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Liberdade Religiosa e Não Discriminação LGBTQI: análise do impacto cultural da discriminação pelas decisões do STF


Autoria:

Guilherme De Carvalho Correa


Estudante de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (campus Campinas/SP) e estagiário na Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

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Resumo:

O presente artigo tem por objetivo analisar as demandas antagônicas do movimento LGBT e do neoconservadorismo, pautando-se, sobretudo, pela tentativa de compreensão do papel da cultura na manutenção da marginalização e se ela é suscitada pelo STF.

Texto enviado ao JurisWay em 21/11/2020.



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1.         INTRODUÇÃO

 

Esta pesquisa parte do conflito histórico entre grupos LGBTQI e grupos religiosos conservadores. As pautas da diversidade sexual são, para o conservadorismo, uma emergência. Os avanços conquistados pelo movimento LGBT (e pelo movimento feminista) fez eclodir uma formulação política dos setores conservadores.

Estas disputas são travadas, acima de tudo, socialmente, já que ambos os lados parecem buscar legitimação cultural para seus pontos. O movimento LGBT suscita a hegemonia cultural presente, que exclui grupos que não se adequam ao dever-ser social e performático. Já os conservadores buscam emplacar uma certa moral universal cristã tendo por fundamento uma suposta degeneração moral da cultura.

Este locus da disputa (o cultural) é bastante interessante já que é núcleo, ferramenta e teleologia destas disputas. Daí surge o problema da pesquisa: analisar até que ponto a cultura é importante neste debate e até que ponto ela pode ser modelada, conforme faz querer crer ambos os grupos.

A pesquisa limita-se à compreensão dos grupos envolvidos, à análise das teorias culturais envolvidas nestes processos e, por fim, à averiguação da existência (ou não) destes entendimentos nas decisões do Supremo Tribunal Federal na temática da diversidade sexual.

Dois questionamentos foram propostos para a pesquisa e elaboração deste artigo: a) qual é a função da cultura nas marginalizações e discriminações sofridas pelos LGBTQI e; b) caso a cultura opere papel importante na construção e manutenção das desigualdades sofridas pelos grupos LGBTQI, até que ponto a Corte constitucional brasileira está atenta ou adere a este posicionamento.

Esta pesquisa adotou a pesquisa exploratória e se deu integralmente por levantamento bibliográfico em livros e jornais. Os levantamentos foram analisados pelo viés qualitativo e presta-se a familiarizar-se com o tema e verificar as construções históricas e teóricas que atuam sobre a temática.

No segundo capítulo delineia-se o conflito e averigua os grupos envolvidos (suas origens, ferramentas e objetivos). Aqui surge a figura do neoconservadorismo e do movimento LGBT como a exteriorização social e política de forças antagônicas sociais.

No terceiro capítulo analisamos a teoria cultural do sociólogo jamaicano Stuart Hall e buscamos compreender o real papel da cultura na construção da realidade, ou seja, o limite em que a cultura opera transformações sociais sensíveis como o preconceito ou – para o neoconservadorismo – a degeneração.

Por fim, no quarto capítulo analisamos a coletânea publicada pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2020, sobre a jurisprudência da Corte em temas de diversidade sexual. Esta análise teve por objetivo verificar os argumentos carreados na decisão e sua proximidade (ou não) com as construções das teorias culturais.

O desenvolvimento da pesquisa, assim como a bibliografia utilizada, responde algumas questões, mas abre tantas outras. Tanto os referenciais teóricos quanto a própria natureza da pesquisa e seu recorte social fazem a pesquisa se ramificar a todo tempo. 

 

2.      O CONFLITO E OS GRUPOS ENVOLVIDOS (MOVIMENTO LGBT E NEOCONSERVADORES)

 

O conflito político e social entre os grupos religiosos conservadores e o movimento LGBT é a premissa fundante da presente pesquisa. Voltados a descortinar as desigualdades e o locus marginalizado ocupado por eles, os indivíduos LGBTQI organizaram-se politicamente sob o movimento LGBT. Doutra monta, grupos religiosos conservadores contrários à pluralidade ética e afeitos a unificação moral cristã na sociedade, também se organizaram politicamente para fazer avançar suas pautas moralizantes.

Há, então, pelo menos desde a redemocratização do Estado, esta dualidade de forças atuando com objetivos sociais e políticos absolutamente opostos. Em um primeiro momento faz-se mister entender os grupos envolvidos e seus atores, para que seja possível analisar as demandas, sob o prisma cultural e jurídico, de forma satisfatória.

A profunda estigmatização sofrida pelos indivíduos LGBTQI, ainda antes do regime ditatorial instaurado no Brasil em 1964, fez com que muitos deles criassem certas ferramentas de sobrevivência, como “manter-se no armário” por exemplo. Prática que cindia a porção pública do indivíduo da porção privada. Publicamente, atinham-se aos papéis sexuais e às normas de gênero socialmente impostas; no âmbito privado, permitiam-se vivenciar a sexualidade em sua integralidade.

O fim da década de 1960 é conhecida pelo espírito rebelde dos jovens franceses que, dentre outras revoluções sociais e dos costumes, fomentaram o estado de coisas necessário para que, em 1969, o “Stonewall Inn”, famoso bar de Nova Iorque, frequentado majoritariamente por indivíduos LGBTQI, fosse palco da primeira “primeira revolta de pessoas por conta da forma como eram tratadas por policiais e autoridades, por serem identificadxs[1] como desviantes das normas sociais“ (CANABARRO, 2013, p. 1-2). Este episódio marca o início do movimento LGBT norteamericano, que acabou influenciando a construção de diversos movimentos análogos, mundialmente

O Brasil também recebeu influências da rebeldia da juventude francesa e da revolta de Stonewall, mas, por aqui, a gênese de um movimento LGBT politicamente articulado tardaria a se dar, já que “a ditadura brasileira [retardou] os efeitos domésticos dessa onda internacional de libertação, contracultura e desbunde, criando obstáculos concretos para a organização das pessoas LGBT no Brasil” (CAETANO; FERNANDES; GREEN; QUINALHA, 2018, p. 10).

Entretanto, paradoxalmente, é neste momento que as bases necessárias à formação de um movimento político organizado começam a nascer. A ditadura militar foi especialmente violenta e desumana com os indivíduos de sexualidades divergentes da heterossexualidade e da cisgenereidade. Sob a retórica da moralidade e dos bons costumes, tendo por ideais “a defesa das tradições, a proteção da família, o cultivo dos valores religiosos cristãos [...]” (QUINALHA, 2018, p. 23), a ditadura militar aumentou expressivamente o status de cidadão de segunda classe dos LGBTQI.

Neste sentido, quanto à ditadura militar, se:

em um primeiro momento, como dito acima, “atrasou” a eclosão, no Brasil, de um movimento LGBT enquanto ação política coletivamente organizada; por outro lado, fervilhou os ânimos dos indivíduos oprimidos, forçando-os a comprimir-se em guetos LGBTQI, a formar coletividades e a mobilizar recursos e estruturas que possibilitariam a própria criação de um movimento LGBT brasileiro (CORREA, 2020, p. 20).

O movimento LGBT no Brasil inicia-se, de certa forma, em 1978 com o “Núcleo de Ação para os Direitos dos Homossexuais”. Tratava-se de um grupo de homens homossexuais que passaram a se reunir semanalmente na cidade de São Paulo para discutir a vivência, a opressão e as saídas políticas para as existências sexualmente divergentes. No ano de 1979, este grupo é chamado a participar de um debate, ocorrido na Universidade de São Paulo – USP, sobre minorias. O grupo aparece no debate sob o novo nome de “Somos – Grupo de Afirmação Homossexual”.

É a partir do debate na USP e a participação ativa do Somos que a comunidade LGBTQI brasileira começa a se organizar politicamente para debater suas pautas emancipatórias e dar visibilidade as desigualdades responsáveis por colocá-la em locus marginais. Desde então, muitos são os capítulos do movimento LGBT, espalhados pelo solo brasileiro. Da mesma forma, muitos foram – e são – os avanços por eles conquistados.

O “GALF – Grupo de Ação Lésbica Feminista”, por exemplo, passou a publicar o primeiro jornal de lésbicas do Brasil, o “ChanacomChana”. Os exemplares eram vendidos, também, no “Ferro’s Bar”, famoso bar paulistano frequentado majoritariamente por mulheres lésbicas. Tratava-se de um importante gueto lésbico na cidade de São Paulo. Na noite de 23 de julho de 1983, entretanto, as integrantes do GALF foram impedidas de entrar no bar e vender os exemplares do jornal:

Diante deste autoritarismo, Rosely [Roth] promoveu um ato político que foi articulado com lésbicas, gays, feministas, defensores de direitos humanos, políticos e com a grande imprensa, para que na noite de 19 de agosto o Ferro’s fosse ocupado. A invasão causou grande tumulto com cobertura da mídia e presença da polícia e o dono do Ferro’s voltou atrás da sua decisão (FERNANDES, 2018, p. 100).

É por este episódio que na data de 19 de agosto é celebrado, anualmente, em São Paulo, o Dia do Orgulho Lésbico. Por certa semelhança, o episódio é referido por muitos como “Stonewall brasileiro”. Este é apenas um exemplo dos impactos causados pela movimentação dos indivíduos LGBTQI. Há tantos outros. Como o grupo “Triângulo Rosa” que teve atuação ferrenha junto à Assembleia Nacional Constituinte “com a demanda de inclusão da não-discriminação por orientação sexual na Constituição Federal de 1988” (CÂMARA, 2018, p. 194-195).

O “Grupo Gay da Bahia – GGB”, também, é exemplo de atuação política do movimento LGBT. Foi um grande responsável pela despatologização do “homossexualismo” no Brasil, por força de resolução do Conselho Federal de Medicina, em 1985. Antes ainda da retirada, em 1990, pela OMS, da homossexualidade do rol de doenças mentais.

Temos, então, de um lado, este grupo multifacetado e organicamente dividido por diferenças territoriais, de pauta, de atores etc., mas que se unem num objetivo comum de assimilação social da diferença, diminuição das desigualdades e erradicação da marginalização. De outro, temos grupos religiosos conservadores atuantes politicamente para frear ou recrudescer os avanços conquistados por aqueles.

Vimos, anteriormente, que a ditadura militar no Brasil proferia ideais bastante próximos àqueles do conservadorismo religioso, como a proteção da família e o “cultivo” dos valores religiosos cristãos. Importante relembrar que a ditadura militar se instaura logo após a famosa “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Este grupo, religioso e conservador, fundou as bases morais da perseguição estatal ditatorial.

Com a eventual redemocratização do país, os grupos oprimidos, restritos aos guetos, onde laços de afinidade se formaram, fortaleceram as ações políticas e, consoante os mandamentos constitucionais, passaram a exercer pressão para a diminuição das desigualdades e pelo apreço às diferenças. Porém, eles não foram os únicos a encontrar no espaço democrático um lugar de luta.

As pressões sociais e políticas do movimento LGBT (bem como o movimento feminista) passaram a render frutos e, por esta razão, enquanto contrários a estes avanços, os conservadores religiosos adotaram novas ferramentas de participação política e aglutinaram-se em um movimento conhecido por “neoconservadorismo”. Trata-se de verdadeiro efeito rebote aos avanços democráticos dos direitos reprodutivos e da diversidade sexual:

[...] ainda que se possa destacar a persistência do conservadorismo no que diz respeito ao controle da reprodução e da sexualidade – sobretudo se tivermos em mente o foco na família heteronormativa como instituição social a ser preservada –, a noção de gênero e a participação ativa dos movimentos feministas nas disputas pela normatização de direitos nos anos 1990 constituem uma inflexão que instauraria novas temporalidades específicas (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020, p. 19).

Esta temporalidade marca uma nova roupagem ao antigo fenômeno do conservadorismo, daí “neoconservadorismo”. Este fenômeno atua sob o preceito da democracia e sob o marco legal da laicidade estatal. Nas pautas moralizantes, os atores neoconservadores encontram lugar comum na rejeição ao aborto e às sexualidades divergentes:

A aliança conjuntural entre atores católicos e evangélicos tradicionalistas, impelida pelo forte crescimento dos pentecostais em vários países do continente, defende a família heterossexual, a vida desde a concepção e a moralidade cristã. Opera unificando esses atores no debate e na ação política, como se não houvesse disputas morais dentro do catolicismo e do pentecostalismo, assim como entre ambos (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020, p. 29).

É interessante compreender que uma das dimensões deste fenômeno diz respeito à juridificação da moralidade. O direito, aqui, é compreendido como arena e estratégia. Enquanto arena, o fenômeno preocupa-se com a função simbólica do direito. Para além da eficácia das normas jurídicas, a intenção é capturar o direito enquanto potência de normalização de condutas. Isto porque o direito, enquanto discurso, tem no proibitivo e no permissivo as bases de construção e de hierarquização da ordem sexual.

Uma das táticas utilizadas pelo movimento LGBT é a de descortinar a imbricação, ainda existente, entre Estado e Igreja. No campo jurídico isto se dá pela manutenção de conteúdo religioso em leis seculares. O neoconservadorismo vê na manutenção do conteúdo religioso nas normas formalmente seculares uma potência discursiva importante à manutenção da hegemonia moral cristã.

Em um segundo momento, o fenômeno concebe o direito enquanto estratégia. Ou seja, exatamente por – supostamente – encontrar legitimidade de articulação em contexto democrático, compreende-se que o direito é mutável, também, pela manipulação de conceitos e termos que, eventualmente, por proximidade aos anseios sociais e às regras constitucionais, vão sendo por ele assimilados.

Neste sentido, seguindo as regras de linguagem e procedimentos jurídicos, busca-se tecer novas concepções para institutos como a liberdade religiosa e a liberdade de consciência com a finalidade de ampliá-las em detrimento da pluralidade ética, buscada pelos movimentos sociais. Aqui há “o propósito de defender uma concepção legal atada a uma moral universal em temas vinculados ao gênero e à sexualidade” (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020, p. 43).

A vida, a família e a liberdade são os três pilares dos intentos do neoconservadores em “resgatar” uma suposta moral universal cristã que teria imperado, incontestada, em determinado momento. Em suma o neoconservadorismo:

“em defesa de princípios como a vida, a família ou a liberdade de crença” constituirá uma frente conservadora, atuando por meios democráticos, na tentativa de disputar cultural e juridicamente a prevalência de uma moralidade cristã no direito “secular”. (CORREA, 2020, p. 64)

Repisa-se que estas mobilizações, através do direito, tem três finalidades: obstaculizar o avanço e operacionalização das agendas progressistas; buscar na função simbólica do direito a reverberação do conteúdo moral cristão (hierarquizando e moralizando condutas e sexualidades, culturalmente); e lançar-se a uma utopia  reacionária de restauração moral social, construindo uma sociedade onde a hegemonia ética e sociocultural cristã não encontraria oposição. (CORREA, 2020, p. 69)

Devemos salientar que muitas das tentativas do neoconservadorismo de fazer avançar sua agenda por meio do direito não são bem sucedidas, no sentido em que não atingem os supostos objetivos. Entretanto, entende-se que há uma modulação constante do discurso com a tendência de solidificar as desigualdades por intermédio da cultura. Ainda que as ações nem sempre encontrem resultado positivo na política ou no Judiciário, elas se prestam a moldar o imaginário popular, mantendo grupos vulneráveis e/ou minoritários à margem social.

 

3.         O DISCURSO COMO PRODUTOR DE CULTURA

 

 Partimos do pressuposto de que a discriminação é fruto de uma representação cultural sistemática e que engloba todos os indivíduos inseridos em uma dada cultura. Isto significa que as práticas discriminatórias se inscrevem em um círculo cultural, no sentido em que são amparadas pela construção cultural existente e acaba por fazer a manutenção desta própria cultura, que é excludente.

A “virada cultural” deu-se no momento em que se modificou o entendimento da relação entre objeto e linguagem. Até então, a noção prevalente era a de que entre eles haveria uma relação de espelhamento. A linguagem, neste prisma, teria a função de nomear, de atribuir significantes à objetos existentes no mundo natural e exprimia a essência do que existia, sem operar sobre o objeto nenhuma modificação.

Já com a virada cultural, as teorias culturais passam a conceber a ideia de que as coisas que nomeamos são naturalmente ambíguas e o que retira delas o caráter insuportável da ambiguidade é a cultura. Stuart Hall (2016, p. 20) afirma que “a cultura diz respeito à produção e ao intercâmbio de sentidos – o ‘compartilhamento de significados’ – entre os membros de um grupo ou sociedade”.

Então, seria no campo dos significados compartilhados que a natureza das coisas se solidificaria. Este processo não é, portanto, natural (enquanto produto direto da natureza), mas antes um processo social de fixação de significados. E estes significados, após assimilados culturalmente, inscrevem-se nos mapas conceituais que são compartilhados pelos indivíduos cultos (inseridos em dada cultura). As coisas nomeadas e nomeáveis estão, assim, todas sucumbidas às construções culturais em que estão inseridas.

Este processo de significar coisas (de dar-lhes sentido), começa com a capacidade humana de classificação e organização do mundo. Esta capacidade é chamada, por Stuart Hall de “sistema de representação”. Segundo Hall (2016, p. 35):

[...] rotulamos isso como um “sistema de representação”. A razão é simples: ele consiste não em conceitos individuais, mas em diferentes maneiras de organizar, agrupar e classificá-los, bem como em formas de estabelecer relações complexas entre eles. Por exemplo, nós usamos os princípios da similaridade e da diferença para estabelecer relações entre conceitos ou para distingui-los uns dos outros. Nesse sentido, eu tenho a impressão de que, em alguns aspectos pássaros são como aviões no céu, baseado no fato de que eles são semelhantes porque ambos podem voar. Contudo, também tenho a impressão de que, em outros aspectos, eles são diferentes, já que as aves são parte da natureza enquanto as aeronaves são feitas pelo homem. Essa mistura e combinação de relações entre conceitos para formar ideias e pensamentos complexos são possíveis porque nossos conceitos são organizados em diferentes sistemas classificatórios.

Importante destacar que esta capacidade é tão apurada a ponto de conseguirmos classificar não apenas objetos e sujeitos que conseguimos captar com nossos sentidos, mas também permite elaborar conceitos para tudo aquilo que não é apreensível pela percepção. Daí a capacidade sem igual dos seres humanos em conseguir formar e transmitir conceitos tão abstratos como sereias, Deus, diabo, céu e inferno, por exemplo.

A linguagem é o segundo sistema de representação. Depois de classificadas e organizadas, a transmissão de sentidos se dá por intermédio da linguagem. Para Hall (2016, p. 37), a palavra linguagem assume sentido amplo:

O sistema escrito ou o sistema falado de uma língua em particular são ambos, obviamente considerados “linguagens”. Mas igualmente o são as imagens visuais [...] quando usadas para expressar sentido. E assim também ocorre com outras coisas não “linguísticas” em nenhum sentido usual: as expressões faciais ou dos gestos, por exemplo, ou a “linguagem” da moda, do vestuário os das luzes do tráfego.

A junção entre estes dois sistemas de representação possibilita aos cultos a fixação dos sentidos. É bem verdade que os fixamos “tão firmemente que, depois de um tempo, ele parece natural” (HALL, 2016, p. 41), mas este processo não é, como visto, natural. Um exemplo disto é a “linguagem dos semáforos”. Depois do feixe de luz visível ter sido devidamente separado, classificado e organizado, utilizamos a linguagem para nomear as pequenas divisões, nomeando as cores visíveis, o que leva o nome de “código linguístico”.

A utilização destes dois sistemas de representação torna inteligíveis as cores, mas elas ainda continuam ambíguas. Dentro do jogo linguístico dos semáforos, pelo menos. A cor vermelha não exprime, naturalmente, a prescrição de “parar”, bem como a cor verde não significa, naturalmente, “siga”. Neste sentido:

Vermelho e verde funcionam na linguagem dos semáforos porque “pare” e “siga” são os sentidos que foram atribuídos a eles na nossa cultura pelos códigos ou convenções que governam essa linguagem. Esse código é amplamente conhecido e quase universalmente obedecido em nossa cultura e outras semelhantes à nossa – embora possamos bem imaginar algumas pessoas que não possuem o código, nas quais essa linguagem seria um completo mistério. (HALL, 2016, p. 50).

O sentido, então, é determinado pela cultura e essa relação não é mimética, ou seja, não se presta apenas a nomear aquilo que existe naturalmente, “a linguagem, o discurso, a imagem, os significantes significam e adquirem significados distintos conforme operam sobre a cultura ou esta opera sobre aqueles” (CORREA, 2020, p. 37).

Com esta noção, mostram-se particularmente lesivos os discursos e as práticas preconceituosas na sociedade já que não apenas causam dano momentâneo e direcionado (às vezes, a um indivíduo específico ou à parte de um grupo), mas legitimam e mantém um conjunto de significados fixados que são excludentes e marginalizantes que, por sua vez, podem fomentar novas práticas discriminatórias.

Hall, apoiando-se em quatro argumentos teóricos diferentes da genealogia da diferença, concluirá que a alteridade é, de certa forma, um imperativo natural humano. Seja pelo argumento linguístico (o significado das coisas se dá, não pela existência de um significado intrínseco, mas porque é possível contrastá-lo com o seu oposto); social (é na troca entre os interlocutores de uma língua que surgem os significados, assim a existência do “Outro” é necessária); antropológica (“a cultura depende do significado que damos às coisas, isto é, a atribuição de diferentes posições dentro de um sistema classificatório. A marcação da ‘diferença’ é, portanto, a base da ordem simbólica que chamamos de cultura” – HALL, 2016, p. 156); e psicanalítica (diferentes psicanalistas concebem a alteridade de diferentes formas, mas parte-se da premissa de que a construção do “self”, do “eu”, depende necessariamente da cisão de quem eu sou com o “Outro”).

Ocorre que a marcação da diferença é um princípio cultural e é geralmente, operada sob signos desiguais:

Esta relação não costuma ser pacificada e não se dá em “paridade de armas”. O que ocorre, na verdade, é a proclamação de uma classificação “normal”, hegemônica, do “nós”; tudo o que foge à essa norma social e cultural, é taxado de “eles”, criando-se a figura do “Outro” como “matéria fora do lugar”[2]. (CORREA, 2020, p. 50

Esta construção cultural cindida, entre “nós” e “eles”, entre “eu” e o “Outro”, apoia-se em duas técnicas representacionais: a representação massiva da hegemonia, que hierarquiza identidades, subjetividades e sexualidades consideradas “normais” e a estereotipagem do “Outro”, fixando-se os limites da hegemonia pela constante marcação da diferença, pela representação simbólica do “Outro” como “não-nós”.

Esta marcação constante verifica-se na análise de Barbara Babcock (1978, p. 32) de que “o socialmente periférico está, com frequência, simbolicamente centrado”. É importante para a manutenção da hegemonia que ela seja marcada e reiterada pela representação dos grupos não hegemônicos sob o signo da alteridade. Uma das táticas mais frutíferas, neste sentido, está na representação simbólica do “Outro” por estereótipos.

Segundo Hall (2016, p. 73), estereotipado “significa reduzido a alguns fundamentos fixados pela natureza e umas poucas características simplificadas”. Estas características – que retiram das subjetividades, identidades e sexualidades não hegemônicas a característica da complexidade – passam a ser a face visível das pessoas e grupos estereotipados.

Esta prática significante utiliza-se da tipificação para atuar culturalmente de forma política tendente à manutenção das desigualdades. A tipificação é necessária e não enseja, necessariamente à estereotipagem. Sobre a tipificação:

Entendemos o mundo ao nos referirmos a objetos individuais, pessoas ou eventos em nossa cabeça por meio de um regime geral de classificação em que – de acordo com a nossa cultura – eles se encaixam. Assim, nós “decodificamos” um objeto plano com pernas sobre o qual colocamos coisas como uma “mesa”. Talvez nunca tenhamos visto certo tipo de “mesa”, mas temos um conceito geral ou categoria de “mesa” em nossa cabeça e, nele, fazemos “caber” os objetos particulares que encontramos ou percebemos (HALL, 2016, p. 190).

Assim, a “nossa imagem do que a pessoa ‘é’ constrói-se por meio das informações que acumulamos ao posicioná-las dentro dessas diferentes ordens de tipificação” (HALL, 2016, p. 190-191). Esta forma de classificação por tipos auxilia na rapidez e facilidade com que assimilamos pessoas e coisas culturalmente. Ela é, entretanto, apenas um primeiro prisma pelo qual damos cabo da realidade. Saber que alguém é uma mãe, ou que alguém é idoso, é apenas um dos traços a serem considerados na dinâmica cultural e relacional.

A estereotipagem apropria-se da capacidade humana de tipificar e, através dela, constrói as noções de normalidade e, consequentemente, de anormalidade. Os estereótipos “se apossam das poucas características ‘simples, vívidas, memoráveis, facilmente compreendidas e amplamente reconhecidas’ sobre uma pessoa; tudo sobre ela é reduzido a esses traços que são, depois, exagerados e simplificados” (HALL, 2016, p. 191).

Assim, este exagero e simplificação das características tornam-se marcadores da diferença e do poder. A estereotipagem engendra um mecanismo de exclusão no sentido em que eles são:

[...] parte da manutenção da ordem social e simbólica. Ela estabelece uma fronteira simbólica entre o ‘normal’ e o ‘pervertido’, o ‘normal’ e o ‘patológico’, o ‘aceitável’ e o ‘inaceitável’, o ‘pertencente’ e o que não pertence ou é o ‘Outro’ [...]

A estereotipagem facilita a “vinculação”, os laços de todos nós que somos “normais” em uma “comunidade imaginária”: e envia para o exílio simbólico todos Eles, “os Outros”, que são de alguma forma diferentes, “que estão fora dos limites”. Mary Douglas (2014), por exemplo, argumentou que qualquer coisa que esteja “fora de lugar” é considerada contaminada, perigosa, tabu. Os sentimentos negativos agrupam-se ao seu redor, é algo que deve ser simbolicamente excluído para que a “pureza” da cultura seja restaurada (HALL, 2016, p. 192).

A estereotipagem, conforme dito acima, é uma técnica representacional vastamente utilizada para a manutenção dos privilégios hegemônicos e dos locus marginalizados ocupados pelos “Outros”, como os indivíduos divergentes do dever-ser social, que impõem a heterossexualidade e a cisgenereidade. O uso do poder cultural simbólico, pelos grupos hegemônicos que contam com poder representacional, acabam por retirar das minorias estereotipadas a capacidade de emancipação social.

Isto porque a circulação dos discursos torna-se prática significante que modelam a cultura, por meio da representação, retratando estes grupos e sujeitos como divergentes de uma suposta ordem cultural e moral “pura”. Da mesma forma como somos capazes de elaborar noções complexas sobre abstrações (como sereias e o diabo, por exemplo), estas noções preconceituosas não são reflexos da realidade, mas antes, são construções sociais que pautam a própria realidade.

A cultura é a ferramenta por meio da qual experimentamos a realidade. É por seu intermédio que assimilamos os mapas conceituais compartilhados e introjetamos os significados fixados culturalmente que pautarão nossa vivência.

Daí que é, de certa forma, irrelevante perquirir as origens da homossexualidade, da transgeneridade, da bissexualidade ou de qualquer outra sexualidade divergente da hetero-cis-norma. Assim como é, de certa forma, irrelevante analisar individualmente os indivíduos lesados pela discriminação (ainda quando ela é direta e especificamente voltada a alguém). Estamos diante de práticas significantes que são legitimadas culturalmente e fomentam a cultura da exclusão num círculo vicioso.

Em um contexto democrático, de diminuição das desigualdades e de erradicação das marginalizações, rumo à plena cidadania (quantitativa e qualitativamente), as práticas de manutenção destes locus sociais antidemocráticos deveriam, em regra, ser coibidas. O Supremo Tribunal Federal, enquanto Corte constitucional brasileira, tem, nos últimos anos, proferido uma série de decisões paradigmáticas na seara da diversidade sexual. É importante analisar o nível de compreensão da Corte do aspecto cultural da discriminação.

 

4.      ANÁLISE DAS DECISÕES DO STF EM MATÉRIA DE DIVERSIDADE SEXUAL SOB O PRISMA CULTURAL

 

No capítulo anterior analisamos a relevância das práticas neoconservadoras no campo cultural, do discurso. O papel democrático do Estado está no alargamento da cidadania de seus administrados devendo sempre garantir os ideais de igualdade, da liberdade e da ampliação dos direitos. Isto passa pela exclusão dos interesses privados e dos privilégios de grupos e de classes.

A Corte constitucional brasileira acaba desempenhando função importante neste papel estatal. Vale lembrar que não é a única instância e nem a única instituição a desempenhar esta função. Entretanto, como vimos, o neoconservadorismo vê o direito como arena e estratégia para o avanço das suas pautas moralizantes. Também, as decisões paradigmáticas da Corte possuem função discursiva cultural importante, no sentido em que constroem novos significados culturais operando mudanças no tecido social.

Neste ano de 2020, o STF publicou uma coletânea com a jurisprudência da Corte em matéria de diversidade sexual. A coletânea leva o nome de “Diversidade: Jurisprudência do STF e Bibliografia Temática” e dispõe dez decisões sobre o tema.

No ano de 2011, na ADI 4.277 e ADPF 132, o Supremo Tribunal Federal decidiu pelo reconhecimento da união homoafetiva como instituto jurídico. Não é à toa que esta decisão abre a coletânea, já que ela marca uma transformação de grande monta nos entendimentos constitucionais na temática da diversidade sexual. A Corte, declarando o instituto da família como locus de concreção dos direitos fundamentais, entende que limitar sua constituição à apenas casais heteroafetivos seria interpretar o dispositivo constitucional de forma reducionista, fechando os olhos para o caráter de coerência que permeia a Constituição.

A utilização das designações homem/mulher teria sido adotada pela Constituição devido ao caráter histórico das relações desiguais que marcavam as relações matrimoniais, manchadas pelo patriarcalismo. Neste sentido, a expressão legal destina-se à busca da igualdade e do favorecimento de relações horizontais no âmbito doméstico. Por esta mesma razão, não reconhecer a união homoafetiva como instituto jurídico seria criar um novo estado de coisas inconstitucional baseando-se em uma tentativa legítima do constituinte de erradicação das desigualdades.

Nesta decisão, a afetividade ganha primazia contra a biologicidade e a homoafetividade é compreendida como dado. Não há dúvidas quanto à sua existência e, portanto, independentemente de suas razões de ser, merece amparo constitucional. “Afinal, se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020, p. 11).

Esta noção é bastante importante, do ponto de vista cultural, porque reconhece a homoafetividade como parte integrante do sujeito e, portanto, intimamente ligada ao direito à felicidade. E, mais, que a manutenção de estatutos jurídicos que não a reconheçam como legítima é fomentadora da intolerância:

[...] o Pleno desta Suprema Corte proclamou que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual. Isso significa que também os homossexuais têm o direito de receber a igual proteção das leis e do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual. Essa afirmação, mais do que simples proclamação retórica, traduz o reconhecimento, que emerge do quadro das liberdades públicas, de que o Estado não pode adotar medidas nem formular prescrições normativas que provoquem, por efeito de seu conteúdo discriminatório, a exclusão jurídica de grupos, minoritários ou não, que integram a comunhão nacional. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020, p. 13).

As razões jurídicas para a tomada de decisão da Corte estão devidamente alinhadas com os princípios constitucionais, com os tratados internacionais dos quais o brasil é signatário e exprime uma série de direitos fundamentais atrelando-os especificamente aos grupos LGBTQI, há muito marginalizados. Mas para o intento da presente pesquisa, faz-se mister a atenção aos aspectos culturais da decisão.

O excerto acima foi retirado do voto do ministro Celso de Mello e demonstra a atenção do Supremo para a função simbólica do direito. Um estatuto que fomente a intolerância, por claro, não o faz de maneira puramente jurídica; uma norma pode ser intolerante, mas dizer que ela fomenta a intolerância é reconhecer no dispositivo potência significante, como discurso que produz cultura ou a modifica (neste caso, fomentando a intolerância no tecido social).

O STF, aqui, opera sobre o campo da cultura de forma mais alinhada à sua construção pelo movimento LGBT. Compreende-o como hegemônico e, portanto, excludente, que constrói um estado de coisas inconstitucional e antidemocrático. E, ainda, que a manutenção do conteúdo exclusivista dos estatutos jurídicos, fomenta a hegemonia cultural e a hierarquização da ordem sexual. Como visto acima, o neoconservadorismo, exatamente porque enxerga esta capacidade significante no direito, o tem como arena de seus embates.

Uma outra decisão, de 2019, também demonstra a assimilação, pela Corte constitucional, da construção social das desigualdades, operacionalizadas e legitimadas pela cultura. Trata-se da ADPF 600. No caso, uma norma municipal que visava vedar a adoção de políticas de ensino que tratassem de gênero ou que utilizassem tal expressão, teve sua [in]constitucionalidade arguida.

A priori, a norma foi declarada inconstitucional já que a competência legislativa para dispor sobre a educação é privativa da União, além de que a norma se propunha a ferir as diretrizes para a organização da educação como “promoção do pleno desenvolvimento da pessoa, do desenvolvimento humanístico do País, do pluralismo de ideias, bem como da liberdade de ensinar e de aprender (CF/1988, art. 205; art. 206, II e III; art. 214). (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020, p. 26).

Entretanto, importa-nos a argumentação em torno do que a Corte chamou de “a educação como instrumento de transformação cultural e de promoção do direito à igualdade”.  O STF compreendeu a escola como locus preferencial de transformação social, já que é ali que muitas das assimilações culturais ocorrem. Desta forma, ela é, por excelência, o espaço onde deve ocorrer a educação para as diferenças, em promoção da igualdade e consecução de uma sociedade democrática:

Razões semelhantes àquelas invocadas nos casos acima impedem a vedação à educação sobre gênero no caso das escolas brasileiras. É importante observar, além disso, que os grupos que não se enquadram nas fronteiras tradicionais e culturalmente construí­das de identidade de gênero constituem minorias marginalizadas e estigmatizadas na sociedade. Basta lembrar que o Brasil lidera o ranking mundial de violência contra transgêneros, cuja expectativa média de vida, no País, gira em torno de 30 anos, contra os quase 75 anos de vida do brasileiro médio. Transexuais têm dificuldade de permanecer na escola, de se empregar e até mesmo de obter atendimento médico nos hospitais públicos. A transexualidade é um fato da vida que não deixará de existir por sua negação e que independe do querer das pessoas. Privar um indivíduo de viver a sua identidade de gênero significaria privá-lo de uma dimensão fundamental da sua existência; implicaria recusar-lhe um sentido essencial da autonomia, negar-lhe igual respeito e consideração com base em um critério injustificado. A educação é o principal instrumento de superação da incompreensão, do preconceito e da into­lerância que acompanham tais grupos ao longo das suas vidas. É o meio pelo qual se logrará superar a violência e a exclusão social de que são alvos, transformar a compreensão social e promover o respeito à diferença. Impedir a alusão aos termos gênero e orientação sexual na escola significa conferir invisibilidade a tais questões. Proibir que o assunto seja tratado no âmbito da educação implica valer-se do apa­rato estatal para impedir a superação da exclusão social e, portanto, para perpetuar a discriminação. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020, p. 28)

Esta transcrição, advinda da decisão do relator da Arguição, ministro Roberto Barroso, sumariza a preocupação da Corte com o âmbito cultural para a promoção da igualdade ou a conservação das diferenças. Expressamente, a decisão referiu-se à cultura hegemônica e aos indivíduos marginalizados, os “Outros” como aqueles que não se enquadram a ela. Desta monta, o desmantelamento da hegemonia é um imperativo democrático.

A escola, como este espaço de abertura da vida à sua face pública (a escola é um dos primeiros lugares em que deixamos a vida privada da casa para embarcarmos na vida em sociedade) deve ser um dos locais onde o apreço à igualdade e o descortinamento das diferenças sejam fomentados.

Isto porque, conforme dispôs o ministro, o impedimento aos debates, as tentativas de encobrimento da realidade não têm o condão de alterar o natural. Ou seja, excluir as discussões de gênero e sexualidade das escolas não terá como efeito a supressão das orientações sexuais divergentes ou da transgeneridade. Esta exclusão terá como efeito apenas a mantença das sexualidades hegemônicas, mantendo-se a ordem sexual hierarquizada, concebendo – culturalmente – sexualidades como “normais” e “desejadas” em detrimento de todas as outras, que ganham a pecha de “anormais” e “indesejadas”.

A aversão, o preconceito, e a repulsa às sexualidades divergentes da hetero-cis-norma são construções sociais. Elas são fruto de uma cultura hegemônica e vertical que constroem a figura do “Outro” como “matéria fora do lugar”. Como eles expressam uma situação flagrantemente desigual, são indesejáveis à democracia e à República (seus objetivos de diminuição das desigualdades e erradicação das marginalizações estão insculpidos na Constituição Federal). Resta à sociedade e ao direito expurgar a intolerância, sempre atentos à sua origem cultural.

 

5.      CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

As disputas sociais e culturais entre indivíduos LGBTQI e Igrejas Católica e evangélicas são antigas. Entretanto, com a redemocratização do País esta disputa ganhou uma nova temporalidade. Os indivíduos LGBTQI fortaleceram-se politicamente sob o movimento LGBT, que passou a levantar pautas da diversidade sexual pelo descortinamento das desigualdades. Por outro lado, como efeito rebote dos avanços conquistados pelos movimentos sociais, grupos conservadores assumiram novas táticas e organizaram-se politicamente surgindo o neoconservadorismo.

Esta nova formação do conservadorismo enxerga o direito como arena e estratégia. Arena porque vê o direito, para além da eficácia das normas, busca-se captar o direito em seu potencial de normalização das condutas e de hierarquização da ordem sexual. Nesta senda, o direito é compreendido em sua faceta discursiva, cultural. Já enquanto estratégia, o direito é visto como espaço onde os conceitos são manipulados de forma argumentativa. Como espaço onde os argumentos, desde que próximos aos anseios sociais e desde que respeitados os jargões jurídicos, vão sendo por ele assimilados.

Verifica-se que, para que a estratégia jurídica encontre azo, a função simbólica do direito deve ter sido capturada. Ou seja, a cultura deve estar permeada do discurso religioso para que se torne anseio social a ponto de afetar a construção do direito. Esta relação não é assim tão simples, mas nota-se a importância do apelo cultural das táticas neoconservadoras. E não sem razão, já que a cultura, os mapas conceituais compartilhados, são capazes de operar mudança real na experiência da realidade.

Em culturas excludentes em que o “Outro”, aqueles não afeitos à hegemonia social, sexual, subjetiva, identitária, ou qualquer outra, é concebido como menor, como forasteiro, como “matéria fora do lugar”, as desigualdades tendem sempre a aumentar e os locus marginalizados se solidificar.

A hegemonia se ratifica pela marcação da diferença e, então, há uma constante redução dos grupos e indivíduos não hegemônicos a alguns poucos traços que são, depois, exagerados e simplificados, em uma prática chamada de estereotipagem. Esta contínua representação do “Outro” como desviante, imoral, anormal etc., constroem socialmente a visão e os lugares ocupados por estes grupos e indivíduos.

Na busca pela manutenção da hegemonia os grupos não hegemônicos têm suas marginalizações naturalizadas, em um processo que conecta as diferenças à natureza e não à sociedade. Vimos que, compreendendo este fenômeno, o Supremo Tribunal Federal vem tomando uma série de decisões paradigmáticas, na temática da diversidade sexual, tendentes à ampliação do caráter democrático da sociedade e à diminuição das desigualdades e erradicação das marginalizações.

A decisão tomada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 600 demonstra esta questão. A Corte mostrou-se atenta ao caráter cultural da discriminação, enxergando a escola como espaço de transformação cultural e, consequentemente, como espaço de fomentação da democracia. As diferenças devem ser tratadas já na primeira infância para que o processo de assimilação da cultura, que é excludente e hierarquizada, tenha chances de encontrar horizontes inclusivos, possibilitando a emancipação de grupos marginalizados.

A instauração de uma sociedade verdadeiramente democrática e o alcance pleno da cidadania passa, necessariamente pela transformação do nomos e isto se dá na cultura e por ela. É importante que atos de homotransfobia sejam criminalizados, inclusive pelo impacto cultural que uma decisão ou uma legislação como esta possui, mas, antes é necessário nos atermos às construções culturais para escapar, o quanto possível, da circularidade discriminatória e marginalizante em que estamos inscritos.

 

6.      REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BABCOCK, Barbara. The Reversible World: Symbolic Inversion in Art and Society. Ithaca, Nova York: Cornell University Press, 1978.

BIROLI, Flavia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

BRASIL. Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Diversidade. Brasília: STF, Secretaria de Documentação, 2020.

CÂMARA, Cristina. Pecado, doença e direitos: a atualidade da agenda política do grupo Triângulo Rosa. In GREEN, James Naylor Green; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa. (org.). História do Movimento LGBT no Brasil. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2018. P. 193-210.

CANABARRO, Ronaldo. História e Direitos Sexuais no Brasil: o movimento LGBT e a discussão sobre a cidadania. Anais Eletrônicos do II Congresso Internacional de História Regional, Passo Fundo, p. 1-15, set. 2013.

CORREA, Guilherme de Carvalho. OS AVANÇOS NEOCONSERVADORES CONTRÁRIOS ÀS PAUTAS LGBTQI: uma análise cultural, social, política e jurídica do conflito. Monografia (Bacharelado em Direito) – Centro de Ciências Sociais e Aplicadas, Universidade Presbiteriana Mackenzie. Campinas.

FERNANDES, Marisa. Ações Lésbicas. In GREEN, James Naylor Green; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa. (org.). História do Movimento LGBT no Brasil. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2018. P. 91-120.

GREEN, James Naylor Green; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa. (org.). História do Movimento LGBT no Brasil. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2018.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Organização e revisão técnica: Arthur Ituassu. Tradução: Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio: Apicuri, 2016.

JORNAL NACIONAL. AGU questiona decisão do Supremo de criminalizar homofobia e gera forte reação. G1, 2020. Disponível em: . Acesso em: 01 nov. 2020.

QUINALHA, Renan. Uma ditadura hetero-militar: notas sobre a política sexual do regime autoritário brasileiro. In GREEN, James Naylor Green; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa. (org.). História do Movimento LGBT no Brasil. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2018. P. 15-38.

 

 



[1] O autor se utiliza de uma das derivações da chamada linguagem neutra. Esta linguagem permitiria um intercâmbio de gênero nas palavras utilizadas para identificar pessoas. No caso, “identificadxs” pode ser entendida como contendo qualquer das duas desinências de gênero possíveis para a palavra, ou seja, identificados e identificadas.

[2] A expressão “matéria fora do lugar” foi cunhada por Julia Kristeva e sobre ela, dirá Hall (2016, p. 157) que: “Culturas estáveis exigem que as coisas não saiam de seus lugares designados. Os limites simbólicos mantêm as categorias ‘puras’ e dão às culturas significados e identidades únicos. O que desestabiliza a cultura é a ‘matéria fora do lugar’ – a quebra de nossas regras e códigos não escritos. A terra no jardim é boa, mas em um cômodo é ‘matéria fora do lugar’ – um sinal de poluição, de transgressão das fronteiras simbólicas, de tabus violados. O que fazemos com a ‘matéria fora do lugar’ é varrê-la, jogá-la fora, restaurar a ordem do local, trazer de volta o estado normal das coisas”.

 
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