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A discricionariedade Judicial na Lei 7.347 de 1985


Autoria:

Geraldo Júnior Dos Santos


Advogado. Especialista em Direito Processual pelo IEC PUC Minas.

Endereço: Rua Mato Grosso, 606 - Casa
Bairro: Santa Eugênia

Lagoa da Prata - MG
35590-000

Texto enviado ao JurisWay em 09/08/2011.



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A discricionariedade judicial na lei 7.347/85
 
 
Geraldo Júnior dos Santos *
 
 
Resumo
 
 
A compreensão do processo como instituição constitucionalizada regente das estruturas procedimentais preparatórias de provimentos estatais nos compele questionar o espectro da discricionariedade judicial que permeia nos textos legislativos vigentes. Embora a construção participada seja condição impostergável de legitimidade dos provimentos estatais, dispositivos legais têm conferido amplos poderes ao julgador, em cujas decisões são claramente identificáveis elementos metajurídicos. É o que se verifica na possibilidade assegurada ao magistrado de conferir efeito suspensivo “para evitar dano à parte”, insculpida no artigo 14 da Lei 7.347 de 24/07/1985 que disciplina a ação civil pública. Desta forma, urge uma reflexão acerca deste procedimento sob as luzes do paradigma constitucional vigente.
 
 
Palavras-chave: Direito processual. Estado Democrático de Direito. Discricionariedade judicial.
 
 
 
1.INTRODUÇÃO
 
 
Apesar da nobreza de que se revestem os bens tutelados pela lei 7.347/85, é forçoso admitir que ainda em sede de defesa de direitos transindividuais, decisões judiciais exaradas nos moldes do artigo 14 do referido diploma, destoam substancialmente do paradigma democrático, vez que importam na derrogação dos princípios institutivos do processo, quais sejam, contraditório, ampla defesa e isonomia. Ademais, representam uma antítese às construções teóricas processuais consentâneas ao texto constitucional vigente, porquanto se alicerçam em uma visão do processo centrada na figura do órgão decididor. Buscando uma reflexão sobre o tema, iniciaremos pelas construções teóricas do processo no paradigma constitucional vigente, adentraremos na teoria geral dos recursos para abordarmos sobre os seus efeitos e finalizaremos com as possíveis dissonâncias entre este procedimento da lei de ação civil pública e o texto constitucional.
 
 
2. TEORIA DEMOCRÁTICA DO PROCESSO
 
 
As construções teóricas do modelo democrático de processo têm como alicerce comum a contribuição do jurista italiano Elio Fazzalari que, sensível ao discurso democrático instituído pelas constituições modernas, “reelaborou o conceito de procedimento, que passa a ser visto como seqüência de atos preparatórios de um provimento estatal” (TEIXEIRA, 2008, p. 85). Para o preenchimento dos requisitos de legitimidade e validade deste provimento, deverão ser observados a um só tempo as normas disciplinadoras de sua atividade elaborativa, assim como a presença do contraditório em sua estrutura espácio-temporal, em que o ato inicial é pressuposto do ato seguinte e assim sucessivamente até o provimento final:
 
“O procedimento evidencia-se quando há previsão de uma seqüência de normas, em que uma norma valora uma conduta como lícita ou devida, e esta conduta qualificada é pressuposto para qualificação da conduta prevista na norma precedente. Em outras palavras, o procedimento é uma seqüência de normas, atos e posições subjetivas, que se encadearão até a realização do ato final, na qual a norma precedente – que estabelece uma conduta valorada como lícita ou devida – é pressuposto para realização da conseqüente. A primeira norma e a conduta dela decorrente ligam-se a segunda como um pressuposto ou como sua fattispecie. (FAZZALARI apud PELLEGRINI, 2010)  
 
 
   Assim sendo, o processo está para o procedimento como espécie deste, distinguindo-se dos demais procedimentos pela existência de um elemento unívoco: o contraditório, o qual se conceitua pela simétrica paridade entre os interessados e contra-interessados, quais sejam, os sujeitos do processo que suportarão o resultado favorável ou desfavorável do provimento.[1]
   Na esteira das proposições fazzalarianas, José Alfredo de Oliveira Baracho introduziu no Brasil a teoria constitucionalista do processo na primeira metade da década de 80, ou seja, período anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988. Pioneiro no estudo do diálogo entre processo e constituição (assim como o fez Hector Fix-Zamudio no México), Baracho não foi compreendido pela doutrina dominante no país, a da Escola Instrumentalista de São Paulo, embora suas proposições endossassem uma tendência deflagrada no pós-Segunda Guerra Mundial, propalada pelas revoluções constitucionalistas:
 
“O movimento constitucionalista, após 1945, afora o golpismo de caserna que ainda marca algumas nações atrasadas, aflorou-se em necessidade de assegurar direitos fundamentais de liberdade e dignidade dos povos, por sua autodeterminação, em estatuto jurídico-políticos básicos votadas e aprovadas pelo povo, ou seus representantes diretos, como fonte, núcleo e paradigma dos ordenamentos nacionais.”(LEAL, 2001, p. 91).
 
Na acepção constitucionalista, consoante magistério de Wellington Luzia Teixeira, os princípios processuais insertos no texto constitucional, “formam um modelo de processo que deve vincular a estruturação de todos os procedimentos da infraconstitucionalidade”. (2008, p. 98). E em sede de regime democrático, sendo a soberania popular a única fonte legítima de poder, haja vista a possibilidade de o povo fiscalizar os atos estatais a fim de coibir abusos na confecção de diplomas legislativos, o processo passa a ser compreendido como “instituição jurídica balizadora da soberania popular e da cidadania.
Já Rosemiro Pereira Leal esclarece que esta perspectiva do processo como direito-garantia fundamental representa uma conquista histórica na luta contra a tirania, os abusos e arbitrariedades cometidas e causadas pelo Estado:
 
“(...) o processo, em seus novos contornos teóricos na pós-modernidade, apresenta-se como necessária instituição constitucionalizada que, pela principiologia constitucional do devido processo que compreende os princípios da reserva legal, da ampla defesa, da isonomia e do contraditório, converte-se em direito-garantia impostergável e representativo de conquistas teóricas da humanidade no empreendimento secular contra a tirania, como referente constitucional lógico-jurídico de interferência expansiva e fecunda, na regência axial das estruturas procedimentais nos segmentos da administração da legislação e da jurisdição”. (LEAL apud  TEIXEIRA, 2008, p. 94).
 
Dois pontos são merecedores de relevo: Em primeiro lugar, cumpre pontuar que embora comungue das proposições de Fazzalari, a teoria constitucionalista do processo de Baracho representa um avanço em relação àquelas. O contraditório, que antes era percebido tão somente como traço distintivo do processo em relação às demais espécies de procedimento, na teoria de Baracho passa à condição de princípio constitucional a ser observado na estruturação de todos os procedimentos preparatórios de atos imperativos do Estado (TEIXEIRA, 2008, p. 90). Em segundo lugar, o modelo de processo veiculado nestas proposições teóricas [as da teoria constitucionalista do processo] é o “modelo construído no arcabouço constitucional pelo diálogo de especialistas (numa Assembléia ou Congresso Constituinte representativo do povo estatal)” (LEAL, 2001, p. 95).
Neste ponto reside a divergência da teoria constitucionalista do processo de Baracho com a teoria neo-institucional do processo de Rosemiro Pereira Leal. Embora sejam acordes que o processo se apóia em um conjunto de princípios constitucionais, na teoria neo-institucionalista ele [o processo] irá se impor por “conexão teórica com a cidadania constitucionalmente assegurada, que torna o princípio da reserva legal do processo, nas democracias ativas, o eixo fundamental da previsibilidade das decisões”(LEAL, 2001, p. 97).
O processo, a partir desta perspectiva, tem por seu lócus as sociedades abertas, porquanto somente nestas é factível a participação efetiva e direta do povo na tomada de decisões.
 
“O que distingue a teoria neo institucionalista do processo que estamos a desenvolver da teoria constitucionalista que entende o processo como modelo construído no arcabouço constitucional pelo diálogo de especialistas (numa Assembléia ou Congresso Constituinte representativo do povo estatal) é a proposta de uma teoria da constituição egressa de um espaço processualizado em que o povo total da Comunidade Política é, por direito-de-ação coextenso ao procedimento, a causalidade dos princípios e regras de criação, alteração e aplicação de direitos”. (LEAL, 2001, p. 95).
 
A par da inovação promovida no estudo do processo, a teoria neo-institucionalista também promoverá um salto epistemológico ao aproximar da falibilidade da teoria do conhecimento popperiano[2]. “A inerente falibilidade de nosso instrumental cognoscente legitimaria a aversão a todo e qualquer determinismo, a todo absolutismo, a todo autoritarismo” (SOROS, 1998). Desta forma, as interpretações e as decisões não deverão partir de especialistas, tal qual se observara no discurso da teoria constitucional do processo. A contrário sensu, deverão ser construídos de maneira compartilhada dentro do espaço-tempo da processualidade onde poderão ser testificadas constantemente pelos feitores e destinatários da norma, qual seja o povo.
 
Tudo que passa pelo nosso pensamento sofre de imperfeição estrutural. Especificamente no campo social, reconhece-se a impossibilidade de virmos a constituir sociedades perfeitas, o que paradoxalmente tem seu lado positivo, já que, além de esse fato instaurar e legitimar a aprendizagem, leva-nos a concluir que aquilo que é inerentemente imperfeito torna-se passível de eterno aperfeiçoamento. A sociedade aberta seria a que se reconhece imperfeita através da maioria de seus cidadãos e governo, portanto aberta a contínuo aperfeiçoamento. A essa sociedade aberta opõe a sociedade fechada, orientada por dogmas, mitos, preconceitos promovidos pelo poder ditatorial (superioridade racial, posse absoluta da verdade construída/revelada), mitos coercitivamente impostos que impedem seus participantes de formarem uma configuração diferente da que lhes é imposta. (SOUSA, 1998).
 
Não podemos desprezar outrossim a contribuição do procedimentalismo democrático de Habermas, cuja verificação somente seria factível pelo modelo e estrutura espaço-temporal regida pelo processo como instituição constitucionalizada jurídico-principiológica e “não por quaisquer interações comunicativas procedimentais ocorrentes na base de produção do direito, ainda que constitucionalmente permissíveis (LEAL, 2003)
Assim sendo, conclui-se que a teoria neo institucional concebe o processo com seus princípios institutivos, contraditório, ampla defesa e isonomia como asseguradores do discurso jurídico, vez que a legitimação das decisões judiciais deverão passar pela incessante fiscalização processualizada de seus destinatário [o povo]. A partir desta perspectiva, torna-se manifesta a carência de legitimidade dos provimentos emanados da discricionariedade solipsista do julgador, cuja ocorrência em dias atuais tem sido largamente observada, inobstante a vigência do paradigma Democrático de Direito.
 
 
3. O ARTIGO 14 DA LEI 7.347/85 E A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL
 
 
Os direitos difusos, alcunhados pelo constitucionalista Paulo Bonavides como “direitos de terceira geração” representam uma evolução na percepção dos direitos fundamentais deflagrada no contexto de um Estado Democrático no âmbito de uma sociedade plural.
(...) direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm por primeiro destinatário o gênero humano mesmo, em um momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. (BONAVIDES, 2000, p.524)
 
Fruto desta nova concepção dos direitos fundamentais, a Lei 7.347 de 24/07/1985, introduziu a ação civil pública como procedimento coletivo típico no ordenamento brasileiro. Consoante disposições de seu artigo 1.º que reger-se-ão, pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística, à bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, por infrações da ordem econômica e da economia popular e á ordem urbanística. A partir de sua promulgação, a doutrina e jurisprudência sinalizaram novas tendências no campo que constituiu o largo objeto da ação civil pública: o erário público (Lei. 8.429/92); meio ambiente (Lei 6.938/81 e textos complementares); consumidores (Lei 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor); patrimônio cultural, lato sensu (CRFB/88, art. 216 e § 1º); ordem econômica (Lei 8.884/94); deficientes físicos (Lei 7.853/89); infância e juventude (Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente); idosos (Lei 8.842/94; Lei 10.741/03; e Dec. Federal 1.948/96); comunidades indígenas (CRFB, art. 232); mercado de capitais (Lei 7.913/89); patrimônio genético (Lei 8.974/95); loteamentos (Lei 6.766/79); recursos hídricos (Lei 9.433/97), dentre outras construções legislativas.
 Em que pese a importância da qual se revestem os objetos tutelados pela Lei 7.347/85, inúmeras são as polêmicas que gravitam em torno deste diploma, em especial no que respeita à legitimação ativa, à atuação do Ministério Público, à ação civil pública e à ação declaratória e por fim, à competência. Dentre as polêmicas, destacaremos um aspecto peculiar de cariz nitidamente processual. Trata-se de uma possibilidade conferida ao juiz, estampada nas disposições do artigo 14, o qual se encontra in verbis transcrito:
 
Art.14. O juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte (grifo nosso).
 
No que respeita aos recursos, podemos delinear três efeitos: o primeiro deles consiste em obstar a ocorrência da preclusão e a formação da coisa julgada, mormente em relação à parte da decisão de que se está recorrendo; o segundo consiste em que todo recurso tem efeito devolutivo importando na devolução da matéria para reexame, salvo as hipóteses expressamente previstas, dos embargos declaratórios, e do agravo retido, cuja eficácia devolutiva fica diferida para o momento do processamento da apelação contra a sentença; e por último o efeito suspensivo que irá obstar o início da execução, onde excetuam-se as hipóteses expressamente previstas, em que o efeito é só devolutivo, tal qual se dá com a apelação quando interposta de sentença dos tipos previstos no artigo 520, incisos I a VII do CPC; art. 14, c/c o art. 520, II do CPC; e artigo contra sentença que decreta interdição (CPC art. 1.184).
Deste modo, podemos concluir que na sistemática do Código de Processo Civil, não se verifica espaço para que o juiz possa, de maneira discricionária, atribuir ao recurso que recebe efeito suspensivo ou devolutivo. Estas possibilidades já estão claramente definidas na lei. Conclui-se igualmente que o artigo 14 da Lei 7.347/85, ao assegurar o juiz a possibilidade de conferir efeito suspensivo “em caso de dano à parte” distancia-se desta sistemática.
Entretanto, não se trata de uma novidade apresentada pela Lei 7.347/85. O artigo 43 da Lei 7.244/84 que dispunha sobre a criação e funcionamento do Juizado Especial de Pequenas Causas previa que “o recurso terá somente efeito devolutivo, podendo o Juiz dar-lhe efeito suspensivo, para evitar dano irreparável à parte” (grifo nosso). A lei 9.099/95 que revogou as disposições da Lei 7.244/84, reproduziu o mesmo teor em seu artigo 43. Sem olvidar que a motivação presente nos dispositivos retro-mencionados encontra-se como fundamento do “poder geral de cautela” estampado no artigo 798 do Código de Processo Civil. Nos termos deste artigo, “o juiz poderá determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação”.
 
“É dizer, assim como o juiz concede ou não a tutela cautelar desde que, ao seu prudente arbítrio (=discricionariedade) estejam presentes certas circunstâncias (o fumus boni júris, o periculum in mora, o receio do dano irreparável à parte, a preocupação em assegurar a utilidade do provimento definitivo), também na Lei 7.347/85 o juiz receberá a apelação apenas no efeito devolutivo, quando sentir que só assim procedendo assegurará tutela eficaz ao interesse metaindividual objetivado.” (MANCUSO, 2001, p. 266, grifo nosso).
 
A propósito, em sede de mandado de segurança interposto com objetivo de obter efeito suspensivo à apelação interposta contra sentença que acolhera ação civil pública em matéria de infância e juventude, o TJSP deu pela carência do writ, consignando que o previsto no art. 14 da Lei 7.347/85 configura “ato discricionário do Julgador e, no caso sub judice, a Magistrada, exercendo tal faculdade que a lei lhe confere, motivou a denegação de efeito suspensivo ao apelo por vislumbrar dano maior à integridade física e psíquica dos jovens internos da UAP-1, caso a eficácia da sentença fosse sobrestada” (rel. Des. Luís de Macedo, j. 04.04.1996, v.u., JTJ 181/235).
Foi o que já antes se dera na difundida ação civil pública envolvendo a exibição, na capital paulista, de exemplares da inia geoffrensis (“botos cor-de-rosa”): a magistrada e administrativista Lúcia Valle Figueiredo Collarile valeu-se do artigo 14 e recebeu a apelação apenas no efeito devolutivo, explicando que assim procedia “pois poderá haver dano irreparável ao meio ambiente, na hipótese de morte do outro animal, hipótese perfeitamente viável, uma vez que um dos animais já morreu. Destarte, entre o dano à parte (valor individual) e o dano ecológico (valor coletivo), entende este Juízo indevido o efeito suspensivo”. O mandado de segurança (130.250-SP) então impetrado contra tal decisão veio a ser denegado no STJ, entendendo o relator Min. Costa Lima, estar “correto o ato judicial impugnado, deixando de conferir o efeito suspensivo à apelação interposta da sentença que determinou a reintrodução do exemplar da inia geoffrensis a seu habitat natural, na exata medida em que o interesse público se põe no sentido de evitar o dano à fauna, juridicamente protegida pelo Estado, além do que resta à impetrante a reparação indenizatória, no caso de reforma do decisum”.
Como se nota, a faculdade constante do art. 14 da Lei 7.347/85 comporta interpretação em dois sentidos: tanto pela literalidade do dispositivo (=conferindo o juiz o efeito suspensivo ao recurso), como no senso contrário (=deixando de fazê-lo, caso em que a impugnação segue recebida em seu efeito básico, que é o devolutivo). Nessa exegese já antes se posicionara o D. relator do mandado de segurança antes referido, Min. Costa Lima: “Como a finalidade da norma é evitar o perecimento de direito, se o recebimento do recurso no efeito suspensivo puder caracterizar ameaça de dano irreparável ou iminência de perecimento de direito, poderá o juiz receber o recurso apenas no efeito devolutivo, ainda que, ordinariamente, devesse conferir o duplo efeito ao recurso” (Bol. AASP 1556/248).
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2006), o fundamento da discricionariedade reside no intento legislativo de cometer à autoridade o dever jurídico de buscar identificar e adotar a solução apta a, no caso concreto, satisfazer de maneira perfeita a finalidade da lei, assim como na inexorável contingência prática de servir-se de conceitos pertinentes ao mundo do valor e da sensibilidade, os quais são conceitos plurissignificativos, revestidos de certa fluidez e de alguma incerteza (p.p. 920-921).
Em relação à discricionariedade judicial, a doutrina e a jurisprudência são dissidentes em relação à sua existência. Neste diapasão, não podemos nos furtar às proposições da teoria positivista de Herbert Hart e a teoria construtivista de Ronald Dworkin. Segundo Hart o direito normativado deve responder a todas as questões juridicamente suscitadas. Não sendo possível, o magistrado usa seu poder discricionário e cria o direito aplicável ao caso. Essa margem de liberdade conferida ao magistrado sofre inúmeras críticas na teoria positivista de Hart e justamente neste ponto a teoria do Ronald Dworkin surge como forma de resgate do direito buscando resgatar o seu alcance às normas não positivadas, através da compreensão que existem princípios e dentre a análise destes é que deve surgir o direito a ser aplicado, estando a solução interna ao direito. Surge, então, a figura do juiz Hércules e da única resposta correta.
No direito processual brasileiro, Teresa Arruda Alvim Wambier (1993, p.232), pontua que no ordenamento brasileiro, não há espaço para atividade discricionária do juiz. Esta conclusão foi alcançada a partir da análise de algumas premissas, dentre elas que o poder o poder discricionário está relacionado com o juízo de conveniência e oportunidade, tal qual se dá na órbita administrativista. Além disso, aduz que os termos jurídicos indeterminados e as cláusulas abertas não admitem liberdade na sua integração, razão pela qual não haveria discricionariedade na atuação do julgador diante de tais questões. Por fim, considera que a discricionariedade seria a busca de soluções extrajurídicas, não havendo atividade interpretativa. Assim sendo, estando o julgador adstrito ao princípio da legalidade, não haveria espaço para que substituísse sua atividade interpretativa utilizando uma possível discricionariedade judicial como fonte de concretização da legalidade.
Alinhados a este entendimento, encontramos Eros Roberto Grau e Nery e Nery. Para Grau (2006, p. 189) ao interpretar um texto legal, o juiz realiza atividade vinculada. Pontua o autor, o que se tem denominado de discricionariedade judicial é o poder de criação de norma jurídica que o intérprete autêntico exercita formulando juízos de legalidade e não de oportunidade. A distinção entre esses juízos está em que o juízo de oportunidade comporta uma opção entre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agente, enquanto o juízo de legalidade é atuação, embora desenvolvida no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve balizado pela lei e pelos fatos. (p. 189). Nery e Nery, citado por Rodolfo de Camargo Mancuso (2001) ressalta que o fato do juiz receber o recurso com efeito meramente devolutivo ou conferir-lhe efeito suspensivo não é discricionário. Quando o faz, deve o magistrado agir em consonância com as determinações legais (p. 267).
Noutro sentido, Cândido Rangel Dinamarco (1986) endossa a existência do poder discricionário judicial:
 
O que há de peculiar e inovador, aqui, é o poder discricionário concedido ao juiz para que, considerando o caso concreto, outorgue ele próprio o efeito suspensivo ao recurso, sempre que, segundo o seu prudente entendimento, o pronto cumprimento da sentença possa ser danoso à parte (...) Com isso, tornar-se-á de manifesta inadmissibilidade o mandado de segurança impetrado com a finalidade de dar efeito suspensivo ao recurso. Essa abertura à discricionariedade é nítida inspiração em modelos europeus, especialmente no italiano”. (DINAMARCO, 1986, p. 187).
 
Compartilha do mesmo entendimento José dos Santos Carvalho Filho, segundo o qual:
 
“à semelhança do que ocorre com a tutela cautelar, na qual a lei também confere permissão ao juiz para fazer juízos de valor, será inadmissível a impetração de mandado de segurança com o fim de postular-se o efeito suspensivo, quando o juiz tenha conferido apenas o devolutivo” (CARVALHO FILHO, 1999, p. 125).
 
Inobstante a controvérsia, é forçoso admitir que os escopos metajurídicos presentes aos textos normativos, os quais possibilitam uma análise subjetivista das pretensões por parte do decididor, representam uma antítese às proposições teóricas de processo na democracia que alhures pontuamos.
  No processo democrático, cujo ethos não é outro senão o texto constitucional, não há espaço para um decisionismo judicial arbitrário:
 
“(...) porque não há uma vontade superposta ou a latere, subjacente ou abscôndita, valorativa ou corretiva que, por reconstrução cerebrina do intérprete, se arrojasse, por personalíssimas razões de costumes ou de justiça (norma fora do texto legal), a melhorar ou substituir a lei. Só se admitindo que a lei formulada é muda, não objetiva, fatalmente inintelegível e obstativa de criação e realização de direitos, nada transmitindo em seu discurso léxico-gramatical, e que, ao ser editada, tornar-se-ia coisa inerte, inexpressiva, caótica e inútil, é que seria possível dizer que o ‘sentido’ da lei é o invectivado e atribuído pelo intérprete aplicador do direito” (LEAL, 2003).
 
 Esta assertiva pode ser explicada pelo fato da teoria neo-institucionalista condicionar a legitimidade das decisões judiciais ao processo. Legitimidade esta que jamais será alcançada através de julgados alicerçados com bases em escopos metajurídicos e tampouco atendendo aos princípios transcendentais da boa-fé, dos bons costumes, do livre convencimento do juiz entre tantos outros conceitos que, inexoravelmente, conduzir-nos-ia a uma decisão arbitrária (TEIXEIRA, 2008, p. 95). Sem olvidar que estas decisões deverão ser satisfatoriamente fundamentadas, cuja exigência é antologicamente constitucional. A inexistência de uma fundamentação, ou a sua presença de forma ineficaz (tal qual ocorre com os escopos metajurídicos), obsta ao cidadão o acesso a uma decisão que demonstre de maneira clara e intelegível, as suas razões.
 
 
4. CONCLUSÃO
 
 
A concepção do processo a partir de um cariz democrático representa, indubitavelmente, um salto qualitativo e metodológico em relação às demais proposições teóricas formuladas. Qualitativo no sentido de que o contraditório, que outrora ocupava a função de traço distintivo do processo face aos demais procedimentos, neste contexto foi erigido à condição sine qua non (ao lado dos demais princípios institutivos do processo, ampla defesa e isonomia) de legitimidade dos provimentos estatais. O relevo metodológico fica por conta da aproximação às teorias da falibilidade de Popper e do discurso de Habermas, as quais adequam com perfeita justeza ao paradigma constitucional vigente. Nesta perspectiva, não restam dúvidas que para preenchimento do aspecto de validade, as decisões que outrora eram proferidas de maneira solitária pelo decididor, deverão passar pelo crivo da discursividade e da constante verificação pelos destinatários dos efeitos do provimento, elementos caracterizadores das sociedades abertas. Entretanto, uma dúvida paira sobre a aplicação deste procedimento processualizado quando se está diante de direitos fundamentais (dentre os quais, notadamente temos direitos transindividuais). Consoante dicção do § 1 º do artigo 5º, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais teriam aplicação imediata. Neste sentido, seria cabível o julgador, ex officio, promover atos que buscam a salvaguarda destes direitos, mesmo que importe no desvio da estrutura procedimental do processo? Afirmar esta proposição, seria advogar no sentido que os princípios institutivos do processo seriam cambiáveis, o que destoa sobremaneira da própria concepção de processo na democracia. Caso contrário, estaríamos diante da possibilidade de perecimento do direito em face do tempo despendido para a edificação da estrutura procedimental. Diante do impasse que se contrapõe, evidencia-se não haver forma pré-definida para a sua solução, remetendo-nos ao falibilismo do sistema que Popper anteverá. Demonstração que nas sociedades abertas, o imperfeito torna-se objeto de constante aperfeiçoamento.
 
 
5. REFERÊNCIAS
 
  • BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000. 793p ISBN 8574201634
 
 
        CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública: comentários por artigo (Lei n. 7.347, de 24-7-85). 3. ed. rev. , ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. ISBN 8573870648
 
        CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido R. Teoria geral do processo. 6. ed. ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. 329p. ISBN 8520305148
 
  • GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. 286p. ISBN 8574207691
 
  • LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 4. ed. rev. e atual. Porto Alegre: IOB - Informações Objetivas Publicações Jurídicas, 2001. 312p. ISBN 8571311412
 
  • MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública : em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores : Lei 7.347/85 e legislação complementar. 7.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 416p. ISBN 8520319971
 
  • MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21. ed. rev. e atual. até a Emenda Constituciona São Paulo: Malheiros, 2006. 1040p. ISBN 8574207489
 
 
  • SOUSA, Aílton Benedito de. Resenha de “The crisis of global capitalism (open society endangered) de George Soros, 1998. Disponível em: http://www.cebela.org.br/imagens/Materia/2000-1%20230-236%20ailton%20benedito%20de%20sousa.pdf
 
        TEIXEIRA, Welington Luzia. Da natureza jurídica do processo à decisão judicial democratizada. Belo Horizonte: Fórum, 2008. 161 p. ISBN 978-85-7700-169-9
 
  • WAMBIER, Teresa Celina de Arruda Alvim. Existe a chamada ¨discricionariedade judicial¨?. Revista de Processo, São Paulo, v. 18, n. 70, p. 232-234, 1993.
 
 
 
 


* Advogado, Especialista em Direito Processual pelo IEC PUC Minas
 
[1] Segundo Fazzalari: “Tale struttura consiste nela partecipazione dei destinatari degli effetti dell’atto finale alla fase preparatoria del medesimo; nella simmetrica parità delle loro posizioni” (FAZZALARI apud PELLEGRINI, 2010).
 
[2]As proposições de Karl Popper constesta a imagem da ciência que se encontrava na base das pretensões do positivismo ao sustentar que a ciência não é de ordem indutiva, mas conjectural. Em face disto, deve se trocar as exigências de verificabilidade postuladas pelo positivismo, pelas de falsificabilidade.
As conclusões indutivas não conferem ao conhecimento nem necessidade lógica nem validade universal.Para Popper, a ciência é tão somente um conhecimento conjectural. Em vez de indução, propõe-se que se fale em conjecturação e, em vez de verificação, em falsificabilidade.(Carrilho, 2010).
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