereditariedade dos seres vivos. Isso após décadas de acirrada oposição fundamentada no sentimento de que seria inadmissível reconhecer a existência de estrutura morfo-fisiológica similar para homens, enquanto seres “à imagem e semelhança de Deus” e animais.

 

                        Note-se que, na essência, o exposto não difere muito do atual contexto em que se recusa admitir que os animais, enquanto seres inferiores, sejam reconhecidos como detentores de direitos. Somando-se à resistência fatores de ordem operacional, como bem destaca Godinho (2012, [n.p.]) ao afirmar que “o reconhecimento de personalidade aos animais geraria situações inexplicáveis: como justificar que pudéssemos ser proprietários de animais, aliená-los, sacrificá-los ou mesmo consumi-los, se fossem designados como pessoas?

 

                        Mas, a despeito de todas as oposições e ressalvas, reflete Singer (1993, p.43) utilizando-se das palavras de Bentham:

 

Chegará o dia em que o restante da criação vai adquirir aqueles direitos que nunca poderiam ter sido tirados deles senão pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a viscosidade da pele ou a terminação do sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria o fato A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas sim se são passíveis de sofrimento.

 

                        De fato, não há como escapar da percepção de que muitos dos argumentos que hoje legitimam atos de crueldade contra os animais, outrora legitimaram a escravidão e tortura de um sem número de indivíduos negros e índios, perpetrados por uma série de notáveis da sociedade de então. Evidenciando a mutabilidade evolutiva dos valores sociais e da norma, uma vez que atos socialmente aceitos por significativa parcela da sociedade podem, ao longo do tempo, converterem-se em condutas reprováveis no mais alto grau, tornando-se inafiançáveis e imprescritíveis. Fazendo-se merecedoras, no mínimo, de atenção, as palavras de Dias (2007, [n.p.]) de que “o direito à integridade física é imanente a todo ser vivo, e está umbicado à sua própria natureza, indiferentemente se ser humana ou não humana, silvestre ou doméstica”.

 

                        Mas, como bem advertem Godinho e Silva (2012, p.03):

 

O pedestal que nos colocamos gloriosamente começa a apresentar uma série de fissuras, a já parece estar relegada a uma peça de museu, pois todas as características que pensávamos serem exclusivas da humanidade, tais como a razão, linguagem, a cultura, a consciência de si, etc., tem sido comprovadamente encontrada em outras espécies, notadamente entre os grandes primatas. Por outro lado, tem ocorrido um aumento significativo da consciência social sobre os animais, e existe mesmo o consenso de que eles possuem interesses que devem ser protegidos juridicamente, embora a maioria das pessoas ainda ache absurda a ideia de conceder-lhes direitos.

 

                       

 

Bem se vê, portanto, que o tema ainda permanece bastante controvertido, em que pese ganhar cada vez mais adeptos. Do que, para ilustrar, faz-se referência à subscrição por 29 (vinte e nove) renomados cientistas, nacionais e estrangeiros, na petição inicial do habeas corpus impetrado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (processo nº 0002637-70.2010.8.19.0000), pleiteando o remédio heroico em favor do chimpanzé JIMMY, cujo acórdão, apesar de ser pelo improvimento ao pedido, trata-se de verdadeiro tratado sobre o direito animal.

 

 

 

2.0 – O direito dos animais como evolução dos direitos fundamentais

 

                        Pacificado no ordenamento nacional o reconhecimento à existência de uma série de direitos inerentes à condição humana, muitos deles consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e referendados na Constituição de diversos países, dentre eles o Brasil. Contudo, o que propõe determinados movimentos, conhecidos como abolicionistas, é que a dignidade não esteja restrita à humanidade, mas inerente à vida e à scenciência. Conceito que assume especial importância diante da percepção, como lecionam Dimitri e Martins (2008, p.80) de que “as garantias fundamentais correspondem às disposições que não anunciam direitos, mas objetivam prevenir e/ou corrigir uma violação de direitos”.

 

                        De sorte que da garantia de direitos fundamentais surge o conceito de bem jurídico, ou seja, de direito tutelado pelo estado. Nunca se podendo perder de vista que, nas palavras de Prado (2010, p.50), “o bem jurídico não é apenas objeto de referência, mas também de preferência, visto que neste último aspecto consubstancia um valor, um sentido”.

 

                        Logo, em apertada síntese, trata-se de uma questão de escolha, garantir ou não uma parcela de direitos aos não humanos. E, como preceitua Prado (2012, p.41), citando Perez Luño:

 

A noção de bem jurídico decorre das necessidades do homem surgidas na experiência concreta da vida que, enquanto dados sociais e historicamente vinculados à experiência humana, tem uma objetividade e uma universalidade que possibilitam sua generalização, através da discussão racional e o consenso, e sua concreção em postulados axiológicos materiais.

 

                        Por isso, vê-se evoluírem a passos largos os direitos humanos, inclusive com previsão doutrinária de vedação ao retrocesso, enquanto que o dos animais apenas engatinham pois, como adverte Reale (2002, P.61) “O Direito, indiscutivelmente inova, apresenta elementos de renovação permanente, mas conserva, sempre, um fulcro de tradição”. E é justamente essa tradição que depõe contra a extensão dos direitos inerentes à dignidade aos animais.

 

                        Analisando-se este contexto à luz da Teoria Tridimensional do Direito, segundo a qual este seria o fruto da interação entre três fatores: fato, valor e norma, onde, nas palavras de Reale (op cit, p.67) “o fato e o valor nesta se relacionam de tal modo que cada um deles se mantém irredutível ao outro (polaridade) mas se exigindo mutuamente (implicação) o que dá origem à estrutura normativa como momento de realização do Direito”. De sorte que, partindo-se da premissa de que sobejam exemplos (fatos) demonstrativos da prática de crueldade contra os animais e que em muitos deles restou flagrante o repúdio social (valor) a tais condutas, como no recente caso da “serial killer” de animais, melhor explicitado adiante, mais do que razoável inferir a necessidade de adequação da realidade jurídica (norma) a um modelo que reconheça determinados direitos aos animais, protegendo-os com maior rigor. Desta forma, harmonizando fato, valor e norma.

 

 

 

3.0 - A tutela aos animais no direito brasileiro

 

Até o ano de 1991, vigorava no Brasil o Decreto nº 24.645/1934 que em seu artigo 1º dispunha que “todos os animais existentes no País são tutelados pelo Estado”. Norma que acabou expressamente revogada pelo Decreto nº 11/1991 que aprovou a estrutura regimental do Ministério da Justiça e deu outras providências, em especial a revogação de uma série de decretos.

 

Revogada a tutela estatal aos animais, o referido dispositivo jamais foi reproduzido no ordenamento pátrio.

 

A partir do art. 82 do Código Civil como bens “semoventes”, os animais não gozam de personalidade jurídica, entendida esta como o atributo necessário para ser sujeito de direito, ou seja, não possuem os atributos necessários para titularizar direitos e contrair obrigações, conforme lecionado por Gagliano e Pamplona (Filho, 2008, p.80).

 

Nesse sentido, o Enunciado 286 do Conselho de Justiça Federal, afirma que “os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”.

 

Assim, apesar de a Constituição Federal dispor no inciso VII do parágrafo 1º de seu artigo 225 a proteção à fauna e a vedação expressa, na forma da lei, às práticas que “provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”, não se pode falar em reconhecimento a direitos aos animais, sobretudo porque tal dispositivo não se volta à tutela protetiva animal, mas a assegurar a efetividade do direito do homem ao ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos do caput:

 

Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

 

                        Destarte, justamente por esta subordinação da proteção aos animais aos interesses humanos é que uma série de práticas cruéis são historicamente cometidas contra animais, especialmente, legitimadas por valores de ordem científica, sanitária e culturais. Contudo, ainda que aos poucos, vem se construindo e solidificando na jurisprudência pátria, senão o reconhecimento da existência de uma dignidade animal, ao menos a obrigatoriedade de revisão da forma como estes podem e são tratados pelos homens, sem prejuízo mesmo ao reconhecimento, ainda que mitigado, a determinados direitos de personalidade. Do que se fazem oportunas as ponderações de Godinho (op cit,[n.p.]):

 

Sob o argumento de que o denominado especismo que confere apenas aos seres humanos o status de pessoas não se justifica, vem-se defendendo a concessão de personalidade jurídica aos animais, que passariam a ser pessoas e, logo, sujeitos de direito. A posição, no entanto, é ilógica, uma vez que o estatuto jurídico próprio das pessoas, que titularizam direitos (de cunho patrimonial e extrapatrimonial) e contraem deveres, é incompatível com a essência dos animais.  Apesar de inegavelmente merecerem o amparo legal contra tratamentos cruéis, não podem os animais assumir os referidos direitos e deveres, uma vez que são objetos (e não sujeitos) de direitos como, por exemplo, a propriedade. Reconhecer aos animais a condição de pessoas para deixar de lhes aplicar o regime jurídico inerente às pessoas representaria resposta atécnica e superficial. De nada adianta a constantemente sugerida mudança no rótulo se, quanto ao conteúdo, os animais continuarem sendo submetidos às regras jurídicas próprias das coisas, não das pessoas.

 

 

 

                        E, além das já referidas menções da Lei Maior e do Código Civil, o ordenamento nacional, com destaque para a Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998) e a Lei 11.794/2008, traz uma série de referências aos animais que, inobstante não lhes reconhecer a titularidade de direitos, ao menos lhes garante uma tutela especial. Ordenamento que, mesmo apontado como insuficiente, cabendo destacar a advertência feita por Godinho (2012, p.27) de quê:

 

A partir da análise do ordenamento jurídico pátrio no que tange à proteção dos animais não-humanos, denota-se que o nosso repertório legislativo é mais do que suficiente para, em tese, proteger esses seres da maldade humana. Tal afirmação tem respaldo no fato de o Brasil ser um dos poucos países do mundo a vedar, na própria Constituição Federal, a prática de crueldade para com os animais.

 

           

 

                        E é justamente a partir desse arcabouço jurídico que vem se consolidando uma série de entendimentos jurisprudenciais e medidas administrativas, demostrando a abrangência, relevância e complexidade da matéria afeta ao direito dos animais, tudo a reclamar um maior e melhor tratamento pela doutrina nacional, ainda bastante insipiente.

 

 

 

                        3.1 – Classificação dos animais no direito brasileiro

 

                        Saber que à luz do Código Civil os animais são bens semoventes é irrisório diante da complexidade do tema, facilmente observável ao se constatar que enquanto alguns semoventes podem ser livremente comprados e vendidos, outros, a simples posse sem a devida autorização, mesmo diante das melhores condições, pode caracterizar crime contra a fauna.

 

                        Digna de referência, portanto, a classificação adotada por Godinho (2012, p.10), baseada nas diversas disposições do direito brasileiro, em: silvestre, doméstica, produtiva, exótica, domesticada ou em estado de domesticação, conforme abaixo resumidamente discriminados:

 

  1. Silvestres: conceituados no parágrafo 3º do art. 29 da Lei nº 9.605/98 como:

    (...) todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte do seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras.

     

  2. Doméstico: aqueles dotados de especial interação com o homem, notadamente no que concerne à dependência alimentar;

  3. Produtivos: os destinados a suprir às necessidades alimentares e de consumo do homem, fiscalizados e controlados por órgãos de vigilância sanitária e pecuária;

  4. Exótico: são definidos na Portaria nº 93, de 07 de julho de 1998, do Instituto Brasileiro do Maio Ambiente – IBAMA como

 

todos aqueles animais pertencentes à espécie ou subespécie cuja distribuição geográfica não inclui o Território Brasileiro e as espécies ou subespécies introduzidas pelo homem, inclusive domésticas em estado asselvajado ou alçado. Também são consideradas exóticas as espécies ou subespécies que tenham sido introduzidas fora das fronteiras brasileiras esuas águas jurisdicionais que tenham entrado em Território Brasileiro.

 

 

 

  1. Domesticados ou em estado de domesticação: nas palavras de Vasconcelos (op cit),

    os animais domesticados ou em estado de domesticação são aqueles animais silvestres de espécies nativas ou exóticas provenientes da natureza ou do cativeiro e que passa a viver em ambiente doméstico, sendo dependentes do homem, seja com a finalidade de consumo (alimento) ou pet, ou ainda para a simples companhia (estimação).

 

 

 

                        A consolidação uma classificação doutrinária dos animais assume relevante importância diante da série de questionamentos tanto práticos quanto éticos implícitos às diferentes categorias. Seja pelo tratamento diferenciado dado pelo ordenamento, segundo o qual, a posse de determinado animal pode ser livre, enquanto a de outro pode configurar crime. Ou ainda, por exemplo, na hipótese de reconhecimento dos animais enquanto sujeitos de direitos, tal deve se dar de forma uniforme a toda e qualquer categoria, seja o cão doméstico, o boi de abate ou a onça selvagem integrante da lista de animais em risco de extinção?

 

                        Desta feita, ainda que aprofundamento em tais questionamentos extrapole aos objetivos do presente estudo, imprescindível a sua referência, no mínimo, para reforçar a complexidade e abrangência do direito animal. Expressão que, apesar de tecnicamente equivocada uma vez que inexiste tal ramo autônomo do Direito, passível de ser utilizada com fins didáticos.

 

 

 

 

 

4.0 - A Declaração Universal dos Direitos dos Animais

 

                        Tratando do tema, na perspectiva internacional, foi ratificada pela UNESCO, em 1978, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, documento ao qual o Brasil, é signatário, apesar de não tê-lo ratificado até a presente data. Documento que, para Rodrigues (2005, p.9), socorrendo-se a nas lições de Azevedo, “essa Declaração adota uma nova filosofia de pensamento sobre o direito dos animais, reconhecendo o valor da vida de todos os seres vivos e propondo um estilo de conduta humana condizente com a dignidade dos e o respeito aos animais

 

                        Apesar de receber críticas por parte de movimentos abolicionistas por adotar uma postura utilitarista, na medida em que mitiga o reconhecimento do animal como sujeito de direitos ao também legitimar o abate, trabalho, a morte necessária e a vivissecção, não há como negar o avanço principiológico que representa.

 

 

 

5.0 – “Especismo” e antropocentrismo do Direito em desfavor dos animais

 

                        Um dos aspectos mais relevantes a ser considerado logo de início é que não se reconhece, no ordenamento jurídico pátrio, aos animais enquanto sujeitos de direito.

 

Assim, classificados a partir no art. 82 do Código Civil como bens “semoventes”, os animais não gozam de personalidade jurídica, entendida esta como o atributo necessário para ser sujeito de direito, ou seja, não possuem os atributos necessários para titularizar direitos e contrair obrigações.

 

Nesse sentido, o Enunciado 286 do Conselho de Justiça Federal, afirma que “os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”.

 

Assim, apesar de a Constituição Federal dispor no inciso VII, do parágrafo 1º de seu artigo 225 a proteção à fauna e a vedação expressa, na forma da lei, às práticas que “provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”, não se pode falar em reconhecimento a direitos aos animais, sobretudo porque tal dispositivo não se volta à tutela protetiva animal, mas a assegurar a efetividade do direito do homem ao ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos do caput:

 

Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

 

                        Destarte, justamente por esta subordinação da proteção aos animais aos interesses humanos é que uma série de práticas cruéis são historicamente cometidas contra animais, especialmente, legitimadas por valores de ordem científica, sanitária e culturais. Contudo, ainda que aos poucos, vem se construindo e solidificando na jurisprudência pátria, senão o reconhecimento da existência de uma dignidade animal, ao menos a obrigatoriedade de revisão da forma como estes podem e são tratados pelos homens, sem prejuízo mesmo ao reconhecimento, ainda que mitigado, a determinados direitos de personalidade.

 

                        Portanto, mesmo as disposições constitucional e legais contrárias à prática de maus tratos contra os animais não se dá por reconhecimento de qualquer direito à vida, integridade física, dentre outros. Tais lastreiam-se, exclusivamente, nos interesses dos seres humanos. Afinal, como bem adverte Marashhin (2005, [n.p.]) “em que pese haverem normas protetivas em relação aos animais, não é raro que os maus tratos a estes sejam tolerados sob o argumento da liberdade cultural e religiosa”, podendo-se somar à advertência os atos de crueldade praticados, dentre outros, por razões sanitárias ou ainda em nome da ciência e do ensino.

 

                        Justifica-se tal contexto, na visão de Lourenço (2012, [n.p.]) pelo fato de que

 

A visão aristotélica de uma hierarquia da vida penetrou de forma tão densa no pensamento ocidental que o mundo do Direito se contaminou com a ideia de que os animais teriam uma natureza jurídica diferente da dos humanos. (...) A maior parte das leis trabalha com esse paradigma, visando a proteção à fauna para o benefício humano. Até o principal dispositivo de proteção ambiental da Constituição Federal, o art. 225, é interpretado dessa forma por considerar o meio ambiente e, por extensão, os animais, um bem de uso comum do povo.

 

                     Ou seja, não se vislumbra o Direito como uma estrutura social voltada à defesa da vida, mas tão somente à defesa da vida e bem estar humanos. Daí justificar-se o entendimento de Dias (2007, [n.p.]) de que “para a maioria dos doutrinadores o Direito protege os animais com intuito de proteger o homem, daí uma habitual atenção dirigida aos animais silvestres em detrimento dos domésticos”.

 

Ademais, assim como os antropólogos denunciam condutas e posturas etnocêntricas em que os integrantes de determinado grupo cultural depreciam e ignoram os interesses e sentimentos que lhes sejam estranhos, em uma escala maior, o Direito, em regra, restringe-se à proteção dos interesses da espécie humana, na medida em que ignora ou hostiliza aos sentimentos e interesses de espécies alheias à humana, numa postura social e normativa que vem sendo denominada de “especismo” e que tem recebido diversas críticas, a exemplo do que advoga Godinho (2010, [n.p.]), no sentido de quê:

 

Não há, contudo, como negar a noção de que o ser humano está na origem e no fim do direito, por ser o criador e o destinatário das normas jurídicas. A pessoa humana ocupa posição central no ordenamento, e tudo o mais gravita em torno dela – inclusive a proteção que se confere aos animais, que se dá também em consideração a interesses humanos.

 

Entretanto, enfoques como o do Godinho são robustamente combatidos por doutrinadores como Marashin (op cit), no sentido de quê:

 

Não são todos os direitos dos seres humanos que devem fazer parte do rol dos direitos dos animais. O homem, por ser dotado de razão, tem direito à educação; já o animal, forçá-lo ao aprendizado pode caracterizar, e muitas vezes assim o é, dependendo dos métodos utilizados, maus tratos e abuso. Por exemplo, o “adestramento” dos animais para atuarem nos circos quase sempre faz uso de métodos cruéis. Há uma base mínima de direitos inerentes a todos os seres vivos: direito de viver, direito à liberdade, direito de se alimentar, de saciar a sede, de proteger-se do frio, de perpetuar a espécie, de não sofrer violência ou crueldades.

 

E ainda, de forma mais enfática, por Bezerra (2012, [n.p])

 

A rejeição do especismo, então, não pretende propor um conceito simplista que torno semelhantes animais e seres humanos. A rejeição do especismo, então, não significa que os animais tenham os mesmos direitos que os homens, a proposta é que todos os seres vivos tenham seus interesses respeitados.

 

                        Também por Oliveira (2007, p.207), ao afirmar que:

 

Estender princípios básicos de igualdade de um grupo para outro não sugere que os dois grupos devam ser tratados da mesma maneira, mas sim que os interesses dos integrantes de certo grupo sejam considerados em relação aos outros, ponderando-se os aspectos positivos e negativos.

 

 

 

6.0 – O direito animal em juízo:

 

                        Não obstante a previsão legal no sentido de que os animais são bens e, portanto, devem ser tratados na qualidade de patrimônio. Disso decorre, por exemplo, que animais não podem ser autores nem vítimas de crime. Quando ferem alguém, podem ser instrumento da ação humana, ou manifestação de um caso fortuito ou de força maior. No mesmo sentido, quando são submetidos a crueldade, não são vítimas, uma vez que não possuem bens jurídicos tutelados. Logo, nestes casos, a vítima é a coletividade, não o animal seviciado.

 

                        De igual forma, é tecnicamente incorreto dizer que um animal foi “torturado”, uma vez que material e formalmente impossível enquadrar um animal no pólo passivo das condutas descritas na Lei nº 9.455/1977.

 

                        No mesmo diapasão, pacífico na doutrina e na jurisprudência que o proprietário é civilmente responsável pelos danos que o seu animal, sua propriedade, causar a outro. E tanto é pacífico o dever de cautela do proprietário em relação ao seu animal que a simples omissão de cautela na guarda de animal encontra-se tipificada no art. 31 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688/1941), em que pese haver divergência doutrinária quanto à sua recepção pela Constituição de 1988, enquanto crime de perigo abstrato e, portanto, contrário, dentre outros, ao Princípio da Intervenção Penal Mínima.

 

                        Ao ponto que, oportunamente, apresentar-se-á alguns dos principais embates e controvérsias jurídicas relacionados à matéria objeto, restando a quantidade de temas e possibilidade de aprofundamento reféns dos limites impostos tanto por questões de espaço, quanto em virtude do próprio objetivo do presente trabalho.

 

                        6.1 – Da possibilidade de concessão de habeas corpus em favor de grandes primatas

 

                        Interessante discussão chegou ao Superior Tribunal de Justiça acerca da possibilidade ou não, de estender aos animais determinados direitos de personalidade quando do julgamento do Habeas Corpus n.º 096344, impetrado em favor de “Lili” e Megh”, duas chimpanzés, fundamentando-se, dentre outros argumentos, na aproximação genética em torno de 99,4% com o DNA humano.

 

                        O fato ganhou notoriedade, sobretudo, por tratar-se de recurso a decisão favorável à concessão do remédio heroico proferida pela Desembargadora Alda Bastos da Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

 

                        Contudo, ao analisar a matéria, o Ministro Castro Meira, em 04 de dezembro de 2007, firmou entendimento pela impossibilidade de concessão de habeas corpus para não humanos, a despeito de qualquer proximidade gênica pois “se o Poder Constituinte Originário não incluiu a hipótese de cabimento da ordem em favor de animais, não cabe ao intérprete incluí-la, sob pena de malferir o texto constitucional”.

 

                        O tema chegou outras vezes aos tribunais, a exemplo do já referenciado processo 0002637-70.2010.8.19.000 que tramitou no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sempre com desfecho desfavorável à concessão de interpretação extensiva ao teor do inciso LXVIII do artigo 5º da Lei Maior em favor dos animais em geral e dos grandes primadas em específico.

 

                        A controvérsia lastreia-se na extensão a ser dada à expressão alguém na referida norma, com seguinte teor:

 

LXVIII – conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

 

                        Evidente que o posicionamento jurisprudencial brasileiro firma-se pela interpretação restritiva de que no caso em tela, a expressão “alguém” limita-se a qualquer ser humano e não a qualquer ser vivo. Entendimento consolidado na análise teleológica de que a Constituição não se destina ao be estar de todos os seres vivos, mas apenas a atender aos interesses dos homens.

 

                        Oportunamente, ainda que extrapolando os objetivos do presente estudo, insta salientar que como pano de fundo do presente debate não se encontra apenas a questão dos direitos dos animais, mas, especialmente, a disputa entre criacionistas (que acreditam na origem do homem a partir dos relatos bíblicos) e evolucionistas (signatários do entendimento pela existência de um ancestral comum entre as diversas espécies, sobretudo com base nos estudos de Charles Darwin).

 

 

 

                   6.2 – A vedação à crueldade contra os animais como limite à liberdade de manifestação cultural

 

                        Em que pese todo o viés antropocêntrico do Direito, não se pode ignorar que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça tem posicionamento consolidado no sentido de que a liberdade de diversão e manifestação cultural do homem encontram limite na vedação constitucional à crueldade contra os animais.

 

                        Assim sendo, apesar de a Carta de Outubro assegurar em seu artigo 215 “o pleno exercício dos direitos culturais”, os tribunais superiores tem reiteradamente se manifestado no sentido de que tal garantia deve encontrar limites na vedação constitucional à crueldade contra os animais. Destacando-se, nesse sentido, os seguintes julgados:

 

  1. Recurso Extraordinário 153.531, Relator Ministro Marco Aurélio, julgado pela 2ª Turma do STF em 03/06/1997: entendeu-se a manifestação cultural conhecida como “farra do boi” contrária à Constituição por submeter os animais à crueldade;

  2. Agravo de Instrumento nº 1.398.439/BA, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, julgado pelo STJ em 30/06/2011: manteve a decisão do Tribunal de Justiça da Bahia pela proibição da exibição de animais pelo Circo Estoril, em virtude da crueldade contra os animais implícita à prática, destacando o voto que “apesar de não haver sinais de maus tratos e crueldade com os animais, vislumbra-se a negligência da empresa agravante com o bem estar dos aninais, sem que sejam desenvolvidas atividades recreativas de estímulo dos animais, o que lhes causa comportamentos fixos”.

  3. Agravo de Instrumento nº 1.182.430/SP, Relator Ministro Herman Benjamin, julgado pelo STJ em 09/11/2009: manteve o entendimento pela constitucionalidade de lei municipal proibitiva do uso de animais em espetáculos circenses sob destacando-se em seu voto que “a alegação que os animais são bem tratados não merece prosperar. É incontroverso que os animais submetidos à vida circense sofrem abusos cotidianos, sendo subjugados pelos interesses e conveniências econômicas daqueles que exprolam tais atividades. A sujeição de animais a comportamentos anômalos a sua espécie configura abuso”.

  4. ADI 1856/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, julgado pelo STF em 26/05/2011: declarou a inconstitucionalidade de lei fluminense (Lei nº 2.895/98) permissiva à realização de rinhas de galo por estimular a prática de atos de crueldade contra animais. Destacando o descabimento de se considerar práticas como a rinha de galo e a farra do boicomo “inocente manifestação cultural de caráter meramente folclórico”. No mesmo sentido, a ADI 3.776, Relator Ministro Cezar Peluso, julgada em 14/05/2007 e a ADI 2.514. Relator Ministro Eros Grau, julgada em 29/06/2005.

 

Em síntese, vislumbra-se como pacificado nos tribunais superiores que o direito à plena manifestação cultural encontra-se mitigada em virtude da vedação à prática de crueldade aos animais. De sorte que, práticas como as rinhas de galo, farra do boi e a utilização de animais em espetáculos circenses devem ser tidos como inequivocamente inconstitucionais.

 

Circunstância que, a despeito de não representar o reconhecimento de direitos aos animais, representa inequívoco avanço nesse sentido, tanto quanto ao entendimento de que não cabe aos animais o mero reconhecimento jurídico da qualidade de bens, reclamando tratamento normativo diferenciado. Não se podendo olvidar a existência do Projeto de Lei nº 7.291/2006 que visa proibir animais em circo, harmonizando-se com os posicionamentos dos tribunais superiores.

 

                        6.3 – O caso da maior “serial killer” de animais do Brasil

 

                        O caso da maior “serial killer” do Brasil ganhou destaque nacional, sendo divulgado por alguns dos principais veículos de comunicação em massa do país, estimando-se que, voluntariamente, a suposta autora tenha exterminado cerca de 3.000 animais doméstico. Ao passo que, restou inequivocamente

 

As suspeitas partiram da Organização Não Governamental “Adote um Gatinho” diante da grande quantidade de animais “adotados” e recolhidos pela senhora de iniciais D.L.S., sem que houvesse qualquer notícia de adotantes a quem os animais tivessem sido repassados a partir. E por restarem infrutíferos os contatos telefônicos junto à D.S.L., contratou-se um detetive particular que por uma semana monitorou as atividades da investigada, constatando através de horas de filmagem que em vários dias a investigada jogava fora grandes sacos de lixo, nunca deixando-os na própria porta, mas sempre na de vizinhos.

 

Diante da atitude considerada suspeita, o detetive verificou o conteúdo dos sacos, constatando uma grande quantidade de animais mortos. Acionando à polícia que contabilizou 39 animais que, conforme perícia policial, foram executados de forma cruel e dolorosa.

 

Mas, desconsiderando os pertinentes debates acerca da possibilidade para fins de acusação penal das filmagens obtidas furtivamente pelo detetive e mesmo a imprecisão técnica para o uso da expressão do termo “serial killer” no caso, chamou atenção, tanto quanto causou revolta popular, o tratamento dado ao crime de crueldade contra os animais com resultado morte (art. 32 da Lei nº 9.605/98), mesmo diante da pluralidade de animais executados, o que, dadas as circunstâncias de modo, tempo e lugar, impõe o tratamento como crime continuado (art. 71 do Código Penal), chega-se a uma pena máxima possível de 02 anos, 02 meses e 18 dias, independentemente dela ter executado apenas 39 animais ou os 3.000 estimados.

 

 

 

6.4 – O abate de animais para consumo humano:

 

                        Esta é mais uma abordagem cujas discussões costumam estar permeadas, ainda que implicitamente, de uma série de valores históricos e culturais. Por exemplo, enquanto em países como a China é comum o abate e consumo de cães, tal se mostra praticamente impensável e impraticável no Brasil, onde se abate e consome naturalmente bois, vacas e bezerros, o que é praticamente impensável e impraticável na Índia.

 

                        Atualmente, no Brasil, o abate de animais é tratado em uma série de legislações estaduais, a exemplo da lei cearense nº 12.50/1995, não obstante a proposta de tratamento nacional da matéria no Projeto de Lei nº 215/2007.  Quanto ao conceito de abate humanitário, este é definido pela Instrução Normativa nº 03/2000 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento como “o conjunto de diretrizes técnicas e científicas que garantam o bem estar dos animais desde a recepção até a operação de sanria”.

 

                        O tema, recentemente, foi objeto de consulta pública implementada através da Portaria nº 47/2013, pela Secretaria de Defesa Agropecuária, órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, com o objetivo de “padronizar os procedimentos de manejo pré-abate e abate humanitário, os requisitos mínimos para a proteção dos animais de abate, a fim de evitar a dor e o sofrimento desnecessário”.

 

                        O fato é que, conforme reiteradas vezes veiculado pela imprensa, uma série de abatedouros clandestinos, ou mesmo regulares, cujo funcionamento afronta não apenas a qualquer conceito de abate humanitário, mas até mesmo às mais comezinhas regras de vigilância sanitária. Contexto apresentado como exposição de motivos para o Projeto de Lei nº 5.244/2013 que propõe a majoração da pena para maltrato contra animais.

 

 

 

                        6.4 – O uso de animais como “cobaias”

 

Tema polêmico refere-se ao uso de animais para fins didáticos e pedagógicos, em regra mitigando-se o princípio da vedação à crueldade contra os animais, por meio da técnica de ponderação de princípios, com o da dignidade humana, do direito à saúde, dentre outros.

 

Para Levai (2012, [n.p.]), citando Azevedo, “experimentação animal é definida como toda e qualquer prática que utiliza animais para fins didáticos ou de pesquisa”.

 

O uso de animais em procedimentos científicos, atualmente, encontra-se normatizado pela Lei nº 11.794/2008, que revogou a Lei 6.638/1979 e, dentre seus diversos dispositivos, prescreve, no inciso IV do seu artigo 3º, como morte por meios humanitários “a morte de um animal em condições que envolvam, segundo as espécies, um mínimo de sofrimento físico e mental”, além de limitar a possibilidade de uso aos estabelecimentos de ensino superior e aos estabelecimentos de educação profissional técnica de nível médio da área biomédica.

 

 

 

                        6.5 – O abate sanitário de animais vadios

 

                        Considerado um problema de saúde pública, o abandono de animais em vias públicas é comumente tratado a partir do abate dos animais vadios, de formas frequentemente denunciadas como cruéis. Também esta matéria já bateu às portas dos tribunais superiores, havendo posicionamento consolidado acerca da possibilidade do abate sanitário enquanto medida sanitária à saúde humana, com a ressalva de que este não se dê de modo cruel.

 

                        Destaca-se nesse sentido o Recurso Especial nº 1115916/MG, julgado em 01/09/2009 pela 2ª Turma do STJ, cujo relator, Ministro Humberto Martins, após registrar que “centros dedicados ao controle de zoonoses (doenças que podem migrar de animais aos seres humanos) devem priorizar medidas que controlem a reprodução dos animais (injeção de hormônio ou esterilização), pois elas se mostram mais eficazes no combate dessas enfermidades (Informe Técnico n. 8 da OMS) consignou em seu voto que:

 

                                           Não se pode aceitar que com base na discricionariedade o administrador realize práticas ilícitas. É possível até haver liberdade na escolha dos métodos a serem utilizados, caso existam meios que se equivalham dentre os menos cruéis, o que não há é a possibilidade do exercício do dever discricionário que implique em violação à finalidade legal.

 

Ainda sobre a matéria, merece destaque a decisão da Corte Especial do STJ no Agravo Regimental na SLS.738/MS, julgado em 20/02/2008, cujo relator, Ministro Barros Monteiro firmou entendimento em relação restrita ao município de Campo Grande da necessidade de realização de pelo menos dois exames com diagnóstico positivo para o sacrifício da cães e gatos com leishmaniose visceral canina. Precedente que assume maior relevância frente à denúncia de especialistas e entidades protetoras dos animais acerca do sacrifício de cães com diagnósticos imprecisos ou equivocados.

 

 

 

7.0 – Conclusão:

 

Bem se vê que o reconhecimento ou não de direitos aos animais trata-se de tema bastante pungente e que cada vez mais vem ocupando o espaço nos trabalhos tanto do Judiciário quanto do Legislativo. Mostrando-se mais complexo e abrangente do que pode aparentar à primeira vista, justificando uma maior atenção por parte da doutrina. E, ainda que o ordenamento pátrio destine aos animais o papel de coisa, bem semovente, em favor destes já existe uma série de instrumentos protetivos.

 

E, mesmo reconhecendo-se o norteamento antropocêntrico do ordenamento legal, inegável que, perante os tribunais, interesses humanos vem sendo sopesados frente à vedação à crueldade contra os animais, que inclusive resta consolidado como fator de limitação à “plena” manifestação cultural.

 

Destaque-se que nem de longe o presente estudo abordou todas as vertentes do objeto em foco, restando não abordados, dentre muitos outros, o uso de peles de animais, o tráfico internacional de animais, as divergências quanto à existência de zoológicos, o uso de animais em atividades laborativas e terapêuticas, todos a demandarem a devida abordagem legislativa e doutrinária, sem ignorar que, inevitavelmente, acabarão reclamando a tutela jurisdicional.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

 

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