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Resumo:
Análise da interrupção da gestação do feto anencéfalo à luz do Biodireito ante a ADPF No.54. Tutela do direito a saúde física e psicológica da gestante mediante a ausência de legislação específica para o caso concreto.
Texto enviado ao JurisWay em 15/03/2013.
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INTRODUÇÃO
A escolha do presente tema se justifica pelo descompasso da seara jurídica com o mundo fático em seu regramento. A interrupção da gestação do feto anencéfalo é apenas a ponta do iceberg que demonstra uma das muitas necessidades que a sociedade necessita e o sistema jurídico não consegue acompanhar. Esta defasagem do Direito em relação ao caso concreto se deu pelo largo desenvolvimento tecnológico das Ciências da Saúde, levando aos indivíduos novidades que vão desde a manipulação do início da vida do ser humano até à cura de doenças que já foram terminais.
Com este desajuste, os doutrinadores sempre criticaram fortemente a inércia do judiciário para casos como o da interrupção da gestação do feto anencéfalo. Para os estudiosos da matéria a solução está na interdisciplinaridade do Direito com as Ciências da Saúde, quando deve entrar em campo o Biodireito como ponte de ligação entre as duas grandes áreas, para levar novos entendimentos aos antigos textos codificados.
Esta aproximação não se trata de uma fusão, mas de um caminhar concomitante entre as disciplinas, a fim de levar ao Direito, através do Biodireito, as novidades do caso concreto, proporcionadas pelo desenvolvimento tecnológico da ciência médica, para alinhar o regramento jurídico ao mesmo compasso da sociedade.
Nesse sentido, neste ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal aprovou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de n.54, retornando à sociedade uma resposta aos casos de interrupção da gestação do feto anencéfalo, ficando em consonância com o caso concreto neste quesito que o texto de lei deixou de positivar.
A proposta aqui é apresentar a antiga defasagem do regramento jurídico em relação ao caso concreto, através do contexto do indivíduo enquanto ser humano e, que o caminho para a sua atualização está na comunicação com outros campos das Ciências.
Este trabalho acadêmico de finalização da graduação do curso de Direito está dividido da seguinte forma:
No primeiro capítulo apresenta-se a disciplina Biodireito; seu conceito, características, os seus estudos e como ela faz a comunicação estre as Ciências da Saúde e o Direito.
Em sequência, no segundo capítulo, se faz necessária a definição do início da vida do ser humano para o campo da saúde, para determinar este início dentro da seara jurídica, para depois medir os efeitos da interrupção do desenvolvimento do feto anencéfalo sobre a mulher e o próprio feto.
O terceiro capítulo discorre sobre a anencefalia: como ocorre e os meios de se evitar, as formas de diagnóstico e quais as consequências da anomalia para o feto.
No quarto capítulo, faz-se uma análise da ADPF Nº 54, apontando o que deu causa à sua origem e os entendimentos sobre o início da vida, anencefalia e direitos humanos que levou os ministros a decidirem seus votos.
Por fim, são apresentadas as considerações finais extraídas com relação ao problema.
BIODIREITO
“Nos últimos anos, o impacto da Ciência Médica no Direito tem sido tão grande que impulsionou o surgimento de nova disciplina jurídica: o Biodireito1.” (SÁ, 2004, p.251).
É o que afirma Maria de Fátima Freire de Sá, Doutora em Direto pela Universidade Federal de Minas Gerais e Professora de Biodireito da Pontífica Universidade Católica de Minas Gerais, em sua obra Bioética, Biodireito e o novo Código Civil de 2002. Nesta obra, Sá, demonstra um estreitamento entre as Ciências da Saúde e o Direito. O Código Civil Brasileiro de 2002 é o palco principal de uma verdadeira transformação temática da Bioética na seara do Direito. As interpretações das linhas dos artigos deixam de ser embebidas de literalidade e ganham dimensão para acompanhar a evolução comportamental e psicológica da sociedade regida.
Os antigos aspectos jurídicos ganharam desenvoltura com a agregação dos novos conceitos Bioéticos: a paternidade, filiação, gestação, doação de óvulo e exames de DNA são alguns dos pontos de ligação entre as matérias da Bioética e o mundo jurídico numa sociedade gerida por um sistema de regras sistematizadas. É o que sintetiza Maria de Fátima Freire de Sá quando traz aos olhos do leitor as conclusões de sua obra: “As novas formas de procriação tornaram as presunções tradicionalmente admitidas [...] até certo ponto, ultrapassadas, ou carentes de uma releitura.” (SÁ, 2004, p.277).
Em seu texto, Sá procura mostrar a necessidade da adequação dos textos de lei aos novos fatos sociais trazidos pela Bioética. Ratifica a afirmação de Sá, o Doutor em Direito Cleyson de Moraes Mello, em sua obra, Novos Direitos: os paradigmas da pós-modernidade, quando trata da gênese da Bioética:
É no contexto de crise que se pode situar a gênese da bioética. Bio representa a ciência dos sistemas vigentes, e ethike, o conhecimento dos sistemas dos valores humanos. (MELLO, 2004, p.321).
O doutrinador compartilha do mesmo entendimento de Maria de Fátima Freire de Sá e salienta a crise em que se encontra a norma que gere a sociedade. Mello, também acompanha Sá quanto a defasagem do ordenamento jurídico diante das evoluções bioéticas. Ainda sob os ensinamentos de Mello:
A reflexão bioética propõe a união dos valores éticos e dos fatores biológicos, um encontro das ciências experimentais com as ciências humanas. As novas situações criadas pelo avanço da biotecnociência abalaram as convicções científicas antes inquestionáveis. A reflexão bioética surge no âmago de um verdadeiro furacão que tem varrido as certezas absolutas. Isso tem levado o homem a voltar-se para si em busca de respostas, percebendo que a ciência positivista não é capaz sozinha de dar conta dos novos questionamentos. (MELLO, 2004, p.322).
O texto faz emergir a responsabilidade de auxiliar e ampliar a Ciência Jurídica que o Biodireito busca moldar no Código Civil de 2002. Tal responsabilidade se deve pelas aspirações que borbulham na sociedade e exigem uma normatização a fim de se garantir a segurança jurídica do sistema normativo. Na prática, o Biodireito tenta parametrizar um Código antigo (de 1916) que não acompanha o desenvolvimento da sociedade com os fatos já existentes trazidos e garantidos por uma medicina moderna, evolutiva e impactante. É o que ocorre, por exemplo, com a chamada Gestação de Substituição, também denominada Maternidade Jurídica, como leciona Maria de Fátima Freire de Sá:
Na gestação de substituição, uma mulher gesta em seu útero óvulo fertilizado de outra mulher, que, por alguma razão, não consegue manter a gravidez. A fecundação realiza-se in vitro com o óvulo da mulher e o esperma do marido ou companheiro e posteriormente é implantado no útero de outra mulher. (SÁ, 2004, p.255).
Esta gestação é um pacto, celebrando de um lado a gestante e do outro lado o casal que deseja o filho que não consegue tê-lo por um ou mais problemas de ordem biológica do corpo humano. É este um dos diversos pontos que deixa clara a necessidade da aproximação das Ciências da Saúde com as Ciências Jurídicas, para que o ordenamento jurídico consiga acompanhar as novas tendências e desenvolvimento da sociedade contemporânea. A sociedade evolui através da Medicina e a tendência é que o Direito acompanhe essa evolução através do Biodireito.
Ainda neste sentido, absorvendo os ensinamentos de Maria de Fátima Freire de Sá, emerge de seus textos: “O pacto para a gestação de substituição é negócio jurídico de comportamento e, sendo gratuito, é lícito e, portanto, válido.” (SÁ, 2004, p.277). Traz a autora uma nova modalidade de negócio jurídico, inovando e remodelando tudo o que se conhecia até então sobre a matéria. É neste caminhar que o Biodireito norteia o Direito, atraindo as novidades do mundo fático para o meio jurídico gerando a regulação apropriada para cada caso concreto, antes desabrigadas no meio da sociedade sem uma vinculação adequada com o mundo jurídico.
Esta nova moldura trazida para a seara do Direito não funcionaria se não fossem pela moral e pela ética, que servem como substâncias fixadoras dando nova vida ao campo jurídico.
Para realizar o seu papel, o Biodireito atrai a conceituação de ética por seu núcleo Bioético. Seu estudo histórico e detalhado é improfícuo no plano do presente trabalho, ficando a mensagem do doutrinador jurídico brasileiro Migue Reale, através da obra de Edison Tetsuzo Namba, Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo:
Miguel Reale sintetiza o drama da conquista científica no plano da ética, a qual ordena condutas: [...] Qual a obrigação do homem diante daquilo que representam as conquistas da ciência? Que dever se põe para o homem razão do patrimônio da técnica e da cultura que a humanidade conseguiu acumular através dos tempos? A ciência pode tornar mais gritante o problema do dever, mas não o resolve. Os conhecimentos científicos tornam, às vezes, mais urgente a necessidade de uma solução sobre o problema da obrigação moral, mas não implicam qualquer solução, positiva ou negativa. O problema do valor do homem como ser que age, ou melhor, como o único ser que se conduz, põe-se de maneira tal que a ciência se mostra incapaz de resolvê-lo. (NAMBA, 2009, p.7).
Neste ensinamento de Reale, trazido por Namba, o doutrinador explana que a busca científica pelas soluções dos problemas sociais pode se tornar desenfreada, sendo incumbência da ética, o regramento de condutas para frear as soluções científicas. Complementando o pensamento de Reale, Namba explana um conceito mais nutrido de ética: “A ética representa uma conduta adotada após um juízo de valor, que não pode ser dissociada da realidade, para não se tornar etérea.” (NAMBA, 2009, p.7). Namba deixa claro que a ética deve estar encrustada com o fato real. Todos os atos praticados por um indivíduo em prol da sociedade ou mesmo em prol de si devem ser embebidos da ética, sendo este o pensamento primeiro antes de se efetivar a conduta, para que não se torne volátil e fuja da esfera social quebrando todo o elemento imaterial que compõe o indivíduo humano.
Diante dos ensinamentos dos doutrinadores, não seria incorreto dizer que a ética guarda íntima relação com o direito, como ensina Maria de Fátima Freire de Sá: “Ética e direito são duas grandezas distintas e ao mesmo tempo inseparáveis. [...] O direito rege o comportamento externo, enquanto a moral enfatiza a intenção.” (SÁ, 2004, p.12). À primeira vista, esta relação aproximada da ética com o Direito pode levar o leitor a compreender que o regramento jurídico serve para ordenar restritivamente o comportamento dos indivíduos na sociedade, levando a um firme engessamento de todas as condutas sem levar em consideração qualquer manifestação que possa partir do seu subconsciente. Essa inicial observação é corretamente compreendida quando se complementa o pensamento da doutrinadora com os textos de Miguel Reale, de sua obra Filosofia do Direito:
A norma jurídica não se limita a obrigar: também faculta, atribui um âmbito de atividades autônomas a um ou a mais sujeitos, legitimando pretensões ou exigibilidades, assim como o recurso a um Poder, expressão do querer comum expresso na regra para que se cumpra o “devido”. (REALE, 2002, p.686).
Envolvendo os textos de Reale e Sá, fica fácil observar que o Estado realmente obriga, ordena, no entanto, também atribui faculdade aos sujeitos. Convém concluir, que a liberdade do indivíduo deve estar ligada a ética e por falta desta, o Estado impõe a sua prática. Essa aproximação da ética com o Direito ensejou nova nomenclatura, a Bioética. Neste pensar, explana José Alfredo de Oliveira Baracho apud NAMBA: “As relações entre a ética e o direito tem uma longa história que conduz a uma bioética da responsabilidade, ao formular a responsabilidade decorrente de suas aplicações”. (NAMBA, 2009, p.8). Em seu texto, Namba faz o casamento perfeito que resulta na Bioética. O Direito se usa da ética para legitimar as feituras da Bioética. A Bioética é livre para trabalhar, descobrir e desenvolver, no entanto, mediante o ordenamento jurídico, deve estar nos conformes éticos exigidos pelo Direito.
A conceituação de Bioética passou por vários anos absorvendo diversas definições conforme a experiência de cada especialista que lhe atribuía. Sobre este aspecto temporal, explana NAMBA:
A palavra bioética apareceu pela primeira vez em 1971 [...] Algumas definições do vocábulo foram elaboradas: Potter dizia que a bioética “é a ponte entre a ciência e as humanidades”. [...] Em 1978, Reich, ensinou que bioética é “o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e da atenção à saúde, enquanto que esta conduta é examinada à luz dos princípios e valores morais.” [...] David J. Roy, em 1979, sacramentou que bioética é “o estudo interdisciplinar do conjunto das condições exigidas para uma administração responsável da vida humana, ou da pessoa humana, tendo em vista os progressos rápidos e complexos do saber e das tecnologias biomédicas.” [...] Guy Durant assim a definiu: “é a pesquisa de soluções para os conflitos de valores no mundo da intervenção médica.” [...] Tristan Engelhardt asseverou que a bioética “funciona como uma lógica do pluralismo, como um instrumento para a negociação pacífica das instituições morais.” [...] Em 1994, incorporou-se na base de dados da Bioethicsline2 que a bioética “é um ramo da ética aplicada que estuda as implicações de valor das práticas e do desenvolvimento das ciências da vida e da medicina. É uma reelaboração da definição de Reich, de 1978. Aprimorando sua definição, em 1995, Reich [...] “é o estudo, sistemático das dimensões morais – incluindo visão moral, decisões, conduta e políticas – das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar”. (NAMBA, 2009, p.8-10).
Para fins do presente trabalho, necessário conhecer a conclusão de Namba ao delimitar a definição de Bioética:
Bioética, como se diz hoje, não é uma parte da biologia: é uma parte da Ética, é uma parte de nossa responsabilidade simplesmente humana; deveres do homem para com outro homem, e de todos para com a humanidade. (NAMBA, 2009, p.10).
Esta responsabilidade dos deveres do homem delineados pelo citado doutrinador, intuitivamente parece lógico para o homem-médio diante da ideia de ética. Na sociedade, cada indivíduo tem que viver, trabalhar e produzir para si e sua família mas sem esquecer de sua parcela de contribuição para o conjunto (a sociedade) do qual faz parte, afinal, o indivíduo está para o conjunto, assim como o conjunto está para o indivíduo, da mesma forma como um conjunto está para outro conjunto de soberania diversa. Também compartilha deste pensamento Debora Diniz:
Não há um profissional bioeticista. Não se formam bioeticistas nem no Brasil nem em nenhum lugar do mundo. O que há são advogados, antropólogas, assistentes sociais, dentistas, enfermeiras, filósofas, juristas, médicos, sociólogas, teólogas, entre uma ampla gama de profissionais, sensíveis às questões bioéticas. Em algum momento da vida, grande parte das pessoas, seja no exercício de suas profissões ou em suas vidas privadas, se deparará com questões bioéticas. (DINIZ, D., 2006, p.22).
Diante destes enunciados de Namba e Diniz, conclui-se que existe uma interdependência entre os indivíduos da sociedade em algum momento da vida. A ética vem para manter a harmonia neste relacionamento de alta complexidade através da sua aplicação prática pelo Direito. O Estado dá a liberdade esperando o comportamento ético para se conviver em sociedade e impõe a ética quando esta liberdade precisar ser frenada.
Diante dos breves enunciados, fica descoberto o nascedouro da nova matéria Biodireito e seu elemento chave que o aproxima do Direito: a ética, neste sentido, aparece traduzida como elemento indispensável no trato humano em sociedade. Como já dito em passagem anterior: “a ética deve estar encrustada com o fato real”. Desta forma, a ética se torna núcleo impulsionador que leva ao Direito o fato social transformado pelas Ciências da Saúde através do Biodireito. Este, transmissor da informação que aproxima estas duas grandes áreas, levando ao ordenamento jurídico a caracterização dos elementos materiais e imateriais que terminam por nortear a feitura e interpretação das normas reguladoras da sociedade, afinal, no dizer aristotélico ao explanar sobre a finalidade do Estado:
O fim da sociedade civil é, portanto, viver bem; todas as instituições não são senão meios para isso, e a própria Cidade é apenas uma grande comunidade de famílias e de aldeias em que a vida encontra todos estes meios de perfeição e de suficiência. (ARISTÓTELES, 2011, p.40).
O pensamento aristotélico se concentra na ética como via de regramento institucional do Estado para assegurar à comunidade uma vida feliz. Assim, como o ordenamento jurídico abrange todo e qualquer indivíduo de sua soberania, se através de seus Códigos a ética for despontada como instrumento normatizador, os problemas sociais enfrentados pelo ordenamento jurídico seriam mínimos. Por esta lógica do pensamento de Aristóteles, datado da antiguidade clássica (300 a.C.) e sobrevivente até os dias atuais, o ordenamento jurídico pátrio tem cada vez mais agregado aos seus textos interpretações nutridas da ética, precipuamente aquelas interpretações voltadas para a mantença da vida, bem maior protegido com primazia pela Constituição Federal.
Pela relevância da proteção à vida trazida pelos textos do ordenamento jurídico e pela via doutrinária, indispensável preencher o presente trabalho com breves considerações sobre o início da vida.
INÍCIO DA VIDA
A saúde tem o seu conceito contemplado por diversos enfoques, muito mais que simplesmente ausência de doença, abraçando aspectos sociais e emocionais. Seja no âmbito das Ciências da Saúde ou da Ciência Jurídica, o entendimento sobre saúde tem ganhado amplitude envolvendo também os aspectos inerentes ao bem-estar físico e psíquico da mulher quando se trata da interrupção da gravidez. Com este foco, a temática da reprodução humana teve sua primeira oportunidade no âmbito jurídico como direitos reprodutivos, conforme leciona Sérgio Pereira da Cunha:
Os direitos reprodutivos foram reconhecidos, pela primeira vez, como Direitos Humanos, na Conferência Internacional de Direitos Humanos, celebrada em Teerã, em 1968. (CUNHA, 2005, p.3).
Estes “direitos reprodutivos” foram conceituados posteriormente na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada na cidade do Cairo, em 1994, conforme leciona Sérgio Pereira da Cunha sobre o tema: “a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo” (CUNHA, 2005, p.3). Este entendimento terminou por abrir um imenso leque de interpretações que dialoga até os dias atuais sobre as questões da interrupção da gravidez, sua segurança para a mulher, sua opção de escolha e principalmente a segurança jurídica que a decisão de realizar tal procedimento irá levar à consciência da sociedade.
A interrupção da gravidez de feto vivo chama para si a prática do aborto, descrita desde as civilizações mais antigas, com seus próprios conceitos e reflexos inerentes à sociedade da época. Para esse breve apanhado histórico, leciona a Doutora em Ciências Médicas, Ginecologista e Obstetra, Elaine Christine Dantas Moisés:
O aborto foi assunto tratado pela legislação babilônica como um delito contra a propriedade. Na civilização hebraica, só era punido o aborto ocasionado, ainda que involuntariamente, mediante violência, mas a partir da lei mosaica passou-se a considerar ilícita a interrupção da gravidez. Em Roma, nem as XII Tábuas nem as leis da República cuidaram do aborto, entendendo-se que o feto fazia parte do corpo da gestante, que dele podia dispor livremente. Portanto, no mundo greco-romano era prática comum. [...] Hipócrates, nos séculos V e IV antes da era cristã, no seu juramento, declarou não dar a nenhuma mulher uma substância abortiva. Já Aristóteles estimulava essa prática, desde que o feto ainda não tivesse adquirido alma, para manter o equilíbrio entre a população e os meios de subsistência. Platão também era favorável ao aborto em toda mulher que concebesse depois dos quarenta anos. Foi com o cristianismo que o aborto passou a ser reprimido e a Igreja Católica passou a condenar severamente os seus executores, sendo aplicada a pena de morte tanto à mulher como ao executor (MOISÉS, 2005, p.15).
Pelo texto da Doutora Moisés, pode-se observar diferentes gradações para a prática do aborto. Conclui-se que as legislações foram mudando com a sociedade e evoluindo com suas diversidades sobre o assunto a depender da cultura do lugar, alguns defendendo o aborto - como um direito da mulher para preservar sua saúde física e mental, outros, simplesmente, condenando severamente a sua prática e outros liberando de forma ampla a execução do aborto. Por este último, simpatiza a teoria alemã, que, conforme os ensinamentos de Elaine Christine Dantas Moisés: “baseava-se na ideia que se o feto não é uma pessoa, portanto não possuía direito e consequentemente não haveria delito no aborto”. (MOISÉS, 2005, p.15). Neste trecho de Moisés, o posicionamento da teoria alemã se assemelha com entendimentos modernos do atual ordenamento jurídico, os quais serão pontuados momento ulterior.
Neste pensar, o aborto sempre foi tema polêmico com diversas discussões e diferentes pontos de vista através da história, se fazendo importante dar vez a um breve estudo sobre o início da vida humana sob o ponto de vista da Ciência da Saúde e a partir de qual ponto do desenvolvimento do ser humano, antes do seu nascimento, a ciência jurídica brasileira considera e protege o início da vida, definindo, com base neste estudo, se a interrupção de uma gestação de um feto anencéfalo estaria ceifando a vida de um novo ser humano em detrimento da saúde psicológica da mulher, pontuando quais as suas prováveis consequências jurídicas no seio da sociedade brasileira.
Como já observado nos supracitados textos lecionados por Elaine Christine Dantas Moisés, o breve histórico que trouxe à baila ideias de como as sociedades mais relevantes pensou sobre a prática do aborto. Surgiram e ainda surgem muitas indagações que questionam em que momento se considera a interrupção da gravidez de feto anencefálico como direito da mãe para preservar sua integridade física e moral. Estas indagações são oriundas de questões de maior proporção, como: Quando se inicia a vida? Até quando uma mãe tem o poder de decisão sobre o seu corpo? A partir de quando o produto da concepção passa a ter direitos na esfera jurídica e passa a ser considerado como indivíduo? Estas são as mais comuns no meio jurídico e tem amplo foco nas academias de Ciências Jurídicas na ministração das aulas teóricas por sua importância na vida prática do técnico jurídico, devido aos anseios da sociedade para o tema por sua pulverização no meio jurídico e na sociedade de uma forma geral.
Necessário se faz delimitar como se dá o início da vida do ser humano no âmbito da Ciência da Saúde, para compreender a partir de que ponto o sistema jurídico brasileiro entende ser o início da vida.
No prisma do campo biológico, o desenvolvimento do ser humano se inicia com a fecundação, momento em que o espermatozoide se funde com o óvulo gerando uma célula que representa um novo ser. No entanto, não basta essa fusão para garantir a geração de um novo ser humano, é necessário que ocorra a chamada nidação, que é a implantação do embrião intrauterino. Desta forma, começam os processos morfogenéticos3, quando ocorre a diferenciação dos órgãos e tecidos iniciando-se assim a formação do novo ser pelas trocas metabólicas e o relacionamento entre a mãe e o embrião.
Com o seu regular desenvolvimento, o embrião inicia os batimentos cardíacos ao atingir entre três a quatro semanas. Já com seis semanas o embrião começa a apresentar características humanas e ao final da sétima semana praticamente todos os sistemas orgânicos já estão formados, apresentando respostas de reflexos a estímulos.
Passando pela oitava semana, começa o período fetal. É a fase em que a aparência humana já está expressa e é possível detectar ondas eletroencefalográficas e atividade no tronco cerebral, quando o feto apresenta determinada movimentação ativa, mesmo que ainda não percebida pela mãe. No decorrer da décima sétima e vigésima semanas é que a mãe passa a perceber a movimentação do feto.
No auge das vinte e seis semanas o feto tem todos os seus órgãos bem desenvolvidos, porém ainda não teria condições apropriadas de sobrevivência extrauterina, principalmente pela imaturidade do sistema respiratório.
Já com vinte e oito semanas, cerca sete meses, apresenta um padrão de sono e vigília e já é possível sobreviver fora do útero apesar do seu sistema respiratório ainda não apresentar total maturação, motivo pelo qual os bebês que nascem prematuramente permanecem sob vigilância e fazem uso de medicamentos e algumas vezes, ventilação artificial para finalizar o completo amadurecimento do sistema respiratório.
Conclui-se, portanto, que na seara biológica a vida humana se inicia após a fecundação, sendo suas fases seguintes parte do processo natural do seu desenvolvimento, como resume a médica, Mestre e Doutora em Tocoginecologia4, Elaine Christine Dantas Moisés:
A vida humana, biologicamente, inicia-se após a fecundação e as alterações que ocorrem entre a implantação, um embrião de seis semanas, um feto de seis meses, um bebê de uma semana ou um adulto, são meros estados de desenvolvimento e maturação, como ficou definido durante o Primeiro Simpósio Internacional sobre Aborto, realizado nos Estados Unidos da América. (MOISÉS, 2005, p.13).
Neste norte, a seara jurídica é tendenciosa a concordar que o início da vida de um ser humano se faz pelo mesmo entendimento do campo biológico. O ensinamento da civilista brasileira Maria Helena Diniz, vem para elucidar a questão:
A ontogenia humana, isto é, o aparecimento de um novo ser humano, ocorre com a fusão dos gametas feminino e masculino, dando origem ao zigoto, com um código genético distinto do óvulo e do espermatozoide. A fetologia5 e as modernas técnicas de medicina comprovam que a vida inicia-se no ato da concepção, ou seja, da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, dentro ou fora do útero. (DINIZ, M.H., 2008, p.25).
Com este trecho, Diniz sintetiza como se dá o ponto de partida do início da vida, apresentando a opção natural e artificial de fecundação dos gametas. No contínuo de suas lições, permeia o seu entendimento no mesmo sentido de Moisés, compartilhando que as fases seguintes à fecundação fazem parte do desenvolvimento humano enquanto ser vivo. Continua Diniz:
A partir daí tudo é transformação morfológico-temporal, que passará pelo nascimento e alcançará a morte, sem que haja qualquer alteração do código genético, que é singular, tornando a vida humana irrepetível e, com isso, cada ser humano único. (DINIZ, M.H., 2008, p.25).
Para levar credibilidade a sua síntese do ponto inicial do início da vida e desenvolvimento do ser humano, Diniz, imprime em sua obra, o pensamento de autoridade mundial do campo biológico. Conforme, Diniz:
Jérôme Lejeune6, geneticista francês e autoridade mundial em biologia genética, asseverou: “Não quero repetir o óbvio mas, na verdade, a vida começa na fecundação. Quando os 23 cromossomos masculinos se encontram com os 23 cromossomos da mulher, todos os dados genéticos que definem o novo ser humano já estão presentes. A fecundação é o marco do início da vida. Daí para frente, qualquer método artificial para destruí-la é um assassinato”. (DINIZ, M.H., 2008, p.25).
Com esta passagem, a doutrinadora de nada acrescentou sobre o seu entendimento, sendo, de fato, uma ratificação dos seus conceitos sobre o início da vida e seu desenvolvimento.
Rumo ao Direito Penal Brasileiro, o penalista Luis Regis Prado também compartilha que o feto é desenvolvimento do ser humano, na forma que: “Feto, é pelo menos uma pessoa em formação.” (PRADO, 1997, p.501).
No mesmo pensar, o também penalista Cezar Roberto Bitencourt, quando conceitua o bem jurídico tutelado no crime de aborto, ressaltando que: “O bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação”. (BITENCOURT, 2009, p.344).
Concorda, também, outro doutrinador do Direito Penal, Damásio Evangelista de Jesus, quando trata do tema. Conforme o penalista:
A proteção penal ocorre desde a fase em que as células germinais se fundem, com a resultante constituição do ovo, até aquele em que se inicia o processo do parto. Dessa forma, embora fale comumente que o sujeito passivo é o feto, o Código não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto. É necessário, porém, que o objeto material seja produto de desenvolvimento fisiológico normal. (JESUS, 2005, p.122).
Ainda sob o manto da seara penal, Julio Fabbrini Mirabete leciona sobre o tema com intimidade nas palavras, aproximando seu texto com os conceitos da Ciência Biológica:
Tutela-se [...] a vida humana em formação, a chamada vida intra-uterina, uma vez que desde a concepção (fecundação do óvulo) existe um ser em germe, que cresce, se aperfeiçoa, assimila substâncias, tem metabolismo orgânico exclusivo e, ao menos nos últimos meses da gravidez, se movimenta e revela uma atividade cardíaca, executando funções típicas de vida. (MIRABETE, 2006, p.62).
Conclui-se através dos fragmentos explanados, que há concordância dos entendimentos entre a ciência médica e jurídica nas áreas civil e penal. É unânime que o início da vida se inicia com a fecundação, sendo natural ou artificial, perpassando por todo um desenvolvimento estrutural de sobrevivência, considerando-se vida humana desde o seu início nuclear.
Rumando para as lições de doutrinadores constitucionalistas para captar o que advém da matéria constitucional sobre o assunto, a fim de observar a consonância das matérias e ratificar a unicidade do Direito no tratamento da questão, José Afonso da Silva, considerado o pai do Direito Constitucional Brasileiro, em sua obra Curso de Direito Constitucional Positivo, ultrapassa os limites traçados pela Biologia para definir a vida. Sob o ponto de vista do doutrinador a vida não se resume a um conjunto de células orgânicas com funções de desenvolvimento gradativo que começará de uma simples união de células a vários sistemas de funções que formam o ser humano, seu espaço ultrapassa esta barreira. Além do organismo funcional biológico, deve lhe ser atribuído elementos físicos, psíquicos e espirituais. O estudo sobre estes novos elementos atribuídos à pessoa humana não é exaustivo em sua obra, porém, possível apreciar que este novo conjunto de caracteres experimentado para definir a vida humana, demonstra-se mais nutrido e complexo em relação as definições anteriormente delineadas, tornando palpável o elemento da vida atribuído ao ser humano enquanto parte integrante de uma sociedade de alta complexidade. Esse acréscimo de características elencados por José Afonso da Silva pode ser oriundo da difícil tarefa de definir em que ponto inicia a vida humana, como explanado em sua obra, no capítulo que trata do Direito à Vida. Preleciona, Silva:
Não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o grave risco de ingressar no campo da metafísica supra-real, que não nos levará a nada. (SILVA, J.A., 2011, p.197).
No seu observar, diante da desnutrida definição de vida como um simples organismo com funções de desenvolvimento, o doutrinador arrisca lançar de seus novos elementos, a fim de ingressar aquele ser vivo - antes delimitado a um conjunto biológico com suas funções que evolui gradativamente - no meio social como ser humano integral; completo não só por suas funções orgânicas e vitais, mas por suas funções e desenvolvimento orgânicos, intelectual e espiritual, fazendo do ser humano uma unidade de sistemas materiais e imateriais que faz parte de um conjunto de semelhantes que se integram e interagem entre si.
Na obra, o doutrinador não aprofunda seus estudos sobre os novos elementos atribuídos à vida humana. No entanto, à baila do exposto, já é possível compreender e visualizar o ser humano como um ser que demanda sistematização para se organizar e viver como um conjunto, atribuindo-lhe deveres, obrigações e direitos. Neste ponto, trabalha os seus estudos aproximando a vida orgânica do ser humano ao direito à vida protegido na Constituição Federal de 1988, como explana o doutrinador: “A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no art. 5º., caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais).” (SILVA, J.A., 2011, p.198). Com esta revelação primeira, José Afonso da Silva ousa e inova o mundo jurídico, levando o entendimento sobre a vida humana a ultrapassar os seus próprios limites, trazendo para o corpo legal novas interpretações sem alterar uma única letra da lei. A importância da sua introdução deverá repercutir no mundo fático-social amenizando, senão dirimindo, conflitos antes insuperáveis.
Mantendo o curso da discussão entre doutrinadores constitucionalistas, nem todos arriscam avançar em seus conceitos como fez José Afonso da Silva ao explanar sobre os elementos materiais e imateriais. O constitucionalista Alexandre de Moraes, em sua obra Direito Constitucional, limita-se a tratar da importância do direito à vida conforme a literalidade do corpo textual da Constituição, deixando a definição de vida para os profissionais da Ciência da Saúde. Conforme preleciona, Moraes:
A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência. O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão-somente, dar-lhe o enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico da vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, resultando um ovo ou zigoto. Conforme adverte o biólogo Botella Lluziá, o embrião ou feto representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe. A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina. (MORAES, 2005, p.30).
Neste trecho, Moraes define que o Estado, através de sua Constituição, deve proteger a vida como um direito do ser humano e sua definição de vida não ultrapassa o plano biológico. O doutrinador não pretende retirar do profissional de saúde a sua competência técnica para definir quando se dá a vida, apenas levando parte desta responsabilidade para o técnico jurídico no âmbito o qual lhe compete, porém sem ousar ultrapassar o limite da materialidade, como o fez, José Afonso da Silva.
Outro olhar na seara constitucional traz nova definição que complementa de forma tímida a conceituação meramente biológica, mas ainda sem alcançar a amplitude trazida por José Afonso da Silva quando trata de seus elementos materiais e imateriais. Como ensina Ricardo Cunha Chimenti, em sua obra Curso de Direito Constitucional:
O direito à vida é o direito de não ter interrompido o processo vital, senão pela morte espontânea e inevitável. É considerado o direito fundamental mais importante, condição para o exercício dos demais direitos. Observe que, sem vida, não há de se falar em liberdade, propriedade, segurança etc. Como dizia Impallomeni, todos os direitos partem do direito de viver, pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida. O direito à vida abrange o direito de não ser morto (direito de não ser privado da vida de maneira artificial; direito de continuar vivo), o direito a condições mínimas de sobrevivência e o direito a tratamento digno por parte do Estado. (CHIMENTI, 2006, p.60).
Como se pode concluir, Chimenti (2006) consegue ultrapassar o plano biológico da definição de vida. O diâmetro da vida, traçado pelo doutrinador, agora também alcança o compromisso de segurança do Estado que atrai a dignidade para uma boa convivência em sociedade. Ainda sob o seu olhar, o percurso da vida deve ser protegida lhe garantindo meios de proporcionar um ambiente digno, declinando apenas por seu processo natural, sem interferências de outra ordem. Desta forma, uma vez que a vida humana se torna objeto de direito numa sociedade de um Estado Democrático de Direito, amplifica-se novamente sua conceituação, demonstrando que o desenvolvimento da vida humana não se dá somente por suas funções celulares quando da sua formação de vida, mas que sua maturação poderá ocorrer por estágios, sendo um deles o convívio em sociedade.
Num olhar panorâmico para a definição do início da vida do ser humano e seu processo de desenvolvimento numa sociedade de alta complexidade, enxerga-se que a definição trazida por José Afonso da Silva (2011) abrange todos os requisitos necessários reclamados por uma sociedade que se desenvolve além do seu ordenamento jurídico. Este manto de elementos materiais e imateriais elencados pelo doutrinador revela a base suficiente sobre o qual se deve assentar o rol regulatório da sociedade, tendo por fim levar à sua lei maior entendimento amplo e completo que deverá ser disseminado para as leis de plano inferior, satisfazendo com plenitude os clamores sociais do qual fará emergir do seu comportamento, organização, satisfação e felicidade do seu conjunto.
Para trazer substância a este entendimento, José Afonso da Silva (2011), ao elencar o conteúdo do conceito de vida, revela todos os elementos necessários para dar concretude e ritmo ao regulamento jurídico ante a sua sociedade. Conforme o doutrinador:
No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à privacidade, o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência (SILVA, J.A., 2011, p.198).
Nesse condão, observa-se que pelo simples fato do desenvolvimento advindo da união celular, o ser humano já passa a existir para a sociedade, interage ainda que passivamente com todo o seu conjunto de semelhantes, que por força do ordenamento jurídico, lhe atribui direitos de integridade e de proteção à sua existência, para quando concluído seu estágio inicial de maturação (com o nascimento), iniciar seu novo estágio de desenvolvimento e interagir ativamente com o meio.
Este mesmo entendimento emerge dos textos de Maria Helena Diniz, na oportunidade da sua obra: O estado atual do Biodireito. À luz de seus escritos:
A vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois é objeto de direito personalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens ou direitos correlatos decorre de um dever absoluto erga omnes, por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer. Ainda que não houvesse tutela constitucional ao direito à vida, que, por ser decorrente de norma de direito natural, é deduzida da natureza do ser humano, legitimaria aquela imposição erga omnes, porque o direito natural é o fundamento do dever-ser, ou melhor, do direito positivo (DINIZ, M.H., 2008, p.20).
Neste trecho, Diniz revela que não importa todo um sistema jurídico se não fosse pela existência natural do ser humano. Sem o indivíduo, não existe o regramento; porém, sem o regramento, existe o indivíduo. Em suma, toda a sociedade tem um compromisso com o ser em desenvolvimento, e tal obrigação não é justificada pelo ordenamento legal, mas pelo fato natural da existência do ser humano.
José Afonso da Silva (2011) sintetiza uma abordagem mais ampla do relacionamento da sociedade com o ser humano durante o seu desenvolvimento até o seu nascer. O feto é ser humano, afirma o doutrinador sob os ensinamentos de Jacques Robert, e como ser humano lhe são assegurados direitos para manter sua existência. O princípio da moral médica é uma ponte de aproximação entre as Ciências da Saúde e Jurídicas que fundamentará o dever-ser desta parcela da sociedade. Fica a moral médica embebida da ética, não só profissional, mas também moral. Ética oriunda da consciência do profissional enquanto ser humano para com outro ser humano. Conforme ensina, José Afonso da Silva:
No dizer de Jacques Robert: “O respeito à vida humana é a um tempo umas das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do aborto, do erro ou da imprudência terapêutica, a não-aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori7, a de outrem e, até o presente, o feto é considerado como um ser humano”. (SILVA, J.A., 2011, p. 198).
Neste trecho, José Afonso da Silva, pelos dizeres de Jacques Robert, chama a atenção do leitor para o respeito à vida humana. Preciosa é a vida humana, e para garanti-la o caminho correto é o respeito - obrigação natural e comum a todos os indivíduos da sociedade. Frustrada esta diligência natural, se manifesta o Estado através do seu regramento a fim de fazer prevalecer o zelo pela vida.
O Direito, como matéria de ampla discussão, permite em toda a sua extensão o embate de ideais entre os seus pensadores, estudiosos e aplicadores técnicos. Como não poderia deixar de ser, mais uma vez, José Afonso da Silva, consegue atribuir mais uma ampliação sobre o conceito da vida do ser humano quando traz em seus textos o conceito de direito à existência:
Consiste no direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. SILVA, J.A. (2011, p.201)
Com este entendimento, o doutrinador fecha o cerco para qualquer interrupção da vida do ser humano em qualquer estágio que esteja. O fim da vida deve ser “pela morte espontânea e inevitável”, leciona. Uma vez iniciado o processo que dá a vida ao ser humano, este, em nenhuma hipótese poderá ser interrompido pela vontade humana.
Pela necessidade de defender direito tão primaz que é a vida, José Afonso da Silva, explana: “De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos” (SILVA, J.A., 2011, p.201).
Pela amplitude do Direito, vários são os olhares que recaem sobre si para definirem e caracterizarem os institutos da vida em comum que devem ser elencados e protegidos na seara jurídica. Por isso, existirão conceitos de maior ou menor dimensão conforme o entendimento de cada doutrinador. Desta forma, não menos importante, porém numa explanação sucinta, Vicente Paulo consegue sintetizar toda a essência trazida por José Afonso da Silva, tornando-se um fiel seguidor de seus conceitos. Em seus textos, Paulo elucida:
A Constituição protege a vida de forma geral, não só a extrauterina como também a intrauterina. Corolário da proteção que o ordenamento jurídico brasileiro concede à vida intrauterina é a proibição da prática do aborto, somente permitindo o aborto espontâneo como meio de salvar a vida da gestante, ou o aborto humanitário, no caso de gravidez resultante de estupro. Não se resume o direito à vida, entretanto, ao mero direito à sobrevivência física. Lembrando que o Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, resulta claro que o direito fundamental em apreço abrange o direito a uma existência digna, tanto sob o aspecto espiritual quanto material. Portanto, o direito individual fundamental à vida possui duplo aspecto: sob o prisma biológico traduz o direito à integridade física e psíquica [...]; em sentido mais amplo, significa o direito a condições materiais e espirituais mínimas necessárias a uma existência condigna à natureza humana. (PAULO, 2010, p.114).
Vê-se que Paulo segue fielmente as lições de José Afonso da Silva, compartilhando da existência dos elementos materiais e imateriais que devem ser intrínsecos à vida desde o seu início, atribuindo àquele ser, vida humana. No mesmo sentido, também concorda o doutrinador Dirley da Cunha Júnior, em sua obra Curso de Direito Constitucional, o autor traz em suas palavras os elementos materiais e imateriais citados por José Afonso da Silva, conforme Júnior:
O direito à vida é o direito legítimo de defender a própria existência e de existir com dignidade, a salva de qualquer violação, tortura ou tratamento desumano ou degradante. Envolve o direito à preservação dos atributos físico-psíquicos (elementos materiais) e espirituais-morais (elementos imateriais) da pessoa humana, sendo, por isso mesmo, o mais fundamental de todos os direitos, condição sine qua non para o exercício dos demais. O direito à vida é garantido pela Constituição contra qualquer tipo de interrupção artificial do processo natural da vida humana, ainda que seja para pôr termo a um sofrimento e agonia (eutanásia), salvo quando justificado, como nas hipóteses do aborto necessário para salvar a vida da mãe ou em caso de gravidez decorrente de crime de estupro. (JÚNIOR, 2008, p.657).
Júnior, assim como José Afonso da Silva e Paulo, segue o raciocínio que os elementos materiais e imateriais devem seguir a pessoa humana desde o seu início. Pode-se concluir, mediante os textos dos doutrinadores defensores destes elementos, que a pessoa humana se dá desde à sua formação inicial, sendo-lhe garantido a obrigação da sociedade de não interferir em sua formação e desenvolvimento, sendo o respeito à vida, a ferramenta que os indivíduos devem se utilizar para cumprir tal obrigação.
Num observar panorâmico das lições explanadas neste trabalho monográfico, conclui-se que a simples união de células com suas funções de desenvolvimento contínuo determinará um ser humano. Por conseguinte, caminha-se para uma ampliação visionária do ordenamento jurídico sob o manto da moral e da ética, quando embutido de elementos materiais e imateriais, sendo incorporado no Direito uma nova disciplina que traz em sua contextualização as Ciências da Saúde e Jurídicas. Esta atração promoverá para o mundo jurídico novos entendimentos, abrindo um leque de maior diâmetro para ventilar número maior de casos concretos e muitos ainda não elencados nos textos das leis. Tão verdade que é, e também urgente esta reforma pelo menos interpretativa – se não literal, que Maria Helena Diniz “biologiza” e “medicaliza” o Direito. Conforme ensinamento de Diniz:
Faz-se necessária uma “biologização” ou “medicalização” da lei, pois não há como desvincular as “ciências da vida” do direito. Assim, a bioética e o Biodireito caminham pari passu8 na difícil tarefa de separa o joio do trigo, na colheita dos frutos plantados pela engenharia genéticas, pela embriologia e pela biologia molecular, e de determinar, com prudência objetiva, até onde as “ciências da vida” poderão avançar sem que haja agressões à dignidade da pessoa humana. (DINIZ, M.H., 2008, p.8).
Maria Helena Diniz quer fazer o leitor entender não só da urgência da atualização do Direito com as matérias das Ciências da Saúde, mas também que esta atração deve ser tão próxima que as duas áreas tornar-se-ão única. Desta forma surge o Biodireito, que vem para aproximar estas duas grandes áreas em prol do interesse comum da sociedade, fazendo emergir para o direito novos entendimentos dos fatos sociais os quais retornaram ao mundo fático pelo regramento jurídico.
A interrupção da gestação de feto anencéfalo como objeto do presente trabalho monográfico é um destes novos entendimentos advindos do seio da sociedade, que veio a despontar no mundo jurídico como uma pergunta sem resposta devido a carência de legislação positiva. O Biodireito, matéria novata no meio jurídico, ainda é enfrentada como caloura pelos estudiosos e pelo próprio Estado, levando a um acanhando da ponte que faz ligar os dois mundos (Saúde e Jurídico) para a resolução dos problemas sociais.
Um breve estudo acerca da anencefalia é mais um dos elos que integra o entendimento sobre a interrupção da gravidez do feto anencéfalo.
ANENCEFALIA
Parcela da doutrina jurídica em parceria com as Ciências da Saúde tem entendido a necessidade da interrupção da gestação de feto anencefálico pela sua inviabilidade de nascimento com vida ou nascendo com vida, sua certeza de não continuar vivo mesmo que haja qualquer tipo de intervenção médica atualmente disponível.
O médico José Hib, em sua obra Embriologia médica, traz a definição e características da anencefalia. Conforme sua obra:
São malformações ocasionadas pelo fechamento defeituoso do tubo neural e dos tecidos mesodérmicos que o rodeiam, em particular a abóbada craniana e a coluna vertebral. De acordo com a sua localização, sua extensão e as estruturas afetadas, ocorre a anencefalia. A anencefalia ou falta de cérebro é acompanhada de acrania (ausência de abóbada craniana) e é devida ao não-fechamento da parte cefálica do tubo neural. Esta malformação é incompatível com a vida pós-natal e durante a gestação ocasiona a formação de poliidrâmnio, isto é, acúmulo excessivo de líquido na cavidade amniótica. O excesso de líquido se deve ao fato de que, ao não possuir cérebro, o feto carece dos centros nervosos da deglutição e não ingere o líquido amniótico. (HIB, 2008, p.228).
Conforme o texto, evidente a inviabilidade da vida de qualquer ser humano diante do quadro apresentado pela anencefalia. A anencefalia tem lugar certo em todos os livros da área de saúde que trata de ginecologia, obstetrícia e áreas correlatas. A consequência de morte do ser é certa, sendo unânime o entendimento entre os estudiosos do assunto.
Na obra Enfermagem Obstétrica, traduzida para o Brasil, mais uma definição da anencefalia e sua consequência inequívoca de morte para o feto: “A anencefalia é uma condição na qual considerável parte dos hemisférios cerebrais e do crânio e do couro cabeludo que os recobrem está faltando. É incompatível com a vida.” (ZIEGEL, 2011, p.656).
Decerto que as obras e escritos das áreas da saúde são unânimes quanto a anencefalia e sua inevitável consequência morte. É fato, comprovado cientificamente pelos estudos e procedimentos disponíveis atualmente pelas Ciências da Saúde, como um mais um é igual a dois, que a morte é inevitável para o feto acometido da anencefalia.
A anencefalia é uma anomalia genética de cunho biológico e funcional em que todos os especialistas concordam com sua definição e consequência. Desta forma, importante levantar o breve entendimento sobre o tema na seara jurídica a fim de confrontar os entendimentos e observar o consenso da matéria. Maria Helena Diniz, em sua renomada obra O estado atual do Biodireito, explana longos capítulos sobre os direitos fundamentais, confrontando-os com as possibilidades trazidas pelos avanços tecnológicos das Ciências da Saúde para o campo jurídico, analisando as possibilidades de tutelarem em norma jurídica os novos procedimentos, levando o regramento jurisdicional a uma inevitável atualização e adequação aos casos concretos, como poderia ser o caso da interrupção da gestação do feto anencefálico. Conforme a doutrinadora, em sua referida obra, leciona como ocorre a anencefalia:
Como ocorre a anencefalia: O tubo neural, que dá origem ao cérebro, começa a se formar a partir dos 15 primeiros dias de gestação. A parte anterior do tubo aumenta de tamanho para formar o cérebro. A parte final evolui para a medula espinhal. Cada um desses elementos se desenvolve independentemente, de acordo com a programação genética. Por volta da quarta semana de gravidez ocorre o fechamento do tubo neural. Se esse processo, por vários motivos, não transcorrer de forma adequada, o feto pode ficar anencefálico, ou seja, sem o cérebro e sem a calota craniana. Quando há um defeito muito grave no desenvolvimento, pode haver um aborto natural. A anencefalia é diagnosticada entre o 3º e o 4º mês de gravidez. (DINIZ, M.H., 2008, p.52).
Maria Helena Diniz abriu o assunto para a população jurídica. Neste norte, o universo jurídico tende a concordar com as Ciências da Saúde e com a deformidade irreversível – até os dias atuais – que é a anencefalia.
Os estudos e ferramentas atualmente disponíveis na seara médica é que devem tratar com propriedade do assunto. A doutrinadora simplesmente levou aos seus textos entendimentos já consolidado pela ciência médica após muitos erros e acertos pelos quais permeiam suas atividades. A figura 1 dá uma ideia próxima sobre o conceito e ocorrência da anencefalia e como fica o feto anencefálico.
Figura 1: O bebê normal tem cérebro, crânio, cerebelo e tronco cerebral. O bebê anencéfalo tem tronco cerebral. Números: 1 em cada 1.600 crianças tem anencefalia, destas 40% a 60% nascem vivos e 8% sobrevivem mais de uma semana. 1% sobrevive de 1 a 3 meses. Fonte: (REZENDE, 1998).
Ao observar a figura 1, mesmo um leigo no assunto poderia concluir da improvável sobrevivência de um ser humano sem o seu cérebro. Apesar da taxa de nascimento com vida poder ultrapassar a metade, os números traduzem o limite de tempo máximo da vida dos fetos anencefálicos.
De grande importância o período ideal para o diagnóstico da anencefalia. Na seara jurídica, Maria Helena Diniz, em seu trecho supracitado, ensina que o evento deve ser investigado entre o 3º de 4º mês de gravidez. Ensinamento, este, trazido das lições dos textos das Ciências da Saúde, como a obra do Professor titular da disciplina Obstetrícia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Jorge de Rezende, que ensina quando a anencefalia pode ser diagnosticada. Como preleciona o Professor:
A anencefalia, de resto, pode ser suspeitada, pela ultrassonografia, desde 15 semanas de gravidez, mas a época preferente está entre 16-18 semanas quando será rastreada em todos os casos. (REZENDE, 1998, p. 1004).
Decerto, foi com a evolução da tecnologia que as Ciências da Saúde chegaram ao ponto de detectar a anomalia antes mesmo do nascimento do ser humano. A ultrassonografia realizada nos pré-natais é capaz de detectar a anencefalia, no entanto, aconselha-se a sua feitura em um centro especializado, conforme leciona Lippincott Williams:
A anencefalia pode ser detectada com ultra-sonografia em praticamente 100% dos casos. Além disso, a probabilidade de um defeito do tubo neural aberto associado a um valor anormal do rastreamento sérico é reduzida em 95% ou mais se a ultra-sonografia for realizada em um centro especializado. (WILLIAMS, 2000, p.799).
Williams levanta a importância da realização da ultrassonografia num centro especializado para não confundir uma provável anencefalia com valores errôneos que poderão ocorrer no uso do equipamento. O autor suscita o sucesso da ultrassonografia com fins de detectar a anencefalia quando realizada nestas instituições.
Apesar da certeza da morte antes mesmo de nascer ou imediatamente após o nascimento do ser humano com anencefalia, existe registro de caso de sobrevivência por meses. É o que explana em seus textos Lippincott Williams, em sua obra Obstetrícia e Ginecologia:
A anencefalia é caracterizada por ausência do crânio juntamente com os hemisférios cerebrais, que são rudimentares ou estão ausentes. [...] As apresentações pélvica e de face são comuns. O distúrbio é letal, embora tenha sido descrita sobrevivência por um período de meses. (WILLIAMS, 2000, p.798).
Neste trecho o autor dá a certeza que a anencefalia é letal, muito embora mencione a ocorrência de sobrevivência por meses depois de nascido o feto, não pretende estimular falsas esperanças para aqueles genitores que venham a gerar um feto anencefálico. O autor não foi preciso ao explanar sobre o período de meses que sobreviveu o feto anencefálico após o seu nascimento, no entanto pode ocorrer em alguns casos de feto anencefálico a duração estendida da gravidez em que o feto permanece vivo durante toda a gestação. Ainda conforme os ensinamentos de Williams:
A duração de gestações anencefálicas [...] pode ser significativamente longa. No caso bem legitimado de Higgins (1954), a duração da gravidez foi de 1 ano e 24 dias após o último período menstrual, e foram percebidos movimentos fetais até o momento do parto. (WILLIAMS, 2000, p.798).
O caso em tela deixou a comunidade médica da época perplexa e parece colidir com as definições trazidas sobre a anencefalia que enfatizam a indubitável sobrevivência do feto mesmo antes do seu nascimento, principalmente pela época em que aconteceu (1954), momento em que a tecnologia médica não era tão desenvolvida quanto atualmente, particularmente porque o primeiro uso da ultrassonografia aplicada à obstetrícia se deu em 19589. Entretanto, apesar da ausência do exame ultrassonográfico da época, outros métodos primitivos à ultrassonografia poderiam detectar os movimentos do feto antes de seu nascimento, como é o caso do estetoscópio de Pinard (usado para ouvir os batimentos cardíacos do feto) ou mesmo a simples palpação (exame de qualquer parte do corpo por meio da aplicação externa da mão).
A fotografia 1 mostra um caso real de anencefalia:
Fotografia 1: Bebê anencéfalo. Ausência da calota craniana e exposição do cérebro primitivo. Fonte: (WILLIAMS, 2000).
Diante da fotografia 1 fica fácil a observação da ausência da calota craniana e formação primitiva do cérebro, trazendo à realidade dos olhos todos os conceitos descritos anteriormente, chegando-se a conclusão que desta forma, sem nenhuma intervenção médica capaz de reverter ou até reiterar a formação completa, fica impossível a sobrevivência do feto anencefálico.
A causa da anencefalia já é conhecida. A tecnologia utilizada pela Ciência Médica foi extremamente importante para buscar a sua origem e tende a se debruçar aos novos desenvolvimentos para uma futura possibilidade de evitar totalmente a anomalia ou até mesmo a sua reversão. Quanto às causas da anencefalia, preleciona Maria Helena Diniz:
Causas da anencefalia: A anencefalia pode ser causada por uma mutação genética, em que o gene não se comporta de forma correta. Mas há ainda outros fatores, como a falta de ácido fólico (uma vitamina do complexo B) no organismo. Estão no grupo de risco mães com diabetes mellitus e que trabalham com agrotóxicos. (DINIZ, M.H., 2008, p.53).
Pelo trecho da doutrinadora, chega-se ao entendimento que a deformidade da anencefalia é puramente biológica. Não há fatores externos que possam dar causa a anomalia. Descobriu-se que além do desenvolvimento incorreto em determinado momento da formação do feto, a carência do ácido fólico seria outro fator que poderia gerar a má formação do feto resultando na anencefalia. Lógico o entendimento que suprimindo a carência do ácido fólico reduzir-se-á a ocorrência da anencefalia. Neste ponto, ainda sob os ensinamentos de Diniz sobre como evitar a anomalia:
Como evitar: Os médicos indicam o consumo de ácido fólico um mês antes da gravidez e durante o primeiro trimestre de gestação. O ideal é que a mulher consuma 400 microgramas por dia de ácido fólico. A vitamina pode ser encontrada em comprimidos ou em vegetais de folhas verdes, como espinafre e brócolis. (DINIZ, M.H., 2008, p.53).
Percebe-se que a importância do suprimento do ácido fólico se dá pela sua ação. Conforme Williams, o seu uso pode reduzir a recorrência de defeitos no tubo neural e no caso de mulheres com um lactante anterior que foi afetado pela anomalia, a dose recomendada do suplemento é de 4 miligramas por dia. (WILLIAMS, 2000). Até o ponto em que se chegou o desenvolvimento das Ciências da Saúde esta é a única forma de evitar ou pelo menos diminuir as chances de gerar um feto anencefálico. O tema tem gerado grande repercussão na seara jurídica devido ao avanço tecnológico da área médica que vem antecipando a detecção da anomalia, o que tem levado a sociedade a confrontar com a ordem jurídica a possibilidade de interromper a gestação nestes casos.
ADPF Nº 54
Não há que falar em interrupção da gestação do feto anencéfalo sem traçar algumas linhas sobre o aborto, tema correlato, controverso e refletido na seara jurídica brasileira de forma impactante. A necessidade se faz pelo termo aborto frequentemente ser utilizado como sinônimo da interrupção da gravidez por sua estreita aproximação conceitual, porém diversa a sua aplicação.
A etimologia da palavra aborto vem do latim (abortius)10, passando a ideia de privação do nascimento. Pode ser definido como interrupção da gravidez com a morte do produto da concepção, conforme leciona Suzanne C. Smeltzer, Enfermeira Professora e Pesquisadora na Universidade Thomas Jefferson na Pensilvânia – Filadélfia nos Estados Unidos da América, em sua obra Enfermagem Médico-Cirúrgica traduzida no Brasil:
A interrupção da gravidez ou expulsão do produto da concepção antes que o feto seja viável é chamada de aborto. O feto é, em geral, considerado como viável a partir do quinto ou do sexto mês de gestação. (SMELTZER, 1999, p.195)
Como já delineado brevemente em trechos anteriores, a interrupção da gestação tem sua história na sociedade, não sendo necessário para o presente estudo detalhamentos, interessando, tão somente, a definição técnica definida pelas Ciências da Saúde para consequente definição no meio jurídico.
A conceituação do aborto atrai o termo abortamento, termos usados como sinônimos no meio jurídico que merece breve distinção. Assim, à luz dos ensinamentos de Álvaro da Cunha Bastos, Médico Pós-Doutorado e Professor de Ginecologia da Universidade de São Paulo, em sua obra Noções de Ginecologia, explana os conceitos de aborto e abortamento. Conforme o Professor Bastos:
Abortamento é interrupção da gravidez antes de completadas 20 semanas de sua evolução, ou quando o produto conceptual eliminado pesar 500g ou menos. [...] Aborto é o produto eliminado. (BASTOS, 1991, p.326).
Diante destes ensinamentos de Smeltzer e do Professor Bastos, distinguiu-se o aborto do abortamento que norteia à conclusão que o abortamento se dá pela prática de ato ou ocorrência de fato que deu causa a interrupção da gravidez, podendo ser o uso de medicamentos, a prática cirúrgica por médico, o choque mecânico devido algum impacto recebido pela gestante, distúrbios emocionais da gestante causados por fatores externos ou internos à sua pessoa ou defeito biológico do próprio organismo da mulher e o aborto se caracteriza pelo produto eliminado proveniente do abortamento, que este poderá ser a formação inicial embrionária ou mesmo o feto em formação, dependendo do tempo da gestação quando ocorrido o abortamento. Dos conceitos, também se extrai que a viabilidade do feto para vida extrauterina se dá a partir do quinto mês de gestação e a sua inviabilidade até o final do quarto mês, ou quando o feto pesar até 500g.
Diante deste discernimento, fica fácil identificar que os doutrinadores jurídicos comumente se utilizam do termo aborto a fim de sinalizar que houve o abortamento. Para tanto, necessário observar os estudos do penalista Damásio Evangelista de Jesus:
Aborto é a interrupção da gravidez com a consequente morte do feto (produção da concepção). [...] No sentido etimológico, aborto quer dizer privação de nascimento. Advém de ab, que significa privação, e ortus, nascimento. (JESUS, 2008, p.119).
No mesmo sentido, segue o penalista Luis Regis Prado, sobre a conceituação do aborto: “aborto é a solução de continuidade, artificial ou dolosamente provocada, do curso fisiológico da vida intra-uterina.” (PRADO, 1997, p.501). Deste ponto, observa-se a semelhança no emprego de palavras entre as definições de Damásio Evangelista de Jesus e Álvaro da Cunha Bastos – em seu trecho logo acima, transparecendo a similitude dos conceitos entre a área médica e jurídica, levando a concluir que o termo aborto na seara jurídica de fato é utilizado para se referir ao abortamento, afinal o rigor da lei recai sobre a prática do ato que levou a interrupção da gravidez.
Partindo para os trâmites da matéria constitucional, José Afonso da Silva não traz uma definição sobre o tema. O aborto é tratado por ele como um tema controvertido que a Constituição não disciplinou ficando a cargo dos doutrinadores sua elucubração, conforme explana no capítulo Do Direito à Vida e do Direito à Privacidade. Neste sentido, ressalta que o aborto:
É outro tema controvertido, que a Constituição não enfrentou diretamente. Houve três tendências no seio da Constituinte. Uma queria assegurar o direito à vida, desde a concepção, o que importava em proibir o aborto. Outra previa que a condição de sujeito de direito se adquiria pelo nascimento com vida, sendo que a vida intra-uterina, inseparável do corpo que a concebesse ou a recebesse, é responsabilidade da mulher, o que possibilitava o aborto. A terceira entendia que a Constituição não deveria tomar partido na disputa, nem vedando nem admitindo o aborto. (SILVA, J.A., 2011, p.206).
Esta indisposição constitucional terminou por trazer para o mundo jurídico a questão primaz sobre o início da vida, que impulsiona as diversas discussões sobre o polêmico tema da interrupção da gravidez, seja ela em qualquer situação ou estágio temporal.
Diante das conceituações traçadas acima nos âmbitos da saúde e jurídico, necessário um breve escrito sobre os tipos de aborto caracterizados pela doutrinária jurídica, que funcionaram como palco de muitas disputas judiciais a fim de pleitear autorização judicial para a interrupção de fetos acometidos da anencefalia. Nestes traços, o doutrinador Ricardo Cunha Chimenti faz emergir de seus textos os tipos de aborto terapêutico, sentimental e eugênico. Conforme leciona:
Aborto necessário ou terapêutico, consiste na interrupção da gravidez realizada pelo médico quando não há outro modo de salvar a vida da gestante; aborto sentimental, humanitário ou ético, o aborto realizado pelo médico nos casos de gravidez resultante de estupro, após expresso consentimento da gestante ou de seu representante legal; o aborto eugênico, eugenésico ou piedoso consiste na interrupção da gravidez quando o feto apresenta enfermidade ou deformidade incurável. (CHIMENTI, 2006, p.61).
Chimenti traz em seu texto um elenco dos três motivos mais comuns que justificavam o aborto nos moldes sociais que se viveu à época do Código Penal Brasileiro, datado de 1940. Mas foi com os rápidos e avantajados avanços tecnológicos das Ciências da Saúde sobre o Direito, que o citado Código se tornou obsoleto para as novidades proporcionadas na área da saúde, principalmente nos campos da Genética, que trabalha intensamente desenvolvendo novos métodos e soluções para manutenção da saúde, trazendo ao campo prático métodos medicinais e procedimentais inéditos para cura, mantença e prolongação da vida do ser humano. As doenças cruéis e terminais como a AIDS, hoje tem o seu efetivo controle e prolongação da vida do contaminado, já caminhando, a Ciência, para uma possibilidade de prevenção da contaminação daqueles que nunca tiveram contato com o seu vírus, evitando, desta forma, sua proliferação. É o caso também dos avanços dos exames pré-natais, hoje capaz de detectar doenças e anomalias do ser humano antes do seu nascimento, como a anencefalia, pela detecção da formação defeituosa do tubo neural do feto.
Foi devido a estes avanços tecnológicos no âmbito da Saúde, que se tem discutido nas vias processuais, o tipo de aborto que melhor se encaixa nos padrões da anomalia para o deferimento da interrupção da gestação do feto anencefálico. O tipo eugênico foi uma das opções dos magistrados, pois é utilizado quando da deformidade incurável do feto. No entanto, esta deformidade entendida pelo aborto eugênico é diversa daquela do feto anencefálico, que é um natimorto11. Este entendimento foi trazido pelo Ministro Marco Aurélio, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 54, em seu voto sobre o tema. Conforme o relator:
Cumpre rechaçar a assertiva de que a interrupção da gestação do feto anencéfalo consubstancia aborto eugênico, aqui entendido no sentido negativo em referência a práticas nazistas. O anencéfalo é um natimorto. Não há vida em potencial. Logo não se pode cogitar de aborto eugênico, o qual pressupõe a vida extrauterina de seres que discrepem de padrões imoralmente eleitos. Nesta arguição de descumprimento de preceito fundamental, não se trata de feto ou criança com lábio leporino, ausência de membros, pés tortos, sexo dúbio, Síndrome de Down, extrofia de bexiga, cardiopatias congênitas, comunicação interauricular ou inversões viscerais, enfim, não se trata de feto portador de deficiência grave que permita sobrevida extrauterina. Cuida-se tão somente de anencefalia. Na expressão da Dra. Lia Zanotta Machado, “deficiência é uma situação onde é possível estar no mundo; anencefalia, não”. De fato, a anencefalia mostra-se incompatível com a vida extrauterina, ao passo que a deficiência não. (BRASIL, 2012).
A posição do relator em afastar o aborto eugênico se faz pertinente, basta voltar aos conceitos traçados anteriormente sobre anencefalia que se verificará a total incompatibilidade da vida após o nascimento, discernindo-se das características que levam ao aborto eugênico, quais sejam as deficiências compatíveis de se ter uma vida longínqua mediante apropriada mantença.
Afastada a opção de aborto eugênico para o caso da interrupção da gestação de feto anencefálico, em seguida ao esboço do aborto, este se diferencia da interrupção da gestação de feto anencefálico pelo seu objeto. Para clarear o entendimento, ainda sob o entendimento do Ministro Marco Aurélio:
Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. Na expressão do Ministro Joaquim Barbosa, constante do voto que chegou a elaborar no Habeas Corpus nº84.025/RJ, o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, acrescento, principalmente de proteção jurídico-penal. (BRASIL, 2012).
Diante do texto do Ministro, conclui-se pela diferença entre aborto e interrupção da gestação no caso do feto anencefálico. No aborto o seu objeto é a vida considerada inicialmente apenas pelo desenvolvimento das funções celulares, com provável potencial à vida humana após o seu nascimento, levando a efeito o âmbito biológico que se agregará ao jurídico por um nascimento com vida – mesmo que o ser humano venha a falecer logo em seguida. Por sua vez, na interrupção da gestação do anencéfalo, o objeto se dá por um ser, que apesar de vivo biologicamente, não tem expectativa de vida humana, por isso não reconhecido juridicamente.
O entendimento do Ministro sustenta as linhas da maioria dos doutrinadores jurídicos, porém contradizendo os ensinamentos explanados anteriormente por José Afonso da Silva, Dirley da Cunha Júnior e Vicente Paulo que defendem os elementos imateriais desde a concepção do ser, que irão acompanha-lo por seu desenvolvimento intrauterino até o seu nascimento. Este manto trazido primeiramente por José Afonso da Silva dá ao ser, desde a sua concepção, a qualidade de pessoa humana - a qual a sociedade tem um dever negativo para sua preservação, ao contrário da maioria doutrinária na qual se calçou o referido Ministro, que atribui a qualidade de ser humano somente ao ser já nascido e com vida – elementos cumulativos de forma continuada, nos quais, nascendo sem vida não se fala em ser humano, mas em natimorto.
O tema, por sua densa consistência na camada social, vem dando trabalho ao Estado que precisa devolver respostas e dar soluções para a sociedade de forma concomitante com os avanços tecnológicos que ocorrem apressadamente no meio das Ciências da Saúde, quando buscam soluções, melhorias e grandes avanços biológicos em prol da saúde e felicidade do ser humano. Desta forma, para que venham as soluções se faz necessário responder perguntas, e a primeira delas é definir para o mundo jurídico quando é o início da vida humana, não para efeitos do negócio jurídico, que este se dá com o nascimento com vida - como já é sólido o entendimento na seara civilista, conforme os ensinamentos do doutrinador César Fiuza: “A personalidade das pessoas naturais ou físicas começa no momento em que nascem com vida.” (FIUZA, 2009, p.122), mas para efeitos de interação com a sociedade através dos seus elementos materiais (e imateriais, conforme seja o entendimento da doutrina para o caso concreto), sobre os quais lhe serão assegurados direitos e deveres da sociedade para consigo.
Para esta resposta, o melhor texto para delinear sobre a questão numa sociedade de um Estado Democrático de Direito é a sua Constituição Federal, no entanto, no Brasil, esta questão permanece em aberto, conforme explana em seus textos José Afonso da Silva no contínuo de suas lições sobre o aborto: “Tudo vai depender da decisão sobre quando começa a vida. A nós, nos parece que, no feto, já existe vida humana.” (SILVA, J.A., 2011, p.206). Para o doutrinador, pela evidência dos elementos materiais e imateriais o feto já deve possuir direitos assegurados perante a sociedade que virá a compor. Desta forma, a interrupção da gravidez viria a ser inadmitida pelo ordenamento jurídico, ficando a maior carga legislativa para a matéria penal: “a questão será decidida pela legislação ordinária, especialmente a penal” (SILVA, J.A., 2011, p.206). Neste ponto, se discute os casos em que a gestação traz para a gestante o risco à sua vida, como continua em seus textos, José Afonso da Silva:
Há casos em que a interrupção da gravidez tem inteira justificativa, como a necessidade de salvamento da vida da mãe, o de gravidez decorrente de cópula forçada e outros que a ciência médica aconselhar. (SILVA, J.A., 2011, p.206).
Neste trecho, o doutrinador além de elencar as duas causas legais para uma interrupção da gravidez, abre um vasto leque de opções que não fora normatizado: “e outros que a ciência médica aconselhar”. Torna-se inimaginável o diâmetro deste leque, uma vez que a evolução médica é de celeridade tamanha que a normatização jurídica não consegue acompanhar. Pode-se afirmar que nesta provável amplificação interpretativa trazida pela Ciência Médica, encontrar-se-ão os elementos imateriais do feto (trazidos por José Afonso da Silva) e, em novo ponto de vista da interpretação, os elementos imateriais da gestante, pois, não se pode esquecer os efeitos psicológicos causados à mãe – e também à sua família – que virá a dar a luz a um filho morto.
Neste condão, diante da falta de sintonia com a realidade da sociedade, clama a Ciência Jurídica pela matéria do Biodireito, que neste ponto faz a ligação, a ponte entre as Ciências da Saúde e a Jurídica a fim de satisfazer os anseios da sociedade trazendo soluções e respostas para causas sociais antes muito avançadas para o presente ordenamento jurídico.
Esta aproximação de dois mundos se utiliza da ética, acompanhante fiel do Biodireito, que vai exigir dos profissionais técnicos de toda e qualquer área de conhecimento uma postura ética e consoante às leis. Neste norte, foi visualizando o exercício ético que a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), formada por diversos setores da área da saúde que lidam e manipulam a vida humana em seus diversos aspectos, mediante o consolidado entendimento que o feto anencéfalo morre em cem por cento dos casos, observou o aumento dos pedidos de ações judiciais com o fim de obter autorização para a interrupção deste tipo gravidez e se antecipou ao legislador, provocando o judiciário para obter uma resposta à causa da sociedade e cumprir o seu dever ético em conformidade com o regramento jurídico. A CNTS deu este passo com a ADPF nº 54, instrumento que gerou grandes discussões no meio jurídico e social, criando um marco na história da legislação brasileira por sua significante mudança nos conceitos de uma sociedade tradicionalista e resistente às modificações em grandes proporções.
Antes de delinear comentários sobre a ADPF nº 54, faz-se necessário apresentar informações conceituais acerca da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, trazidos no corpo da Constituição Federal como competência do Supremo Tribunal Federal.
A ADPF faz parte do sistema de controle de constitucionalidade tendo sido regulamentada pela Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Este controle se dá pela rigidez da Constituição, levando ao ordenamento jurídico o princípio da supremacia formal, caracterizando-se como inconstitucional toda lei contrária a Constituição. Para ratificar este entendimento, leciona Vicente Paulo:
Inconstitucional é, pois, a ação ou omissão que ofende, no todo ou em parte, a Constituição. Se a lei ordinária, a lei complementar, o estatuto privado, o contrato, o ato administrativo etc. não se conformarem com a Constituição, não devem produzir efeitos. Ao contrário, devem ser fulminados, por inconstitucionais, com base no princípio da supremacia constitucional. (PAULO, 2010, p.741).
Conforme o doutrinador, não somente a lei, mas qualquer texto norteador da conduta dos indivíduos que confrontar a Constituição, mesmo que não integralmente, deverá perder os efeitos diante dos seus destinatários para fazer valer o texto constitucional como lei maior que deve ser obedecida.
Dentro deste sistema de controle que fortifica a Constituição diante da sociedade, a ADPF é uma ferramenta que faz valer a eficácia das decisões tomadas pela Corte Suprema. Para validar este entendimento, leciona Vicente Paulo:
As decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ADPF são dotadas de eficácia erga omnes e efeito vinculante, o que significa dizer que as orientações firmadas pela Corte Suprema nessa ação nortearão o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico pelas diversas entidades federadas. (PAULO, 2010, p.873).
À luz do texto de Paulo, a ADPF irá definir o melhor entendimento do texto que vir a ferir o texto constitucional, levando a sua decisão ao plano da obediência a todos os indivíduos para o caso discutido.
Quanto aos preceitos, os quais se refere a ADPF, estão relacionados aos princípios constitucionais. Conforme leciona Vicente Paulo:
Pensamos que a utilização da palavra “preceito” em vez de “princípio” teve como objetivo evitar que o conceito a ser delineado pela doutrina e jurisprudência acabasse restrito aos princípios fundamentais arrolados no Título I da Constituição Federal. Além disso, a utilização de uma expressão mais genérica, “preceito”, permite que sejam abrangidos pelo conceito não só os princípios, mas também as regras, em suma, qualquer norma, desde que possa ser qualificada como fundamental. (PAULO, 2010, p.879).
O texto de Paulo revela uma maior amplitude dada ao preceito em relação aos princípios, no qual abrange não somente estes, mas qualquer outra norma convalidada do mesmo entendimento da Constituição Federal.
Partindo para análise da ADPF Nº 54, sua propositura pela CNTS se deu pela petição inicial datada de 16 de junho de 2004. Seu conteúdo abordou o discernimento da antecipação terapêutica do parto de aborto, a inviabilidade do feto anencéfalo, uma explanação sobre os casos de aborto elencados no Código Penal Brasileiro e a exposição dos preceitos fundamentais violados.
À exceção dos preceitos fundamentais, ao longo do presente trabalho monográfico todos os outros itens foram tratados. Por isso, importante valer-se de considerações acerca dos preceitos elencados na peça inicial que deu origem à ADPF Nº 54, uma vez que o foco do documento foi a manutenção da integridade física da mulher quando portadora do feto anencéfalo.
Adentrando a análise dos preceitos, a peça trouxe a violação da dignidade da pessoa humana como analogia à tortura, que somente com sua subida aos palcos jurídicos nos tempos contemporâneos é que vem impedindo as barbáries antes provocadas pelo fascismo e nazismo. A positivação deste preceito levou ao Direito novas interpretações, aproximando a Ciência Jurídica da ética, resgatando valores civilizatórios. No preceito em análise estão contidos os elementos materiais e imateriais (aqueles trazidos por José Afonso da Silva), no entanto, para o caso em tela, estão voltados somente para a dignidade da pessoa da mulher (ao contrário do entendimento de José Afonso da Silva que agrega os elementos desde a concepção), gestante do feto anencéfalo. A importância da concentração destes elementos na pessoa da mulher se dá pela obrigação que tem de carregar por noves meses um feto que não sobreviverá. Este sofrimento está comparado à tortura psicológica, ferindo o texto constitucional que veda toda e qualquer forma de tortura.
A peça inicial também traz o seu entendimento sobre a legalidade, liberdade e autonomia da vontade. Quanto à legalidade, invoca o entendimento genérico que permeia na sociedade quando se diz que “se a lei não proíbe, então é permitido”, observando que em nenhum momento o ordenamento jurídico proíbe a interrupção da gestação de anencéfalo. Com mesma base, entende que a liberdade de escolha da gestante, bem como sua autonomia de vontade para fazer o que achar correto, não deve ser tolhida, pois não existe legislação para coibir a interrupção da gestação, devendo partir da gestante a sua escolha de interromper ou não a gestação do anencéfalo.
Por fim, o último dos preceitos fundamentais explanados na inicial, é o direito à saúde. A fim de convencer a necessidade de proteção ao direito à saúde da mulher no caso da gestação do anencéfalo, a CNTS invoca o conceito de saúde definido pela Organização Mundial da Saúde, que envolve além da ausência de doença, o bem estar físico, mental e social, violados, por conseguinte, à proibição da interrupção de sua gestação. Estes danos são causados com tamanha intensidade sobre a gestante que seu sofrimento alcança os familiares mais próximos.
Passadas as considerações dos preceitos para fundamentar o ingresso da ação, a CNTS se vale da técnica da interpretação conforme a Constituição para explanar o seu pedido. Nesta direção, a Constituição leva para os artigos 124 a 128 do Código Penal a interpretação que o bem tutelado é a vida do feto e da gestante. Por esta razão, pautando-se, a CNTS, nos escritos e laudos médicos da ausência de vida no feto sem o cérebro, a proteção dos referidos artigos do Código Penal não alcançaria a interrupção da gestação do feto anencéfalo (pois neste não existe a potencialidade de vida humana), não podendo ser sujeito de um dos abortos tipificados nos referidos artigos. Em caráter de urgência, o pedido cautelar teve fundamento na violação dos preceitos fundamentais, representados pela dignidade da pessoa humana, legalidade, liberdade, autonomia da vontade e direito à saúde, todos voltados para a gestante, caracterizando a existência do direito (fumus boni iuris) ao qual a gestante faz jus, bem como a existência do grave perigo (periculum in mora), devido ações corrente pelo país, com pedido de interrupção da gravidez, que estão sujeitas a análise do magistrado pela interpretação do Código Penal, indeferindo o pedido, sujeitando a mulher a manter uma gestação sofrida e torturante. Por fim, o seu pedido principal pretende fazer valer a interpretação dos textos dos artigos 124 a 128 do Código Penal sob a égide da técnica da interpretação conforme a Constituição, para reconhecer o direito subjetivo da gestante se submeter ao procedimento de interrupção da gravidez do feto anencéfalo sem a necessidade de prévia autorização judicial.
O julgamento da ADPF Nº 54 ocorreu entre os dias 11 e 12 de abril de 2012. O Supremo Tribunal Federal decidiu, por 8 (oito) votos a 2 (dois), pela legitimação da interrupção da gestação de feto anencéfalo se for a vontade da mulher. O advogado da CNTS, Dr. Luís Roberto Barroso, postou em seu site, logo após o julgamento, no dia 14 de abril de 2012, os seus argumentos utilizados para o sucesso do pedido:
Não se trata de aborto ou, ainda que fosse, estaria fora da incidência do Código Penal, dentre outras razões, por força do princípio da dignidade da pessoa humana. Em memorial distribuído na véspera, e na sustentação oral, acrescentei o argumento da autonomia reprodutiva da mulher. Presentes determinadas circunstâncias, o Estado não tem o direito de obrigar a mulher a levar a gestação a termo. O processo foi conduzido com o apoio e consultoria do ANIS – Instituto de Bioética, Gênero e Direitos Humanos e, particularmente, da Professora Debora Diniz. (BARROSO, 2012).
O raciocínio do Dr. Barroso demonstra o atraso do ordenamento jurídico em relação aos acontecimentos que ocorrem na sociedade. Acontecimentos, estes, provenientes da evolução tecnológica do campo da medicina e que a seara jurídica – por sua função reguladora do comportamento dos indivíduos, deveria tomar ciência, absorver e deliberar sobre, para proporcionar ao meio social o devido regramento conforme o caso concreto. Para ratificar tal entendimento, basta observar que a autonomia reprodutiva da mulher, tratada pelo Dr. Barroso, foi tema discutido em 1968 – tendo reconhecimento como Direitos Humanos, conforme foi explanado ao iniciar o capítulo 2 (Início da vida) deste trabalho, ficando o positivo jurídico brasileiro num atraso de 44 anos.
Importante percorrer os escritos dos votos dos ministros que julgaram a ADPF Nº 54 a fim de extrair a essência que levou ao resultado final, e observar se o ordenamento jurídico brasileiro está tendencioso a uma aproximação mais nutrida com a realidade social proporcionada com a evolução das Ciências da Saúde.
Neste passo, segue-se o relator da ADPF nº 54, o ministro Marco Aurélio, que foi a favor da interrupção de gravidez de feto anencéfalo. O ministro considerou procedente o pedido da CNTS para caracterizar a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal Brasileiro, que mesmo datado de época com outros conceitos no meio social e de tecnologia médica que não possibilitou a detecção da anomalia antes do seu nascimento, mesmo assim, não haveria aplicabilidade da interrupção da gestação, no referido Código, para o caso do anencéfalo. Suas considerações sustentaram que a vida do feto, sem possibilidades de sobrevivência, não deve prevalecer sobre as garantias constitucionais da dignidade da pessoa humana, da saúde e da integridade física, psicológica e moral da gestante. Em sua análise, Marco Aurélio relata que é defeso ao Estado a imposição de uma gravidez em que o resultado sempre será a morte do feto. Desta forma, conclui Marco Aurélio a votar pela liberdade de escolha da mulher em manter ou não a gravidez.
Ainda conforme o entendimento do ministro Marco Aurélio, fez saber que não é o caso de uma descriminalização do aborto, vez que a proteção auferida pelo texto do Código Penal tutela o ser com potencial de vida, o que não ocorre com o anencéfalo. Em conclusão, conforme o ministro, não há que proteger um direito à vida, pois, trata-se de um natimorto.
A ministra Rosa Weber andou sobre os passos do ministro Marco Aurélio. Julgou procedente a ação e também entendeu que a interrupção de gestação do feto anencéfalo não cabe no Código Penal pelo mesmo discernimento que o referido código trata da vida humana em potencial, o que não ocorre com o anencéfalo. No mesmo norte do ministro Marco Aurélio, defendeu a liberdade de escolha da gestante. Neste ponto, também existiu o entendimento para a proteção da integridade física e psicológica da gestante tutelada pela garantia dos direitos fundamentais da Constituição Federal.
O ministro Joaquim Barbosa os acompanhou votando pela procedência da ação. Em seu voto, Barbosa entendeu que a interrupção da gestação do feto anencéfalo não fere o princípio da dignidade da pessoa humana. O ato serve para proteger a saúde física e psíquica da mulher, uma vez que não há possibilidade de sobrevivência do feto após o seu nascimento. O ministro também defendeu a liberdade de escolha da mulher em realizar o procedimento, confiando em suas convicções morais e religiosas.
O ministro Luiz Fux também entendeu pela autorização da interrupção da gravidez do feto anencéfalo e se pauta na proteção constitucional contra a tortura. Fux, também tem seu entendimento sobre a preservação da integridade física e psicológica da gestante. O ministro amplia sua análise e observa que existe no caso do anencefálico uma tragédia humana. No seu entender, a mulher não deve ser levada ao banco dos réus por algo o qual não tem culpa alguma. O Estado, segundo o ministro, deveria prestar todo apoio necessário motivado por meio de ações sociais junto à comunidade.
A ministra Cármen Lúcia também entendeu que no ato da interrupção deste tipo de gravidez não há caracterização de um crime e vota a favor da interrupção da gravidez do feto anencéfalo para proteger a saúde psicológica da mulher. Seu voto se concentrou no entendimento que o Supremo Tribunal Federal estava ali cumprindo o seu papel para dar uma resposta à sociedade e não para discutir a interpretação do texto da lei penal. A deliberação, segundo a ministra, se deu para determinar a possibilidade jurídica do profissional médico levar ao conhecimento da gestante as consequências de se avançar com a gravidez do feto anencéfalo, ajudando-a a decidir sobre a continuidade ou não da gestação. A sua decisão também deveria alcançar o entendimento do pai e da família, que juntos sofrem a dor pelo simples fato da existência da anomalia. A ministra também salientou que na maioria dos casos a mulher não procura informações sobre a possibilidade de interromper a gestação, por medo de ser punida, levando a termo, uma gestação dolorosa e traumática para a sua saúde psicológica.
O ministro Ricardo Lewandowski votou pela improcedência do pedido da CNTS. Seu entendimento adentrou pela não legitimidade do STF em agir de forma positiva ao apreciar o pedido, cabendo ao STF exercer a função legislativa negativa, analisando apenas os casos de contrariedade com a Constituição Federal. Ainda segundo o ministro, houve usurpação do poder constitucionalmente atribuído ao Congresso Nacional. Que a decisão favorável a interrupção da gestação de feto anencefálico poderia ocasionar insegurança jurídica, abrindo um leque para incontáveis outros casos de anomalia que poderiam ser abraçadas pela decisão. Por outro ponto de vista, ainda segundo o ministro, a decisão também não pode ser favorável devido a existência de diversos outros dispositivos legais que protegem a vida intrauterina, destacando-se o Código Civil em seu artigo segundo.
O ministro Ayres Britto decidiu por autorizar a interrupção da gravidez, acompanhando o ministro Luiz Fux, entendendo que o avanço desta gravidez é um sofrimento e uma tortura para a mulher, devendo-se primar a sua integridade física e psicológica. Britto também entende que a gravidez é para a vida e não para a morte, como no caso do anencéfalo em que a mãe já sabe que o filho irá morrer. O ministro vota pela autorização da interrupção como opção de escolha da mulher.
O ministro Gilmar Mendes votou a favor da procedência do pedido da CNTS. Mendes diverge dos demais que votaram a favor, ao entender que a interrupção da gestação de feto anencéfalo é uma hipótese de aborto, no entanto, deve ser interpretada como excludente de ilicitude. Sua análise também recaiu sobre o fato que este tipo de gestação causa dano à saúde da mulher. O ministro também observou a impossibilidade do legislador, à época do Código Penal, prever tal anomalia para tipificá-la em seu texto, trazendo à tona o presente caso devido aos avanços tecnológicos no campo da saúde que hoje revelam com bastante rapidez e simplicidade o diagnóstico da anencefalia. O ministro salientou o dever do Estado de promover a prevenção da anomalia e não apenas “aparecer” diante da sociedade como um ente punidor.
O ministro Celso de Mello entendeu pela procedência da ADPF Nº 54, salientando que a interrupção da gestação de anencéfalo é motivo terapêutico para proteger a saúde física e psicológica da mulher. Alertou também para a importância do julgamento ao tratar do início e fim da vida humana, lembrando que a constituição não determina o seu marco inicial. Desta forma, optou como base que o fim da vida se dá pela morte cerebral e no caso do feto anencéfalo, não há que falar em vida pela ausência do seu cérebro. O ministro também enfatizou que o julgado não trata de legalização do aborto, mas apenas da interrupção terapêutica da gestação e da livre escolha da mulher de continuar o avanço deste tipo de gestação.
Por fim, o voto do ministro Cezar Peluso juntou-se com o do ministro Ricardo Lewandowski ao votar pela improcedência do pedido da ADPF Nº 54. No entanto, em sua análise, Peluso partiu para outro norte defendendo que existe a vida no feto anencéfalo e esta deve ser protegida. Seu entendimento envolve que o aborto é a eliminação da vida, independentemente da expectativa de sua viabilidade. Desta forma, a prática do aborto estaria ceifando uma vida em formação e que tal ato está vedado pelos textos legais.
Peluso também analisou a competência do STF julgando como legislador positivo. Neste entendimento, acompanha o ministro Ricardo Lewandowski na assertiva de que compete ao STF somente a interpretação de lei contrária a Constituição Federal. O seu entendimento é de que a inércia do legislador deu causa a provocação da sociedade para obter respostas à demanda dos casos da interrupção de gestação de feto anencéfalo.
O ministro Dias Toffoli, por seu valimento na ADPF enquanto Advogado-Geral da União, não participou do julgamento da ADPF Nº 54.
Após este resumo dos votos dos ministros, demonstra-se forçoso o resultado final da ADPF Nº 54 ao autorizar a interrupção da gestação do feto anencéfalo sem a necessidade de autorização judicial. É que a urgência da sociedade para uma resposta e a pressão exercida pela população jurídica para uma atualização do sistema judiciário positivo aos casos concretos, parece ter deixado o STF sem saída, senão a exercer função atípica de legislar. Nas observações dos ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso – os únicos que votaram contra a procedência da ADPF Nº 54, houve uma usurpação do poder atribuído ao Congresso Nacional. Ao STF compete apenas a interpretação da lei quando contrária à Constituição Federal, devendo exercer função legislativa negativa. Em suma, no entendimento dos ministros, o STF não tem competência para legislar, cabendo esta função ao Congresso Nacional.
Trocando o resultado da ADPF Nº 54 em números, todos os votos que foram a favor da sua procedência, teve o entendimento da não aplicação positivada dos textos dos artigos 124 a 128 do Código Penal para o caso da interrupção da gestação de feto anencéfalo, autenticando a necessidade da proteção à saúde física e psicológica da mulher (os ministros Luiz Fux e Ayres Britto, foram mais longe e levaram o sofrimento da mulher à similitude da tortura, defesa pela Constituição Federal), fazendo jus à dignidade da pessoa humana. Também houve maioria para a mulher ter a liberdade de escolha pelo procedimento da interrupção da gravidez do feto anencéfalo, ratificando os direitos reprodutivos reconhecidos desde 1968, na Conferência Internacional de Direitos Humanos, celebrada em Teerã – conforme foi explanado ao iniciar o capítulo 2 (Início da vida). Numa terceira observação, também foi maioria o entendimento que não há crime na interrupção da gestação do feto anencéfalo, pois não se trata de uma vida humana em potencial, não ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana.
Estas três assertivas elencadas pelos ministros ao julgar a ADPF nº 54, demonstra claro estreitamento da Ciência Jurídica com as Ciências da Saúde. Esta atração das duas grandes áreas demonstra a ignorância jurídica do Direito aos casos concretos da contemporaneidade, se permitindo ser invadido pela evolução médica, para validar uma ética da qual a sociedade é credora. Neste norte, ao optar pela autonomia da mulher escolher o procedimento para realizar a interrupção da gravidez, o regramento jurídico brasileiro saiu do atraso de 44 anos neste quesito, se atualizou, mostrando para a sociedade a sua presença em seu meio.
O ministro Gilmar Mendes, apesar de votar pela procedência do pedido da ADPF nº 54, acompanhou os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (que votaram contra a ADPF nº 54) apenas no entendimento que existe uma vida a ser protegida naquele feto anencéfalo e que a interrupção do seu desenvolvimento é caso típico de aborto. O ministro observa que mesmo com a ausência do cérebro do feto existe ali uma vida humana, afinal, se morre é por que esteve vivo. Sua análise muda de direção e diverge de todo o colegiado quando entende que o caso deve ser tratado como uma excludente de ilicitude, não apenando a gestante que vier a optar pela interrupção da gravidez. Mendes acrescenta e acompanha o ministro Luiz Fux, na ideia que o Estado deve promover ações sociais junto à comunidade para evitar a anomalia.
Diante destas explanações dos votos ministros, se vê que a máquina jurídica neste caso específico da interrupção da gestação do feto anencéfalo, somente se movimentou com a pressão da sociedade ao clamar por uma resposta diante dos novos entendimentos antes trazidos pela ciência médica.
Assim, fica ratificado o entendimento trazido pelos doutrinadores que explanaram sobre a comunicação do Direito com as Ciências da Saúde. O Direito precisa do Biodireito para se atualizar e conhecer os novos casos concretos que levará a uma amplitude de direitos já existentes e à criação de novos direitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento tecnológico levou as Ciências da Saúde para um patamar de evolução tamanha, que a aplicação médica tem mudado continuamente a realidade das pessoas. O ordenamento jurídico não tem acompanhado esta progressão, ficando os textos positivados obsoletos para o caso concreto, levando a sociedade a exigir respostas do judiciário. Desta forma, o Supremo Tribunal Federal no caso específico da interrupção da gestação do feto anencéfalo, mesmo fora de sua competência originária, devido a urgência e pressão da sociedade por intermédio da categoria dos profissionais da saúde, votou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.54, na qual o objetivo foi levar faculdade à gestante de escolher pelo procedimento da interrupção da gestação do feto anencéfalo sem caracterizar o crime de aborto, em prol da sua saúde física e psicológica, protegida pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Com base no estudo apresentado, conclui-se que existe a necessidade urgente da atualização interpretativa e literal dos textos de lei, para o judiciário acompanhar o desenvolvimento acelerado da sociedade e não acontecer um rompimento da segurança jurídica. A sociedade tem conhecimento da defasagem do Direito e tem se mostrado capaz de buscar o reconhecimento dos seus novos direitos. A doutrina jurídica e da saúde tem alertado para a necessidade desta nova estruturação e das consequências que podem ocorrer se o legislador continuar inerte diante das novidades do caso concreto.
Assim, o Biodireito tem aparecido como a ferramenta ideal para a efetiva atualização do Direito sobre as novidades de campo em relação ao indivíduo humano, garantindo uma proteção jurídica compatível com o caso concreto e preenchendo a amplitude dos princípios constitucionais.
As informações apresentadas neste trabalho sobre a ADPF Nº 54 comprovam que a ligação entre as Ciências da Saúde e Jurídica por intermédio do Biodireito, foi imprescindível e determinante para os ministros se pautarem sobre os novos entendimentos da gestação do feto anencéfalo e decidirem os seus votos. Resta então, aguardar pelo movimento da máquina jurídica em estreitar o seu relacionamento com a sociedade através dos estudos do Biodireito e, passar a reconhecer direitos e novos direitos na máxima do princípio primaz da Constituição Federal: o da dignidade da pessoa humana.
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