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REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA HETERÓLOGA: o Direito de Anonimato do Doador versus Direito ao Reconhecimento Genético


Autoria:

Pablo Pereira


Policial Militar, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito IMES/FUMESC, Pós-Graduado em Direito Processual e Práticas Jurídicas pela Faculdade de Direito IMES/FUMESC, Pós-Graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Paulista de Direito (EPD).

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Resumo:

O direito ao anonimato do doador de material genético para a prática de reprodução humana assistida heteróloga sobressai ao direito ao reconhecimento genético da prole eventual? Não, exceto em casos especiais, como problemas de saúde.

Texto enviado ao JurisWay em 05/07/2016.

Última edição/atualização em 07/07/2016.



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Autores: Mário Tavares Oliveira Neto, Michel Bruno Aguiar Fernandes, Pablo Pereira, Raphaela Paiva Carvalho, Rodolfo Serafini Costa.

 

 

INTRODUÇÃO

 

Vários tipos de famílias surgiram nos últimos anos e muitas dessas famílias não são capazes de se reproduzirem, recorrendo-se às técnicas de reprodução assistida. O desenvolvimento da tecnologia trouxe a possibilidade dessa técnica. A evolução da sociedade, por sua vez, aumentou a procura por esse método de reprodução, devendo o direito acompanhar essa evolução, principalmente por gerir a sociedade.

Quando não há a possibilidade de procriação por meios naturais, os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana garantem às famílias a possibilidade de utilizarem métodos biomédicos para tal fim.

O Governo Federal publicou no site "Portal Brasil" em 17 de abril de 2012 que entre 15% e 30% dos casais brasileiros são incapazes de reproduzirem. Cerca de um terço desses casais que sofrem de alguma condição que os impede de ter filhos naturalmente acabam tendo de recorrer às técnicas de reprodução assistida. Por ano, 90 mil casais procuram ajuda, aproximadamente, mas não há clínicas e hospitais suficientes, sendo que cerca de 70 mil casos não são atendidos (PORTAL BRASIL, 2012). Apesar desses números, o direito brasileiro carece de normatização sobre a reprodução humana assistida, apenas havendo a Resolução 2.121 de 16 de julho de 2015, do Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Resolução RDC n.23 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

A reprodução humana assistida heteróloga pode trazer conflitos de direitos e princípios constitucionais, tanto para o doador quanto para a prole eventual. Há o paradoxo entre a garantia ao anonimato do doador do material genético e o direito ao conhecimento da origem genética do ser humano.

Várias discussões surgem quanto ao fato do doador manter-se em sigilo para a doação de material genético, pois dessa forma, a prole não conhecerá o doador e não terá nenhum vínculo com ele. Dessa forma há convergência entre direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana da prole, por ficar esta impossibilitada de descobrir sua origem genética e o direito da privacidade do doador em manter-se no anonimato.

Surgem alguns questionamentos. Deve-se preservar o anonimato do doador do material genético ou garantir o direito do reconhecimento da origem biológica da prole advinda desse tipo de reprodução? Sendo admitida a identificação do doador, quais efeitos pessoais e patrimoniais podem ocorrer?

Pode-se admitir a possibilidade do reconhecimento da origem genética da prole em alguns casos específicos, como em tratamento médico cujo conhecimento sobre a origem genética seja imprescindível. Entretanto a identidade da pessoa do doador deve manter-se em sigilo, não havendo reconhecimento e nem gerando vínculo com ele.

            Através de pesquisa bibliográfica nos ordenamentos jurídicos brasileiro e estrangeiros, na jurisprudência e em obras de doutrinadores, com uma abordagem qualitativa, conseguimos, como objetivo, identificar os princípios constitucionais e legais sobre o tema, e  comparar com o direito de alguns outros países que positivaram normas jurídicas sobre a reprodução humana heteróloga, demonstrando os direitos relativos ao doador de material genético e o da respectiva prole.

 

1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

           

1.1 Conceitos e espécies de reprodução humana assistida

 

            Para compreendermos sobre possíveis efeitos da reprodução humana assistida heteróloga, necessário é a conceituação de reprodução assistida e a identificação das espécies desse tipo de técnica.

            Reprodução Humana Assistida (RHA) são formas de tratamento que incluem a manipulação  in vitro (no laboratório), em alguma fase do processo, de gametas masculinos, femininos ou embriões, ou a fecundação in vivo, com o objetivo de se estabelecer uma gravidez. (MOURA; SOUZA; SCHEFFER, 2009).

             Há diversas espécies de RHA, sendo as mais difundidas: as fecundações in vivo, sendo elas a relação sexual programada (ou coito programado), inseminação artificial e a transferência intratubária de gametas (GIFT); e as fecundações in vitro, sendo elas a fertilização in vitro com injeção de esperma (ICSI), a transferência intratubária de zigotos (ZIFT), a fertilização in vitro seguida de transferência de embriões (FIVETE, ou "bebê de proveta"), e a clonagem.

            Na relação sexual programada (ou coito programado), a mulher faz um tratamento com alguns hormônios que estimulam a ovulação, como, por exemplo, o hormônio folículo-estimulante (FSH) e o hormônio luteinizante (LH). Posteriormente, ela deve realizar exames de ultrassonografia para observarem o tamanho do Folículo de Graaf (Folículo Maduro ou Folículo Antral) – camadas de células que proporcionam um ambiente ideal para a manutenção da viabilidade, o crescimento e a maturação do oócito (óvulo imaturo, ou célula-ovo). Quando o Graaf atinge 19mm, a mulher toma uma injeção de HCG – hormônio que promove a maturação do óvulo e sua liberação, devendo ter relações sexuais no prazo de 36 horas. (GLOBO CIÊNCIA, 2013).

            A inseminação artificial ocorre quando os espermatozoides são injetados no útero através de um cateter, podendo ser acompanhados por hormônios FSH e LH. (GLOBO CIÊNCIA, 2013).

            Transferência Intratubária de Gametas (GIFT) é um método de fecundação in vivo. São colhidos previamente os espermatozóides e oócitos e transferidos para as trompas uterinas para fecundação. (MANO, 2005).

            A fecundação artificial in vitro (ou fertilização in vitro) consiste na cultura em laboratório (in vitro), do oócito com espermatozoide, seguido da transferência embrionária ao útero materno. É realizado o recolhimento de óvulos, os quais serão inseminados in vitro com os espematozoides previamente preparados. Após alguns dias, os embriões são introduzidos no útero por meio de um cateter flexível. (MORAES, 2014).

            Ocorre a fertilização in vitro com injeção de esperma quando a taxa de espermatozoides está abaixo de 1 milhão (o normal é 5 milhões), apenas 35% apresentam uma mobilidade normal ou apenas 5% de células tem o formato esperado, é recomendada a injeção intra citoplasmática de espermatozoide (ICSI). Nesse caso, acontece uma seleção desse gameta e quando o médico encontra um espermatozoide que tenha mobilidade e formato normais, o absorve com uma agulha muito fina, injetando-o, posteriormente, dentro do óvulo. O embrião é inserido no corpo da mãe. (GLOBO CIÊNCIA, 2013).

            Transferência Intratubária de Zigotos (ZIFT) é um método de fecundação in vitro e consiste em estimular a maturação de óvulos através inserção de hormônios para então se puncionar alguns para fora do corpo, propiciando a coleta suas exposições a milhares de espermatozóides, e assim fecundados, sendo os zigotos resultantes transferidos para as trompas uterinas. (MANO, 2005).

            A Fertilização In Vitro seguida de Transferência de Embriões (FIVETE, ou "bebê de proveta") também é um método de fecundação in vitro. "O zigoto é incubado in vitro até sua segmentação, em 02 até 08 células, sendo então transferidos para o útero ou trompas". (MANO, 2005).

            Na clonagem há a duplicação de genes através de reprodução assexuada. São usadas células embrionárias ou células somáticas, "que tem o material genético (núcleo) introduzido em óvulos anucleados artificialmente, gerando um indivíduo geneticamente idêntico ao anterior". (MANO, 2005).

            Essas técnicas podem ser classificadas como homólogas ou heterólogas. São homólogas se todos os gametas provêm do casal interessado na realização das técnicas; são heterólogas se algum ou todos os gametas são provenientes de doações. (MANO, 2005).

            Após as devidas conceituações e distinções das diversas técnicas de reprodução humana assistida, estudaremos sobre a evolução histórica da reprodução assistida.

 

1.2 Evolução histórica da reprodução humana assistida

 

            A reprodução humana assistida que conhecemos atualmente originou-se de diversos estudos por grandes estudiosos. Os primeiros indícios de estudos e relacionados à Reprodução Assistida e sua execução ocorreram em animais.

            No século XIV, por volta do ano de 1322, há indícios de inseminação artificial em equinos realizada por um árabe. Em 1784, o italiano Lázaro Spallanzani efetuou o método de reprodução assistida em uma cadela, sendo devidamente registrado. (MOTTA, 2010, p. 10).

            Referente à reprodução humana assistida,

 

         No final do século XVIII, um médico inglês, Hunter, obteve os primeiros resultados em seres humanos com inseminação de sêmen no útero. Nos anos 1970 do século passado, esta técnica foi bastante utilizada de forma não muito precisa, gerando baixo índice de sucesso. Com os avanços da ciência e da tecnologia na fertilização in vitro – FIV nos anos 1980, a técnica da Inseminação Artificial – IA – foi temporariamente abandonada e considerada bastante arcaica. Entretanto, nos dias de hoje, encontra novamente espaço no tratamento de casal infértil. (MOURA; SOUZA; SCHEFFER, 2009).

 

            Em 25 de julho de 1978, nasceu a primeira "bebê de proveta" no Hospital Geral de Oldham, na Inglaterra, chamada Louise Joy Brown. Sua mãe, Leslie Brown, era estéril. A execução do método foi realizada pelos Drs. Robert Edwards e Patrick Steptoe. (MOURA; SOUZA; SCHEFFER, 2009).

            Após o nascimento de Louise, a técnica foi expandida pelo mundo. No Brasil, o ginecologista Milton Nakamura utilizou a técnica de reprodução humana assistida e em 07 de outubro de 1984, nasceu o primeiro brasileiro proveniente da fertilização in vitro, sendo chamada de Anna Paula Caldeira. (MOURA; SOUZA; SCHEFFER, 2009).

            Assim surgiu a reprodução humana assistida que conhecemos hoje e que cada vez é mais utilizada entre os casais.

 

2  O CÓDIGO CIVIL DE 2002 E AS RESOLUÇÕES DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA SOBRE A REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

 

            O atual Código Civil (CC), em seu artigo 1.597, nos incisos III, VI e V menciona as técnicas de reprodução assistida, mas não aprofunda no assunto. Segue o artigo, in verbis:

 

         Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I - [...]

II - [...]

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

 

            Dessa maneira, o CC enfoca a possibilidade do nascimento de filho através das técnicas de reprodução medicamente assistida homóloga, heteróloga e dos embriões excedentários. Porém, evidente é a necessidade de uma lei específica sobre a RHA.

            Diante da ausência de lei específica, o CFM editou a Resolução 1.358 de novembro de 1992 e inaugurou o direito ao anonimato do doador e do receptor do material genético no inciso IV, n. 2 e 3. (BALAN, 2006). Em 2013, foi editada a Resolução n. 2.013 de 16 de abril de 2013, que trouxe novas regras. Recentemente, foi editada a Resolução n. 2.121/2015 que regulamentou as questões éticas e médicas acerca da RHA e buscou um avanço e aperfeiçoamento das práticas das reproduções e da segurança e eficácia por parte dos médicos. A própria exposição de motivos da Resolução n. 2.121/2015 inicia-se com o reconhecimento de inexistência de lei específica sobre reprodução assistida. Em seus termos, "tramitam no Congresso Nacional, há anos, diversos projetos a respeito do assunto, mas nenhum deles chegou a termo".

            A atual resolução, assim como a Resolução 2.013/2013, permitiu de forma expressa que casais homoafetivos possam ser pacientes das técnicas de reprodução assistida. Além dos casais homossexuais, pessoas solteiras também podem ser pacientes. Todavia, o direito à objeção de consciência por parte do médico deve ser respeitado, conforme consta do dispositivo II, 2.

            Ainda entre as mudanças trazidas pela nova Resolução, tem-se a permissão da doação de gametas masculinos e femininos, devendo respeitar as idades limites para doação de 35 anos para mulher e 50 anos para homem, como disposto no item IV, 3.

            A idade máxima para as candidatas à gestação pelas técnicas de reprodução assistida foi estabelecida em cinquenta anos, conforme o dispositivo I, 2, desde que não incorra em risco grave à saúde. As exceções serão condicionadas à fundamentação técnica, após esclarecimentos do médico quanto aos riscos, conforme disposto no item I, 3.

            Conforme o dispositivo V, 4 da nova resolução, a utilização dos embriões em pesquisas de células-tronco embrionárias não é obrigatória, mas manteve-se o prazo de cinco anos para o congelamento dos embriões antes do descarte e a necessidade dos pacientes expressarem por escrito o que deve ser feito depois desta data.

            Embora o assunto seja tratado no CC e pelo CFM, quando se refere em reprodução assistida heteróloga, surgem divergências doutrinárias no que tange ao direito sobre conhecer a origem genética, ao estado de filiação da prole advinda da reprodução humana assistida heteróloga, ao reconhecimento ou contestação da paternidade ou maternidade e ao anonimato do doador do material genético.

 

3 OUTROS DIPLOMAS QUE REGULAMENTAM AS REPRODUÇÕES HUMANAS ASSISTIDAS

 

            Além do CC e das Resoluções do CFM, outros diplomas buscaram disciplinar e regulamentar as reproduções humanas assistidas, mas com conteúdos gerais sobre o tema, não abrangendo especificamente sobre os efeitos decorrentes da utilização da RHA.

            O Brasil assinou, em 11 de novembro de 1997, na 29ª Sessão da Conferência Geral da UNESCO em Paris, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (DUGHDH). Essa Declaração foi endossada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da Resolução A/RES/53/152, de 9 de dezembro de 1998.

            A DUGHDH garante a confidencialidade do indivíduo cujo material genético esteja armazenado ou seja utilizado para pesquisa ou qualquer outro uso, ressalvado os casos previstos na legislação, conforme expressa seu Artigo 7. A mitigação da confidencialidade está prevista no Artigo 9 do mesmo diploma, nos seguintes termos:

 

         Visando a proteção de direitos humanos e liberdades fundamentais, limitações aos princípios do consentimento e da confidencialidade somente poderão ser determinadas pela legislação, por razões consideradas imperativas no âmbito do direito internacional público e da legislação internacional sobre direitos humanos. (Grifou-se).

 

            Interessante destacar que os artigos 7 e 9 encontram-se dentro da Seção B cuja intitulação é "Direitos dos Indivíduos", deixando claro que a confidencialidade do material genético é direito individual que deve ser internacionalmente respeitado.

            Já no Direito Interno, a Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em reunião realizada em 26 de maio de 2011, adotou a Resolução RDC n. 23, de 27 de maio de 2012, aprovando o Regulamento Técnico que estabelece os requisitos mínimos para o funcionamento dos Bancos de Células e Tecidos Germinativos. Ela, nos termos do Art 2º: "se aplica a todos os estabelecimentos de natureza pública ou privada que realizem atividades com células, tecidos germinativos e embriões, para uso próprio ou doação".

            O art. 15 dessa resolução regula sobre as doações de células e garante o mais estrito sigilo ao doador e receptor, ressalvando os motivos médicos ou jurídicos. Garante também, expressamente, a doação anônima e veda o conhecimento do doador pelo receptor e vice-versa, conforme in verbis:

 

         Art. 15 A doação de células, tecidos germinativos e embriões deve respeitar os preceitos legais e éticos sobre o assunto, devendo garantir o sigilo, a gratuidade e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido:

§1º Toda a informação relativa a doadores e receptores de células, tecidos germinativos e embriões deve ser coletada, tratada e custodiada no mais estrito sigilo.

§2º Não pode ser facilitada nem divulgada informação que permita a identificação do doador ou do receptor.

§3º Na doação anônima, o receptor não pode conhecer a identidade do doador, nem o doador a do receptor.

§4º As autoridades de vigilância sanitária podem ter acesso aos registros para fins de inspeção e investigação.

§5º Em casos especiais, por motivo médico ou jurídico, as informações sobre o doador ou receptor podem ser fornecidas exclusivamente para o médico que assiste o receptor, resguardando-se a identidade civil do doador.

§6º A doação não pode ser remunerada. (Grifou-se)

 

 

            Essa resolução da ANVISA traz normas bastante técnicas sobre os meios de conservação e sobre os Bancos de Células e Tecidos Germinativos. Não trata sobre o prole oriunda da reprodução assistida. No entanto, ao deixar claro o estrito sigilo e impossibilitar o conhecimento do doador pelo receptor, podemos inferir que o anonimato estende-se também à prole eventual.

           

4  A REPRODUÇÃO ASSISTIDA E O DIREITO COMPARADO

 

            Em diversos países há regulamentação sobre a técnica de reprodução assistida e seus efeitos e previsão expressa na lei civil local sobre a doação anônima dos gametas e sobre a inexistência de possíveis vínculos familiares. A exemplo, temos a França, que além de previsão na legislação civil, possui previsão no código penal, possibilitando a punição àqueles que não respeitarem o anonimato do doador. Na Espanha, o assunto é exaurido em lei própria. O Estado português também trata sobre o assunto.

            O Código Civil francês prevê a técnica de reprodução assistida heteróloga e estabelece a inexistência de vínculo de filiação entre o doador dos gametas e a prole proveniente dessa técnica de reprodução; tampouco permite o ingresso de ação contra doador, conforme os artigos 311-19 e 311-20 que se seguem:

 

                                               Artículo 311-19. En caso de reproducción asistida con un tercero donante, no podrá establecerse ningún vínculo de filiación entre el donante y el hijo nacido de la procreación. No podrá ejercitarse ninguna acción de responsabilidad en contra del donante.

                                               Artículo 311-20. Los conyuges o concubinos que, para procrear, recurrieran a una asistencia médica que necesite la intervención de un tercero donante, deberán previamente dar, en condiciones que garanticen el secreto, su consentimiento al Juez o al Notario, que les informará de las consecuencias de su acto con respecto a la filiación.

 

            Além da legislação civil, a legislação penal francesa ainda prevê no artigo 511-23 punição de três anos de prisão e multa àqueles que revelarem a identidade do doador sem justificativa.

            A Espanha, em 27 de maio de 2006, publicou a Ley 14/2006 que trata especificamente sobre a reprodução assistida. Ela estabelece que a única relação jurídica existente do doador é com o centro autorizado para receber a doações dos gametas, que deve ser feita gratuita e confidencialmente, como previsto no Artigo 5, parágrafo 1. O anonimato do doador e o direito ao reconhecimento genético são garantidos, demonstrando a possibilidade de convivência e relação entre os dois direitos. O artigo 5, parágrafo 5 evidencia o anonimato da identidade do doador quando reforça a possibilidade da prole saber sobre sua origem genética, respeitando a confidencialidade da doação. Apenas em casos extraordinários que comporte risco à vida é que poderá revelar a identidade do doador, se for imprescindível tal revelação. Essa revelação não implica e reconhecimento de paternidade, como versa o artigo 8: "Determinación legal de la filiación. 3. La revelación de la identidad del donante en los supuestos en que proceda conforme al artículo 5.5 de esta Ley no implica en ningún caso determinación legal de la filiación".

            O Código Civil Português, em seu art. 1839, se posiciona pela impossibilidade de impugnação da paternidade caso o marido tenha concordado com a inseminação artificial homóloga.  (DINIZ, 2007).

            A convivência harmônica desses direitos é nítida nos países com legislação específica sobre o tema. Apesar de não haver lei regulamentando a técnica de reprodução assistida heteróloga no Brasil, nada impede que o direito ao anonimato previsto na resolução do CFM e nos demais diplomas possa ser aplicado.

 

5  DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

 

            Em nossa Carta Magna de 1988, um dos princípios mais importantes, nela registrado como fundamento da República Federativa do Brasil em seu artigo 1°, inciso III, é o princípio da proteção da dignidade da pessoa humana. Esse fundamento tem como característica ser um princípio máximo, também reconhecido como superprincípio ou macroprincípio, ou ainda princípios dos princípios. Diante desta importância dada ao princípio da dignidade da pessoa humana, se discute atualmente sobre personalização, repersonalização e despatrimonialização do Direito Privado.

            Sabemos que, no ramo do Direito Privado, onde mais sofre a influência e a interferência do princípio da dignidade da pessoa humana é no direito de família e devido a sua importância e amplitude, é extremamente difícil conceituá-lo. Dentre os vários conceitos, destacamos o conceito dos juristas portugueses Jorge Miranda e Rui de Medeiros:

 

         A dignidade humana é da pessoa concreta, na sua vida real e cotidiana; não é de um ser ideal e abstracto. É o homem e a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível, insubsistente e irrepetível e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege. (MIRANDA; MEDEIROS, 2010).

           

            Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho define a dignidade da pessoa humana como cláusula de natureza principiológica cujo respeito é indispensável para se viver plenamente, sem intervenções estatais ou particulares, nos seguintes termos:

 

         "...por se tratar de cláusula geral, de natureza principiológica, a sua definição é missão das mais árduas, muito embora arrisquemo-nos em dizer que a noção jurídica de dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade.

         Mais do que garantir a simples sobrevivência, este princípio assegura o direito de se viver plenamente, sem quaisquer intervenções espúrias - estatais ou particulares - na realização desta finalidade." (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013).

 

            Como exemplo da abrangência desse princípio nas relações familiares, podemos citar julgados de tribunais que condenaram pais ao pagamento de indenizações aos filhos pelo abandono afetivo, devido a clara lesão à dignidade humana. Um dos julgados mais importantes é do não mais existente Tribunal de Alçada Civil de Minas Gerais, na Apelação Civil 408.555-5, julgada pela 7ª Câmara de Direito Privado, em 01 de abril de 2004, que condenou um pai em indenização por danos morais, com violação ao princípio da dignidade da pessoa humana e da afetividade. O Tribunal considerou que seria indenizável a dor sofrida pelo filho que foi abandonado pelo pai, pois não obteve o amparo afetivo, moral e psíquico provenientes da convivência paterna. Entretanto, a decisão foi reformada em 29 de novembro de 2005, pelo STJ, no Recurso Especial 757.411/MG, que não mais considerou a condenação por danos morais, uma vez que não considerou o abandono do pai um ato ilícito, que gera indenização. (TARTUCE, 2012).

            Com isso, percebemos que o princípio da proteção da dignidade da pessoa humana irradia sua tutela até mesmo em uma relação tão íntima e privada como a do pai com o filho. Esse macroprincípio é a base para diversos outros princípios e deve ser observado até nas relações entre particulares.

 

6  ANONIMATO E O RECONHECIMENTO À ORIGEM GENÉTICA

 

            O CC/02, sem correspondência no CC/16, expressa que os filhos advindos por reprodução assistida heteróloga são presumidamente concebidos na constância do casamento, conforme versa o art. 1597, V. Apesar de biologicamente tal filho não ser proveniente dos pais, há o reconhecimento da paternidade com base na socioafetividade.

            Todavia, é possível a utilização das técnicas de reprodução humana assistida em pessoas solteiras, segundo a Resolução 2.011/2015. Dessarte, a prole eventual não conheceria seu pai ou sua ascendência genética caso uma mulher solteira optasse pela técnica. Nesse caso, o correto seria equipararmos o nascido por reprodução assistida heteróloga ao filho adotivo, garantido-lhe os direitos garantidos pela Lei 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), principalmente nos arts. 41 e 48:

                             

                                               Art.41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.

                                               § 1º Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro, mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos parentes.

                                               § 2º É recíproco o direito sucessório entre o adotado, seus descendentes, o adotante, seus ascendentes, descendetes e colaterais até o 4º grau, observada a ordem de vocação hereditária.

                                               Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos. (Redação dada pela Lei n. 12.010, de 2009).

                                               Parágrafo único. O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao adotado menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica. (Incluído pela Lei n. 12.010, de 2009). (Grifou-se).

           

                        Aplica-se por analogia ao filho proveniente de reprodução assistida o direito do adotado em saber sobre sua origem genética previsto no art. 48 do ECA, aparentemente contrapondo o direito ao anonimato que a Resolução 2.121/2015 do CFM garante ao doador de gametas, como expressa o inciso IV, 2 e 4:

 

                                               2 – Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.

                                               4 – Será mantido, obrigatoriamente, o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do(a) doador(a).

 

            Como supramencionado, a DUGHDH e a RDC n. 23 também garante o sigilo das informações do doador, reafirmando a importância do direito ao anonimato.

            Esse direito do adotado e da prole advinda das técnicas de reprodução assistida em saber sobre sua origem genética está intimamente ligado ao direito à personalidade, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. No contexto desse direito, inserem-se os direitos à vida, à integridade físico-corporal, ao corpo, à imagem, à integridade psíquica, à intimidade, ao segredo, à honra e à identidade. O direito fundamental à vida abraça à informação da ascendência genética como reflexos de relevo na vida das pessoas. (GAMA, 2003).

            O anonimato do doador relaciona-se também com o princípio da dignidade da pessoa humana, direito à intimidade, à privacidade, previsto na Constituição Federal, no art. 1º, III e no art. 5º, X. Reconhecendo esse anonimato como direito corolário ao direito da intimidade, conclui-se sobre sua inviolabilidade.

            Quando há choque entre princípios e direitos, deve-se aplicar o princípio da proporcionalidade para que não se afaste totalmente um em detrimento de outro. Logo, deve-se garantir tanto o direito ao anonimato, quanto o direito ao reconhecimento à origem genética.

            Mesmo o fato do direito à informação à origem genética ser direito fundamental à vida, isso não obsta o anonimato do doador e nem retrocede na paternidade socioafetiva, pois a origem genética não busca a identidade do doador; apenas busca o conhecimento específico de quem seja o material genético, como forma de preservação de interesses superiores, decorrentes da formação genética do indivíduo. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013).

            Como os demais direitos, o direito ao anonimato não é absoluto e pode haver ressalvas. A própria Resolução do CFM, no dispositivo IV,4, prevê a mitigação desse direito em situações especiais, uma vez que em tais situações, as informações sobre doadores poderão ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador. No entanto, a Resolução não descreve quais seriam essas situações especiais. O dispositivo IX expressa que "casos de exceção, não previstos nesta resolução, dependerão da autorização do Conselho Federal de Medicina".

            Apesar da resolução prever casos excepcionais cuja mitigação ao direito ao anonimato depende de autorização do CFM, sustentamos que tal excepcionalidade decorreria de doença hereditária ou alguma necessidade de doação futura de órgãos entre doador e criança gerada.

            A falta de regulamentação sobre esse tema faz com que quem viole o anonimato do doador apenas sofra sanção disciplinar e/ou administrativa, pois a previsão atual desse direito abrange apenas aos médicos ou profissionais da área da medicina. Tais sanções administrativas estão previstas na Lei n. 3.268, de 30 de setembro de 1957, no art. 22, sendo elas: advertência confidencial em aviso reservado, censura confidencial em aviso reservado, censura pública em publicação oficial, suspensão do exercício profissional até 30 (trinta) de cassação do exercício profissional, ad referendum do Conselho Federal. A Resolução 1.931, de 17 de setembro de 2009 - Código de Ética Médica, também prevê sanções no Preâmbulo, inciso VI, àqueles que faltarem com a ética profissional.

            O anonimato é de extrema importância para o doador e para o filho. A doação anônima garante a “tranquilidade” do doador, uma vez que ela impede que o filho proveniente de seu material genético não venha a reconhecê-lo como pai, através de investigação de paternidade, sobrevindo ao doador os deveres do poder familiar. Ainda, esse anonimato garante que nenhuma ligação afetiva ocorrerá entre a criança e o doador. Quem doa seus gametas em bancos de doações,  assim o faz por solidariedade, não objetivando ser pai ou mãe. Assim, impede-se que o nascido ou o doador litigam sobre reconhecimento de paternidade. (VASCONCELOS et al., 2014)

            Interessantíssimo foi o acórdão da 8º Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) prolatado no Agravo de Instrumento n. 70052132370, publicado em 09 de abril de 2013. Segue a ementa:

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE REGISTRO DE NASCIMENTO DEDUZIDO POR CASAL HOMOAFETIVO, QUE CONCEBEU O BEBÊ POR MÉTODO DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA, COM UTILIZAÇÃO DE GAMETA DE DOADOR ANÔNIMO. DECISÃO QUE ORDENOU A CITAÇÃO DO LABORATÓRIO RESPONSÁVEL PELA INSEMINAÇÃO E DO DOADOR ANÔNIMO, BEM COMO NOMEOU CURADOR ESPECIAL À INFANTE. DESNECESSÁRIO TUMULTO PROCESSUAL. INEXISTÊNCIA DE LIDE OU PRETENSÃO RESISTIDA. SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA QUE IMPÕE O REGISTRO PARA CONFERIR-LHE O STATUS QUE JÁ DESFRUTA DE FILHA DO CASAL AGRAVANTE, PODENDO OSTENTAR O NOME DA FAMÍLIA QUE LHE CONCEBEU.

1. Por tratar-se de um procedimento de jurisdição voluntária, onde sequer há lide, promover a citação do laboratório e do doador anônimo de sêmen, bem como nomear curador especial à menor, significaria gerar um desnecessário tumulto processual, por estabelecer um contencioso inexistente e absolutamente desarrazoado.

2. Quebrar o anonimato sobre a pessoa do doador anônimo, ao fim e ao cabo, inviabilizaria a utilização da própria técnica de inseminação, pela falta de interessados. É corolário lógico da doação anônima o fato de que quem doa não deseja ser identificado e nem deseja ser responsabilizado pela concepção havida a partir de seu gameta e pela criança gerada. Por outro lado, certo é que o desejo do doador anônimo de não ser identificado se contrapõe ao direito indisponível e imprescritível de reconhecimento do estado de filiação, previsto no art. 22 do ECA. Todavia, trata-se de direito personalíssimo, que somente pode ser exercido por quem pretende investigar sua ancestralidade – e não por terceiros ou por atuação judicial de ofício.

3. Sendo oportunizado à menor o exercício do seu direito personalíssimo de conhecer sua ancestralidade biológica mediante a manutenção das informações do doador junto à clínica responsável pela geração, por exigência de normas do Conselho Federal de Medicina e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, não há motivos para determinar a citação do laboratório e do doador anônimo para integrar o feito, tampouco para nomear curador especial à menina no momento, pois somente a ela cabe a decisão de investigar sua paternidade.

4. O elemento social e afetivo da parentalidade sobressai-se em casos como o dos autos, em que o nascimento da menor decorreu de um projeto parental amplo, que teve início com uma motivação emocional do casal postulante e foi concretizado por meio de técnicas de reprodução assistida heteróloga. Nesse contexto, à luz do interesse superior da menor, princípio consagrado no art. 100, inciso IV, do ECA, impõe-se o registro de nascimento para conferir-lhe o reconhecimento jurídico do status que já desfruta de filha do casal agravante, podendo ostentar o nome da família que a concebeu.

DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Grifou-se).

 

            Esse agravo de instrumento originou-se de decisão interlocutória de juiz de 1ª instância que expediu mandado de citação do doador anônimo de gametas em uma ação de pedido de registro de nascimento de bebê oriundo por RHA heteróloga. Segundo a Câmara, quebrar o anonimato inviabiliza essa técnica de RHA heteróloga, pois reduziria drasticamente os interessados em doar. Por fim, considerou o mandado de citação um "tumulto processual" desnecessário.

            O Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos do TJRS, que foi o Relator no AI n. 70052132370, publicou em seu blog Direito de Família, no dia 08 de junho de 2011, um artigo sobre a RHA e deixou claro que em caso de choque entre o anonimato do doador e o direito ao reconhecimento genético, a manutenção do sigilo deve ser garantida, nos seguintes termos:

 

         A terceira [indagação][1] versa a possibilidade ou não de ser buscado o reconhecimento de paternidade por parte do filho junto ao dador do sêmen, ou, ao contrário, se este pode procurar a declaração de paternidade.  Aqui, em geral, tem sido destacada a relevância em manter incógnito o doador do material fecundante, sob pena de inviabilizar a própria utilização da técnica, por absoluta ausência de interessados na doação. Entretanto, a isso se contrapõe, em geral, o direito de personalidade do ser gerado ao conhecimento de sua ancestralidade. Da ponderação desses critérios, diversas respostas têm sido encontradas na doutrina, predominando aquela que recomenda a manutenção do anonimato do doador, com preservação, no entanto, nos bancos de sêmen, dos seus dados genéticos. (SANTOS, 2011). (Grifou-se).

 

            Daí a importância de garantir o anonimato, sem que o direito ao reconhecimento à origem genética seja limitado sensivelmente, observando as situações especiais de exceções.

 

7 HABEAS DATA E O ANONIMATO

 

            Em um estudo superficial cogitar-se-ia a hipótese de obter os dados e informações sobre a prole oriunda da RHA heteróloga através do habeas data. Este remédio constitucional está previsto no 5°, inciso LXXII, da CF e resguarda o direito à informação. É o processo pelo qual possibilita todo cidadão ter acesso às informações existentes sobre si em banco de dados de instituições governamentais ou de caráter público, caso o pedido administrativo seja negado por tais órgãos, conforme entendimento sumulado na Súmula n. 02 do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

            Conforme já citado, é proibido ao profissional da medicina compartilhar informações referentes ao doador, devendo respeitar o anonimato. Todavia, nada impede que os bancos de doações de gametas mantenham banco de dados com informações sobre o doador. Inclusive há a possibilidade de usar essas informações em casos específicos já pontuados. Partindo dessa vertente, o habeas data seria o remédio ideal para obter acesso à informação caso a clínica de doações de gametas recusasse a cedê-la.

            A Lei n° 9.507, de 12 de novembro de 1.997, Lei do Habeas Data, é clara em seu artigo 1°, parágrafo único:

 

                                               Parágrafo único. Considera-se de caráter público todo registro ou banco de dados contendo informações que sejam ou que possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária das informações.

 

            Para ser cabível o habeas data, necessário é que as instituições sejam governamentais (públicas) ou privadas de caráter público, não sendo cabível tal ação constitucional contra banco de dados privados cujas informações não são transmitidas a terceiros. Conforme consta da resolução da ANVISA, da DUGHDH e da Resolução do CFM, esses dados não são transmitidos a terceiros e tem seu uso privativo pela clínica que o possui. Apesar da clínica responsável pela coleta de sêmen poder fornecer informações sobre a origem biológica em caso excepcionais, não descaracteriza o caráter sigiloso e intransferível das informações ali contidas.

            Além do já descrito, a Resolução 2.121/2015 do CFM prevê a criação de banco de dados, mas tais banco de dados possuem informações de caráter geral sobre o doador, como características e amostra do material doado, conforme o dispositivo IV, 5:

 

                                               As clínicas, centros ou serviços onde é feita a doação devem manter, de forma permanente, um registro com dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores, de acordo com legislação vigente.

 

            Conclui-se a impossibilidade do cabimento da ação constitucional do habeas data contra as clínicas com banco de sêmens na intenção de revelar quem é o pai biológico (doador) de determinada pessoa, por não ser o banco de informações de caráter público. Mesmo fosse cabível, os dados registrados não comprometem o doador, por serem de caráter geral, com meras características.

 

8 RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE NA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA HETERÓLOGA

 

            Caso a prole advinda da RHA heteróloga conheça sobre o doador do material genético, seria discutível a possibilidade dela ingressar com ação de reconhecimento de paternidade.

            Ressalvado a hipótese do Art. 1.597, V, do CC, em que há presunção de paternidade da prole advinda de RHA, entendemos não ser cabível o reconhecimento de paternidade. A possibilidade de um eventual reconhecimento da paternidade afastaria qualquer ação solidária e altruísta do doador. O doador do material genético, ao doar, não tinha a intenção de constituir família e nem de adquirir vínculo com a prole eventual. Não se pode sobrevir ao doador todos os efeitos provenientes da paternidade, até porque nem sempre é considerado pai aquele que, biologicamente, é o genitor.

            Na primeira metade do século XX, vigente o Código Civil de 1916, a figura do pai quase que se confundia com a do marido. Nos dias de hoje, as presunções resultantes do casamento, vistas quando se estuda o art. 1.597, do CC de 2002, são relativas, admitindo controle judicial, à luz do principio da veracidade da filiação. Há distinção entre genitor e pai e mãe, pois a condição paterna ou materna vai muito além do que a simples situação de gerador biológico, com um significado espiritual profundo, ausente na expressão genitor. A ideia já está consagrada, há algum tempo, na sabedoria popular, na afirmação, tantas vezes ouvida, de que “pai é quem cria”. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013).

            O direito civil brasileiro reconhece muitas vezes a socioafetividade como sendo o principal fator para o reconhecimento da paternidade, prevalecendo até mesmo ao vínculo biológico. Há situações em que a filiação é construída com base na socioafetividade, não importando o vínculo genético. Não que o direito civil ignora a paternidade biológica, mas não há prevalência desta sobre a paternidade afetiva. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013).

            É pai aquele que cedeu afeto, carinho e amor à prole. É o instituto da paternidade socioafetiva que alterou o entendimento de que pai é o genitor e considerou como pai aquele que afetivamente assim se posicionou. O filho, por sua vez, não é mais apenas o descendente biológico, mas aquele que se encontra na posse de estado de filho, prevista no art. 1.605 do CC/02 com a seguinte redação:

 

Artigo 1.605 – Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito:

I – quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente;

II – quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.

 

            Em um caso muito específico podemos encontrar a figura do doador de material genético e da paternidade socioafetiva concomitantemente. Um casal que, por algum motivo, o marido seja estéril, vem a pedir material genético de algum parente, pessoa próxima do casal, e faz a RHA. O filho a nasce e o marido infrutífero morre, e a pessoa que doou o material genético passe a exercer um papel muito próximo a criança. Se neste caso, ficar comprovado, no passar do tempo, que a criança adota apelidos do doador (nome), se a criança e o doador se tratam como pai e filho (trato) e se o circulo de amizade do doador e da criança sabe que se tratam como pai e filho (fama), estarão caracterizados a paternidade socioafetiva entre o doador e a criança.

            Um embate entre paternidade socioafetiva e paternidade biológica hoje no Brasil está sendo pacificado no entendimento que a paternidade socioafetiva tem prevalência sobre a biológica. Contudo, o ideal é que as duas existam conjuntamente. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013).

            Ou seja, não há o que se falar em reconhecimento de paternidade apenas por descender geneticamente de alguém, mas sim pela proximidade e convivência entre o doador e a prole eventual.

 

CONCLUSÃO

 

            A sociedade brasileira vem passando por grandes transformações, alterando seu formato e modo de constituição, o que levou à criação de novos modelos de famílias.

            Há descaracterização dos estereótipos do modelo de família tradicional; não se tem mais como modelo a família convencional de pai e mãe constituídos. Novas configurações de família surgiram, como casais homoafetivos, casais que vivem em casas separadas e famílias monoparentais, formadas por pessoas solteiras que desejam ter filhos.

            Natural é, no entanto, o surgimento de questões éticas e morais provenientes da necessidade de casais gerarem filhos por técnicas de reprodução humana assistida heteróloga, cujo método depende de doações de gametas, anônimas ou não.

            Esse método de concepção traz questionamentos sobre a manutenção do direito ao anonimato do doador do material genético e sobre o direito ao conhecimento da origem genética da prole eventual e o possível reconhecimento de paternidade do respectivo doador.

            A legislação brasileira ainda é omissa quanto à regulamentação específica da utilização das técnicas de reprodução humana assistida heteróloga e suas limitações, bem como sobre os efeitos decorrentes.

            O que regula a reprodução humana assistida é a Resolução 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina e a RDC n.23/2011 da ANVISA, mas não possuem força normativa erga omnes, tratando apenas das questões éticas afetas à Medicina e de regras concernentes a estabelecimentos de natureza pública ou privada que realizam atividades com células, tecidos germinativos e embriões, para uso próprio ou doação, respectivamente. Imperiosa é a necessidade de disciplina legal capaz de dirimir as relações jurídicas já existentes e aquelas que possam advir da aplicação das técnicas de reprodução assistida.

            O direito ao anonimato do doador de materiais genéticos encontra-se previsto em resolução do CFM, da ANVISA e na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos Humanos e é considerado como ato altruísta, inexistindo o animus de tornar-se genitor ou de constituir família, seja ela em qualquer de suas formas. Tal direito está intimamente ligado ao direito da personalidade e à proteção da dignidade da pessoa humana, fundamento da Constituição Federal e considerado um macroprincípio.

            O reconhecimento genético é direito do adotado e está previsto no ECA, podendo ser aplicado de forma análoga à prole eventual oriunda das técnicas de reprodução assistida heteróloga. Esse direito também é corolário ao princípio/direito da dignidade da pessoa humana e ao direito à vida.

            Quando há o embate entre normas-princípios, não se pode afastar totalmente um e aplicar unicamente outro. Devem ser aplicados conjuntamente, de forma equilibrada, baseado no princípio da proporcionalidade, da máxima do sopesamento.

            Os direitos ao anonimato do doador e ao conhecimento da origem genética da prole devem coexistir harmonicamente. Não há incongruência em manter a identidade do doador de gametas em sigilo. A jurisprudência tem assim entendido. A transmissão de informações, em caso de ação de investigação de paternidade ou de reconhecimento à origem genética, podem simplesmente limitar-se às características físicas, genéticas e biológicas, preservando a pessoa do doador. Não caberia sequer o remédio constitucional habeas data para a identificação pessoal do doador.

            Como não há direitos absolutos, há exceções ao direito ao anonimato, previstas nos próprios documentos normativos acima descritos. No entanto, tais exceções apenas serão reconhecidas casuisticamente pela autoridade médica (administrativa) competente, conforme previsto na Resolução 2.121/2015 do CFM. Defendemos que tais exceções apenas são justificadas em casos de doenças hereditárias ou necessidade de doação de órgãos entre doador e a prole gerada.

            O eventual conhecimento da identidade do doador de gametas, por si só, não garante à prole o reconhecimento de paternidade, nem recai ao doador os direitos e deveres do poder familiar. A jurisprudência atual dominante é que para haver a qualidade de "pai", nas circunstâncias da RHA heteróloga, deve haver o vínculo socioafetivo entre o doador e a prole. A ausência desse vínculo descaracteriza a paternidade, independentemente do fato do doador ser biologicamente o genitor do indivíduo. Nada obsta, no entanto, ocorrer o reconhecimento voluntário de paternidade do doador ou o reconhecimento judicial se houver vínculo socioafetivo. Neste caso, haveria identidade entre genitor e pai.

 

 

ABSTRACT: The heterologous assisted human reproduction occurs when a donor gives its genetic material to semen banks or to some specific family. This technique can generate various legal effects related to the donor and the possible offspring, as a possible recognition of the paternity linked to the semen donor. There is no specific legislation about it in Brazil, leading to several questions. The donor remains or not in secrecy? The offspring should know who is the donor? Or there will be no link between the two? Demonstrated through doctrinal studies - although there is great conflict of fundamental rights - there is no an absolute right. Both, the right to anonymity of the donor and the right to genetic recognition of the offspring - based on the principle of human dignity - must be relativized.

 

Key words: Heterologous assisted reproduction. Donor anonymity. Right to genetic recognition.



REFERÊNCIAS

 

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Autores: Mário Tavares Oliveira Neto, Michel Bruno Aguiar Fernandes, Pablo Pereira, Raphaela Paiva Carvalho, Rodolfo Serafini Costa.


[1] Trecho acrescido para trazer sentido ao texto.

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