Telefone: 21 27209752
Outros artigos da mesma área
O Processo Penal no Campo das Nulidades - Artigo 7
A Nova Lei de Toxicos Considerações Importantes
A eutanásia e o direito a vida.
Algumas indagações sobre a aplicação do art. 28 do Código de Processo Penal Brasileiro
Afinal, Desviar Sinal de TV a Cabo É Crime?
HOMOFOBIA e o DIREITO PENAL BRASILEIRO
Resumo:
A Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), que entrou recentemente em vigor, tem suscitado grandes debates entre os críticos, que a enxergam como uma retaliação dos parlamentares contra o legítimo combate à corrupção...
Texto enviado ao JurisWay em 11/11/2020.
Indique este texto a seus amigos
NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE (13.869/2019) E QUESTIONAMENTOS SOBRE SUA LEGITIMIDADE
RESUMO
A Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), que entrou recentemente em vigor, tem suscitado grandes debates entre os críticos, que a enxergam como uma retaliação dos parlamentares contra o legítimo combate à corrupção, levado a efeito principalmente no contexto da “Operação Lava Jato”, tanto é que o projeto foi pautado pela Câmara dos Deputados em 14/08/2019 e votado em regime de urgência, sem que houvesse os necessários debates parlamentares. Sob o argumento de que há vícios de várias ordens, associações de classe ligadas ao Ministério Público e ao Poder Judiciário ajuizaram algumas ações diretas de inconstitucionalidade, que ainda aguardam julgamento pelo STF. Para outros, porém, a lei é adequada e veio em boa hora, e simplesmente aperfeiçoou a lei anterior, com o objetivo legítimo de possibilitar a punição dos corriqueiros abusos praticados pelas mais diversas autoridades.A Lei 13.869 foi publicada no dia 5 de setembro de 2019 e entrou em vigor 120 dias após sua publicação, estabelecendo uma série de tipos penais voltados à criminalização de condutas caracterizadas como abuso de autoridade. Revogou expressamente a Lei 4898/1965, que tratava do mesmo assunto, e promoveu alterações pontuais na Lei da Prisão Temporária (Lei 7.960/89), na Lei de Interceptações Telefônicas (Lei 9296/96), no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e no Estatuto da OAB (Lei 8.906/94).Não que um novo diploma normativo acerca da matéria não fosse necessário. Disso não temos a menor dúvida. Se o ordenamento jurídico confere poderes, também deve impor deveres a todos aqueles que atuam em nome do Poder Público. É dizer, se o exercício das prerrogativas conferidas a todos aqueles que agem em nome do Estado deve atender à satisfação do interesse público, jamais ultrapassando os limites estabelecidos pela lei, é de rigor coibir todo e qualquer exercício abusivo do poder por esses agentes públicos.
Palavras-chave: Nova Lei 13.869/2019. Questionamentos. Legitimidade.
1. INTRODUÇÃO
A Lei 13.869 foi publicada no dia 5 de setembro de 2019 e entrou em vigor 120 dias após sua publicação, estabelecendo uma série de tipos penais voltados à criminalização de condutas caracterizadas como abuso de autoridade. Revogou expressamente a Lei 4898/1965, que tratava do mesmo assunto, e promoveu alterações pontuais na Lei da Prisão Temporária (Lei 7.960/89), na Lei de Interceptações Telefônicas (Lei 9296/96), no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e no Estatuto da OAB (Lei 8.906/94).
Os críticos da lei a enxergam como uma retaliação dos parlamentares contra o legítimo combate à corrupção, levado a efeito principalmente no contexto da “Operação Lava Jato”, tanto é que o projeto foi pautado pela Câmara dos Deputados em 14/08/2019 e votado em regime de urgência, sem que houvesse os necessários debates parlamentares. Sob o argumento de que há vícios de várias ordens, associações de classe ligadas ao Ministério Público e ao Poder Judiciário ajuizaram algumas ações diretas de inconstitucionalidade, que ainda aguardam julgamento pelo STF. Para outros, porém, a lei é adequada e veio em boa hora, e simplesmente aperfeiçoou a lei anterior, com o objetivo legítimo de possibilitar a punição dos corriqueiros abusos praticados pelas mais diversas autoridades.
Durante o período de publicação até o início da vigência desta lei, continua em vigor a Lei n. 4.898/65; - como a lei foi publicada no DOU em 5 de setembro de 2019, sua vigência iniciou-se em 3 de janeiro de 2020. Entretanto, em 18 de setembro foi publicado novamente o DOU para fins de retificação da redação constante do art. 13 da Lei, sendo, portanto, seu início de vigência em 16 de janeiro de 2020.
De igual modo, os arts. 3º, 9º, 13, inciso III, 15, parágrafo único, incisos I e II, 16, 20, 30, 32, 38 e 43 foram inicialmente vetados, mas os vetos foram derrubados pelo Congresso Nacional. Por isso, a publicação deles ocorreu no DOU dia 27 de setembro de 2019, sendo portanto 25 de janeiro de 2020 o início de sua vigência.
Apesar de eliminar o problema das penas insuficientes, exagerou em algumas sanções penais, persistiu com crimes vagos demais e criminalizou infrações disciplinares.
Não foram estes, porém, os motivos que certamente levaram Deputados e Senadores a aprovar a Lei n. 13.869/19 em regime de urgência e com votação simbólica, não nominal.1 Inegavelmente, a Lei n. 13.869/19 não foi aprovada pelo Congresso para atender a essa finalidade, mas sim de modo a impedir o exercício das funções dos órgãos de soberania, bem como legitimar uma verdadeira vingança privada contra aqueles que, de alguma forma, se sentirem incomodados pela atuação dos órgãos de persecução penal, fiscal e administrativa.
Contaminado por centenas de casos de corrupção e sob constante alvo da Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário na operação “Lava Jato”, o Congresso Nacional deliberou pela aprovação ‘a toque de caixa’ do novo diploma normativo com a nítida intenção de buscar uma forma de retaliação a esses agentes públicos, visando ao engessamento da atividade-fim de instituições de Estado responsáveis pelo combate à corrupção. Prova disso, aliás, e não parece ser mera coincidência, é que a sessão conjunta do Congresso na qual foram derrubados 18 itens dos 33 vetados pelo Presidente da República ocorreu menos de uma semana depois que o Min. Luís Roberto Barroso determinou o cumprimento de mandados de busca e apreensão no Congresso Nacional contra o então líder do governo, Senador F. B. C. É dentro desse contexto, então, que surge a nova Lei de Abuso de Autoridade, contaminada por diversos tipos penais abertos e indeterminados, de duvidosa constitucionalidade, praticamente transformando o exercício de qualquer função pública, ainda que de maneira legítima, em uma verdadeira atividade de risco.
2. QUESTIONAMENTOS SOBRE A LEGITIMIDADE DA LEI
Os principais questionamentos em torno da Lei de Abuso de Autoridade (LAA) são realizados mediante o exame de sua suposta violação a dois princípios: o princípio da proporcionalidade e o princípio da taxatividade penal.
2.1. Princípio da proporcionalidade e a lei de abuso de autoridade
O princípio da proporcionalidade não possui previsão constitucional expressa, mas é importante ferramenta para a busca de equilíbrio e coerência entre as leis, as decisões judiciais e os atos administrativos. Segundo a doutrina constitucional, a proporcionalidade apresenta os subprincípios da adequação, que diz respeito à análise da idoneidade do meio escolhido pelo legislador para o fim almejado; necessidade, relativamente ao exame de o meio escolhido, apesar de adequado, era realmente o que menos restringia direitos; e a proporcionalidade em sentido estrito, que representa a pesquisa acerca do custo/benefício da medida, observando-se se existe equilíbrio entre meios e fins.
Critica-se a LAA diante da proporcionalidade sob dois pontos principais: não se mostra necessária a utilização do Direito Penal para uma série de comportamentos que não se apresentam muito graves, tal como a omissão na entrega da nota de culpa no prazo de 24 horas ao preso em flagrante (art. 12, parágrafo único, III) ou mesmo a criminalização do interrogatório policial do preso durante o preso durante o períodonoturno, ainda que conte com a concordância deste, quando não for assistido por advogado (art. 18).
Por outro lado, sob o argumento de lesão à proporcionalidade, é criticada a opção do legislador de ter se valido de apenas duas faixas penais: para as condutas que entendeu mais graves, cominou penas de detenção de 1 a 4 anos, e multa; para as menos graves, detenção de 6 meses a 2 anos, e multa. Com isso, para condutas com gravidades bem distintas podem ser contempladas as mesmas penas, como o caso de serem previstas as mesmas penas de detenção de 1 a 4 anos, e multa, tanto para quem adentra clandestinamente em imóvel alheio (art. 22, caput), quanto para quem coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe a entrada (art. 22, par. 1º, I).
2.2. Princípio da taxatividade e lei de abuso de autoridade
A taxatividade é princípio que decorre da legalidade e é dirigido ao legislador, para que ele elabore leis que apresentem conteúdos fechados, com grande densidade normativa, para que sejam de fácil compreensão pelos indivíduos, para que eles possam se orientar de acordo com os comandos normativos. A LAA abusa de expressões abertas, quando usa algumas expressões, tais como: manifesta desconformidade com as hipóteses legais (art. 9º); manifestamente descabida (art. 10); sem justa causa (art. 20); prazo razoável (art. 20, parágrafo único), entre outros.
3. ASPECTOS GERAIS DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE
3.1. Bem jurídico-penal tutelado
O bem jurídico-penal é o interesse protegido pela norma. No caso dos tipos da LAA, protege-se o normal funcionamento da Administração Pública, no que diz respeito à probidade, à fidelidade, ao decoro funcional e à incorruptibilidade, protegendo-se, indiretamente, alguns dos direitos fundamentais de primeira geração, com destaque para o direito à liberdade.
3.2. Tipicidade subjetiva (art. 1º)
Todos os crimes da LAA são dolosos. O dolo exigido é aquele chamado pela doutrina tradicional como dolo específico, também conhecido como elemento subjetivo específico do tipo penal ou, ainda, elemento subjetivo do injusto. Em todos os casos, os tipos exigem uma finalidade específica do autor, caracterizada por prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, o que exprime a ideia de egoísmo ou vaidade.
3.3. Sujeitos ativos (art. 2º)
Os crimes da LAA são crimes próprios, porque demandam dos sujeitos ativos a qualidade de agentes públicos, segundo o conceito amplíssimo do art. 2o. Importante observar, contudo, que particulares podem ser coautores ou partícipes, nos termos do art. 30 do CP.
3.4. Ação penal (art. 3º)
Todos os crimes da LAA desafiam ação penal pública incondicionada, admitindo-se, contudo, o manejo da ação penal privada subsidiária da pública, no prazo de 6 meses, a contar da data em que se escoar o prazo para o oferecimento da denúncia, que é de 5 dias, em se tratando de investigado preso, e de 15 dias, se solto (art. 46 do CPP), a contar do encerramento do inquérito policial.
O manejo da ação penal privada subsidiária da pública não é exclusividade da LAA. Na verdade, trata-se de garantia constitucional (art. 5o, LIX, da Constituição), encontrando previsão no art. 29 do CPP. Mas é fundamental pontuar que ela somente será admitida no caso de inércia do órgão acusatório, não podendo ser oferecida se houver, da parte do Ministério Público, pedido de ulteriores diligências ou mesmo de arquivamento do inquérito policial.
3.5. Efeitos da condenação (art. 4º)
As condenações criminais produzem alguns efeitos extrapenais. No Código Penal, eles estão tratados em seus artigos 91, 91-A e 92. O art. 4o da LAA estabelece três efeitos extrapenais.
O primeiro deles é o efeito de “tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime”. Trata-se de efeito genérico, que decorre automaticamente da condenação, sem necessidade de fundamentação específica, para guardar sintonia com o disposto no art. 91, I, CP, porque a sentença penal condenatória definitiva faz coisa julgada no cível, valendo como título executivo judicial (art. 515, VI, CPC). O juiz criminal também poderá, na sentença, já fixar valor mínimo de indenização, a teor da regra doart. 387, IV, do CPP. A única diferença é que a LAA exige expressamente requerimento do ofendido. Tem-se entendido que esse requerimento dispensa formalidades, mas não pode infringir os princípios do contraditório e da ampla defesa, de maneira que preferencialmente deve preexistir ao oferecimento da denúncia.
Os outros dois efeitos extrapenais efeitos são a inabilitação para o exercício do cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 a 5 anos (inc. II) e a perda do cargo, do mandato ou da função pública (inc. III). Nos termos do parágrafo único, ambos os efeitos são específicos, necessitando de fundamentação específica. Além disso, ambos exigem reincidência específica em qualquer crime de abuso de autoridade. Para os crimes da LAA, portanto, existindo regras específicas, não se aplicam os efeitos do art. 92, I, do CP.
3.6. Penas restritivas de direitos (art. 5º)
Os requisitos para a conversão das penas privativas de liberdade em penas restritivas de direitos são aqueles previstos no art. 44 do CP. A única diferença é que a LAA restringiu as espécies de penas restritivas de direitos para apenas duas: a prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas e a suspensão do exercício do cargo, da função ou do mandato, pelo prazo de 1 a 6 meses, com a perda dos vencimentos e das vantagens. O grande problema dessa limitação do rol é que, em se tratando das penas de prestação de serviços à comunidade, apenas se admite a sua aplicação para penas superiores a 6 meses, nos termos do art. 46 do CP. Portanto, para os casos de aplicação da pena mínima de 6 meses, somente será possível a pena de suspensão do cargo, função ou mandato, que é virtualmente mais gravosa do que a prestação de serviços à comunidade.
3.7. Independência de instâncias (artigos 6º a 8º)
A LAA não foge à regra do Direito Brasileiro: a sanção penal não impede a imposição da sanção extrapenal, não se cogitando de violação a proibição da dupla valoração e punição.
No entanto, essa independência não é absoluta, mas relativa. A sentença penal que reconhece o fato ou a autoria faz coisa julgada no âmbito extrapenal, assim como ocorre com a sentença penal que nega categoricamente a existência do fato, da autoria ou, ainda, reconhece a presença de uma causa excludente da ilicitude (justificante), já que este reconhecimento implica a declaração de que a conduta está em conformidade com o ordenamento jurídico, como um todo. Diferentemente, não faz coisa julgada no cível a sentença penal que absolve o réu por falta de provas, do fato ou da autoria, ou mesmo que reconhece presente uma causa excludente da culpabilidade (dirimente), porque as categorias da culpabilidade (imputabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa) são próprias do Direito Penal.
4. Crimes em espécie
A partir de agora, realizaremos o estudo detalhado de cada um dos tipos penais da LAA, a partir da tipologia de cada e das questões mereçam mais destaque para cada um deles. Os tipos serão identificados apenas pelos números dos artigos, porque nenhum deles possui nomen iuris, sendo desnecessária sua transcrição literal.
4.1. Art. 9º
Tipologia: (a) sujeito ativo: apenas o magistrado, para alguns; para outros, o crime do caput pode ser cometido por qualquer autoridade que decreta medida de privação de liberdade, como o policial militar que prende em flagrante, ou o delegado que lavra o auto de prisão em flagrante; (b) sujeito passivo: é a pessoa com a liberdade restringida e, indiretamente, o Poder Público; (c) objeto material: medida de privação de liberdade; (d) consumação: o delito do caput é material e se consuma com a decretação de medida de privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais, ao passo que a figura do parágrafo único é formal se consuma quando a autoridade judiciária deixa de levar a efeito, dentro de prazo razoável, qualquer dos comportamentos previstos nos incisos I, II e III. A figura do caput admite a tentativa, ao passo que a figura do parágrafo único não a admite, por se tratar de crime omissivo próprio.
Destaques do tipo: (a) a decretação de prisão em desconformidade com a lei deve ser manifesta, o que ocorre, por exemplo, quando se decreta a prisão temporária por delito não compreendido no rol taxativo do art. 1o da Lei 7.960/89, ou quando não há a base formal do art. 313 do CPP para a decretação da prisão preventiva; e (b) as figuras do parágrafo único dialogam com o art. 310 do CPP, que é o berço da audiência de custódia. O prazo razoável ao qual se refere o dispositivo, porém, não pode ser de 24h, porque ele foi suspenso liminarmente pelo Min. Fux, ao apreciar os pedidos formulados nas ADIs 6.298, 6299, 6300 e 6305. O prazo, portanto, deve ser de 48h, em analogia ao disposto no art. 322, parágrafo único, do CPP, que estabelece esse prazo para que o juiz decida a respeito do pedido de concessão de fiança.
4.2. Art. 10
Tipologia: (a) sujeito ativo: apenas o magistrado, para alguns; para outros, delegado e membro do Ministério Público também, porque eles podem decretar acondução coercitiva; (b) sujeito passivo: é a testemunha ou investigado e, indiretamente, o Poder Público; (c) objeto material: a condução coercitiva de testemunha ou investigado; (d) consumação: sendo delito formal, o crime se consuma no momento da decretação da condução coercitiva, tratando-se o cumprimento do ato mero exaurimento do crime. Admite-se a tentativa.
Destaques do tipo: (a) o tipo deixa de fora a condução coercitiva de vítimas e acusados, o que é inexplicável; (b) a condução coercitiva de investigados para o interrogatório é manifestamente descabida (cf. STF, ADIs 395 e 444, j. 14/06/2018), mas é possível que eles sejam conduzidos coercitivamente para outros atos, tais como o reconhecimento pessoal.
4.3. Art. 12
Tipologia: (a) sujeito ativo: autoridade policial; (b) sujeito passivo: é a pessoa que foi presa sem a devida comunicação e, indiretamente, o Poder Público; (c) objeto material: a prisão em flagrante e suas formalidades de decretação, previstas nos artigos 304 e 306 do CPP; (d) consumação: tratando-se de crime omissivo próprio e, naturalmente, delito formal, a consumação ocorre na abstenção daquilo que a norma determinava que o agente fizesse. Não se admite tentativa.
Destaques do tipo: (1) o prazo legal a que se refere o caput é o prazo de 24h, estabelecido pelo art. 306, parágrafo 1º, do CPP; (2) a exigência da entrega da nota de culpa, também no prazo de 24h, decorre do art. 306, parágrafo 2º, do CPP.
Apesar da exigência do art. 12, parágrafo único, inciso III, relativamente à necessidade de a nota de culpa vir acompanhada dos nomes do condutor e testemunhas, há hipóteses legais que dispensam tais formalidades, como ocorre no caso do colaborador na colaboração premiada do artigo 5º, inciso II, da Lei 12.850/2013, como o agente infiltrado, no artigo 14, inciso III, da mesma lei, e com as vítimas e testemunhas que recebem a proteção do Estado.
4.4. Art. 13
Tipologia: (a) sujeito ativo: autoridade que constrange o preso ou detento; (b) sujeito passivo: é a pessoa presa e humilhada e, indiretamente, o Poder Público; (c) objeto material: a humilhação pública de preso ou detento; (d) consumação: tratando-se de crime material, a consumação ocorre quando o agente, após constranger o preso ou detento mediante violência, grave ameaça ou redução da sua capacidade de resistência, consegue com que ele efetivamente se exiba ou tenha o seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública, ou se submeta a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado por lei, ou produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro. Admite-se tentativa.
Destaques do tipo: (a) preso ou detento: a Resolução 43/173, da Assembleia Geral da ONU, de 9 de dezembro de 1988, estabelece que detido é o preso provisório, ao passo que preso é o que cumpre pena definitiva. O Brasil, contudo, não adotou essa classificação; e (b) a única diferença entre o tipo do art. 13, III, e o tipo do art. 1º, I, a, da Lei de Tortura (Lei 9455/97) é que, neste caso, exige-se a produção de sofrimento físico e mental.
4.5. Art. 15
Tipologia: (a) sujeito ativo: autoridade que constrange a pessoa ouvida ou interrogada; (b) sujeito passivo: é a pessoa constrangida a depor ou de se manifestar em seu interrogatório, policial ou judicial e, indiretamente, o Poder Público; (c) objeto material: o depoimento da pessoa que deve guardar sigilo ou o interrogatório da pessoa que tenha invocado o seu direito ao silêncio ou manifestado o desejo de ser assistida por advogado, sem a presença deste; (d) consumação: tratando-se de crime formal, a consumação ocorre com o ato constrangedor, sendo o início do depoimento ou interrogatório mero exaurimento. Admite-se a tentativa.
Destaques do tipo: (a) o caput é norma penal em branco homogênea, necessitando da complementação do art. 207 do CPP; (b) O inciso I do parágrafo único está em harmonia com o princípio da vedação à autoincriminação, que compreende o direito de permanecer calado (art. 5º, LXIII, da CF; e art. 186 do CPP); e (c) o inciso II do parágrafo único não fez qualquer ressalva, de maneira que abarca tanto o interrogatório policial, quanto o interrogatório judicial.
4.6. Art. 16
Tipologia: (a) sujeito ativo: no caso do caput, é o agente que atua na captura, detenção ou prisão da pessoa ou, no caso do parágrafo único, age no ato do seu interrogatório policial; (b) sujeito passivo: é o preso que fica sem conhecer o responsável pela sua captura ou interrogatório e, indiretamente, o Poder Público; (c) objeto material: a identificação do agente público; (d) consumação: tratando-se de crime formal, a consumação ocorre no momento em que o agente deixa de se identificar ou atribui a si falsa identidade. Admite-se a tentativa.
Destaques do tipo: (a) O tipo está em harmonia com o disposto no art. 5º, LXIV, da CF; e (b) trata-se de uma modalidade especial do crime de falsa identidade (art. 307 do CP).
Inexplicavelmente, caput e parágrafo, ao menos aparentemente, têm alcance distintos. O parágrafo único acaba punindo não somente aquele que deixar de se identificar ou se atribuir uma identidade falsa, como também aquele que deixa de informar seu cargo ou função, ou mesmo informa cargo ou função falsa.
Por exemplo: alguém se identifica ao preso como sendo o Delegado de Polícia quando, na realidade, é o escrivão ou o investigador.
Duas são as formas de cometer o abuso: Deixar de se identificar (atuação negativa) e Identificar-se falsamente (atuação positiva).
Observa-se que o nome completo não precisa ser mencionado, bastando um dos sobrenomes ou o nome de guerra, aquele pelo qual o agente público é identificado na instituição.
Na identificação obrigatória e espontânea o tipo penal faz uso das expressões deixar de identificar-se e identificar-se falsamente, indicando a existência de uma obrigação legal imposta aos agentes públicos quando efetuam a prisão de alguém. Não se trata, portanto, de uma mera faculdade, mas sim, de um dever daquele que realiza a prisão.
A fim de não comprometer o êxito da operação, não se pode exigir dos policiais a imediata retirada da balaclava.
Porém, após controlada a situação, devem se apresentar ao preso os policiais responsáveis pelo seu ato de captura, e não todos aqueles que participaram daquela intervenção. Somente estes policiais é quem possuem o dever de fazê-lo.
4.7. Art. 18
Tipologia: (a) sujeito ativo: autoridade que pode presidir o interrogatório policial; (b) sujeito passivo: é o preso e, indiretamente, o Poder Público; (c) objeto material: o interrogatório policial; (d) consumação: tratando-se de crime formal, a consumação ocorre no momento em que, durante o repouso noturno, dá-se início ao interrogatório policial do preso, não sendo o caso de flagrante delito, ou sem o seu consentimento, na presença de seu defensor. Admite-se a tentativa.
Destaques do tipo: (a) para se guardar coerência com a própria lei, o repouso noturno deve ser entendido entre as 21h e 5h, que é justamente o período estabelecido para que não se possa cumprir mandados de busca e apreensão domiciliar, nos termos do art. 22, par. 1o, III, da LAA; (b) a lei não impede os interrogatórios aos finais de semana, de maneira que é possível que os interrogatórios ocorram durante o plantão policial, aos sábados e domingos; e (c) se o interrogatório começou antes das 21h, ele deve ser encerrado e retomado no dia seguinte.
4.8. Art. 19
Tipologia: (a) sujeito ativo: no caput, trata-se do agente que impede ou retarda, injustificadamente, o envio do pleito de preso à autoridade judiciária competente para a apreciação da legalidade de sua prisão ou das circunstâncias de sua custódia; no parágrafo único, sujeito ativo é o magistrado que, ciente do impedimento ou da demora, deixa de tomar as medidas tendentes a saná-lo ou, não sendo competente para decidir sobre a prisão, deixa de enviar o pedido à autoridade que o seja; (b) sujeito passivo: é o preso e, indiretamente, o Poder Público; (c) objeto material: o pleito de preso; (d) consumação: tratando-se de crime formal, a consumação ocorre no momento do impedimento, do retardo, na omissão quanto à tomada de providências ou no envio do pedido. Admite-se a tentativa apenas na modalidade impedir, porque as demais são consubstanciam delitos omissivos próprios.
Destaques do tipo: O tipo está em harmonia com o disposto no art. 41, XIV, da LEP, e com o direito de petição (art. 5º, XXXIV, CF).
4.9. Art. 20
Tipologia: (a) sujeito ativo: no caput, qualquer agente que impeça o direito de o preso entrevistar-se pessoal e reservadamente com o seu advogado; no parágrafo único, sujeito ativo é o magistrado; (b) sujeito passivo: no caput, é o preso; no parágrafo único, o investigado ou o réu, preso ou solto, e seu advogado, além de, indiretamente, o Poder Público; (c) objeto material: a entrevista do investigado ou réu com o seu advogado; (d) consumação: tratando-se de crime formal, a consumação ocorre no momento do impedimento. Admite-se a tentativa.
Destaques do tipo: (a) caput implicou a revogação tácita e parcial do disposto no art. 7º-B do EOAB: o art. 7º-B do EOAB estabelece: Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do art. 7º desta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. Observe-se que o inc. III do art. 7º dispõe, dentre os direitos e prerrogativas, o de comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis; e (b) a figura do parágrafo único está em sintonia com o princípio da ampla defesa, corolário do devido processo legal (art. 5º, LIV, da Constituição).
5. Art. 21
A manutenção indevida de presos na mesma cela ou ambiente inadequado é punida com detenção de 1 a 4 anos e multa.
Art. 21. Manter presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem mantém, na mesma cela, criança ou adolescente na companhia de maior de idade ou em ambiente inadequado, observado o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Na lei de execução penal, o artigo 82 e seus parágrafos trazem regras semelhantes:
Art. 82. Os estabelecimentos penais destinam-se ao condenado, ao submetido à medida de segurança, ao preso provisório e ao egresso.
§ 1° A mulher e o maior de sessenta anos, separadamente, serão recolhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal.
§ 2º - O mesmo conjunto arquitetônico poderá abrigar estabelecimentos de destinação diversa desde que devidamente isolados.
Aparecem como elementos espaciais do tipo a cela ou o espaço de confinamento. Cela abrange o local destinado ao recolhimento dos presos, cautelares ou definitivos. E o que significa espaço de confinamento? Alcança qualquer área ou ambiente não projetado para ocupação contínua do preso, como sítios de triagem, ambiente de custódia nos fóruns, veículos de transporte de presos (caminhão baú) etc.
A Resolução Conjunta nº 1, de 15 de abril de 2014, editada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP e pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação – CNCD/LGBT, estabeleceu os parâmetros de acolhimento de LGBT em privação de liberdade.
Travestis devem ser recolhidos em cela feminina e transexuais deverão ser recolhidos na cela que diga respeito ao seu gênero, a menos que optem em permanecer na cela correspondente ao seu sexo anatômico.
5.1. Violação de domicílio com abuso de autoridade
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena quem, na forma prevista no caput:
I– coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;
II– vetado;
III– cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas).
§ 2º Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre.
Para estabelecer o que se entende por dia e noite há vários critérios que se adota:
Critério físico-astronômico: Dia é o período entre a aurora e o crepúsculo (nascer e pôr-do-sol).
Critério cronológico: Engloba o espaço de tempo entre 6h e 18h.
Critério adotado: A Lei 13.869/19 define como crime o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h ou antes das 5h (adotou o critério cronológico).
Iniciada a diligência durante o dia (ex. 17h), ela poderia se estender até às 22 horas, quando já é noite ou seria necessária a suspensão dos trabalhos?
Eventual suspensão dos trabalhos demandaria que a casa fosse cercada, com rodízio de equipes policiais, e todos os moradores impedidos de sair, gerando o risco de que objetos ilícitos ainda não encontrados fossem destruídos ou ocultados, frustrando a diligência. Portanto, não deve haver solução de descontinuidade nos trabalhos policiais.
5.2. Fraude processual com abuso de autoridade
Art. 23. Inovar artificiosamente, no curso de diligência, de investigação ou de processo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de eximir-se de responsabilidade ou de responsabilizar criminalmente alguém ou agravar-lhe a responsabilidade:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem pratica a conduta com o intuito de:
I - eximir-se de responsabilidade civil ou administrativa por excesso praticado no curso de diligência;
II - omitir dados ou informações ou divulgar dados ou informações incompletos para desviar o curso da investigação, da diligência ou do processo.
Devemos observar que o legislador visa coibir as chamadas provas plantadas e nas modalidades equiparadas, existe a intenção de o agente se livrar de responsabilidade civil ou administrativa (ou ainda desviar o curso da persecução), o que leva à conclusão de que na figura simples a responsabilidade que o autor deseja se eximir é criminal.
O fato de o agente praticar a fraude processual para encobrir crime anterior não afasta a incidência do tipo penal. O direito à não autoincriminação não abrange a possibilidade de alterar a cena do crime e inovar o estado de lugar, coisas ou pessoa, criando artificiosamente outra realidade.
5.3. Constrangimento à funcionário de hospital
Art. 24. Constranger, sob violência ou grave ameaça, funcionário ou empregado de instituição hospitalar pública ou privada a admitir para tratamento pessoa cujo óbito já tenha ocorrido, com o fim de alterar local ou momento de crime, prejudicando sua apuração:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Como exemplo pode ser citado a cena de falso confronto policial. O policial busca alterar o local do crime ou até mesmo o momento da morte, prejudicando a apuração.
Difícil saber onde o fato realmente ocorreu se o corpo for levado ao hospital. O trabalho pericial fica muito prejudicado, a indicar que o local do crime não foi preservado (arts. 6º, I e 169 do CPP).
5.4. Obtenção ou utilização de prova ilícita
Art. 25. Proceder àobtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, tendo prévio conhecimento de sua ilicitude.
No caput, o legislador pune a conduta daquele que produz a prova ilícita, ao passo que no parágrafo único incrimina aquele que se utiliza de tal prova, com prévio conhecimento de sua ilicitude.
No art. 25, caput, Somente pode ser praticado dolosamente, acrescido do especial fim de agir anunciado no §1º. do art. 1º (prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal).
No parágrafo único do Art. 25, também o agente é punido a título de dolo, mas não segue a regra geral.
O legislador preferiu restringir ainda mais o alcance do tipo, exigindo do agente finalidade única: prejudicar o investigado ou fiscalizado.
Considerando que não se admite o chamado crime de hermenêutica (art. 1º, §2º), não há que se falar em crime de abuso de autoridade na conduta do agente público que faz uso de prova por entender, com base na legislação ou na jurisprudência e doutrina dominantes, que não houve qualquer ilicitude na sua obtenção. É a prova baseada em entendimento dominante da doutrina e da jurisprudência.
Pelo princípio da especialidade, O art. 25 da Lei de Abuso de Autoridade pode ceder espaço para outros crimes previstos em diplomas mais específicos, como é o caso da obtenção de prova em interceptação telefônica realizada sem autorização judicial (art. 10 da Lei nº 9.296/96.
5.5. Instauração ou requisição de investigação sem indícios
Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, àfalta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.
Identificada eventual requisição infundada recebida do MP, deverá o delegado devolver fundamentadamente o expediente para reapreciação do requisitante, que, se insistir, poderá incorrer no crime de Abuso de Autoridade.
Para a configuração do delito é necessária a absoluta inexistência de qualquer indício. Inexistindo indícios razoáveis para a investigação formal, é sempre recomendável lançar mão de investigações preliminares, como é o caso da VPI.
A propósito desse tema, foi aprovada a Súmula nº 10 do Seminário daPolícia Judiciária e a Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), realizado na Academia de Políciade São Paulo no dia 19/11/2019, abaixo transcrita:
“Quando a notícia de fato não viabilizar instauração de procedimento investigatório, oDelegado de Políciaresponsáveldeterminaráa verificaçãoda procedência das informações a título de investigação preliminar sumária, em atenção ao artigo 5º, § 3º, do CPP, sem prejuízo de ulterior acautelamento fundamentado enquanto não obtidoselementos indiciários que denotem justa causa para deflagrar o procedimento legal cabível”.
Quanto a matéria jornalística não haverá crime se a investigação instaurada teve como origem uma matéria jornalística (o tipo penal emprega a expressão “à falta de qualquer indício”).
A evolução de uma bem sucedida persecução penal (desde sua primeira fase policial até sua segunda etapa judicial) se dá pela instauração do inquérito policial, passando pelo oferecimento da acusação e chegando à condenação.
Ocorre de maneira gradual conforme os standards probatórios são alcançados, e se avança de um juízo de possibilidade (obtido com indícios mínimos) para um juízo de probabilidade (amparado em indícios suficientes), atingindo, por fim, a um juízo de certeza (calcado em provas robustas).
5.6. Divulgação ilegal de gravação
Art. 28. Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
A Resolução n° 59/2008, do CNJ, disciplina as rotinas quanto ao sigilo a ser observado na Lei n° 9.296/1996, no que se refere a transmissão e preservação de dados obtidos por meio dessa diligência. Em seu art. 17, determina que: “não será permitido ao magistrado e ao servidor fornecer quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão de comunicação social, de elementos contidos em processos ou inquéritos sigilosos, sob pena de responsabilização nos termos da legislação pertinente”.
Deve-se observar que não se ajustava a qualquer das condutas do art. 10 da Lei de Interceptações Telefônicas aquela em que o agente divulgava gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado.
O crime pressupõe interceptação legal (legítima e lícita), havendo abuso no manuseio do conteúdo obtido com a medida.
A interceptação telefônica ilícita, é o crime do art. 10, Lei 9.296/96. A captação ambiental ilícita é o crime do art. 10-A, Lei 9.296/96. A divulgação de Divulgar trecho de interceptação telefônica lícita, é o crime do art. 28 da Lei 13.869/19 (abuso de autoridade). Divulgar trecho de interceptação ambiental lícita, é o crime do art. 10-A, § 2º, da Lei 9.296/96.
5.7. Falsa informação sobre procedimento
Art. 29. Prestar informação falsa sobre procedimento judicial, policial, fiscal ou administrativo com o fim de prejudicar interesse de investigado:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Como modalidade especial de falsidade ideológica podemos dar o seguinte exemplo: cometerá esse crime de abuso de autoridade o delegado de polícia que, na qualidade de autoridade coatora, presta informações falsas em sede de um habeas corpus com o fim de prejudicar interesse de investigado.
Os crimes tipificados na Lei de Abuso de Autoridade são punidos a título de dolo, demandando, em regra, a finalidade do §1º. do art. 1º (prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal).
Contudo, no crime em exame, o legislador optou por restringir ainda mais o alcance do tipo, exigindo do agente finalidade única: prejudicar interesse de investigado.
Agindo com finalidade diversa, por exemplo, beneficiar o indigitado, pode responder por outro delito, como prevaricação (art. 319 do CP), a depender das circunstâncias do caso concreto.
5.8. Procrastinação injustificada de informação
Art. 31. Estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, inexistindo prazo para execução ou conclusão de procedimento, o estende de forma imotivada, procrastinando-o em prejuízo do investigado ou do fiscalizado.
As condutas do caput e do parágrafo único não se confundem.
No caput o legislador pune o comportamento do agente público que, de forma injustificada, estende a investigação, procrastinando-a em desfavor do investigado ou fiscalizado.
Estender aqui tem o sentido de extrapolar, ultrapassar o prazo legalmente estabelecido, a exemplo daquele estipulado para a conclusão do inquérito policial.
No parágrafo único, pune-se a mesma conduta (figura equiparada), porém, envolve procedimentos que não possuem prazo legal para sua conclusão, como ocorre, por exemplo, com as verificações de procedência de informações (VPI).
Caso o agente público prorrogue a apuração indicando os motivos, inexiste delito, ainda que não se concorde com tal fundamentação.
ex. falta de recursos humanos e materiais para a conclusão;
ex. a complexidade do caso investigado (grande número de agentes ou vítimas), que demande a realização de inúmeras diligências (colheita de prova pericial, testemunhal, etc.) podem justificar um atraso na ultimação do feito.
ex. dificuldade para a realização de determinado exame pericial, o que pode prologar demasiadamente uma investigação.
6. Duração razoável
O excesso de prazo na instrução do procedimento investigatório não pode resultar de simples operação aritmética, devendo-se considerar a complexidade do feito, atos procrastinatórios muitas vezes atribuídos à defesa e número de pessoas envolvidas na apuração, fatores que, analisados em conjunto ou separadamente, indicam ser, ou não, razoável o prazo para o seu encerramento.
7. Cotas ministeriais de natureza protelatória
Com a previsão desse tipo penal, os membros do Ministério Público precisam ter cautela: se há remessa injustificada da investigação para a delegacia, procrastinando-a, podem ser responsabilizados pelo art. 31 da nova Lei de Abuso de Autoridade; se não se cercam de todos os lados para ofertar a peça inicial (justa causa fundamentada), podem incidir no crime previsto no art. 30 desta lei.
Como se percebe, diversos tipos penais possuem nítido caráter intimidativo e pode surtir efeitos em autoridades públicas investidas na função investigatória (Polícia e MP), padecendo de inconstitucionalidade e inconvencionalidade.
A obrigação de proteger os direitos humanos, para ser efetiva, ocorre mediante a concessão de garantias de que as autoridades atuarão sem retaliações indevidas.
8. Negativa de acesso a investigação
Art. 32. Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Duas são as modalidades de condutas típicas anunciadas pelo art. 32:
a) negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos;
b) impedir a obtenção de cópias.
Deve-se atentar para o fato de ausência de crime se houver negativa de acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível.
A matéria já estava disciplinada na Súmula Vinculante 14:
“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
O alcance da Súmula (e da incriminação do art. 32) refere-se ao direito assegurado ao interessado (bem como ao seu defensor ou advogado) de acesso aos elementos constantes em procedimento investigatório que lhe digam respeito e que já se encontrem documentados nos autos, não abrangendo, por óbvio, as informações concernentes à decretação e à realização das diligências investigatórias pendentes, em especial as que digam respeito a terceiros eventualmente envolvidos.
9. Crime de exigência ilegal de informação ou cumprimento de obrigação
Art. 33. Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.
O parágrafo único do art. 33 criminaliza o comportamento do agente estatal que, fora de serviço, exibe sua cédula de identidade funcional para, sem efetuar o devido pagamento, ingressar em algum espetáculo, show, cinema (obtenção de vantagem ou privilégio indevido), ou até mesmo para isentar-se de uma autuação de trânsito (eximir-se de obrigação legal). Trata-se da conduta popularmente conhecida como “carteirada”.
A crítica é que conquanto imoral e antiética, não deveria o Direito Penal se preocupar com comportamentos que são suficientemente inibidos ou reprimidos por outros ramos do ordenamento jurídico. “A lei de improbidade, por exemplo, prevê sanções até mais rigorosas para a carteirada, como a perda do cargo. A punição extrapenal, portanto, parece eficiente” (Sanches e Greco).
9.1. Aceite de uma cortesia não configura abuso de autoridade
Tratando-se de ato voluntário de quem a oferta, ou seja, livre de qualquer constrangimento ou coação, não há que se falar em crime de abuso de autoridade por parte do agente público que aceita um convite ou um ingresso para determinado espetáculo, ou, ainda, uma refeição em determinado estabelecimento.
Quanto a esse tema, foi aprovada a Súmula nº 8 do Seminário Polícia Judiciária e a Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), realizado na Academia de Polícia de São Paulo no dia 19/11/2019, abaixo transcrita:
“A identificação formal de agente estatal quando as circunstâncias exigirem assim como a resposta cortês a ato voluntário e gratuito de particular motivado por respeito, educação ou gentileza não configura abuso de autoridade por ausência de dolo na conduta”.
10. Decretação excessiva de indisponibilidade de ativos
Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Há dois momentos na execução do crime:
1º.) O magistrado decreta, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte.
2º.) O magistrado deixa de corrigir ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida.
Logo, não é a decretação da indisponibilidade em valor excessivo que, por si só, caracteriza o crime, mas a recusa em corrigir o abuso diante do alerta do executado.
11. Morosidade demasiada injustificada no exame de processo
Art. 37. Demorar demasiada e injustificadamente no exame de processo de que tenha requerido vista em órgão colegiado, com o intuito de procrastinar seu andamento ou retardar o julgamento:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
O tipo penal alcança não apenas os membros de órgão colegiado judicial, mas também aqueles que integram órgãos colegiados administrativos e políticos (ex. Tribunal de Contas, Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência, Conselho de Contribuintes e Recursos Fiscais).
Não comete crime de abuso de autoridade o advogado que pede vistas de processo e procrastina sua devolução, porquanto não ostenta a qualidade de agente público.
12. Antecipação de atribuição de culpa por meio de comunicação
Art. 38. Antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Atenção para o fato de o tipo não impedir a publicidade da condição de suspeito da pessoa objeto da investigação. Aliás, essa divulgação, não raras vezes, aparece como necessária para a apuração de determinadas infrações, podendo contar com a colaboração dos membros da comunidade em que ocorreu a infração.
Aliás, foi aprovada a Súmula nº 9 do Seminário Polícia Judiciária e a Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), realizado na Academia de Polícia de São Paulo no dia 19/11/2019, abaixo transcrita:
“A exposição dos fundamentos do juízo de probabilidade voltado a indicar autoria, materialidade e circunstâncias do fato apurado, inerente à decisão de indiciamento, ato privativo do Delegado de Polícia não exprime prévia atribuição de culpa própria da acusação formal, porquanto decorrente de exigência legal e dos postulados da publicidade e da motivação dos atos estatais”.
13. CONCLUSÃO
Uma lei dessa envergadura deveria ter passado por um debate intenso junto à comunidade jurídica e à sociedade como um todo.
Com a utilização de expressões vagas e imprecisas, a lei parece ter malferido o princípio da tipicidade dos delitos (art. 5º, XXXIX da CF) e aberto espaço para a criminalização da hermenêutica.
O legislador escolheu alvos preferenciais para sofrer incidência dos tipos penais abertos, o que faz surgir a suspeita do propósito de retaliação na edição da lei (“abuso do poder de legislar” – princípio da impessoalidade).
O princípio da intervenção mínima ficou sob risco, na medida em que a lei transformou certas infrações disciplinares dos agentes públicos em crimes.
A eficiência do Estado está diretamente relacionada à credibilidade, honestidade e probidade de seus agentes, pois a atuação do corpo funcional reflete-se na coletividade, influenciando decididamente na formação ético-moral e política dos cidadãos, especialmente no conceito que fazem da organização estatal. Daí a importância de se coibir todo e qualquer desvio funcional, enfim, de toda e qualquer conduta que, a pretexto de atender ao interesse público, visa à satisfação de interesse pessoal do agente público, importando em evidente desvio de finalidade.
Deve se buscar, portanto, nesse ambiente criminal extremamente polarizado em que o Direito Penal e o Processo Penal infelizmente caminham nos dias de hoje, equilíbrio e sensatez na interpretação dos diversos dispositivos legais constantes da nova Lei de Abuso de Autoridade, seja para evitar corporativismos na sua exegese, tornando-a absolutamente estéril, seja para não se permitir que tipos penais abertos e indeterminados sejam utilizados como instrumentos de constrangimento ilegal contra agentes públicos no exercício regular de suas funções, permitindo, assim, que o revanchismo do Congresso Nacional consubstanciado na criação de um instrumento hiperbólico atinja seu desiderato.
Por isso que, porque integram o tipo, os elementos subjetivos especiais devem ser objeto de prova, para a adequada caracterização do crime, o que significa, dada a intangibilidade dessas circunstâncias, que sua análise é feita a partir dos fatos objetivos externos. Embora as expressões utilizadas pela Lei – “prejudicar alguém, beneficiar alguém, mero capricho e satisfação pessoal”, sejam, indiscutivelmente, boas locuções que expressam a ideia central do abuso funcional, no mais das vezes, a demonstração destes estados anímicos específicos, dada a impenetrabilidade da mente do agente, fator que levou à normatização e objetivação do dolo, principalmente em razão da adoção da teoria finalista da ação, deve ser revelada por meio de elementos externos, o que na maioria das vezes permite que sobre eles recaia uma variação interpretativa e valorativa.
Enfim, partindo da premissa de que a Lei n. 13.869/19 não criminaliza nenhuma conduta legítima por parte de um agente público, mas tão somente aquelas em que este excede os limites de sua competência ou quando pratica um ato com finalidade diversa daquela que decorre explícita ou implicitamente da lei, assim agindo com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, não há por que se temer a nova Lei de Abuso de Autoridade, muito menos permitir que sua entrada em vigor sirva como obstáculo ao escorreito exercício de toda e qualquer função pública.
REFERÊNCIAS
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 12. ed. Revan, 2011.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. v. 1. 23. ed. Saraiva, 2017.
BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral. v. 1. 3. ed. Atlas, 2017.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral (arts. 1º ao 120). 6. ed. Salvador: JusPODIVM, 2018.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: a nova parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
GALVÃO, Fernando. Direito Penal: Parte Geral. 5. ed. Saraiva, 2013.
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – parte geral. v. I. 20. ed. Impetus, 2018.
GRECO, Rogério; CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de autoridade: lei 13.869/2019 comentada artigo por artigo. 2a ed. Salvador: JusPodivm, 2020.
GRECO, Rogério; CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de autoridade: lei 13.869/2019 comentada artigo por artigo. 2a ed. Salvador: JusPodivm, 2020.
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958.
JESUS, Damásio de. Direito Penal – Parte Geral. v. 1. 36. ed. Saraiva, 2015.
LIMA, Renato Brasileiro de. Nova Lei de Abuso de Autoridade: Salvador: JusPodivm, 2020.
MARQUES, Gabriela; MARQUES, Ivan. A nova lei de abuso de autoridade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral. v. 1. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.
MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato. Manual de Direito Penal – parte geral. v. 1. 32. ed. Atlas, 2016.
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. São Paulo, Saraiva, 1963-7.
PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de Direito Penal – parte geral. 2. ed. Atlas, 2016.
PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal: parte geral. v. 1. 2. ed. 2017.
REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal - parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
RICARDO, Gueiros. Efeitos da Lei contra abuso de autoridade serão medidos na prática. 2020. Disponível em: https://www.agazeta.com.br/es/politica/efeitos-da-lei-contra-abuso-de-autoridade-serao-medidos-na-pratica-0819> Acesso em: 15 set. 2020
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
SOUZA, Renee do Ó. Comentários à Nova Lei de Abuso de Autoridade: Salvador: JusPodivm, 2020.
Nenhum comentário cadastrado.
Somente usuários cadastrados podem avaliar o conteúdo do JurisWay. | |