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A questão da verdade na conformação de um sistema processual penal acusatório - da impossibilidade de gestão probatória pelo juiz


Autoria:

Rysclift Bruno Sérgio Santos


Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da UniRV - Universidade de Rio Verde; membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim; membro do Coletivo de Juristas Goianos pela Democracia; Advogado - OAB/GO n. 46.604.

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Resumo:

O presente trabalho tem como escopo verificar o desenvolvimento dos sistemas processuais penais através de seus respectivos momentos histórico-políticos, segundo a compreensão de seu núcleo fundante na gestão da prova.

Texto enviado ao JurisWay em 01/02/2016.

Última edição/atualização em 20/02/2016.



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O presente trabalho tem como escopo verificar o desenvolvimento dos sistemas processuais penais através de seus respectivos momentos histórico-políticos, segundo a compreensão de seu núcleo fundante na gestão da prova e a demonstrar o prejuízo decorrente da adoção de postura ativa pelo juiz no processo penal, comprometedora de sua imparcialidade e da dialeticidade que deve viger no curso do procedimento em contraditório. Assinala o erro no qual incidiram aqueles que abordaram os institutos e categorias processuais penais a partir da Teoria Geral do Processo Civil. Demonstra, ainda, o problema oriundo da busca da verdade no processo penal e a ambição inquisitória que anima essa busca, com as consequentes tentativas de (re)legitimar essa pretensão, conformando um processo penal contrário ao sistema acusatório consentâneo com a Constituição Federal de 1988. Propõe a adoção de um novo paradigma para a verdade, que passa a ser contingencial e não fundante, narrativamente construída pelos jogadores do processo. Para tanto foi utilizada uma abordagem qualitativa, com objetivo exploratório, empregando-se como procedimento técnico a pesquisa bibliográfica.

SUMÁRIO

 

 


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 10

2 A ESTRUTURA DOS SISTEMAS PROCESSUAIS SEGUNDO SEU NÚCLEO FUNDANTE – A GESTÃO DA PROVA............................................................................................................................. 14

2.1. Sistema processual acusatório: gestão da prova nas mãos das partes................................ 15

2.1.1 O sistema acusatório grego.............................................................................................. 15

2.1.2 O sistema acusatório na fase republicana de Roma......................................................... 16

2.1.3 O sistema acusatório germânico: juízos de Deus, duelos e ordálias................................ 17

2.1.4 Adversarial system: o sistema acusatório inglês............................................................... 18

2.2 Sistema processual inquisitório: a autossuficiência de um juiz instrutor............................. 21

2.3 Sistemas processuais mistos e sua (in)existência: um monstro bicéfalo.............................. 27

2.4 Superação do inquisitório versus acusatório: sistema processual democrático................... 32

3 O SISTEMA PROCESSUAL PENAL ATUAL: o sistema inquisitivo do CPP de 1941.... 37

3.1 Juízes inquisidores, quadros mentais paranoicos e dissonância cognitiva.......................... 42

3.2 A iniciativa probatória do juiz a partir da “Teoria Geral do Processo”: um desserviço às categorias jurídicas próprias do Processo Penal....................................................................................................... 47

3.3 O modelo constitucional do processo: de Andolina e Vignera à Escola Mineira de Processo  50

3.4 Juiz que vai atrás da prova e a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH): a prevenção como causa de exclusão da competência.................................................................................. 51

4 A QUESTÃO DA VERDADE E AS IMPLICAÇÕES NA DEFINIÇÃO DE UM SISTEMA PROCESSUAL CONSTITUCIONAL.............................................................................................................. 57

4.1 A busca da verdade pelo juiz: meio de concretização ritualizada do poder punitivo......... 59

4.2 A busca da verdade real no processo penal: um excesso epistêmico que se transformou em dogmatismo      60

4.3 Abandono da verdade correspondente: versão aproximativa, relativa ou matizada.......... 64

4.4 Para além da ambição inquisitória: caráter analógico dos rastros da passeidade................ 66

4.5 Construção narrativa da verdade: o juiz enquanto ser-no-mundo e um sistema processual acusatório            71

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................. 75

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 80

1 INTRODUÇÃO

 

Há algum tempo, doutrina e jurisprudência, nacional e estrangeira, têm se debruçado sobre o problema da atribuição de poderes instrutórios ao juiz criminal, perquirindo se a atuação positiva do magistrado na gestão da prova seria suscetível de comprometer sua imparcialidade e concorrer para o distanciamento do sistema processual penal brasileiro da opção acusatória feita pelo constituinte originário de 1988.

A discussão em torno do tema, mormente em sede doutrinária, que ganhou espaço em vários fóruns, repercutiu também na procura de pesquisar sobre o assunto no âmbito do direito comparado, analisando experiências diversas, bem como reformas processuais penais, operadas nos ordenamentos de países latino-americanos, naqueles da tradição do commom law e também no âmbito da comunidade europeia, com especial destaque para os ordenamentos de Portugal, Espanha, Itália, França e Alemanha.

A resistência encontrada na comunidade jurídica por aqueles que se dispuseram apontar novos rumos no processo penal brasileiro foi sobremodo empedernida, como sói ser nas sociedades conservadoras e avessas ao progresso científico como a brasileira, embora contasse com pensamentos muito qualificados, que os próceres das novas ideias se viram compelidos a buscar também em outros ramos do saber elementos que endossassem suas pesquisas. Isso foi deveras saudável e enriquecedor para o debate científico, que ganhou especiais notas de interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade.

Outrossim, a discussão pública, especialmente no âmbito das instituições políticas, com frequência deixou transparecer os discursos ideológicos que imantavam cada leitura do processo penal brasileiro, em especial no tema ora tratado, que motivou polêmicas especialmente entre aqueles que se viam envolvidos diretamente no contexto das reformas reclamadas, isto é, órgãos representativos da polícia judiciária, da magistratura, do Ministério Público e da advocacia, notadamente por meio da Ordem dos Advogados do Brasil e das defensorias públicas.

Com a instituição, no âmbito do Senado Federal, de comissão de juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal de 1941 e a ulterior conversão do anteprojeto, gestado em nove meses, no Projeto de Lei do Senado n. 156/2009, o tema ganhou ainda mais repercussão, especialmente pelo viés adotado pela comissão de notáveis, que, afastando a ideologia autoritária, proposta, amiúde, como tradição, buscou uma nova racionalidade no campo do processo penal brasileiro, refinando e fazendo atuar o repertório que existe em prol do Estado Democrático de Direito.

Sem embargo do aspecto técnico-jurídico preponderantemente abordado durante a pesquisa, não é de menor importância a visualização, pela mesma pesquisa proporcionada, da disputa política pelo sentido e função da justiça criminal existente no ambiente das reformas.

O problema abordado no presente trabalho diz com a posição do magistrado no sistema processual penal acusatório, a partir da compreensão dos sistemas processuais através do princípio unificador (ou núcleo fundante), consistente na gestão da prova, e o consequente prejuízo decorrente da adoção, pelo ordenamento e/ou pelo próprio juiz, de uma postura ativa, semelhante à do inquisidor, em contraste com a opção feita pela Constituição Federal de 1988.

Encetamos a pesquisa pela abordagem histórica dos sistemas processuais penais ditos puros, conectada, sempre, ao princípio reitor de cada sistema, procurando contextualizar a opção política feita por cada um deles no seu respectivo período histórico e os objetivos propriamente jurídicos, além de econômicos, filosóficos, teológicos etc.

O chamado sistema processual misto ou híbrido, tão largamente ensinado nas academias quanto mal compreendido, foi tratado de forma crítica, trazendo para a pesquisa o que a recente doutrina estrangeira e doméstica tem produzido, demonstrando sua impossível configuração, uma vez que o sistema processual adotado é definido através do núcleo fundante da gestão da prova, não importando a existência de outros elementos, de outro sistema processual, que a ele aderem.

O segundo capítulo procurou demonstrar a ululante contradição entre o sistema consagrado no Código de Processo Penal de 1941, vazado pela influência do Código de Rocco, um diploma autoritário, e os prejuízos causados à figura do juiz, que, tomando a iniciativa probatória cabente às partes no processo penal, sai à procura da prova para embasar a hipótese já por ele eleita, quebrando a dialética processual e tornando possível a primazia do imaginário sobre a realidade.

Outrossim, demonstrou-se o grave erro na importação, irrefletida, de institutos do processo civil para o processo penal, desrespeitando por completo as categorias jurídicas próprias deste último. Para tanto, a Teoria Geral do Processo (TGP), pensada sempre a partir do lugar do processo civil, foi abordada de forma crítica, demonstrando sua contribuição para a legitimação de um juiz inquisidor e para a privatização, reificação do que se trata no processo penal.

Não sem espaço, contudo, ficou a contribuição dada pela Escola Mineira de Processo com o modelo constitucional de processo, superando a concepção do processo como um instrumento posto a serviço da jurisdição tão somente. Passa-se a compreender sua função a partir da ideia de um sistema de proteção dos direitos e garantias constitucionais, fundado em princípios que possuem características capazes de fazer com que tal paradigma de processo seja extensível, variável e perfectível, assentando-se sobre os vetores axiológicos do contraditório, da ampla argumentação, da imparcialidade do decididor e da fundamentação das decisões.

Com proveito para a pesquisa, fez-se uma abordagem breve, embora extremamente pertinente para este estudo, dos casos decididos pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), referentes a iniciativas probatórias por parte do juiz e sua incompatibilidade com a função do julgador. Isso demonstra a preocupação do direito europeu, já que a Corte de Estrasburgo julga casos de todos os países signatários do Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950, com um processo penal democrático e consentâneo com os direitos humanos tão solidamente vincados na consciência política da Europa do pós-guerra. Embora a maioria dos casos trazidos como exemplos tenham sido levados à apreciação daquele tribunal ainda no início da década de 1980, as importantes conclusões a que chegou o tribunal, assentadas depois em casos análogos, ainda são desconhecidas pela nossa jurisprudência, que segue contemporizando com as mais grosseiras estocadas ao Estado Democrático de Direito. Foi demonstrado o tímido e ainda incipiente tratamento da matéria pelo nosso Supremo Tribunal Federal.

No terceiro e último capítulo da pesquisa, tangenciando diretamente o problema eleito, foi destacado o grau de ambição da verdade para a configuração de cada sistema processual. Apresentaram-se as fases pelas quais passou a ciência processual penal no trato dessa categoria chamada busca da verdade real, tida inicialmente como propósito hercúleo a que se destinava o processo penal, mitigada, ao depois, por uma concepção de verdade, fruto do pensamento moderno oitocentista, que, à toda evidência, não resolveu o problema, até chegar, pelas recentes reflexões feitas no processo penal com a contribuição de outras ciências, à insuficiência e desnecessidade do alcance de algo que se aproxime à verdade histórica, que deve ser contingente, e não fundante, para a decisão do objeto do processo, isto é, do caso penal.

A hipótese sustentada em relação à verdade propôs a produção narrativa da verdade no processo penal para além do excesso epistêmico que caracteriza a verdade correspondente, em suas versões absoluta ou relativa, rompendo, destarte, com a violenta tradição de construção monológica do conhecimento e da verdade. O redimensionamento da verdade no processo penal, de absoluta para relativa, preservou a legitimação de um discurso de persecução do inimigo com o qual se quer romper.

O corte epistemológico feito, todavia, não contemporizou com aquela atitude extrema de expulsar a noção da verdade dos domínios do processo penal, mas em encontrar uma noção de verdade adequada aos enunciados relativos aos eventos que estão no processo, reposicionando-a e eliminando seu caráter canônico.

A verdade no processo penal, de meio de concretização ritualizada do poder punitivo e excesso epistêmico que se transformou em um dogmatismo inconteste, passou a ser abordada a partir da epistemologia da passeidade, buscando conformar construção narrativa que se dá no e pelo processo com a figura de um juiz receptivo, espectador, garante dos direitos fundamentais do acusado e da observância das regras do jogo, fatores que contribuem sensivelmente para a legitimação do provimento entregue ao final do processo.

           

 

2 A ESTRUTURA DOS SISTEMAS PROCESSUAIS SEGUNDO SEU NÚCLEO FUNDANTE – A GESTÃO DA PROVA

 

Talvez seja a adoção de um ou de outro sistema processual penal uma das mais claras demonstrações da opção política de um Estado em relação a diversos fatores de sua constituição como tal, como, verbi gratia, direitos e garantias fundamentais, organização de suas instituições, mormente dos chamados órgãos de persecução criminal. Assim, em épocas em que a organização social, em suas estruturas de poder, viu-se às voltas com uma mais intensa criminalidade, o Direito Penal tenha recrudesceu e o Processo Penal, por conseguinte, enrijeceu seus mecanismos de controle através da eleição do sistema que melhor aprouvesse.

Não sem razão Goldschmidt (1935) afirma que a estrutura do processo penal de uma nação não é senão o termômetro dos elementos autoritários ou democráticos de sua constituição.

É o que sustenta Armenta Deu (2014) quando afirma as reações pendulares entre períodos de paz social e teses garantistas e períodos de aumento da criminalidade ou aparições de novas formas de criminalidade e o consequente endurecimento na persecução criminal e até mesmo diluição de importantes garantias processuais. Também sublinha que se observam tais efeitos pendulares em períodos de menor ou maior incidência midiática em torno da falta de segurança pública, quando ora o Estado mostra maior sensibilidade para com as garantias individuais, ora reage no sentido contrário, como no caso de manifestações para reduzir o âmbito de aplicação de vedação das provas ilícitas e, como temos visto no atual momento, diminuição da maioridade penal.

É elucidativa a lição de Goldschmidt (1935, p.67):

 

[...] los principios de la política procesal de uma nación no son outra cosa que segmentos de sua política estatal em general. Se puede decir que la estrutura del proceso penal de uma nación no es sino el termómetro de los elementos corporativos o autoritarios de su Constitución. Partiendo de esta experiencia, la ciencia procesal há desarrollado un número de principios  opuestos constitutivos del processo. [...] El predominio de uno o outro de estos principios opuestos en el derecho vigente, no es tampoco más que un transito del derecho passado al derecho del futuro.

 

Tal opção política de um Estado através do Direito é seguramente mais sentida no Direito Penal e Processual Penal do que nos demais ramos jurídicos, máxime neste último, que toca mais sensivelmente no cidadão, até porque, de acordo com Lopes Júnior (2012, p. 116) “o Direito Penal não tem realidade concreta fora do processo penal, sendo as regras do processo que realizam diretamente o poder penal do Estado”.

Por seu turno, a utilidade do estudo dos sistemas processuais é contestada, entre outros motivos, em virtude de não mais existirem sistemas processuais penais puros, isto é, como surgiram historicamente, não subsistindo em nenhum ordenamento jurídico, senão sistemas mistos, híbridos, aos quais se agregam elementos, características de um e de outro sistema puro. Dizer que não mais existem sistemas processuais puros, todavia, segundo Coutinho e Carvalho (2010, p. 21), “é ideia tão difundida quanto mal entendida”.

Para melhor compreender a questão, faz-se mister uma dúplice análise: em primeiro lugar, compreender a própria noção de sistema e, ao depois, a (im)possibilidade de haver sistemas mistos.

Ambos os sistemas de que iremos tratar (inquisitório e acusatório) radicaram sua razão de existir por fundamentos preponderantemente políticos. Outros motivos, de ordem econômica, filosófica, jurídica e até teológica também foram importantes, mas, sem dúvida, secundários ou, no mínimo, subordinados aos fundamentos políticos.

Seria cronologicamente imprecisa a tentativa de situar os dois sistemas em momentos históricos e/ou geográficos específicos, pois, antes do sistema acusatório anglo-saxão, que mais influenciou a conformação do sistema acusatório, tal como o concebemos, outros existiram, inclusive com tais nomes. Entre os romanos, por exemplo, cujas quaestiones perpetuae, que vigoraram na segunda fase evolutiva do processo penal romano, influenciaram decisivamente nossa atual conformação do procedimento do Tribunal do Júri.

Silvério Júnior (2013), por sua vez, aduz que o sistema inquisitivo também surgiu em Roma por influência da organização política do Império, caracterizando-se pela desigualdade entre as partes, caráter escrito e secreto, ausência de contraditório etc.

 

2.1. Sistema processual acusatório: gestão da prova nas mãos das partes

 

2.1.1 O sistema acusatório grego

           

O sistema processual penal acusatório possui, conforme noticia Ferrajoli (1997), uma elaboração mais que bimilenária, remontando aos albores da civilização ocidental, encontrando anteparo histórico na refinada tradição da retórica e tópica da ars disserendi, inveniendi e judicandi, com origens na Grécia clássica, por obra de seus oradores áticos. Foi desenvolvida por Aristóteles, recolhida por Hermágoras de Tenos, Cícero e os juristas romanos da época imperial e transmitida depois, por intermédio de Casiodoro, Boécio e Isidoro de Sevilha, à cultura medieval dos séculos IX a XIII.

Como sublinha Khaled Júnior (2013), o sistema grego de processo penal correspondia a um sistema acusatório puro, pois a acusação poderia ser levada a efeito por qualquer cidadão grego diante do oficial competente, num verdadeiro sistema de acusação popular, um dos elementos principais que caracterizavam o sistema democrático concebido por Sólon.

Ainda segundo esclarece Khaled Júnior (2013), no sistema grego havia paridade entre o acusador e o acusado, que quase sempre participava do processo em liberdade, salvo em casos especiais, como traição ou conspiração. A sentença, nesse tipo de processo, era considerada como expressão direta da soberania popular.

Embora fossem louváveis os aspectos processuais da justiça helênica, o mesmo não pode ser dito de outras facetas de suas práticas punitivas. Como assinala Khaled Júnior (2013, p. 19), “não devemos idealizar os gregos, pois suas sanções eram bastante cruéis e geralmente desconsideravam quaisquer direitos dos indivíduos perante o Estado, que podia ser sacrificado sem maiores justificativas para supostamente beneficiar o todo”.

Apesar de suas falhas, o sistema de justiça ateniense ficou caracterizado por conter elementos considerados fundamentais para a conformação de um sistema processual acusatório: separação das funções de acusar e julgar, gestão da prova nas mãos das partes, publicidade e oralidade, com base na argumentação e com a produção da verdade dinamizada por seu caráter dialogal.

 

2.1.2 O sistema acusatório na fase republicana de Roma

 

O sistema acusatório pode também ser verificado na segunda fase evolutiva do processo romano, a accusatio, que medeia a inquisitio e a cognitio extra ordinem.

Na primeira fase do processo romano, como descreve Khaled Júnior (2013), o próprio Estado desempenhava as funções persecutórias, encomendada aos magistrados, que chamavam para si o conhecimento da imputação mesmo sem provocação e realizavam as investigações arbitrariamente. Não existia regramento para a gestão da prova e para a forma de sua recepção, a segregação do acusado era ilimitada no tempo e possível nos delitos mais comuns e o recurso de anulação possível – provocatio – era extremamente limitado quanto aos legitimados para seu uso.

A insatisfação com esse sistema processual abriu a possibilidade de superação da cognitio pela accusatio, sistema no qual, conforme lição de Khaled Júnior (2013), o Estado estava representado por um único órgão, o magistrado, cujo poder era restrito ao exercício da função jurisdicional em sentido estrito. A função de acusar foi conferida a um representante voluntário da coletividade, o accusator, de sua provocação dependendo a atuação do Estado.

Na accusatio, escolia Khaled Júnior (2013), os magistrados julgavam a partir dos elementos fáticos e jurídicos trazidos pelas partes nos debates públicos, mantendo uma postura passiva ante o material a eles apresentado e, ao final de um procedimento oral e público, votavam. As provas eram sopesadas consoante o convencimento dos juízes, que não se vinculavam a um sistema tarifado de peso das provas.

Esse movimento de abertura, todavia, logo foi superado pela terceira fase do processo romano, a cognitio extra ordinem, consoante a lição de Khaled Júnior (2013, p. 29):

 

No entanto, esse movimento de abertura logo foi invertido, pois não fazia jus aos anseios repressivos do Estado, com a superação da República e advento do Império e, logo, com o surgimento de uma nova economia de poder que impunha a persecução aos inimigos da anatomia política que então se instalava.

 

A cognitio extra ordinem, como anota Prado (2006), faz renascer a anterior cognitio, pressupondo a onipotência processual em reunir em uma única pessoa a acusação e a decisão, começando como um procedimento ordinário, mas substituindo por completo, ao longo de sua existência, o procedimento ordinário da accusatio. Foi o embrião da inquisição que a partir do século XIII dominaria a Europa continental.

 

2.1.3 O sistema acusatório germânico: juízos de Deus, duelos e ordálias

 

Conforme anota Santos, S. (2009), no ano de 395 o Império Romano fracionou-se em Império Romano do Oriente e Império Romano do Ocidente, entregues, respectivamente a Arcádio e Honório, filhos de Teodósio I. A parte oriental sobreviveu até a morte de Justiniano, em 565. A partir daí, tem início o Império Bizantino que perdura até 1453, com a queda de Constantinopla diante dos turcos de Maomé II. O Império Romano do Ocidente soçobra antes, em 476, quando da invasão dos bárbaros, comandados por Odoacro, rei dos hérulos, que derrotou Rômulo Augústulo, o último imperador.

Com a queda do Império Romano, como assinala Khaled Júnior (2013), seu legado e sua tradição jurídica foram conservados pela Igreja Católica, única instituição que sobreviveu à sua gradativa decadência e dissolução com as invasões bárbaras. Seria justamente esse patrimônio cultural que serviria de caldo para potencializar o ressurgimento das práticas inquisitórias.

Com a decorrente descentralização política oriunda do desmonte do Império Romano, o direito germânico assumiu relevante importância, fazendo ressurgir o sistema acusatório, embora com características bastante peculiares.

A epistemologia do processo penal germânico, preconiza Khaled Júnior (2013), seguia a lógica acusatória, embora em termos cognitivos, de verificação de responsabilidade, o valor verdade fosse de pouca importância, pois o conflito era submetido por jogos de prova, a que ambas as partes anuíam e se submetiam, como juízos divinos, duelos e ordálias.

O Tribunal, no sistema acusatório germânico, era uma assembleia popular, cujas sessões eram dirigidas por um juiz, que não tinha qualquer postura ativa, diante do qual o procedimento oral e público se desenvolvia em contraditório, mediante atos formais ao extremo, revestidos de sentido mítico.

Com a centralização do poder e o estabelecimento da jurisdição real e eclesiástica, anota Khaled Júnior (2013), o sistema inquisitório de matiz romano tomou conta da Europa continental.

 

2.1.4 Adversarial system: o sistema acusatório inglês

 

Interessa-nos sobremodo aquele sistema acusatório de origem anglo-saxônica, nascido na Inglaterra após a invasão normanda levada a efeito por Guilherme, o Conquistador (também conhecido por Guilherme da Normandia), por diferir do modelo acusatório romano, embora com ele guarde substanciais semelhanças, e também por sua importância para a crítica e desconstrução do sistema misto que surgiu na França sob Napoleão, com o código de 1808.

Assinala Khaled Júnior (2013) que na Inglaterra o sistema acusatório lentamente se desvinculou da forma mística que marcava o sistema germânico, tomando uma trajetória histórica distinta, por não ter sido atingido pela involução inquisitória do século XIII, que assacou a Europa continental.

Ainda segundo Khaled Júnior (2013), fundamental para o desenvolvimento de um modelo processual tão peculiar foi a contestação da teoria do direito divino dos reis pela Revolução Gloriosa, em 1688. Tudo isso concorreu para a conformação do sistema acusatório inglês, comumente chamado de adversarial system.

Consoante lição de Coutinho e Carvalho (2010, p. 05) “a construção do novo sistema processual se dá sob o reinado de Henrique II, talvez o mais importante dos reis ingleses para o Direito”.

Esclarece o mestre de Processo Penal da UFPR:

 

Plantageneta, Henrique II governou de 1154 a 1189. Ajudou a implantar o sistema feudal na Grã-Bretanha porque interessava aos normandos a centralização do poder. Assim, colocando-se no lugar de senhor de todos os feudos, transformou os suseranos em grandes vassalos. Sua luta foi destinada à unificação da Grã-Bretanha, o que conseguiu a partir de 1171, quando avança sobre a Irlanda (COUTINHO; CARVALHO, 2010, p. 05).

 

Ainda segundo Coutinho e Carvalho (2010), para empalmar todo o poder, antes pulverizado entre os suseranos, Henrique II, seguindo um modelo romano, veda a criação dos exércitos feudais em troca da proteção oferecida pela coroa desde Westminster.

No campo jurídico foram significativas as contribuições daquele monarca. Anota Coutinho e Carvalho (2010) que, esforçando-se para acabar com os juízos de Deus, presentes na ilha desde a invasão dos nórdicos, concentra toda a jurisdição em Westminster. Não obstante, alguns resistiram, como seria natural, a exemplo do bispo de Canterbury, Tomas Becket, morto por sicários do rei.

Prossegue Coutinho e Carvalho (2010) anotando que todos que se sentissem prejudicados poderiam reclamar ao rei através de petições, que, geralmente, eram recebidas pelo Lord Chanceler e, em nome do rei, emitiam-se ordens escritas (writ) aos representantes reais locais, chamados de sheriff, que tomava as providências práticas para a solução das querelas.

Tal modelo procedimental (forms of action), como assinala Coutinho e Carvalho (2010), logo se tornou inviável, abarrotando sobremodo a Curia regia, mesmo depois de decomposta em três tribunais.

A solução encontrada foi o embrião do modelo acusatório que viria a se aperfeiçoar:

 

Foi daí que Henrique II deu, quem sabe, o grande à construção de um modelo singular. Por um novo writ, dito novel disseisin, instituiu para Clarendon, em 1166, um Trial by Jury. Por ele, um Grand Jury, composto por 23 cidadãos (boni homines) indictment um acusado e, se admitida a acusação, seria ele julgado por um Petty Jury, composto por 12 membros. Nele, o Jury dizia o direito material, ao passo que as regras processuais eram ditadas pelo rei. O representante real, porém, não intervinha, a não ser para manter a ordem e, assim, o julgamento se transformava num grande debate, numa grande disputa entre acusador e acusado, acusação e defesa. Para tanto, a regra era a liberdade, sendo certo que o acusado era responsável pelas explicações que deveria dar. Por sinal, não se produziam provas no início: o Jury era a prova (COUTINHO; CARVALHO, 2010, p. 06).

           

Em tal sistema processual, os julgamentos eram públicos e, do ponto de vista político, foi uma manobra genial de Henrique II, pois conforme assinala Coutinho e Carvalho (2010), o povo condenando ou absolvendo colocava o monarca sempre ao lado do povo, daí o aforismo the king can do no wrong.

O processo, portanto, se desenvolvia a partir daquilo que as partes aportavam ao processo, como um locus da dialeticidade, paridade de armas e oportunidades:

 

O vital, porém, era que os juízes decidiam com base naquilo que sabiam (como não poderia deixar de ser), mas, depois, com base naquilo que as partes aportavam ao processo, o qual se mostrava como um jogo dialético entre os argumentos delas, em geral travado em local público. Tal sistema é o que se convencionou chamar, mais tarde, na forma como se conhece hoje, de Sistema Acusatório e, a partir desse padrão, domina boa parte dos sistemas processuais penais do mundo (COUTINHO; CARVALHO, 2010, p. 06).

 

Entendendo que a eleição do modelo acusatório como sistema processual decorre de uma opção de se (re)construir o processo penal a partir de alicerces democráticos, Rosa (2014) anota que a separação das funções de acusar, defender e julgar é exigida pelo “princípio da acusação”, não se podendo confundir as figuras, sob pena de violação da paridade de armas. O distanciamento do juiz em relação aos jogadores seria a primeira das garantias orgânicas que definem a figura do juiz e, de outro lado, pressuposto da contestação e da prova atribuídas à acusação, que são garantias da jurisdição. A assunção de um modelo acusatório não dependeria do texto constitucional tão somente (que no caso brasileiro, o acolhe, embora seja negado na prática), mas de uma autêntica motivação e um compromisso interno e pessoal em reconstruir a estrutura processual sobre alicerces democráticos, no qual o juiz rejeita a postura ativa de inquisidor e promove o fair play entre os jogadores (acusação e defesa).

Assim, de igual modo, o sistema acusatório também decorre, como o sistema inquisitivo, de uma opção marcadamente política, sem prejuízo de atuar, também, na sua eleição como sistema processual, importantes, mas secundárias, influências filosóficas, jurídicas e religiosas.

Oportuna a consideração de Khaled Júnior (2013), segundo a qual as razões para o desenvolvimento na Inglaterra de um sistema processual penal tão distinto daquele da Europa continental estão associadas à contínua abertura política que a Inglaterra experimentou no período, o que demonstra o vínculo entre o sistema penal e a anatomia política

Verifica Khaled Júnior (2013) que, se o sistema acusatório não tivesse sido conservado na Inglaterra, pouco provável seria o desenvolvimento do adversarial system e que a tradição de contenção do poder de ambos pusesse influenciar as revoluções processuais que se deram na França após a Revolução Francesa de 1789.

 

2.2 Sistema processual inquisitório: a autossuficiência de um juiz instrutor

 

O sistema inquisitório surge, como modelo histórico, a partir do século XII, quando então perdurava um sistema acusatório que, frente aos acontecimentos que ameaçavam o domínio da Igreja Católica sobre o mundo conhecido, era incapaz de dar uma resposta apta a debelar tais ameaças.

Anota Carvalho (2005) que o aparelho inquisitorial, antes testado no período imperial em Roma, ressurge nas práticas medievais, quando se torna necessário ampliar a malha repressiva. Com a necessidade de controlar criminalidade comum e heresia, o sistema inquisitório permite alargar o rol de culpáveis, tipificando qualquer dissonância ao saber oficial, que não admite alteridade, sendo qualquer manifestação diversa daquela proposta pelo clero adjetivada como heresia.

As primeiras reações da Igreja Católica contra os hereges que redundariam na feição inquisitorial de que tratamos (outras reações existiram, resolvidas em Concílios ou duelos doutrinários) começam durante o papado de Inocêncio III (1198-1216) e têm seu marco histórico em 1215, quando se realiza o IV Concílio Ecumênico de Latrão.

O quadro que serviu de caldo de cultura para o surgimento do processo inquisitivo é relatado com propriedade por Coutinho e Carvalho (2010, p. 22):

 

Em síntese, poder-se-ia dizer que desde o século anterior (século XII), mais particularmente em seu final, a Igreja Católica se debatia com um fenômeno social interessante: pensavam alguns estar em risco o seu domínio sobre o mundo conhecido, do qual era detentora da grande parte. Sua doutrina – era visível – já não encontrava ressonância plena e, portanto, havia discórdia em alguns pontos capitais. Pensava-se que isso era fruto de “doutrinas heréticas” e, portanto, de postulados contrários àqueles pregados desde Roma. Sabia-se, por sua parte, isso só ser possível em razão de outros fundamentos epistêmicos e, assim, não era tarefa fácil, nem banal, o seu combate.

 

Conforme assinala Coutinho e Carvalho (2010), medidas com o intuito de conter o crescimento das heresias já tinham sido tomadas por Inocêncio III, como, por exemplo, aquela que, por meio da Bula Vergentis in senium, em 1199, se equiparava o crime de heresia ao de lesa majestade, historicamente o mais grave dos crimes. Os resultados, todavia, não se mostraram satisfatórios, em virtude de tais punições estarem afetas quase que exclusivamente aos leigos que, ademais, se assenhoravam de significativa parcela de poder em face do crescimento das cidades medievais.

Prossegue Coutinho e Carvalho (2010, p. 23), ainda sobre os fatores que concorreram para a fragilização do primado do pensamento da Igreja: “Outro forte sintoma da fragilidade do domínio do pensamento da Igreja Católica se deu com a criação das Universidades, quase todas produzidas como Studium Urbis, justo para preparar as pessoas para a nova realidade social dos burgos”.

É possível assinalar o marco a partir do qual a Igreja Católica fez a opção pela força, criando um excepcional engenho jurídico que subsiste há oitocentos anos, isto é:

 

No início do século XIII, então, presente o problema, Inocêncio III reúne a cúpula da Igreja Católica em São João de Latrão e, ali, em 1215, decide-se (faz-se uma opção) pela força. É o nascimento de um novo modelo processual, ao qual não interessava aquele que estava em vigor, ou seja, os chamados Juízos de Deus, adotado (ou domesticado?) dos invasores “bárbaros” vindos do norte para demolir o império romano. Tudo se consolida com uma Bula de Gregório IX (Ex Excomuniamus), de 1231, donde se delineia o arcabouço técnico; e com a Bula Ad extirpanda, de Inocêncio IV, em 1252, extendida ao mundo em 1254, pela qual abriu-se o espaço definitivo para os métodos utilizados na Inquisição, de modo que o Inquisitor e Socius se absolvessem mutuamente por eventuais demasias, dentre elas na tortura. A Igreja Católica tocava à barbárie que tanto havia criticado no início do catolicismo romano, quando os católicos foram perseguidos, torturados e mortos (COUTINHO; CARVALHO, 2010, p. 23).

 

Lopes Júnior (2012, p. 123) situa a inquisição espacial e temporalmente, considerando o comportamento da Igreja como:

 

[...] um sistema fundado na intolerância, derivada da “verdade absoluta” de que “a humanidade foi criada na graça de Deus”. Explica Boff que a humanidade – com Adão e Eva – perdeu os dons sobrenaturais (graça) e mutilou os dons naturais (obscureceu a inteligência e enfraqueceu a vontade). À medida que a humanidade se afasta e não consegue mais ler a “vontade de Deus”, surgem as escrituras sagradas, que contêm um alfabeto sobrenatural que permite ter acesso às verdades divinas. Contudo, nasce um novo problema: o livro pode ser lido de diferentes maneiras. Surgem então os Bispos e o Papa, máximos intérpretes e representantes da vontade de Deus. Mas isso não é suficiente, pois eles são humanos e podem errar. Era necessário resolver essa questão, e Deus então se apiedou da fragilidade humana e concedeu a seus representantes um privilégio único: a infalibilidade.

 

Prossegue Lopes Júnior (2012) afirmando que nesse contexto de autoafirmação da Igreja por meio de seus mecanismos de contenção, a verdade não era construída, senão dada pela Igreja por meio de seus concílios, sínodos, encíclicas, bulas e outros instrumentos de seu magistério.

A veemência no combate às doutrinas que conflitavam com os ensinamentos da Igreja partia da ideia de defesa de uma verdade absoluta, que sempre tende a ser autoritária e intolerante.

Coutinho e Carvalho (2010), um dos maiores especialistas em sistemas processuais penais, destaca a influência de tal sistema até os dias coevos, assinalando ser o maior engenho jurídico que o mundo conheceu e conhece. Não obstante tenha sua fonte na Igreja Católica, o sistema não deixa de ser diabólico em sua estrutura, persistindo por 800 anos (se considerarmos o Concílio de Latrão de 1215 como seu nascimento institucional), justamente por ainda servir, à maravilha, aos poderosos de plantão ou seus fantoches, enquanto permanecemos sedados para seus efeitos.

Bastante elucida essa lógica o Manual dos Inquisidores (Directorium Inquisitorum), escrito pelo frade catalão Nicolau Eymerich em 1376, ao depois revisto e ampliado pelo canonista Francisco de la Peña, em 1578.

O teólogo brasileiro Leonardo Boff (1993), que experimentou a imposição de um “silêncio obsequioso” por parte da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, em 1984, então presidida pelo cardeal alemão Joseph Ratzinger (Bento XVI), pontua que ambos eram dominicanos, peritos em jurisprudência e teologia e que sua importância está no fato de terem procedido a uma grandiosa codificação das práticas e das justificativas acerca do controle das doutrinas na Igreja que culminaram na instituição da Inquisição.

Boff (1993) mostra com clareza a dinâmica de todo o processo criador da Inquisição, a partir da crença na verdade absoluta encerrada em seus setores de direção, a autoconsciência da Igreja e o modo como ela construiu ao longo do tempo a sua realidade.

Após perpassar todo o périplo teológico que redundou na sedimentação do magistério eclesiástico e no dogma da infalibilidade papal, estremando quaisquer resquícios de dúvida, expõe Boff (1993) que não cabem, nesses domínios do poder, quaisquer dúvidas ou indagações da razão ou do coração, pois tudo já estaria respondido pelas instâncias supremas. Qualquer dado que conflite ou colida com as “verdades reveladas” só pode significar um equívoco, pois a Igreja é que detém o monopólio dos meios que franqueiam o caminho à eternidade.

Dessa forma, consoante aponta Boff (1993), a heterodoxia se apresenta como um elemento deletério, isto é, aquilo que põe em xeque a coesão ideológica, bem como seus propagadores e prosélitos. Dogma e heresia, assim, são concepções que definitivamente não podem coexistir. Mais grave que a injustiça social, o assassinato, a exploração de quem quer que seja, opressão, genocídios em nome da fé, é a heresia, pois a heresia nega aquelas verdades consideradas como absolutas. Como alta é a periculosidade de tal elemento, igualmente aguda deve ser a vigilância e repressão.

Em nome do resguardo do depositum fidei valem os meios mais vis:

 

Os inimigos da verdade e da reta doutrina (ortodoxia), os hereges verdadeiros ou presumidos devem ser perseguidos lá onde estiverem e exterminados. Deve-se esquadrinhar suas mentes, identificar os acenos do coração, desmascarar ideias que possam levar à heresia. Contra o mal absoluto – a heresia – valem todos os instrumentos e todas as armas. Pois se trata de salvaguardar o bem absoluto – a salvação eterna, apropriada pela adesão irrestrita à verdade absoluta como vem proposta, explicada e difundida pela Igreja. Fora da Igreja não há salvação, porque fora dela não existe revelação divina e por isso verdade absoluta. Podem existir verdades fragmentadas, não sicut opportet ad salutem consquendam (“como devem ser para conseguir a salvação”, como repetem os textos dos concílios), mas incapazes de abrir caminho pelo matagal das confusões humanas e aceder à destinação eterna. Por isso a Igreja é imprescindível (BOFF, 1993, p. 11).

 

Lopes Júnior (2012, p. 126) ressalta as bases a partir das quais foi habilmente construído o sistema inquisitório de processo penal:

 

A estrutura do processo inquisitório foi habilmente construída a partir de um conjunto de instrumentos e conceitos (falaciosos, é claro), especialmente o de “verdade real ou absoluta”. Na busca dessa tal “verdade real”, transforma-se a prisão cautelar em regra geral, pois o inquisidor precisa dispor do corpo do herege. De posse dele, para buscar a verdade real, pode lançar mão da tortura, que se for “bem” utilizada conduzirá à confissão. Uma vez obtida a confissão, o inquisidor não necessita de mais nada, pois a confissão é a rainha das provas (sistema de hierarquia de provas). Sem dúvida, tudo se encaixa para bem servir ao sistema.

           

Boff (1993), ainda no prefácio do Directorium inquisitorum, expõe com argúcia por que o herege mereceu um tão encarniçado combate, esclarecendo que a Igreja sempre se viu cercada de doutrinas destoantes de seu magistério oficial, tendo toda sua história perpassada por episódios em que a doutrina ex cathedra se digladiou com concepções diversas para manter seu primado. O herege, assim, seria aquele que não se satisfaz com o discurso (im)posto, já pronto e irretocável na consciência coletiva, mas cria novos discursos a partir de sua visão e de seu lugar. Está propenso à criatividade e não à autômata reprodução do passado.

No mesmo sentido, West (1969, p. 08) afirma que “aquele que duvida cai em desgraça porque pede tempo para refletir antes de se comprometer num ato de fé. E a liberdade mais difícil de manter é a liberdade de estar equivocado”.

Surgem então os processos de exclusão, em razão da coexistência daqueles que buscam a verdade no meio daqueles que presumem havê-la encontrado. Daí o rompimento da comunhão, cismas, perseguições, cruzadas etc.

Nos primeiros séculos de existência da Igreja, quando preponderavam os carismas sobre a instituição, ainda segundo Boff (1993), os divergentes eram punidos com a excomunhão, vale dizer, eram excluídos da comunidade de crentes. A questão era meramente intraeclesial. A partir do momento em que o cristianismo se transformou em religião oficial do Império, tais problemas se tornaram, também, políticos, pois o cristianismo era o principal fator de coesão e união política. Doutrinas paralelas colocavam em risco a unidade do império. A punição, então, se tornou mais intensa, como excomunhão, confisco de bens, banimento e a condenação à morte.

Antes de tomar maior fôlego, a perseguição aos divergentes já se fazia sentir no seio da Igreja, ainda quando esta não ostentava a influência temporal e espiritual aquinhoada no Império Romano:

 

A perseguição aos divergentes já ocorreu nos séculos IV e V com a crise do donatismo (os rigoristas no norte da África que não concediam o perdão aos que fraquejaram nas perseguições e não reconheciam os sacramentos administrados por eles). O controle e a repressão das novas doutrinas ganharam força no final do século XII e início do século XIII com a eclosão do movimento popular dos cátaros e valdenses no sul da França. Eram movimentos rigoristas, de volta ao espírito simples dos Atos dos Apóstolos, com a pregação itinerante do evangelho na linguagem do povo, levada a efeito, em sua grande maioria, por leigos (BOFF, 1993, p. 13).

 

Para a inquisição canônica a confissão era a regina probationis e, no sistema da prova tarifada, nenhuma prova valia mais que a confissão, motivo pelo qual a defesa tinha função meramente nominal e topograficamente incluída entre os obstáculos à rapidez de um processo. Uma vez que a verdade é fundante do discurso inquisitório e que o herege detém a verdade em seu corpo, a confissão é elevada à categoria de prova plena:

 

Nos outros tribunais, só a confissão não prova suficientemente o crime (no entanto, num caso de homicídio, basta a confissão do criminoso, se houver o cadáver da vítima). Diante do Tribunal da Inquisição, basta a confissão do réu para condená-lo. O crime de heresia é concebido no cérebro e fica escondido na alma: portanto, é evidente que nada prova mais do que a confissão do réu. Eymerich tem absoluta razão quando fala da total inutilidade da defesa (EYMERICH, 1993, p. 138).

 

Prossegue o mendicante frade catalão Eymerich (1993, p. 139), acerca da desnecessidade da defesa técnica:

 

Se houver um advogado, ele tem que ser muito fervoroso, diz Eymerich. Será excluído da Igreja, e a fortiori, do Tribunal da Inquisição, todo advogado herege, suspeito de heresia ou com fama de herege. Deve-se ter a garantia de que o advogado é de boa família, de antiquíssimas raízes cristãs. Se o réu confessar, não há necessidade de um advogado para defendê-lo. Se não quiser confessar receberá ordens de fazê-lo por três vezes. Depois, se continuar negando, o inquisidor lhe atribuirá, automaticamente, um advogado juramentado no seu tribunal. O réu comunicar-se-á com ele na presença do inquisidor. Quanto ao advogado, prestará juramento – embora já seja juramentado – ao inquisidor de defender bem o réu e guardar segredo sobre tudo que vir e ouvir. O papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido.

 

Sendo a confissão revestida de real importância, o interrogatório era parte essencial do procedimento inquisitivo, a exigir uma técnica toda especial, que amiúde se valia da tortura como meio de coação conducente à confissão.

A tortura era praticada da forma mais sofisticada possível, aplicada de forma progressiva pelo inquisidor. Eram raros os casos em que o procedimento chegava ao fim sem que se tivesse recorrido à tortura, livrando-se mutuamente o inquisidor e o bispo das irregularidades cometidas através da tortura.

Sobre a gradação dos suplícios, dispõe o praxista:

 

Na nossa perspectiva, existem cinco tipos de torturas, constituindo-se em cinco graus diferentes. Não vou descrevê-los porque são conhecidos por todo mundo (cuique sunt obvii et patentes) e porque toda a descrição minuciosa se encontra nas obras de Paul Grilland (Traité la torture, q.4, nº 11), Jules Clair (Pratique criminelle, sub fin., q.64) e ainda outros. A lei não diz que tipo de tortura deve-se aplicar. Portanto, a escolha é deixada ao arbítrio do juiz, que escolherá umas ou outras, de acordo com a posição social do réu, o tipo de indícios, e outras coisas mais. Porém, o inquisidor não deve empenhar-se em descobrir novas torturas. Restringe-se àquelas que, na sua sabedoria, os juízes sempre admitiram, como explica de uma maneira bonita e clara (pulchre et clare) Antonio Gómez: em sua obra, lê-se, por exemplo, que, atualmente, a tortura através de cordas é aplicada, com muita frequência, em toda parte (hodie ubique frequens), não sendo preciso abandoná-la (EYMERICH, 1993, p. 210).

 

A Inquisição não isentava qualquer pessoa de ser torturada, como ocorria nos mais rudimentares ordenamentos jurídicos de então, haja vista ser a heresia um crime de lesa majestade divina, não merecedor de qualquer indulgência. Os eclesiásticos, segundo Eymerich (1993), seriam torturados com menor rigor, em respeito ao seu ministério e os algozes deveriam ser sacerdotes ou religiosos, a menos que não existissem clérigos capazes de torturar. Como lamenta Eymerich, na maioria das vezes os padres e religiosos eram torturados por leigos.

Outra das características do procedimento inquisitivo era a inexistência da res iudicata, não se declarando inocente o investigado, mas apenas esclarecendo que nada foi legitimamente provado contra ele. De acordo com Lopes Júnior (2012, p.126): “Dessa forma, mantinha-se o absolvido ao alcance da Inquisição e o caso poderia ser reaberto mais tarde pelo tribunal, para punir o acusado sem o entrave do trânsito em julgado”.

Com percuciência, preleciona Coutinho e Carvalho (2010, p.04):

 

O modelo é genial, não fosse, antes, diabólico, embora nascido, como se viu, no seio da Igreja Católica. Em um tempo extremamente místico, não poderia ser diferente. Resistiu – e resiste – como o mais apurado sistema jurídico do qual se tem conhecimento, tendo persistido por tanto tempo justo por sua simplicidade, isto é, porque usa o próprio modelo de pensamento (por excelência) da civilização ocidental.

 

Por tais características, o sistema processual inquisitivo sempre se conformou com modelos autoritários, ditatoriais:

 

Ao permitir – sobremaneira – que se manipule as premissas (jurídicas e fáticas), interessa e sempre interessou aos regimes de força, às ditaduras, aos senhores do poder. Podendo-se orientar o êxito, faz-se o que quiser. É o reino do solipsismo, por excelência. Daí ter durado tanto tempo; e seguir intacto, em muitos pontos, ainda que os novos tempos, pela realidade, duramente o tenham atingido, mormente por lhe desmascarar o falso discurso (COUTINHO; CARVALHO, 2010, p.04).

 

As descobertas científicas encetadas por Nicolau Copérnico (1473-1543), um religioso polonês que dedicou sua obra sobre a revolução das órbitas celestes ao papa Paulo III, com as quais a Terra perdeu seu ponto fulcral e o movimento tornou-se eixo, reverberadas, ao depois, por Giordano Bruno, queimado em 1600 pela Inquisição, bem como os descobrimentos de Colombo, que comprovam a esfericidade da Terra e daí ao secularismo que se seguiu, sobretudo na França, contribuíram para o declínio do modelo confessional de sistema processual inquisitivo, mas não representou, como anota Carvalho (2005), uma ruptura com a lógica inquisitorial, que subsiste com máscaras e nos imbrogli retorici emprestados pelos poderosos do momento.

 

2.3 Sistemas processuais mistos e sua (in)existência: um monstro bicéfalo

 

Em respeitável sede doutrinária há quem afirme que os sistemas processuais penais são conceitos ultrapassados, sem qualquer utilidade prática, se prestando mais a obscurecer a clareza conceitual no âmbito do direito processual penal. Entre os doutos, por todos, pode-se citar o processualista espanhol Juan Montero Aroca, fundamentando sua opinião no fato de os sistemas processuais penais puros, ou seja, tal qual surgiram historicamente, não mais existirem em nenhum ordenamento jurídico, subsistindo tão somente sistemas híbridos, com proeminência das características de um ou outro sistema.

Na mesma toada de Montero Aroca está o pensamento de Bonfim (2013, p.73):

 

Se olharmos as características de ambos os sistemas, veremos que se encontram presentes, ainda que em diferentes graus e momentos, nos dois sistemas que “tradicionalmente” se opõem, ou seja, o chamado inquisitório e o acusatório. Em outras palavras: ambos os sistemas contêm em menor ou maior grau as mesmas características geralmente apontadas como pertencentes a sistemas diversos. Assim, tais princípios ou características nada dizem a respeito de um ou outro pretendido sistema, de modo a poder identificá-los claramente com base nelas, daí a inexistência de um sistema que pudesse ser sempre absolutamente puro, a enquadrar-se em um rol predeterminado de características.

 

Ainda segundo Aroca (2000), não existem dois sistemas processuais, mas sim dois sistemas de atuação do Direito Penal pelos operadores do Direito, dos quais um não é processual (o inquisitório) e o outro possui natureza processual (o acusatório). A rigor, a expressão “processo inquisitório” só teria validade num dado momento histórico no qual era tênue ou inexistente a demarcação dos campos administrativos dos jurisdicionais, pois o modus operandi inquisitório não foi nem poderia ser verdadeiro processo, se este se identifica como actum trium personarum, no qual, perante um terceiro suprapartes se apresentam as partes, paritariamente, com o conflito que pretendem ver resolvido. Processo inquisitório, portanto, seria uma contradictio in terminis e, lado outro, dizer processo penal acusatório seria pleonasmo, pois não pode existir processo penal senão sob o sistema acusatório.

Acentuando ser respeitável a posição de Aroca (2000), uma vez que na concepção contemporânea de processo somente a configuração acusatória mereceria tal designação, Khaled Júnior (2013) indaga o que seria, então, o processo inquisitório: práticas ou método? Para o processualista gaúcho, Aroca (2000) rompe desnecessariamente com concepções historicamente assentadas na literatura processual, sem qualquer relevância para o progresso científico.

Conforme doutrina de Khaled Júnior (2013), embora tenha sido a Revolução Francesa o principal marco das inovações e transformações no âmbito das práticas punitivas, autores fundamentais anteriores à Queda da Bastilha como Monstesquieu, Locke e Voltaire contribuíram muito para a filosofia que depois seria transposta para o direito penal iluminista por Beccaria, Verri e Bentham.

De forma progressiva, já na segunda metade do século XVIII, pontua Khaled Júnior (2013), as ideias de reforma do sistema punitivo foram ganhando espaço, gradualmente se estabelecendo os fundamentos do direito penal moderno. Beccaria, Bentham e Brissot realizaram uma verdadeira reelaboração teórica da lei penal.

Após a Revolução Francesa, dispõe Khaled Júnior (2013), na tentativa de romper com o sistema acusatório, Jean-Paul Marat desenvolve em 1778 O plano de legislação criminal, editado em 1790. Nesse trabalho, as práticas inquisitórias pareciam prestes a tornarem-se memórias.

A influência do sistema acusatório inglês quanto à postura do juiz era nítida:

 

Não cabe aos juízes estabelecer provas do delito, mas cabe a ele [sic] examinar imparcialmente aquelas apresentadas e de pronunciar se elas são suficientes para declarar culpado o acusado. Não é, portanto, por conhecimentos particulares que deverão fazê-lo, muito menos por suposições que decidirão contra o acusado. Tudo o que não souberem pelo acusador, devem ignorar, e tudo o que não estiver juridicamente estabelecido deve permanecer nulo a seus olhos. Que jamais procurem criar armadilhas a um acusado, embaraçá-lo com perguntas capciosas, obrigá-lo a cair em contradição, ou obter dele, por falsas promessas, a confissão de seu crime, precaução alheia a suas funções e indignas de seu caráter. Feitos para impedir oscilações na balança da justiça, devem ter em vista o triunfo da verdade, e procurar mantê-la equilibrada apenas por meios honestos (MARAT, 2008, p. 172).

 

Noticia Khaled Júnior (2013) que em 1790 foram extintos todos os tribunais do ancien règime e a reforma orgânica de 1791 derrogou a antiga Ordenação Criminal de 1670, tendo a Assembleia Constitucional criado, ao depois, a lei processual penal de setembro de 1791.

Esses avanços, todavia, foram comprometidos no momento de sua transposição para a prática, pois como assertoa Khaled Júnior (2013) o sistema logo assumiu feições inquisitórias. Como descreve Carvalho (2008, p. 71), “as reformas oitocentistas no discurso penal e processual penal, ponto máximo do processo que se inicia no século XVI, apesar de estabelecerem como variável fundamental a secularização, não lograram exorcizar a lógica inquisitorial da cultura penal”.

Assinala Khaled Júnior (2013) que em 1795, no contexto da Reação Termidoriana, o Code des délits et de peines estabeleceu o monopólio da acusação pública e o presidente do júri parecido ao que futuramente seria o juiz instrutor. Essa involução foi justificada sob o argumento de que os avanços do sistema acusatório foram incapazes de garantir o pacto social. Esse processo de recrudescimento das leis processuais redundou no Code d’instruction criminelle de 1808.

Historicamente, consoante lição de Lopes Júnior (2012), o ordenamento precursor dessa classificação mista de sistema processual penal foi o Code d’Instruction Criminelle de 1808, em vigor desde 01/01/1811, por ter sido o pioneiro na separação das fases de investigação e juízo.

Tal diploma, vazado pela astúcia política de Jean-Jacques-Régis de Cambacérès, jurista da confiança de Napoleão Bonaparte, pôs-se a serviço da pretensão deste de empalmar todo o poder na França emasculada pela Revolução Vitoriosa e nos domínios de seu cetro, que exerceu peculiar influência em toda a Europa continental.

Tal modelo se caracterizava por uma primeira fase marcadamente inquisitiva (de que nosso inquérito policial é filho bastardo) e uma outra formalmente acusatória, em que se faziam presentes contraditório e publicidade. Explica com precisão Lopes Júnior (2012, p. 130):

 

É isso que Jean-Jacques-Régis de Cambacérès faz passar no Código napoleônico, de 17/11/1808. Segundo HÉLIE (Traité, I, 178, §539), é ‘la loi procédure criminelle la moins imperfaite’ du mond. . Enfim, monstro de duas cabeças; acabando por valer mais a prova secreta que a do contraditório, numa verdadeira fraude. Afinal, o que poderia restar de segurança é o livre convencimento, ou seja, retórica e contra-ataques; basta imunizar a decisão com um belo discurso. Em suma: serviu a Napoleão, um tirano; serve a qualquer senhor; não serve à democracia.

 

No mesmo sentido é a opinião de Ferrajoli (1997, p. 566), para quem o Código Napoleônico de 1808 deu vida a um “monstruo, nacido de la unión del proceso acusatorio con el inquisitivo, que fue el llamado proceso mixto”.

Os prejuízos para o acusado eram enormes, pois, conforme Khaled Júnior (2013), passava-se da escuridão da colheita de provas e da instrução do processo pelo solitário juiz instrutor à luz dos debates orais, da publicidade, plena discussão, numa distribuição bastante desigual, considerando-se o peso efetivo das fases.

Prossegue com sua crítica Lopes Júnior (2012, p. 130):

 

A fraude reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do julgador para imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado com as mais variadas fórmulas, do estilo: a prova do inquérito é corroborada pela prova judicializada; cotejando a prova policial com a judicializada; e assim todo um exercício imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma condenação, que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da inquisição. O processo acaba por converter-se em uma mera repetição ou encenação da primeira fase.

 

Pode se concluir, com segurança, que Napoleão sabia que a mudança operada sob seus auspícios tinha como desiderato manter tudo como antes, isto é, o discurso do personagem Tancredi, de Il Gattopardo, romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Se vogliamo che tutto rimanga com’è, bisogna che tutto cambi”.

Do ponto de vista da postura atribuída ao juiz, anota Khaled Júnior (2013), o Código Napoleônico de 1808 atribuía ao juiz um lugar diametralmente oposto àquela postura receptiva do plano de legislação criminal de Marat.

O sistema misto (ou inquisitório reformado) era, na verdade, inquisitório na essência, em razão dos princípios materiais que o informavam, ainda que sob um invólucro aparentemente acusatório, meramente formal. Khaled Júnior (2013) sustenta que o sistema misto preserva a epistemologia inquisitória, ainda que de forma velada. Sob a tiara de Napoleão, o poder não poderia jamais abrir mão do controle sobre o saber.

As garantias do acusado da fase aparentemente acusatória eram esvaziadas diante do juiz que decidiria o caso penal, pois, seguindo o raciocínio de Khaled Júnior (2013), a fase inquisitória da primeira etapa do procedimento fazia da segunda fase uma encenação pseudoacusatória, em que a hipótese acusatória já vinha dada pelo juiz, coletor dos elementos levados à apreciação.

Carvalho (2008) aponta que esse monstro bicéfalo, universalizado pelo Código Napoleônico, mantém a lógica inquisitória e recondiciona o trabalho dos sujeitos processuais, mormente o juiz, na busca incessante da verdade correspondente.

A par de tais considerações sobre o sofisma em que se funda a ideia de sistema processual misto, é momentosa para a compreensão do problema a concepção kantiana de sistema que nos dá Coutinho e Carvalho (2010, p. 07):

 

Ora, como se sabe, foi Kant que concebeu, na sua Arquitetônica da Razão Pura (na sua obra Crítica da Razão Pura), a possibilidade de se encontrar a verdade em estruturas complexas e assim o fez imaginando a possibilidade de se conhecer os conjuntos (sýstema, do grego). Para ele, sistema era o conjunto de elementos colocados em relação sob um [sic] ideia única. Ela, por sua vez, seria determinada pela finalidade do conjunto e estaria colocada como princípio de ligação entre os elementos integrantes, logo, funcionaria como um princípio unificador, reitor da conexão e, como tal, dado a priori. Foi assim que se pôde pensar em sistemas nos mais variados campos, algo que vai do sistema solar ao sistema de governo, ou seja, matéria aparentemente de conhecimento corriqueiro no cotidiano. Em todos, porém, há um princípio unificador.

 

Destarte, a partir da compreensão de Coutinho e Carvalho (2010), todas as ciências possuem um princípio unificador, representante daquela verdade que, se existir, não pode ser dita, pela inópia da linguagem. Tal princípio reitor, fundante, é um mito, isto é, verdade dita, como linguagem, no lugar daquela outra inominável verdade.

Como ideia única, o sistema – em processo penal acusatório ou inquisitório – não comporta divisão, até porque é elementar não existir princípio misto. O problema, assim, passa a ser meramente conceitual, não fático:

 

Salvo os menos avisados, todos sustentam que não temos, hoje,sistemas puros, na forma clássica como foram estruturados. Se assim o é, vigoram sempresistemas mistos, dos quais, não poucas vezes, tem-se uma visão equivocada (ou deturpada), justo porque, na suainteireza, acaba recepcionado como umterceiro sistema, o que não é verdadeiro. O ditosistema misto, reformado ou napoleônicoé a conjugação dos outros dois,mas nãotem um princípio unificador próprio, sendo certo que ou éessencialmente inquisitório(como o nosso), com algo (características secundárias) proveniente do sistema acusatório, ou éessencialmente acusatório, com alguns elementos característicos (novamente secundários) recolhidos do sistema inquisitório. Por isto, formalmente podemos considerá-lo como um terceiro sistema, mantendo viva, sempre, a noção referente a seuprincípio unificador, até porque está aqui, quiçá, o ponto de partida daalienação que se verifica no operador do direito, mormente o processual, descompromissando-o diante de um atuar que o sistema está a exigir ou, pior, não o imunizando contra os vícios gerados por ele. Visitá-los, ainda que brevemente, é tarefa imprescindível, para se verificar suas estruturas e, a partir daí, situar o papel que desempenha no atuar dos operadores jurídicos e, mais particularmente, dos juízes no processo penal (COUTINHO, 2015a, s.p.).

 

Khaled Júnior (2013) chama a atenção para o fato do mesquinho avanço de lá para cá, pois ainda hoje vários sistemas processuais penais continuam marcados pelos traços inquisitoriais de então, permitindo uma postura inadequada ao juiz e admitindo o emprego, no processo, de elementos de informação colhidos à socapa do contraditório, o que seria inadmissível num contexto acusatório.

É o que se verifica, seguramente, no atual Código de Processo Penal brasileiro de 1941, diploma que consagra um magistrado bem aproximado daquele juiz instrutor do Código de Napoleão, autorizado a valorar, para a formação de seu convencimento, os elementos de prova produzidos no inquérito policial, pois, se é verdade que o próprio Código de Processo Penal veda a fundamentação da condenação unicamente sobre os elementos do procedimento preliminar, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, como demonstra o art. 155, na prática não existem critérios de controle para essa contenção que impeçam que simples recursos argumentativos driblem a vedação e saciem a ambição de verdade que dá os tons do sistema inquisitório.

 

2.4 Superação do inquisitório versus acusatório: sistema processual democrático

 

Entendendo superado e insuficiente o discurso segundo o qual o núcleo fundante de um sistema processual penal seria a gestão da prova, isto é, inquisitório, se admitida a produção da prova de ofício e, por seu turno, acusatório, se nas mãos das partes, Lopes Júnior (2013, p. 05) propõe a passagem para uma terceira fase na concepção de sistemas processuais, abandonando os termos “acusatório” e “inquisitório”, pois, segundo ele, “excessivamente ‘rotulados’, arraigados em visões tradicionais e lutas conceituais infindáveis” (Lopes Júnior, 2013, p. 05).

Preleciona o processualista gaúcho acerca do giro da verdade real (absurda) para a verdade formal (ilusória):

 

Considerando que ainda (sub)existem autores a atores judiciários que sustentam a mitológica “verdade real” para justificar suas práticas autoritárias, e muitos que acreditam “resolver o problema” partindo para a verdade processual/formal, é bastante complicado fazê-los compreender que o problema está na “verdade” e não no adjetivo que a ela se una (Carnelutti). O eterno debate entre “verdade possível x verdade inalcançável” arrasta-se sem solução e nenhum avanço relevante gera para o processo penal. É preciso pensar um processo liberto do peso da “verdade” (como explicaremos ao tratar da prova penal), em que a decisão penal é construída em contraditório, dentro das regras do jogo, demarcada pela prova licitamente produzida. A “verdade” é contingencial e não fundante. Mas isso é outra grande revolução que se deve operar no senso comum teórico (LOPES JÚNIOR, 2013, p. 05).

 

Pari passu, Lopes Júnior (2013) assinala a completa superação das discussões acerca de sistemas processuais na doutrina alienígena, pois também lá fora já é lugar pacífico a superação das premissas que fundavam tais discussões. Atualmente, o problema sobre o qual debruçam-se é a eficácia ou ineficácia do sistema de garantias da Constituição e também das convenções internacionais de direitos humanos.

O sistema de direitos e garantias fundamentais previsto na Constituição de 1988, como anota Mendes e Branco (2013), não pode ter sua eficácia esvaziada pela ação legislativa, daí a necessária proteção ao seu núcleo essencial, o que pode ser visto na vedação contida no texto constitucional de qualquer manifestação do poder constituinte derivado de reforma tendente a abolir os direitos e garantias individuais (CF, art. 60, §4º, IV).

Com o senso crítico que caracteriza sua contribuição acadêmica para o processo penal pátrio, assinala Lopes Júnior (2013, p. 05): “Não se pode mais ficar debatendo de forma estéril (e às vezes histérica) conceitos e concepções do século XVIII, ou ainda mais remotos, deixando de lado as novas exigências sociais, processuais e, principalmente, democráticas e constitucionais”.

 

Prossegue o mestre da PUCRS, pontuando a insuficiência do conceito acusatório:

 

É preciso, como explica Cunha Martins, fazer um deslocamento prévio dos pressupostos da discussão, sob pena de esbarrar no eterno re-dizer da centralidade e escassear as possibilidades de efetiva reconsideração do problema. A nova ordem democrática exige um rompimento, pois cria um verdadeiro obstáculo epistemológico. Daí o valor do critério de democraticidade de Cunha Martins, pois dizer “democrático” é dizer o contrário de “inquisitivo”, é dizer o contrário de “misto” e é dizer mais do que “acusatório” (LOPES JÚNIOR, 2013, p. 05).

 

Para o mestre da Universidade de Coimbra, mais que a preocupação de conformar um sistema processual acusatório, deve existir, por parte desse sistema, o compromisso com a democraticidade, em função da qual o sistema acusatório serve de instrumento:

 

Inquisitivo, o sistema não pode legalmente ser; misto também não se vê (porque se é misto haverá uma parte, pelo menos, que fere a legalidade); acusatório, pode ser, porque se trata de um modelo abarcável pelo arco de legitimidade. Mas só o poderá ser à condição: a de que esse modelo acusatório se demonstre capaz de protagonizar essa adequação. Mais do que acusatório, o modelo tem que ser democrático. A opção por um modelo de tipo acusatório não é senão a via escolhida para assegurar algo de mais fundamental do que ele próprio: a sua bandeira é a da democracia e ele é o modo instrumental de a garantir. Pouca virtude existirá em preservar um modelo, ainda que dito acusatório e revestido, por isso, de uma prévia pressuposição de legalidade, se ele comportar elementos susceptíveis de ferir o vínculo geral do sistema (o tal “princípio unificador”: a democraticidade), ainda quando esses elementos podem até não ser suficientes para negar, em termos técnicos, o caráter acusatório desse modelo. Não é o modelo acusatório enquanto tal que o sistema processual democrático tem que salvar, é a democraticidade que o rege (MARTINS, 2010, p. 93-94).

 

Em tal sistema democrático e constitucional, o princípio unificador seria única e suficientemente a democraticidade, como assinala Lopes Júnior (2013, p. 05):

 

Um sistema não pode ser inquisitório porque substancialmente inconstitucional (como o são diversos dispositivos do CPP); tampouco pode ser misto, pois admitiríamos que ao menos metade dele é inconstitucional... Pode ser acusatório, por elementar, pois conforme a Constituição. Mas o problema é: isso basta? E, novamente: o que se entende por acusatório? Por isso, mais do que acusatório, deve ser democrático, deve ser instrumento de garantia da democracia.

 

Destarte, consoante o preconizado por Lopes Júnior (2013), mais que discutir acerca das notas de um sistema acusatório, inquisitório ou misto, imperiosa é a verificação da democraticidade, isto é, se o sistema cria as condições necessárias para a efetivação das regras do jogo, para o fair play, mormente o contraditório e seus consectários da ampla defesa e imparcialidade do julgador. Aliás, tais garantias são umbilicalmente ligadas, uma vez que somente o hígido contraditório pode assegurar uma também saudável ampla defesa e, ambas as garantias, assegurar a imparcialidade (terzietà) do julgador.

Assertoa que um sistema processual penal democrático deve ser comprometido com a máxima eficácia do sistema de garantias consagrado na Constituição, norteado pelo amor ao contraditório:

 

O sistema processual penal democrático impõe a máxima eficácia das garantias constitucionais e está calcado no “amor ao contraditório”. É aquele que, partindo da Constituição, cria as condições de possibilidade para a máxima eficácia do sistema de garantias fundamentais, estando fundado no contraditório efetivo, para assegurar o tratamento igualitário entre as partes, permitir a ampla defesa, afastar o juiz-ator e o ativismo judicial para garantir a imparcialidade. No modelo fundado na democraticidade, há um fortalecimento do “indivíduo”, um fortalecimento das partes processuais. A decisão, na linha de Fazzalari, é “construída em contraditório”, não sendo mais a jurisdição o centro da estrutura processual e tampouco o “poder” jurisdicional se legitima por si só (LOPES JÚNIOR, 2013, p. 05).

 

O fortalecimento do indivíduo deve ser imantado para todo o sistema processual democrático, prestigiando a participação daqueles que serão atingidos pelo provimento jurisdicional na sua construção, consoante a busca de uma democracia substancial.

Conclui o autor já citado pela estafa do tradicional problema inquisitório versus acusatório, sendo necessário fazer o deslocamento do foco da discussão tradicional, o que leva a uma infeliz conclusão do problema. Este alinhamento do atual modelo brasileiro deve ter como ponto de partida a Constituição Federal de 1988 e a Convenção Americana de Direitos Humanos, recepcionada em nosso ordenamento jurídico como norma supralegal (RE 466.343/SP), por meio do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, bem conhecido entre nós como Pacto de São José da Costa Rica.

A proposta feita por Lopes Júnior, contudo, recebe acerba crítica de Coutinho (2015b), para quem os adjetivos acusatório e inquisitório se ligam a um sistema, que se coloca como substantivo e, como tal, não pode nunca ser esquecido. A dogmática jurídica, que não é simples, não poderia, assim, ser substituída por “achismos”, tão avessos à doxa aristotélica.

Prossegue Coutinho (2015b), afirmando que não é desejável querer superar a imperativa e imprescindível necessidade de se dar efetividade à Constituição de 1988, fazendo prevalecer o sistema acusatório, aduzindo não serem importantes o fato de o sistema ser acusatório ou inquisitório, já que a efetividade constitucional já garantiria, de per si, a democraticidade. Sustenta, na mesma oportunidade, que não é tão simples a superação do sistema processual inquisitório, depois de oito séculos, com soluções tão simplistas.

 

 

3 O SISTEMA PROCESSUAL PENAL ATUAL: o sistema inquisitivo do CPP de 1941

 

Não é necessário um esforço hercúleo para perceber que o Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, que constitui o atual Código de Processo Penal brasileiro, publicado sob o governo ditatorial de Getúlio Vargas, foi vazado sob a influência de um sistema processual eminentemente inquisitorial, que, sem dúvida, era o que melhor servia ao momento político. Já se disse alhures, quando da abordagem dos sistemas processuais, que o sistema processual inquisitivo (ou misto, para os incautos ou mal informados), com os retoques epidérmicos necessários, serve a qualquer regime autoritário, despótico, de exceção.

O Código de Processo Penal de 1941, para Lopes Júnior (2012), não passa de cópia malfeita do Codice Rocco de 1930, da Itália, que, por sua vez, foi uma cópia ruim do Code d’Instruction Criminelle, dito Code Napoléon, de 17/11/1808 e em vigor desde 01/01/1811.

Todos esses diplomas foram elaborados para servirem a regimes totalitários: fascista e neoabsolutista, respectivamente. Não servem, contudo, por maior contorcionismo que se faça, a um regime que se pretenda democrático.

O espírito inquisitório do Código de Processo Penal de 1941 é facilmente percebido ao se ler seu “cartão de visitas”, a Exposição de Motivos redigida pelo então Ministro da Justiça Francisco Campos, que defendia com mãos pesadas o Estado Novo, do qual foi um dos principais artífices.

É oportuno considerarmos a figura de Francisco Campos, pois ele encarna perfeitamente o pensamento jurídico autoritário e antidemocrático do regime fundado em novembro de 1937. Segundo Godoy (2013), a Francisco Campos coube a tarefa de configurar o desenho institucional do regime varguista e de seu arcabouço jurídico-normativo. Foi levado para a política federal como fiador da aliança entre Getúlio Vargas e Olegário Maciel, então Presidente de Minas Gerais por ocasião da Revolução de 1930.

Conforme Santos, M. (2007), Francisco Campos foi um dos maiores ideólogos autoritários da história republicana brasileira, avesso às formas de representação democrática, que taxava de estéreis e ineficientes, reclamando uma autoridade centralizadora, contenção dos irrefreáveis instintos irracionais das massas.

Assinala Santos, M. (2007) que, em razão de sua exuberante cultura jurídica, o que lhe rendeu o epíteto de “Chico Ciência”, Francisco Campos foi o responsável pela legitimação da guinada autoritária que teve lugar a partir de 1937, amparada por seu pensamento político e jurídico, desenvolvida com bastante precedência, ainda nos tempos de seu curso jurídico na Faculdade Livre de Direito de Belo Horizonte. Referindo-se a Francisco Campos, Rubem Braga diria que “todas as vezes que são acessas as luzes de Chico Ciência, são apagadas as luzes da democracia brasileira”.

Como mentor do regime de exceção instalado em 10 de novembro de 1937 e ghost writer dos discursos de Vargas, Faoro (2001, p. 833) acentua que Francisco Campos contribui para a forja do César nativo “armado com a lâmina fascista, temperada em leituras nacional-socialistas”.

Afirmando a necessidade de recrudescer a repressão e a eficiência do sistema de persecução penal, Francisco Campos não esconde as fontes nas quais se abeberou:

 

As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum (CAMPOS, 2015, p. 615).

 

Mais adiante a Exposição de Motivos afirma ter reduzido ao mínimo as nulidades processuais, confundidas com perda de tempo; restringe o in dubio pro reo; confere elasticidade à segregação provisória; atribui ao juiz poderes instrutórios na produção probatória, visando explorar o quanto possível as possibilidades de prova até pronunciar o favor rei ou o non liquet; considera afrontosa a intangibilidade de criminosos surpreendidos após o período de flagrante; torna obrigatória a decretação da prisão preventiva em certos casos etc.

Os espaços da informalidade, típicos de um modelo inquisitivo de processo, também podem ser verificados na Exposição de Motivos, item XVII, onde Campos (2015, p.620) afirma:

 

O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades. É consagrado o princípio geral de que nenhuma nulidade ocorre se não há prejuízo para a acusação ou a defesa. Não será declarada a nulidade de nenhum ato processual, quando este não haja influído concretamente na decisão da causa ou na apuração da verdade substancial. Somente em casos excepcionais é declarada insanável a nulidade.

 

Da leitura, pois, do introito do atual Código de Processo Penal se percebe a tensão existente entre o modelo consagrado em tal diploma e uma pretensão acusatória e democrática de processo penal.

Sobre a incompatibilidade do modelo constante do Código de Processo Penal e a Constituição de 1988 é lição de Lopes Júnior (2014c, s.p.):

 

É evidente que nada disso poderia sobreviver no pós-constituição, que não resiste a uma filtragem constitucional e democrática, mas sobrevive. Pouca gente atenta para o absurdo que ali está escrito. A estrutura inquisitória é amorfa por excelência, pois é no espaço da informalidade que o autoritarismo se esparrama. É um perigo total, pois esvazia o conteúdo das regras do jogo.

 

Um devido processo penal constitucional é incompatível com o sistema do vigente Código de Processo Penal, totalmente inquisitorial. Não se pode levar a sério uma ordem constitucional que contemporize com um modelo que lhe afronte, às escâncaras, como o atual diploma processual. Aí reside o déficit de cidadania que se verifica, facilmente, no sistema de tecnologia punitiva, terminologia utilizada por Silvério Júnior (2014). A declaração de não recepção do atual CPP se imporia se em terrae brasilis aqueles que ocupam função de poder tivessem vergonha, mesmo em tempos bicudos como os nossos.

Essa coexistência é maléfica para a implementação dos objetivos colimados pela nova ordem jurídica e, por que não dizer, pelo Novo Estado, fundados a partir de 05 de outubro de 1988, fazendo com que a Constituição fique permanentemente a reclamar sua efetivação, não constituindo, não conformando as bases da pirâmide ao seu pináculo. A contrario sensu, o que percebemos, não sem a mesma indignação, é um qualificado esforço para fazer com que a Constituição se amolde ao sistema processual inquisitório esposado pelo Código de 1941. As reformas pontuais levadas a efeito em 2008 e 2009 demonstram isso, com as ressalvas das boas intenções que também devem ser aplaudidas.

Sobre tais remendos, são deveras apropriadas as considerações de Coutinho (2008, s.p.):

 

Há sempre coisas não ditas acompanhando o que se diz e podem ser elas as mais significativas caso se queira compreender, de fato, o que está por trás dos discursos fáceis que dominam o cenário das reformas do Código de Processo Penal brasileiro. Tratam-se, como se sabe, de tentativas de reformas parciais, algumas absurdas, outras incongruentes, todas lotadas de boas intenções e poucas perspectivas de que venham a vingar, mormente naquilo ao qual se propõem como soluções salvadoras.

 

Tais mudanças pontuais, quando não vocacionadas a fazer com que tudo permaneça como está, trazem a reboque o discurso, sempre perigoso, do punitivismo e da repressão, consectários do movimento lei e ordem. Assim pontua Coutinho (2008, s.p.):

 

O que se tem tentado fazer, em primeiro lugar (mas com as devidas exceções importantes como a simplificação dos quesitos no procedimento do Júri, hoje quase uma balbúrdia), são mudanças para tudo permanecer como sempre esteve, cumprindo o discurso de Il Gattopardo, no romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Se vogliamo che tutto rimanga com’è, bisogna che tutto cambi”; em segundo lugar – o que é pior – tudo vem sendo conduzido sob a égide do discurso fácil da celeridade que adquire, no processo penal, feição por demais perigosa aos direitos fundamentais (a começar pelo devido processo legal), restando, em ultima ratio, por ser apenas uma palavra sutil no lugar do punitivismo e repressão e, portanto, no mais das vezes, indo de encontro aos princípios e regras constitucionais.

 

Vê-se, portanto, que sem um ataque ao núcleo do problema do atual sistema processual, qualquer reforma será considerada uma evasiva na resposta que o legislador deve dar, no sentido de tornar a Constituição de fato o fundamento de validade de todo o sistema supralegal e infraconstitucional.

Assim anota Coutinho (2008, s.p.):

 

O que se há de reafirmar, enfim, é que reformas parciais não mudam o sistema porque não vão no núcleo do problema, ou seja, no princípio inquisitivo, que permanece intacto, o que se pode constatar com as recentes reformas, mormente aquela referente à prova e, nela, no que diz com a chamada teoria geral da prova. Basta que se veja, neste sentido, a nova redação do art. 156, do CPP, dada pela Lei n. 11.690, publicada em 10.06.08, que faculta ao juiz, de ofício, determinar a produção de provas e a realização de diligências que julgar necessárias para “dirimir suas dúvidas”.

 

Considerando que a posição do juiz, destinatário primeiro das normas do sistema de garantias, é primordial para a definição de um sistema processual como acusatório ou inquisitório, o atual Código de Processo Penal é infenso a qualquer dúvida do sistema processual pelo qual optou. Para isso, basta percorrer os olhos sobre seus artigos e se perceberá a gama de dispositivos que permitem que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora, como, verbi gratia, permitir que o juiz de ofício converta em preventiva a prisão em flagrante (art. 310), o que equivale a prisão decretada ex officio; permite que o juiz decrete a prisão preventiva de ofício no curso do processo; busca e apreensão (art. 242), sequestro (art. 127); ouça testemunhas além das indicadas (art. 209); proceda ao reinterrogatório do réu a qualquer tempo (art. 196); determine diligências de ofício durante a fase processual e até mesmo no curso da investigação preliminar (art. 156, incisos I e II); reconheça agravantes ainda que não tenham sido alegadas (art. 385); condene ainda que o Ministério Público tenha postulado a absolvição (art. 385); altere a classificação jurídica do fato (art. 383) etc.

É importante que se verifique com acuidade o novo texto do art. 156 do Código de Processo Penal, com a nova redação dada pela Lei n. 11.690/2008, que faculta ao juiz, de ofício, determinar a produção de provas e a realização de diligências, antes mesmo da ação penal, sempre acudido pelos conceitos indeterminados de necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.

Sobre tal dispositivo é acerba a crítica de Coutinho (2008, s.p.):

 

Ora, tal preceito é inconstitucional porque, de modo escancarado, rompe com o devido processo legal, formal e substancialmente. Ele é, por sinal, pior que o preceito derrogado (“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvidas sobre ponto relevante.”), o qual dava a impressão – embora não fosse, na prática, verdadeira – de não participar o juiz da colheita dos meios probatórios na primeira fase da persecução.

 

A atual redação do dispositivo, dada a golpe legislativo, deixa agora ainda mais nítida a orientação inquisitória do diploma no qual está inserto. É honesta, se comparada à realidade:

 

Agora, sem embargo, o texto é mais honesto se medido em relação à realidade em que se vive, deixando claro o absurdo fascista das entranhas do sistema, inclusive em relação ao próprio magistrado. Afinal, permite-lhe expressamente, nas duas fases da persecução, ordenar ex officio a produção de provas (os fundamentos suprem-se retoricamente a partir de conceitos indeterminados como necessidade, adequação, proporcionalidade e – pior – “dúvida sobre ponto relevante”) e, depois, cobra-se dele, a partir da base constitucional, equidistância e equilíbrio na condução do processo (ainda confundido, em 2008, com ação penal) e no acertamento do caso penal (COUTINHO, 2008, s.p.).

 

O dispositivo sub occulis demonstra, por outro lado, a incongruência com o art. 155 do mesmo diploma, que dispõe que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial. É exigir que o juiz se comporte contra sua própria natureza, o que certamente não fará.

Assim, com Lopes Júnior (2012), devem ser envidados esforços para que nossas leis processuais penais se conformem ao texto constitucional, cujo desiderato é a opção por um sistema acusatório, garantidor do sistema de garantias posto ao acusado e limitador do exercício do poder de punir do Estado. Nessa esteira, são substancialmente inconstitucionais todos os artigos do Código de Processo Penal que atribuem poderes instrutórios ao juiz.

 

3.1 Juízes inquisidores, quadros mentais paranoicos e dissonância cognitiva

 

Verificado o núcleo fundante de um sistema processual penal na gestão da prova, a partir da compreensão de um sistema como conjunto de elementos sob uma ideia única (princípio unificador), que nos foi fornecido por Kant, em sua Crítica da Razão Pura, de 1788, torna-se imperioso verificar a problemática atribuição de poderes instrutórios ao juiz criminal.

Ainda sobre o princípio unificador e a gestão da prova como princípio unificador para a definição de um sistema processual penal como acusatório ou inquisitório, é momentoso assinalar o caráter secundário dos outros elementos que se agregam a um ou outro sistema processual, como, exempli gratia, o fato de o processo comportar a existência de partes, o que para muitos desavisados – embora sem sustentação para tanto – faz um sistema acusatório. Basta recorrermos ao exemplo com o qual nos brinda Coutinho (2008), assinalando que quiçá o maior monumento inquisitório laico, as Ordonnance Criminelle, de 1670, de Luís XIV, da França, consagrar um processo que comportava partes.

O grande processualista italiano, Franco Cordero, a partir do encontro do núcleo fundante de um sistema processual penal na gestão da prova, preleciona que a atribuição de poderes instrutórios ao juiz criminal conduz ao “primado das hipóteses sobre os fatos”, gerando “quadros mentais paranoicos”.

Isso significa que o julgador, atuando como coletor das provas no sistema processual inquisitivo, define inicialmente sua hipótese e depois vai à cata do material probatório que justifique sua escolha, já tomada, para isso lançando mão das provas que adrede vão embasar sua eleição paranoica:

 

A solidão na qual os inquisidores trabalham, jamais expostos ao contraditório, fora dos grilhões da dialética, pode ser que ajude no trabalho policial, mas desenvolve quadros mentais paranoicos. Chamemo-os “primado das hipóteses sobre os fatos”: quem investiga segue uma delas, às vezes com os olhos fechados; nada a garante mais fundada em relação às alternativas possíveis, nem esse mister estimula, cautelarmente, a autocrítica; assim como todas as cartas do jogo estão na sua mão e é ele que as coloca sobre a mesa, aponta na direção da “sua” hipótese. Sabemos com quais meios persuasivos conte (alguns irresistíveis: por exemplo, a tortura do sono, calorosamente recomendada pelo pio penalista Ippolito Marsili); usando-a orienta o êxito para onde quer (CORDERO, 1986, p. 51).

 

Essa possibilidade, como ressalta Coutinho (2001) possibilita que o juiz decida antes e depois saia em busca de um suporte que confirme sua versão, o que significa dizer que o sistema torna possível a superioridade do imaginário sobre a realidade.

Como acertadamente pontua Carvalho (2005), ao invés do juiz se convencer por meio do material probatório carreado aos autos, inversamente, a prova serve para demonstrar o acerto da hipótese (na maior parte das vezes, aquela da condenação) anteriormente eleita pelo mesmo juiz.

Nessa perspectiva, o juízo é antecipado antes mesmo que o material probatório possa determinar quais rumos tome o processo, implicando num sério comprometimento da imparcialidade do juiz, que definitivamente não pode resistir:

 

É evidente que o recolhimento da prova por parte do juiz antecipa a formação do juízo. Como explica Geraldo Prado “a ação voltada à introdução do material probatório é precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado material, se efetivamente incorporado ao feito, possa determinar”. O juiz, ao ter iniciativa probatória, está ciente (prognóstico mais ou menos seguro) de que consequências essa prova trará para a definição do fato discutido, pois “quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador”. Mais do que uma “inclinação ou tendência perigosamente comprometedora”, trata-se de sepultar definitivamente a imparcialidade do julgador. Nessa matéria, não existe investigador imparcial, seja ele juiz ou promotor (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 139).

 

Essa atribuição de poderes instrutórios ao juiz, pontua Lopes Júnior (2012), se mostrou prejudicial tanto nas reformas levadas a efeito em países da Europa, como também para a história do Direito Processual, no erro cometido pelo sistema acusatório romano de atribuir poderes instrutórios ao juiz, que redundou no sistema inquisitório.

Nessas situações em que o juiz sai do lugar que lhe foi constitucionalmente demarcado é impossível que se não ofenda, como assertoa Lopes Júnior (2012), a aparência de imparcialidade, a estética de imparcialidade que o juiz deve transmitir aos cidadãos. Isso porque, ainda que não se produza o prejuízo decorrente de sua postura ativa, dificilmente produzirá na consciência das pessoas que estão submetidas à administração da justiça aquela confiança de um julgamento com pleno alheamento, o que se agudiza ainda mais na seara penal, onde a atuação do Estado-juiz se reveste de ainda maior gravidade.

A democracia processual, assim, é vulnerada a mais não poder, pois se sublimam, com conceitos imprecisos, vagos e manipuláveis as garantias mais caras ao Estado Democrático de Direito, que funda um sistema acusatório.

No ponto, para demonstrar essa imolação das garantias constitucionais, é esclarecedora a redação do art. 156 do Código de Processo Penal. Tal dispositivo, como acentua Lopes Júnior (2012), sempre foi um problema para aqueles comprometidos com um processo penal acusatório e, após a reforma levada a cabo pela Lei n. 11.690/2008, ficou ainda pior, pois quebra toda a dialeticidade, igualdade e garantia do contraditório que deve presidir o processo penal. Fulmina, enfim, a própria garantia da jurisdição.

Vale destacar que, em razão do desassombro inquisitório da nova redação dada ao art. 156 do Código de Processo Penal, até mesmo defensores dos poderes instrutórios do juiz não foram tão receptivos ao dispositivo, demonstrando o quão ousado foi o legislador na vulneração do sistema processual acusatório, único que pode tirar a Constituição de 1988 da antecâmara da realidade.

Valem, por todas, as palavras de Cruz (2008), que fazendo uma distinção do ativismo do juiz no curso do processo (por ele defendido hoje, como ministro do STJ) e aquela possibilidade de atuação do juiz antes mesmo da ação penal prevista no art. 156, inciso I, aponta que são atentatórias à imparcialidade e ao modelo acusatório a iniciativa do juiz de, numa investigação criminal e antes de deflagrada a ação penal, ex officio, buscar provas.

No mesmo sentido são as palavras de Silvério Júnior e Barros (2012), para quem o art. 156 está diretamente em contradição com a opção constitucional de conferir ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública, contrariando o sistema acusatório, que pressupõe autoridades distintas para o exercício das funções de acusar, defender e julgar. Obtempera o autor, à vista do mencionado artigo, que o juiz não só assume uma função que não lhe pode ser cometida, como quebra a própria lógica do processo, decidindo primeiro e depois produzindo provas para justificar sua escolha.

Também Lima (2012), comentando a possibilidade de atuação do juiz criminal, de ofício, antes da ação penal, embora defenda a franca atuação do magistrado no curso do processo, sustenta que a parte do dispositivo que possibilita a atuação do magistrado na fase investigatória, sponte sua, deve tomar o mesmo destino do art. 3º da Lei n. 9.034/1995 (antiga Lei das Organizações Criminosas), que franqueava ao juiz, nas hipóteses de quebra do sigilo de dados fiscais, bancários, financeiros e eleitorais, a possibilidade de pessoalmente levar a cabo a diligência, com dispensa do auxílio da Polícia Judiciária e do Ministério Público.

A ADI n. 1.570/DF, proposta pelo então Procurador-Geral da República, acoimava de inconstitucional o art. 3º da Lei n. 9.034/1995, por violação aos art. 5º, incisos LIV e LV, 93, IX e 129, I, todos da Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária realizada em 12/02/2004, julgou parcialmente procedente a ADI, em razão de parte do dispositivo já ter sido regulamentada pela Lei Complementar n. 105/2001. Restou vencido o Ministro Carlos Velloso.

Abordando as desabridas ilegalidades que decorrem dessa postura inquisitória do juiz no processo penal, o Ministro Eros Grau, em voto de invulgar qualidade, proferido no HC n. 95.009-4/SP, abordou os conceitos de proporcionalidade e razoabilidade usados para a legitimação de decisões inconstitucionais, hoje empregados com azeda frequência. É o que ocorre no malnascido art. 156 do Código de Processo Penal, que permite que o juiz, de ofício, escorado nos “princípios” da necessidade, adequação e proporcionalidade, ordene, mesmo antes da ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes.

Valem as palavras daquele grande jurista da Faculdade do Largo de São Francisco em Relatório no HC nº 95.009-4/SP:

 

Tenho criticado aqui – e o fiz ainda recentemente (ADPF 144) – a “banalização dos ‘princípios’ [entre aspas] da proporcionalidade e da razoabilidade, em especial do primeiro, concebido como um ‘princípio’ superior, aplicável a todo e qualquer caso concreto, o que conferiria ao Poder Judiciário a faculdade de ‘corrigir’ o legislador, invadindo a competência deste. O fato, no entanto, é que proporcionalidade e razoabilidade nem ao menos são princípios – porque não reproduzem as suas características – porém postulados normativos, regras de interpretação/aplicação do direito”. No caso de que ora cogitamos esse falso princípio estaria sendo vertido na máxima segundo a qual “não há direitos absolutos”. E, tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxima se faz gazua apta a arrombar toda e qualquer garantia constitucional. Deveras, a cada direito que se alega o juiz responderá que esse direito existe, sim, mas não é absoluto, porquanto não se aplica ao caso. E assim se dá o esvaziamento do quanto construímos ao longo dos séculos para fazer, de súditos, cidadãos. Diante do inquisidor não temos qualquer direito. Ou melhor, temos sim, vários, mas como nenhum deles é absoluto, nenhum é reconhecível na oportunidade em que deveria acudir-nos (GRAUS, 2008, p. 1321).

 

Essa iniciativa do juiz de sair ao encalço de provas que afirmem a opção por ele hipoteticamente eleita revela, na verdade, que ele está em busca de prova para condenar, pois para absolver essa postura é despicienda, podendo o juiz parar no momento da dúvida, em face do in dubio pro reo. Indo atrás da prova, opera-se uma inversão do princípio, que se torna, como mencionam Rosa e Khaled Júnior (2014), em um infeliz, mas verdadeiro trocadilho, in dubio pro hell.

Esse prejuízo resultante do deslocamento da posição do juiz dentro do processo penal do lugar de garante das regras do jogo para investigador/instrutor também é ressaltado por Malheiros Filho (2015). O autor cita artigo escrito pela professora Ada Pellegrini Grinover há mais de 20 anos na Folha de São Paulo (Cotidiano, seção Data Venia, 22/01/1995), no qual aquela eminente jurista provocava a questão de juízes inquisidores a partir das figuras dos famosos juízes italianos Giovanni Falcone, Paolo Borsellino e Antonio Di Pietro, que se notabilizaram no combate à máfia.

Esclarece Malheiros Filho (2015) que, na verdade, aqueles célebres juízes, por aqui há muito romantizados, na verdade eram promotores, integrantes do Ministério Público italiano. Esclarece Malheiros Filho (2015, s.p.) que “a Promotoria e magistratura são a mesma carreira, por absurdo que isso seja, e todos usam o título de ‘juiz’, ainda que seja acusador. Eles se dizem ‘juízes requerentes’ e ‘juízes decidentes’”.

Pontua Malheiros Filho (2015), então, que quando juízes se tornam investigadores e/ou acusadores, ficamos sem ter quem nos julgue, o que é uma afronta à garantia constitucional da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF). A figura de um juiz espectador – que sob nenhuma hipótese pode ser confundido com uma “samambaia na sala de audiências” (NUCCI, 2009, p. 27) ou com um “mero conviva de pedra” (BONFIM, 2013, p. 394), portanto, é o preço a ser pago por um processo penal acusatório, constitucional e democrático. Como sempre repisado pelo Ministro Marco Aurélio (informação verbal)[1]: “Paga-se um preço por se viver em um Estado Democrático de Direito. É módico e está ao alcance de todos: o respeito irrestrito ao arcabouço normativo constitucional”. (O DIREITO, 2015, s.p.)

No que tange a essa perseguição da prova pelo juiz criminal e o consequente prejuízo causado à sua imparcialidade, interessante a abordagem feita por Lopes Júnior (2014a) da Teoria da Dissonância Cognitiva, da autoria do consagrado jurista alemão Bernd Schunemann.

Assim, traduzindo os ensinamentos do mestre da Ludwig-Maximilians Universität:

 

Como explica o autor, grave problema existe no fato de o mesmo juiz receber a acusação, realizar a audiência de instrução e julgamento e posterior decidir sobre o caso penal. Existe não apenas uma “cumulação de papéis”, mas um “conflito de papéis”, não admitido como regra pelos juízes, que se ancoram na “formação profissional comprometida com a objetividade”. Tal argumento nos remete a uma ingênua crença na “neutralidade” e supervalorização de uma (impossível) objetividade na relação sujeito-objeto, já tão desvelada pela superação do paradigma cartesiano (ainda não completamente compreendido). (LOPES JÚNIOR, 2014a, s.p.).

 

Em apertada síntese, consoante Lopes Júnior (2014a), a teoria da dissonância cognitiva, desenvolvida no âmbito da psicologia social, analisa como um indivíduo analisa proposições antagônicas que se lhes apresenta, bem como a inserção de elementos de consonância (mudar uma das opiniões ou crenças, ou ambas, para torná-las compatíveis entre si), reduzindo, assim, a dissonância e o incômodo gerado.

Diante das proposições da acusação e da defesa, assim como de suas próprias percepções e (pré)conceitos, o juiz tende a construir uma imagem mental dos fatos a partir dos autos do inquérito policial e da denúncia, apegando-se a essas imagens já construídas, buscando confirmá-las no desenrolar do processo, isto quer dizer, tendencialmente superestimará as informações e imagens consoantes e tenderá a menosprezar as dissonantes.

Destarte, preleciona Lopes Júnior (2014a) que quanto maior for o envolvimento do juiz com a investigação, maior será a probabilidade de condenar ao final do processo, pois buscará um equilíbrio em seu sistema cognitivo, espancando as relações contraditórias.

Entendemos, portanto, que a iniciativa probatória por parte do juiz no processo penal, mais que comprometedora de sua imparcialidade (não confundida jamais com neutralidade), aqui compreendida na esteira de Lopes Júnior (2014b), como construção técnica artificial do direito processual, que estabelece que um terceiro, estranho e alheio ao caso penal, estruturalmente afastado, contamina o que ao final for decidido pelo mesmo juiz, pois quem procura, sempre procura alguma coisa.

É um prejuízo às regras do jogo, que decorre dos pré-juízos feitos pelo juiz que sai do lugar que lhe compete, assumindo postura e atitudes que competem às partes do processo, como à exaustão tem explicado o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, como perfunctoriamente exporemos.

 

3.2 A iniciativa probatória do juiz a partir da “Teoria Geral do Processo”: um desserviço às categorias jurídicas próprias do Processo Penal

 

Para alcançar o ponto de intersecção entre a “Teoria Geral do Processo” e a postura ativa do juiz no processo penal, faz-se necessária uma breve incursão na doutrina adotada nesta pesquisa quanto ao objeto do Processo Penal.

Antes, porém, de tal tentativa, é de bom alvitre esclarecer o porquê da utilização do termo “Teoria Geral do Processo”, entre aspas.

Partimos da concepção esposada por Coutinho (1989), em obra dedicada ao tema, de que a Teoria Geral do Processo é engodo. Na verdade, o que existe é uma Teoria Geral do Processo Civil e, a partir dela, as demais. A perspectiva comumente adotada no processo penal enxerga este a partir do lugar do processo civil, num olhar viciado, portanto, pois desconsidera as categorias jurídicas próprias do processo penal.

Lopes Júnior (2012), com muita precisão, demonstra essa falha na adoção inconsciente feita por muitos, inclusive a jurisprudência, de conceitos servíveis apenas para o processo civil. Como exemplos, temos o periculum in mora e o fumus boni iuris para as prisões cautelares e as medidas cautelares diversas da prisão, o pomposo pas de nullitè sans grief para as nulidades, efeito suspensivo para os Recursos Especial e Extraordinário em razão de uma lei pensada para o processo civil (Lei n. 8.038/90, art. 27, §2º), relativização de competência etc.

Khaled Júnior (2013), com precisão, assinala que, não obstante sejam acusados de fetiche dogmático, os penalistas concentraram suas forças nos últimos séculos na construção da teoria do delito, conformando um saber de alto nível de sofisticação, deixando o processo penal ser colonizado pela teoria geral do processo civil. Essa bastardia, pois, faria com que os processualistas penais, diferente dos penalistas, ressentissem a vocação de escribas que conferissem forma jurídica aos regimes políticos autoritários concebidos pelos tecnocratas rendidos ao modelo do Code d’instruction criminelle de 1808, refundador dos métodos de Eymerich.

Acerca desse desrespeito às categorias jurídicas próprias do processo penal, ainda em 1946, Carnelutti escreveu um brilhante artigo, pouco conhecido entre nós, intitulado Cenerentola (a Cinderela, da fábula infantil).

No artigo, Carnelutti conta a história de três irmãs: ciência do Direito Penal, ciência do Processo Penal e ciência do Processo Civil. A segunda, ao contrário das demais irmãs, que eram belas e prósperas, teve uma infância e uma adolescência abandonada, dividindo por muito tempo com a primeira o mesmo quarto e usando as roupas feitas para a terceira irmã, que por sua vez despertou muita atenção e ganhou o mundo.

Esse pancivilismo, como se referia Bettiol (1973) à primazia do Processo Civil, pode ser reparado também na história acadêmica, na qual o Direito Penal e o Processo Civil seguem o estudante durante boa parte do curso e o processo penal, por seu turno, aparece de forma muito fugaz, como observa Lopes Júnior (2012).

Como noticia Lucchesi (2009), as polêmicas que se seguiram entre, de um lado, Carnelutti e seu conceito de lide aplicado ao processo penal e, de outro lado, Calamandrei, Paoli e Invrea, redundaram na erosão da “Teoria Geral do Processo”.

Entre nós, pontua Lopes Júnior (2012), o saudoso Rogério Lauria Tucci foi pioneiro na demonstração do fracasso da “Teoria Geral do Processo” a partir da desconstrução do conceito de lide para o processo penal, como se passará a expor.

Para os que defendem uma Teoria Geral do Processo Penal, com fundamentos, conceitos e institutos próprios, o conteúdo do processo penal seria o caso penal e seu objeto o acertamento deste caso, sem prescindir, como acentua Lucchesi (2009), daquilo realmente útil já produzido, venha do processo civil ou de qualquer outro ramo.

Compreendida a incongruência nascida a partir da compreensão do processo penal sob a perspectiva do processo civil, fica fácil entender por que processualistas de nomeada, como Taruffo (2006), não veem problema na adoção de postura inquisitória pelo juiz no processo penal, sob o argumento de que associar a iniciativa probatória a regimes autoritários e a passividade do julgador a regimes liberais são equações vagas e genéricas, reduzindo-se a slogans polêmicos, destituídos de valor científico.

Embora Taruffo (2006) considere que a atribuição de iniciativa probatória unicamente às partes, ou também ao juiz, deriva de uma eleição de caráter substancialmente ideológico, sustenta que tal ideologia não é afeta às concepções políticas gerais entre liberalismo ou autoritarismo. A ideologia a que se refere o mestre italiano diz sobre a função do processo civil e a decisão que encerra.

Para ele, se a única função do processo civil é a de resolver controvérsias, pondo fim a conflitos entre indivíduos, é razoável deixar a gestão da contenda unicamente nas mãos das partes, máxime quanto à gestão da prova.

Por outro lado, se se parte da ideologia de que a administração da justiça não se reduz a uma contenda entre particulares, senão que deve orientar-se ao cumprimento de public values e à obtenção de decisões justas, preocupada com a qualidade dessas decisões, a atribuição de poderes instrutórios ao juiz ganha relevo e espaço, sendo insuficiente o monopólio das partes quanto à iniciativa probatória.

Taruffo (2006), ao sustentar a necessidade de atuação probatória do juiz, aduz que, num sistema puramente adversarial, tal qual o norte-americano, ao se conferir a gestão da prova unicamente às partes, o processo nunca se orientaria à busca da verdade, uma vez que ao menos uma parte – aquela que sabe que está equivocada – não tem interesse em que se descubra a verdade. Aqueles que transportam tal modo de pensar para o processo penal militam em erro, pois desconsideram que, aqui, sobre a parte acusada não pesa quaisquer ônus, uma vez que a seu favor milita a presunção de inocência, a ser elidida com a carga probatória atribuída única e exclusivamente à parte acusadora.

Eis aí o busílis da questão: pensar as categorias do processo penal a partir da Teoria Geral do Processo Civil é desconsiderar que o processo penal diz com bens diversos daqueles com os quais trabalha o direito privado. O processo penal, como bem assertoa Lopes Júnior (2012), não trata do ter, mas da liberdade. Ao juiz criminal não se pede o bem da vida, mas muitas vezes a própria vida, o status de liberdade do cidadão que se vê na iminência de perdê-la ou, já dela despojado, busca reavê-la. O processo penal, que para Carnelutti (1995, p. 13) “é um banco de prova da civilização”, jamais poderá ser compreendido à luz do processo civil. Aliás, o processo civil serve justamente para compreender o que não é o processo penal.

 

 

3.3 O modelo constitucional do processo: de Andolina e Vignera à Escola Mineira de Processo

 

Embora considerável parcela da doutrina processual penal rechace a existência de uma “Teoria Geral do Processo”, outra parcela, não menos qualificada, superando a concepção do processo como mero instrumento técnico da função jurisdicional, com escopos metajurídicos, baseada nos estudos dos italianos Elio Fazzalari, Italo Andolina e Giuseppe Vignera e, no Brasil, de caudatários da chamada Escola Mineira de Processo, como José Alfredo de Oliveira Baracho, Dierle Nunes, Marcelo Cattoni e André Leal, veem no processo um mecanismo de garantia dos direitos fundamentais, formando um núcleo denominado modelo constitucional de processo.

A abordagem pandectista do processo, superada por esse modelo constitucional de processo, pode ser vista na obra de Cândido Rangel Dinamarco, seguidor e aperfeiçoador das concepções de Büllow, na sua obra “A instrumentalidade do processo”, publicada inicialmente em 1986.

Para Dinamarco (2013), o processo, suas teorias e técnicas teriam valor enquanto tivessem a capacidade de propiciar a pacificação social, a educação para o exercício e respeitos aos direitos, a garantia das liberdades e servir de canal para a participação democrática. Esclarecidos tais objetivos do processo, isto é, sua instrumentalidade, a dogmática processual seria vista com um novo olhar.

Superar a concepção do processo (e aí incluído o processo penal) como instrumento posto a serviço tão somente da jurisdição e compreender a função do processo a partir da ideia de um sistema de proteção dos direitos e garantias constitucionais possibilitou o desenho de um esquema geral de processo, chamado por Andolina e Vignera (1997) de modelo constitucional de processo.

Pontua Silvério Júnior (2014) que, embora direcionada ao processo civil italiano, a proposta de Andolina e Vignera (1997) de um modelo constitucional de processo pode ser aplica a todo e qualquer tipo de processo (civil, administrativo, penal, eleitoral, legislativo), na perspectiva de uma teoria geral do processo.

Como assinala Silvério Júnior (2014), para os autores do modelo constitucional de processo, esse esquema seria fundado em princípios que possuem características capazes de fazer com que tal paradigma de processo seja extensível, variável e perfectível. Pela expansividade entende-se a possibilidade do modelo se expandir para microssistemas. Pela variabilidade, a aptidão da norma processual modelar se conformar às diferentes categorias jurídicas de cada microssistema. A perfectibilidade, por seu turno, pressupõe a capacidade de atualização e aperfeiçoamento conforme o modelo constitucional de processo.

Consoante Silvério Júnior (2014), os princípios básicos sobre os quais se forma o esquema geral estruturador do modelo constitucional do processo são: princípio do contraditório, ampla argumentação, imparcialidade do decididor e o da fundamentação das decisões.  Cada microssistema, por sua vez, iria construindo, a partir desse núcleo constitucional de processo, princípios próprios das suas características e funções, articulados com os quatro pilares do modelo constitucional do processo.

Destarte, a partir do princípio do contraditório e da ampla argumentação, no modelo constitucional de processo, o processo penal, em razão da variabilidade que caracteriza esse paradigma, conceberia uma categoria jurídica própria, como, v.g., a presunção de inocência, que lhe é peculiar em relação aos outros ramos do processo.

Assim, por serem expansíveis, variáveis e perfectíveis esses princípios reitores do processo, seria possível a construção de uma teoria geral do processo, não partindo dos conceitos e categorias próprios do processo civil, mas a partir de um núcleo principiológico que possibilite o respeito e o desenvolvimento de cada tipo de processo conforme suas peculiaridades.

Motta e Hommerding (2013) assinalam como características da reconstrução histórica das estruturas processuais empreendida pela Escola Mineira de Processo o policentrismo e a comparticipação, pelos quais o processo é concebido como legitimador do exercício dos poderes públicos e privados em todos os campos, controlando os provimentos oriundos dos agentes políticos e assegurando a legitimidade discursiva e democrática das decisões.

 

3.4 Juiz que vai atrás da prova e a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH): a prevenção como causa de exclusão da competência

 

A coexistência de um sistema mundial e de sistemas regionais de proteção e promoção aos direitos humanos é, consoante asseveram Accioly, Casella e Silva (2010), aceita e defendida de forma uníssona pela doutrina de direito internacional.

O sistema de promoção e proteção dos direitos humanos, na Europa, funciona dentro da estrutura do Conselho da Europa e tem como fundamento a Convenção Europeia de Proteção dos Direitos Humanos - CEDH e das Liberdades Fundamentais. Esse sistema foi adotado em Roma, em 1950, com os acréscimos da Carta Social Europeia de 1961, tendo como corte especializada o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), com sede em Estrasburgo (França).

Este tribunal há alguns anos vem enfrentando casos afetos aos poderes instrutórios do juiz e sua incompatibilidade com a função do julgador, o que demonstra a preocupação dos europeus com a configuração de um processo penal democrático e consentâneo com os postulados de respeito aos direitos humanos, que se vincaram de forma intensa na consciência jurídica europeia após as barbáries do nazi-fascismo, acobertadas, não raro, pelo direito posto.

Vale mencionar, desde já, que os principais casos enfrentados pelo TEDH nesse sentido (Piersack, de 01/10/1982 e De Cubber, de 26/10/1984) são do início da década de 1980, momento em que o processo penal europeu foi objeto de qualificada celeuma em torno dos juizados de instrução, que estavam em vigor e começavam a ser seriamente questionados.

Os casos que seguem, basicamente, foram levados àquela corte sob a motivação de ter sido violado o art. 6.1 do Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950, que vige entre os Estados signatários automaticamente submetidos à Corte de Estrasburgo.

Como esclarece Aroca (1999), o caso Piersack figura na coletânea de jurisprudência do TEDH que se refere à impossibilidade de instrução probatória e julgamento pelo mesmo juiz não porque isso tenha ocorrido de fato. Com efeito, o caso que envolveu Cristian Piersack contra o Reino da Bélgica envolvia o fato de um membro do Ministério Público, que atuou durante a instrução da causa, ao depois funcionou como Presidente do Tribunal de jurados que condenou o acusado. A incompatibilidade apontada no julgado, portando, era aquela de ter atuado no processo como acusador e depois como juiz.

Não obstante as peculiaridades do caso, o TEDH assentou importantes afirmações gerais que posteriormente foram reproduzidas em casos análogos, quais sejam: a) a imparcialidade se define pela ausência de pré-juízos ou parcialidade; b) pode ser a imparcialidade compreendida em aspectos subjetivos e objetivos, aqueles tratam de averiguar as convicções pessoais de um juiz no caso concreto, estes se referem a se este (juiz) oferece as garantias suficientes para excluir qualquer dúvida razoável a respeito; c) deve ser assegurada a estética de imparcialidade, dado que nestas circunstâncias a aparência pode se revestir de certa importância, pela qual todo juiz em relação ao qual possam existir razões legítimas para duvidar de sua imparcialidade deve abster-se de conhecer a causa. Essas são, como afirma Aroca (1999), as frases nas quais está todo o fundamento doutrinal da sentença.

Para Aroca (1999, p. 44), contudo, a definição de imparcialidade é pobre, consoante adverte que:

 

[...] la definición de la imparcialidad, como mínimo, parece muy pobre (llega a incluir el definido en la definición), que el aspecto subjetivo de la imparcialidad es de imposible averiguación al atender al ánimo del juez, y que es contraria a la mayoría de las legislaciones la referencia genérica a las “razones legítimas”, porque en essa legislaciones se ha optado por una enumeración taxativa de las causas de abstención y de recusación.

 

A sentença do TEDH de 26/10/1984, prolatada no caso De Cubber vs. Reino da Bélgica enfrenta diretamente o tema que nos importa, isto é, aquele do juiz que instrui e, ao depois, ele mesmo julga.

Tratava o caso, noticia Aroca (1999), de um juiz de instrução que realizou completamente a instrução, inclusive deferindo uma detenção preventiva, e que depois compôs o tribunal de primeira instância que sentenciou o caso. Ante esse fato, o TEDH acolheu o pedido do cidadão e declarou que na atuação do tribunal belga houve violação do art. 6.1 do Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950.

Dentre os aspectos interessantes da sentença exarada neste caso, pode-se destacar a valorização da estética de imparcialidade, que justifica o direito de recusa a um juiz que se mostre parcial, pois a confiança no tribunal deve inspirar todos os jurisdicionados, bem como o destaque ao prejuízo decorrente da opinião formada pelo juiz que participou da instrução, que pesará na hora de decidir.

Os fatos arguidos na defesa do governo belga consistentes em afirmar que o direito a um juiz imparcial consagrado no art. 6.1 do CEDH não se refere ao órgão jurisdicional de primeira instância, mas ao tribunal de apelação que conheça do recurso e que o acesso da parte prejudicada às vias recursais purga os eventuais prejuízos foram rechaçados pelo TEDH. Esse tribunal afirmou que a garantia do art. 6.1 afeta todas as jurisdições, em razão de tal norma não requerer a existência de jurisdições superiores e que o acesso ao TEDH só é possível após o esgotamento das vias recursais, o que não foi suficiente para a reparação do prejuízo.

Aroca (1999, p. 49) aponta a conquista das sentenças nesses casos proferidas, malgrado as incorreções pontuais nas quais tenham incorrido:

 

Independientemente de las consideraciones que pudieran hacerse sobre la precisión conceptual con que se utilizan determinados términos jurídicos y, sobre todo, de su equivalencia en nuestro ordenamiento procesal penal, especialmente el relativo a la “detención preventiva”, la conclusión de la Sentencia no ofrece dudas: No cabe acumular en una misma persona la función instructora con la función enjuiciadora, pues ello supone vulneración del derecho a un tribunal imparcial.

 

Seguindo as orientações dessas decisões do TEDH, como preleciona Aroca (1999), o Tribunal Constitucional espanhol, em questão de inconstitucionalidade da LO 10/1980, levadas pelos juizados de instrução de Madri e Palma de Mallorca, proferiu a Sentença n. 145, de 12/07/1988, reconhecendo que: a) o art. 24.2 da CE reconhece o direito a um processo com todas as garantias, entre elas o direito a um juiz imparcial; b) para assegurar essa imparcialidade, existem as causas de abstenção e recusa; c) a atividade instrutória, enquanto para aquele que a conduz supõe entrar em contato direto com o acusado e com os dados que devem servir para averiguar o delito e seus responsáveis, pode provocar no ânimo do instrutor prejuízos ou impressões a favor ou contra o acusado que influam na hora de sentenciar; d) a partir dos julgados nos casos Piersack e De Cubber, chega à conclusão de que o parágrafo II do art. 2 da LO n. 10/1980, enquanto impede as partes de recusar o juiz que realizou a instrução, é inconstitucional por vulnerar o direito a um juiz imparcial e e) considera instrução os atos relativos às decisões sobre a situação pessoal do imputado, mormente aqueles que determinam a prisão provisória do mesmo, por envolver uma valoração, ao menos indiciária, da culpabilidade do acusado.

Apesar de não ter declarado a inconstitucionalidade de todo o processo penal da LO n. 10/1980, nem dos artigos da LECRIM e da LOPJ, que confiavam a instrução e o juízo a um mesmo juiz, a Sentença n. 145/1988 levou à imediata promulgação da LO n. 7/1988, de derrogação da LO n. 10/1980 e de reforma da LECRIM e da LOPJ, consagrando o princípio segundo o qual o juiz que instrui está prevento e não pode julgar.

Observa Aroca (1999) que enquanto o Tribunal Constitucional espanhol se baseava na sentença proferida no caso Piersack contra o Reino da Bélgica na resolução dos recursos de amparo que lá chegavam, o TEDH começava a mitigar sua doutrina por meio de uma série de sentenças de muita distinta transcendência.

A primeira oscilação jurisprudencial e a mais importante dentre as posteriores se deu no caso Hauschild contra a Dinamarca, que deu origem à Sentença de 24/05/1989, ocasião em que o TEDH entendeu que decretar a prisão provisória do imputado por razões justificadas não afeta a imparcialidade do juiz para exercer depois função julgadora, salvo quando as razões justificadas concorrerem com suspeitas confirmadas.

Outras sentenças se destacam nesse sentido, como, por exemplo, Sainte-Marie contra França, de 16/12/1992, Padovani contra Itália, de 26/02/1993, Nortier contra Holanda, de 24/08/1993, Saraiva de Carvalho contra Portugal, de 22/04/1994 e Bulut contra Áustria, de 22/02/1996.

Aroca (1999) noticia que, depois dos julgados da década de 1980, somente em uma ocasião o TEDH voltou a declarar que houvera vulneração ao art. 6.1 do Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950. Foi na Sentença de 25/02/1992, proferida no caso Pfeifer contra Plankl.

É importante, enfim, destacar, como faz Lopes Júnior (2012), que tais mudanças na jurisprudência do TEDH são absolutamente compreensíveis, uma vez que não existe mais aquela preocupação que levou às decisões dos casos Piersack e De Cubber, em razão do completo abandono do modelo dos juizados de instrução por meio de reformas levadas a efeito em ordenamentos internos (Alemanha/1974; Itália/1988; Portugal/1988) e pela vedação absoluta de julgamento pelo juiz que instrui, como na Espanha (Sentença n. 432, de 15/09/1995).

O Brasil, todavia, não só atrasado em relação ao progresso científico que se verifica na Europa e em países vizinhos na América Latina, mas adotando uma perigosa tendência de retrocesso com a atribuição de mais poderes instrutórios ao juiz, como demonstra a nova redação do art. 156 do CPP pela Lei n. 11.690/2008, não pode se dar ao luxo de relativizações, dada a forte cultura inquisitória que temos, mas buscar em toda a doutrina construída pelo TEDH nos casos Piersack e De Cubber resultados satisfatórios a partir da adoção, com todo rigor, da regra segundo a qual juiz que toma iniciativa probatória está prevento e não pode julgar.

Nosso Supremo Tribunal Federal, como noticia Lopes Júnior (2012), abordou o que na Europa se fala há quase três décadas somente em 2008, conforme o Informativo n. 528, no HC n. 94.641/BA, relatado pela Ministra Ellen Gracie, julgado em 11/11/2008. A 2ª Turma, por maioria, concedeu habeas corpus impetrado em favor de condenado por atentado violento ao pudor contra a própria filha, ex officio, para anular, em virtude de ofensa à garantia da imparcialidade da jurisdição, o processo desde o recebimento da peça incoativa.

No caso enfrentado, no curso de procedimento oficioso de investigação de paternidade (Lei n. 8.560/92, art. 2º) promovido pela filha do paciente, surgiram indícios de crime contra a dignidade sexual, sendo os relatos enviados ao Ministério Público. O parquet, com o fito de ver instaurada ação penal, denunciou o paciente, sendo a inicial acusatória recebida e processada pelo mesmo juiz que funcionou no processo de investigação de paternidade. Entendeu o Excelso Pretório, então, ter agido o juiz como se autoridade policial fosse, em virtude de, no procedimento oficioso, ter ouvido testemunhas antes de encaminhar os autos ao Ministério Público para que este deflagrasse a ação penal pertinente.

 

 

 

4 A QUESTÃO DA VERDADE E AS IMPLICAÇÕES NA DEFINIÇÃO DE UM SISTEMA PROCESSUAL CONSTITUCIONAL

 

É fácil a percepção, pela análise dos sistemas processuais penais realizada no primeiro capítulo, do importante papel desempenhado pela noção da verdade na conformação de cada paradigma processual, a partir do qual se firmaram os contornos do sistema inquisitório, no qual a verdade é perseguida de forma infatigável, empregando-se os meios os mais desumanos para seu ilusório alcance, ou do sistema acusatório, de onde emergia a partir do que as partes carreassem à discussão em contraditório, em paridade de armas.

Processualistas de primeira grandeza se debruçaram sobre o fenômeno da verdade e suas sérias implicações no processo civil e no processo penal, merecendo destaque, entre outros, Michele Taruffo, Francesco Carnelutti, Montero Aroca, Rui Cunha Martins e, entre nós, Jacinto Nélson de Miranda Coutinho, Aury Lopes Júnior, Alexandre Morais da Rosa e, recentemente e de uma forma bastante diversa da que até então se abordou o tema, Salah Hussein Khaled Júnior, estabelecendo um diálogo da dogmática processual penal clássica e contemporânea com pensadores como Heidegger, Gadamer, Ricoeur, Morin, Prigogine, Bachelard, Nietzsche, entre outros.

O problema da verdade sempre esteve longe do consenso na doutrina, sendo discutido de maneira aguda e acalorada, como demonstra Lopes Júnior (2012, p. 565) ao iniciar a abordagem do tema:

 

Aplicável aqui a célebre frase de Joseph Goebbels, ministro de propaganda nazista de Hitler: uma boa mentira, repetida centenas de vezes, acaba se tornando uma verdade e, no caso do processo penal, uma verdade real ou substancial. Impressionante a crença nesse mito, ardilosamente construída pelo substancialismo inquisitório e, posteriormente, repetido por muitos incautos (e por outros nem tanto).

 

A discussão em torno da verdade no processo penal dá-se a partir da busca da verdade chamada (com pleonasmo) real, passa pelo corte epistemológico operado por Carnelutti com a verdade formal ou processual até o alcance, mais recente, da noção de verdade estruturada a partir da epistemologia da passeidade, que coloca em questão o modelo de verdade correspondente, sem, todavia, expulsar o conceito de verdade do processo penal, mas abandonando, absolutamente, seu viés persecutório, cuja ambição de verdade conforma um sistema essencialmente inquisitório.

O problema da posição da verdade no processo penal se agudiza ainda mais quando verificamos que, para boa parte da doutrina, a busca da verdade correspondente se confunde com o próprio objeto do processo e, daí, a atribuição de poderes instrutórios ao juiz:

 

O fim de todo processo é a busca da verdade. No processo penal isso só se torna mais dramático em função de sua natureza. Em razão da intensidade com que se anseia pela busca da verdade no processo penal, podemos dizer que um princípio fundamental do processo penal é o da investigação da verdade material ou substancial dos fatos em torno dos quais se discute, para que sejam provados em sua substância histórica, sem obstáculos e deformações. Isso faz com que o legislador tenha que eliminar do código toda limitação à prova e que o juiz tenha que ser deixado livre para formar seu próprio convencimento (BETTIOL, 1973, p. 250).

 

Essa concepção de busca da verdade, todavia, não admite, como assinala Khaled Júnior (2013), a complexidade que envolve o processo e a falência da ideia de certeza nas ciências, prosperando apenas no monólogo de seus defensores. “A matemática e a física há muito abandonaram a dimensão da exatidão inequívoca. Como isso ainda pode não ter ocorrido no campo das ciências sociais aplicadas?” (Khaled Júnior, 2013, p. 176).

O grande problema que a noção de verdade relativa não pôde responder está, conforme verifica Khaled Júnior (2013), no fato de que a matização, relativização ou mitigação do conceito de busca da verdade legitima a continuidade de uma estrutura inquisitória de forma sub-reptícia. Os adeptos dessa concepção acabam, conscientemente ou não, recepcionando o paradigma inquisitório sistematizado por Eymerich.

Marcando com precisão a continuidade de um ambiente inquisitório pela subsistência de uma relativa busca da verdade no processo penal, Khaled Júnior (2013) pontua que, dizer que a verdade não deve ser perseguida a qualquer custo (como fazem os caudatários do conceito de busca da verdade relativa, processual, aproximada etc.) é dizer que a verdade deve ser perseguida e que esse deve ser tido como um dos objetivos do processo penal.

Embora, cientificamente, a crença na possibilidade do sujeito de conhecimento apreender a verdade ontológica de qualquer objeto de forma cartesiana venha cada vez mais demonstrando sua falência, mesmo nas ciências exatas, como acentuado alhures, a manutenção dessa concepção no processo penal, embora utópica, é ideologicamente comprometida com um pensamento político criminal autoritário, como demonstraremos adiante.

 

4.1 A busca da verdade pelo juiz: meio de concretização ritualizada do poder punitivo

 

Não é necessário muito esforço para perceber que a busca empedernida da verdade correspondente ao real, que emergiria dos fatos trazidos para o processo, tem íntima correlação com o sistema inquisitório, no qual o juiz possui uma patológica ambição de apreender o que considera a verdade. A estrutura processual fundada sob a premissa de ambição inquisitorial da verdade objetifica o acusado, ou, quando menos, o transforma em inimigo a ser erradicado a qualquer custo.

Esse viés persecutório contido na exacerbada pretensão de verdade do sistema inquisitório é encontrado no pensamento do “penalista de mãos pesadas” (Cordero, 1986, p. 100) Vincenzo Manzini, “camicia nera desde criancinha – e para quem Il Duce criou a primeira cátedra de Procedura Penale na ‘La Sapienza’” (COUTINHO E CARVALHO, 2011, p. 43), responsável pelo projeto de código processual com a cara do fascismo de Benito Mussolini.

Para Manzini, conforme verifica Khaled Júnior (2013), o interesse fundamental que determina o processo penal é o de chegar à punição do acusado, predominando o interesse de repressão da delinquência sobre o interesse de liberdade.

Esse desmedido anseio punitivista é verificado com precisão por Giacomolli (2006, p. 225-226):

 

O sentido que se verifica nas entrelinhas do discurso da verdade real é o da incidência do ius puniendi a todo custo, a qualquer preço, além da adoção de uma concepção de necessidade inafastável da condenação de alguém, da culpabilidade objetiva, ou seja, pelo cometimento do fato, independentemente da verificação ou não de seus elementos. Essa voracidade pela “verdade real” ultrapassa até mesmo os limites do acusador e coloca o sujeito encarregado de julgar na cena do crime, lugar próprio da autoridade encarregada da investigação.

 

Em razão da absoluta impropriedade científica da busca da verdade correspondente ao real, essa obsessiva busca, como assinala Khaled Júnior (2013), só se justifica diante de aspectos extraprocessuais, como a manutenção do autoritarismo das práticas punitivas.

O compromisso com o alcance dessa irrealizável verdade, ironicamente, muito mais afasta do que aproxima o processo da correspondência aos fatos pretéritos sobre os quais se debruça a atividade cognitiva, desprovida, assim, do índice de qualidade reclamado por um sistema processual acusatório e do nível de controle do poder punitivo, corolário de um regime democrático, que demarca o espaço legítimo de atuação do processo penal.

Corrobora o entendimento de que a busca da verdade correspondente ao real pelo juiz serve como meio de concretização ritualizada do poder punitivo em detrimento de contenção do mesmo poder o fato de que, a fortiori, quando o magistrado, negando sua posição meramente receptiva, sai em busca de elementos para a formação de sua convicção, ele o faz para condenar. Segundo Khaled Júnior (2013), caso se comprometa com a imparcialidade que lhe toca num sistema acusatório, o juiz decidirá pela improcedência da acusação, já que não é necessária qualquer complementação para absolver, bastando a dúvida para ensejar o in dubio pro reo, o que rima com uma estrutura de contenção regrada do poder punitivo.

O caminho proposto por Khlaed Júnior (2013) não prescinde de um lugar para a verdade, já que, citando Ferrajoli, uma justiça penal coincidente integralmente com a verdade é utópica, ao passo que uma justiça penal dissociada de qualquer noção de verdade é arbitrária, mas busca conferir ao conceito de verdade a característica de elemento, conquanto dele não dependa o processo, para, aí sim, romper com essa malsinada tradição violenta de construção do conhecimento.

 

4.2 A busca da verdade real no processo penal: um excesso epistêmico que se transformou em dogmatismo

 

Impende assinalar, de início, que o indigitado excesso epistêmico consistente na ilusão de alcançar uma verdade correspondente ao real adjetivado como dogmatismo não quer conferir nota pejorativa à dogmática jurídica, entendida a partir da noção de Khaled Júnior (2013) como postulado que serve de ponto de partida da atividade jurídica, com caráter valorativo e crítico. O dogmatismo oriundo da epistemologia inquisitória, por sua vez, gera atitude conservadora e acrítica, em face da qual se marca um lugar de rejeição.

O dogmatismo em que se transformou a verdade correspondente ao real, como pontua Khaled Júnior (2013), é oriundo da cientificidade oitocentista, isto é, na aposta cega da modernidade que surge no século XVII na capacidade que o sujeito racional supostamente detém de iluminar tudo o que não se apresentasse claro ao seu intelecto.

A modernidade, assim, como potencial transformadora do paradigma inquisitório refundado pelas intenções políticas do medievo, conserva o ideal persecutório ao se associar ao poder político, fazendo com que, como assinala Khaled Júnior (2013, p. 199), “o que era proposta a libertar uma nova forma de oprimir”.

Esse dogmatismo científico faz com que a verdade correspondente encontre nova fundamentação: a vinculação do conhecimento ao modelo galilaico-newtoniano e a crença da ciência como campo privilegiado para a revelação da verdade. A ciência, assim, ao afastar de seus domínios a religião, assume uma condição quase que religiosa.

Não foi ocasional a entronização da busca da verdade correspondente no panteão dos dogmas do processo penal, infenso a qualquer crítica durante dilatado período de tempo, pois serviu à maravilha para a manutenção do status quo:

 

O paradigma científico moderno – amparado no modelo das ciências naturais – oferecia uma doce ilusão: através da aplicação de um método bem definido a um objetivo devidamente delimitado e circunscrito, a ciência garantiria o acesso a uma nova espécie de verdade, a verdade cientificamente verificável, que invariavelmente conduziria – em um sentido teleológico – ao modelo perfeito de sociedade elaborado pelo sujeito racional (KHALED JÚNIOR, 2013, p. 211).

 

A criação do dogma da verdade correspondente, todavia, como adverte Khaled Júnior (2013), é perfeitamente compreensível à época em que foi imposto, não se podendo qualificá-lo de anacrônico, pois fruto de uma datada conjuntura econômica, política, social, cultural etc. Além disso, deve ser considerado que a ciência estava em seus passos iniciais, voltada para a legitimação, conscientemente ou não, de uma economia de poder criada pela nova anatomia política.

Também concorreu para a legitimação da busca da verdade e do paradigma inquisitório o surgimento do positivismo jurídico, que, segundo Khaled Júnior (2013), favoreceu a continuidade inquisitória das práticas punitivas, operando uma renovação discursiva de acordo com a nova economia de poder e mantendo a ambição da verdade nos domínios do processo penal.

Essa potencialização da ambição da verdade pelo positivismo jurídico decorreu da necessidade, do Direito, de ver reconhecida sua autonomia científica pela conformação de sua estrutura com o esprit géométrique vigorante, de forma incontestável, àquela época, depurando tudo que pudesse obstaculizar sua cientificidade.

Khaled Júnior (2013) assinala que o positivismo jurídico opera uma simplificação do fenômeno jurídico, expulsando, assim, a complexidade do ato de julgar, resolvendo-se o problema da aplicação do direito através de uma epistemologia superficial que desconsidera a complexidade da realidade em nome da coerência intrassistêmica do discurso jurídico. Bobbio (1999, p. 67) destaca a ausência da realização de qualquer juízo de valor pelo jurista:

 

O procedimento jurídico consistiria somente de um juízo de fato (isto é, em assegurar que fossem verificados os fatos previstos pela lei), visto que o direito se tornaria tão claro que a questio juris (a saber, a determinação da norma jurídica a ser aplicada no caso em exame) não apresentaria qualquer dificuldade já que todas as questões de direito que o juízo tradicionalmente comportava (e que exigiam a intervenção de técnicos de direito) eram exclusivamente fruto da multiplicidade e da complicação irracional das leis.

 

Como aduz Khaled Júnior (2013), em razão do positivismo jurídico se contentar com o fato de o direito vir do parlamento, representante do povo unido pelo contrato social, não seria necessário se preocupar com a legitimação do seu discurso. Essa despreocupação, por óbvio, ignorava o fato de essa representatividade ser extremamente limitada e de o cidadão ser, somente, o proprietário.

Vê-se, portanto, que o que antes fora empregado para controlar os inimigos de uma doutrina religiosa perdurou apto para controlar e garantir poder a uma nova configuração social, amparada no discurso da cientificidade:

 

Portanto, o novo parâmetro jurídico de atuação passou a ser dado pelos critérios da cientificidade: ou seja, pela crença na razão e nos poderes metodológicos do homem científico para devassar a realidade e extrair dela sua essência. Desse programa decorreu a adequação das práticas judiciárias ao ideal cartesiano, o qual acabou refundando na jurisdição penal o discurso inquisitório, a partir de uma nova normatividade, secularizada por excelência, mas igualmente obcecada pela verdade (KHALED JÚNIOR, 2013, p. 230).

 

Aí reside a ambiguidade da modernidade apontada por Khaled Júnior (2013): de um lado, defende a contenção do poder e de outro, legitima o discurso de persecução ao inimigo e cria nova roupagem para a epistemologia inquisitória. O ilustrado corpo de saber, utilizado para impulsionar a ascensão da elite burguesa, coloca-se como instrumento voltado para o controle social:

 

Não é exagerado dizer que existe, de fato, um corpo de saber voltado para a submissão da coletividade; este corpo de saber é extremamente coeso e coerente em seus pressupostos, ainda que seus objetivos sejam questionáveis. E o pior de tudo: é um corpo de saber historicamente vitorioso, o que pode ser comprovado pela continuidade do autoritarismo inquisitório, que em sua essência permanece quase intacto através do discurso da busca da verdade, apesar de todas as tentativas de deslocá-lo em definitivo para um modelo acusatório (KHALED JÚNIOR, 2013, p. 235).

 

O excesso epistêmico contido na crença da verdade real, ancorado na convicção de haurir respostas absolutas e racionais através do método científico, elevado ao ponto de dogma irrefutável, é demonstrado nas palavras de um pensador do século XX, notabilizado por tematizar a ciência, segundo o qual:

 

Os resultados da ciência continuam a ser hipóteses que podem ter sido bem testadas, mas não provadas; quer dizer não foi demonstrado que sejam verdadeiras. Claro que podem ser verdadeiras. Mas mesmo que não o sejam, são hipóteses óptimas, abrindo caminho a outras ainda melhores (POPPER, 1991, p. 17).

 

Reconhecendo a função legitimadora de arbítrio judicial, embora ingenuamente creia que o advento da Constituição Federal de 1988 tenha expungido esse vício, Oliveira (2014, p. 333) assertoa:

 

O aludido princípio, batizado como da verdade real, tinha a incumbência de legitimar eventuais desvios das autoridades públicas, além de justificar a ampla iniciativa probatória reservada ao juiz em nosso processo penal. A expressão, como que portadora de efeitos mágicos, autorizava uma atuação judicial supletiva e substitutiva da atuação ministerial (ou da acusação). Dissemos autorizava, no passado, por entendermos que, desde 1988, tal não é mais possível. A igualdade, a par conditio (paridade de armas), o contraditório e a ampla defesa, bem como a imparcialidade, de convicção e de atuação, do juiz, impedem-no.

 

Continua Oliveira (2014), todavia, a acreditar que a verdade material é um eficaz princípio em tema de prova, principalmente quando usado para a exclusão de determinados meios de prova, devendo, todavia, ser redimensionado a partir do modelo preconizado constitucionalmente.

Acerca do mencionado princípio, esclarece Barros (2002, p. 28):

 

Mediante a aplicação desse princípio, procedia-se à busca da verdade com o propósito de ir ao encontro de um porto seguro e superior ao do território no qual assenta-se a verossimilhança fática, pois, para o processo penal, nunca foi suficiente aquilo que tem aparência de verdadeiro. Por isso é que se agitou a busca da verdade material visando introduzir no processo o retrato que mais se aproxime de sua realidade. Em outras palavras, com a adoção deste princípio, pretendia-se reproduzir o fato objeto da acusação, que pertence ao mundo externo, sem artifício, presunção ou ficção, pois, segundo o entendimento defendido por muitos, é por meio da aplicação do princípio da verdade material que o juiz passa a conhecer a verdade como ela é, despida de qualquer artificialismo.

 

O princípio da verdade real, ainda, sempre teve militando em seu favor o argumento de que era imprescindível a perquirição da verdade substancial ante os interesses individuais atingidos pela persecução penal:

 

Seguindo ainda o desenho traçado por tal princípio e tendo em vista que o Estado reservou para si o soberano poder-dever de aplicar as sanções previstas em lei, incumbe a seus órgãos a obrigação de investigar a verdade do fato para que se possa exercitar, com absoluta isenção e correção, o jus puniendi, pois é na órbita do Direito penal que se podem vulnerar inestimáveis direitos e interesses individuais, dos quais a liberdade da pessoa é a sua maior expressão (BARROS, 2002, p. 29).

 

Essas justificativas, contudo, são vistas, por outros, como artimanhas engendradas com os olhos postos no sistema inquisitorial para justificar o substancialismo penal e o decisionismo processual.

 

4.3 Abandono da verdade correspondente: versão aproximativa, relativa ou matizada

 

Reconhecendo a responsabilidade do inconveniente conceito de verdade real para a formação da cultura inquisitiva que se disseminou entre todos os órgãos incumbidos de levar a cabo a persecução penal, acobertados sempre pelo nobre desiderato colimado, a doutrina passou a se voltar para outro conceito legitimador da verdade, qual seja, a verdade formal ou processual.

Assinalando os efeitos deletérios do dogma da verdade substancial, é momentosa, uma vez mais, a lição de Lopes Júnior (2012, p. 566):

 

Historicamente, está demonstrado empiricamente que o processo penal, sempre que buscou uma “verdade material e consistente” e com menos limites na atividade de busca, produziu uma “verdade” de menor qualidade e com pior trato para o imputado. Esse processo, que não conhecia a ideia de limites – admitindo inclusive a tortura -, levou mais gente a confessar não só delitos não cometidos, mas também alguns impossíveis de serem realizados.

 

Outrossim, seria um contrassenso insistir com um conceito de verdade que está absolutamente posto a serviço de uma estrutura de poder totalmente alheia à democracia substancial, o que torna o processo penal apenas mais um instrumento de manutenção de um status quo avesso ao que a doutrina moderna tem proposto:

 

O mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do sistema inquisitório; com o “interesse público” (cláusula geral que serviu de argumento para as maiores atrocidades); com sistemas políticos autoritários; com a busca de uma “verdade” a qualquer custo (chegando a legitimar a tortura em determinados momentos históricos); e com a figura do juiz-ator (inquisidor) (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 566).

 

Isso foi reconhecido inicialmente pelo grande mestre italiano, que tanta influência exerceu em nosso processo penal, Francesco Carnelutti, embora tenha posteriormente também se desvencilhado desse reducionismo, como veremos no próximo subitem.

A verdade científica ou histórica, inalcançável por meio do processo, é substituída por aquela “verdade” construída no processo (em contraditório, portanto), sem as pretensões de refletir o que o tempo já deixou para trás.

Preleciona, nessa toada, Lopes Júnior (2012, p. 567):

 

Como explica Ferrajoli, a verdade processual não pretende ser a verdade. Não é obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto do processual, mas sim condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e garantias da defesa. A verdade formal é mais controlada quanto ao método de aquisição e mais reduzida quanto ao conteúdo informativo que qualquer hipotética verdade substancial.

 

O valor da introdução da verdade formal (ou processual) é justamente o de proteger o indivíduo contra a introdução, no processo, de verdades substanciais arbitrárias ou incontroláveis:

 

Ferrajoli vai definir a verdade processual como uma verdade aproximativa, aquela limitada “por lo que sabemos”, e, portanto, sempre contingente e relativa. Diferencia o autor a verdade processual fática da verdade processual jurídica. A primeira é uma verdade histórica, porque se refere a fatos passados. Já a verdade processual jurídica é classificatória, pois diz respeito à qualificação jurídica dos fatos passados a partir do rol de opções que as categorias jurídicas oferecem (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 568).

 

Em suma, a verdade real é inalcançável, até porque, segundo Lopes Júnior (2012, p. 568): “O real só existe no presente. O crime é um fato passado, reconstruído no presente, logo, no campo da memória, do imaginário. A única coisa que ele não possui é um dado de realidade”.

Para Khaled Júnior (2013), a adoção do conceito de verdade relativa, aproximativa, formal ou processual, todavia, que continua a permitir a função inquisitória pelo juiz – que cumpre a função epistêmica de sujeito do conhecimento no processo – não rompe com as premissas adotadas pela verdade correspondente ao real, pois continua a depositar sua crença no ativismo judicial. Trata-se da velha crença na capacidade do investigador para desvelar a verdade, cuja gênese é inquisitória e foi reavivada pela cientificidade oitocentista.

Khaled Júnior (2013, p. 301), assinalando que o conceito de verdade matizada ou aproximada não é capaz de transcender sua insuficiência constitutiva e que um método de busca da verdade só é coerente com um sistema que efetivamente considera que a verdade é atingida, convida o leitor a um passo além:

 

Por isso afirmamos que é necessário levar os argumentos que rompem com a estrutura silogística do positivismo aos seus inevitáveis resultados, que a nosso ver conduzem à derrocada por completo da própria ideia de correspondência e da crença na razão moderna.

 

Assinala Khaled Júnior (2013), sobre a manutenção do conceito de verdade de forma matizada, que os argumentos dos autores que sustentam essa falácia relativizam tanto o que antes era tido axiomático que não faz mais sentido falar em verdade correspondente nos domínios do processo penal. Essa concepção de verdade aproximativa fica ainda mais fragilizada quando se percebe que no processo estão presentes enunciados relativos aos eventos e não os eventos em si mesmos e que o conceito de verdade relativa só serviu para preservar, de forma velada, a epistemologia inquisitória do juiz instrutor.

 

4.4 Para além da ambição inquisitória: caráter analógico dos rastros da passeidade

 

Explorados os pontos que demonstram a insuficiência do modelo de verdade até aqui prevalecentes no processo penal brasileiro e a premente necessidade de rompimento com tal modelo, surge a configuração de uma epistemologia da passeidade, que busca atentar, consoante Khaled Júnior (2013), para a complexidade do real.

Faz-se necessária, para tal rompimento, a postura de não contemporizar com os conceitos de verdade processual, aproximativa, matizada ou relativa, que conservam, sob um disfarce epidérmico, a mesma epistemologia inquisitória, violenta e de incidência desregrada do poder punitivo.

“O real é resistência, não se curvando de forma submissa aos poderes metodológicos do homem racional”, como destaca Khaled Júnior (2013, p. 332). Constatar que a verdade, ainda que em sua versão aproximativa, está para além das forças humanas é uma proposição ousada, o que não quer dizer que não haja qualquer correspondência entre a sentença prolatada pelo juiz e a verdade. Não é esta a proposta feita por Khaled Júnior (2013) e sua epistemologia da passeidade, que está para além da dicotomia entre uma verdade absoluta e a desconsideração completa da verdade.

A posição sustentada, consoante Martins (2010), é aquela que se liberta do clássico paradigma da verdade correspondente, sem, contudo, fazer dessa superação um caminho para o chamado paradigma da verdade exilada, degredada dos lindes do processo penal.

Considera o mestre português da vetusta Universidade de Coimbra:

 

Enquanto o debate se mantiver dentro das mesmas regras do jogo que outrora conduziram à consagração do “verdadeiro” como eixo central do sistema processual, enquanto a argumentação utilizada para propor o deslocamento funcional partir da mesma província de significado que a argumentação utilizada para re-dizer a centralidade, a possibilidade de produzir uma efectiva reconsideração do problema será sempre escassa (MARTINS, 2010, p. 339).

 

O rastro de passeidade, assim, seria a ponte que possibilita a comunicação entre passado e presente, seria um indicativo dos eventos passados. O rastro de passeidade, segundo Khaled Júnior (2013. P. 341), seria um “meio através do qual um evento da vida que pertence a um tempo já escoado pode ser em alguma medida conhecido”.

Rompendo com o paradigma inquisitório de produção da verdade, esta passa a ser produzida, não encontrada, e essa produção analógica da verdade dar-se-á sob a forma narrativa, forma que não escapa da historicidade, do pertencimento a uma tradição, de sujeição à degradação com o correr do tempo.

A manutenção da crença no atingimento da verdade absoluta desconsidera a opacidade do passado e da consciência, anulando a diferença que é o signo distintivo do passado, como demonstra Khaled Júnior (2013. p. 348):

 

Tal concepção de verdade supõe que seja possível abolir tanto a opacidade no passado, quanto a própria opacidade da consciência, que se tornaria transparente a si mesma de forma a evitar qualquer possível contaminação; ou alternativamente, que a opacidade do passado e a contaminação da consciência interfeririam de forma mínima, permitindo a adoção de um critério de verdade correspondente aproximada ou relativa, o que inclusive permite que o juiz parta em busca dessa correspondência e inclusive a atinja de forma absoluta ou aproximativa.

 

Por não transigir com as versões relativas de verdade e, por outro lado, não adotar uma posição fundamentalista de banir a verdade do processo penal, como mencionado em linhas volvidas, surge a necessidade de fundar um novo regime de verdade no processo penal.

Insatisfeito com a noção de “mesmo” dada pelo paradigma da verdade correspondente e suas versões matizadas e com a noção de “outro” dada por um ceticismo radical e que desconecta qualquer noção de verdade para o processo, Khaled Júnior situa a verdade numa terceira esfera ontológica: a do análogo. Sustenta o jurista da UFRG:

 

Por Análogo, compreenda-se simultaneamente Ser-como e Não-ser; uma verdade que opera no âmbito da constante tensão entre o desvelamento e o encobrimento, para finalmente ser analogicamente produzida como um artefato narrativo elaborado pelo juiz, como ser-no-mundo que é. Portanto, trata-se de uma verdade analogicamente produzida sob a forma narrativa, o que conforma um critério de verdade enquanto (re)produção analógica do passado e não enquanto correspondência – ainda que relativa ou aproximada – em relação a um evento que pertence a um tempo escoado (KHALED JÚNIOR, 2013, p. 356).

 

O caráter essencialmente analógico da verdade narrativamente produzida no processo deve conferir a máxima ênfase, então, às regras do jogo, uma vez reconhecidos o caráter contingencial, e não fundante, da verdade construída no processo penal. Como esclarece Khaled Júnior (2013), o artefato narrativo substitui, observadas as regras do jogo e a posição constitucionalmente cometidas ao juiz, o evento passado para efeitos da decisão do caso penal.

Assinalando esse caráter essencialmente analógico dos rastros de passeidade como substitutos daquele evento histórico que não mais pode ser apreendido pelo sujeito de conhecimento e a vedação, no campo do direito penal material, da analogia que não seja in bonam partem, Khaled Júnior (2013, p. 361) reforça a função legitimadora da condenação na observância das regras do jogo:

 

Dizer que a verdade é contingencial significa abrir mão desse fim – a busca da verdade – e assumir outro horizonte, no qual o juiz deverá estar predisposto a absolver, por exigência da presunção de inocência: em outras palavras, o valor inocência deve ser estruturante e fundador no processo penal, inclusive no que se refere à missão e função do juiz, possibilitando dessa forma o rompimento com a epistemologia inquisitória orientada à persecução do inimigo.

 

Continua o processualista da Universidade Federal do Rio Grande no sentido de que, mesmo com a larga margem de tensão existente entre a insuficiente verdade narrativamente produzida e a condenação eventualmente prolatada, é possível chegar à condenação, observadas as regras de contenção do poder punitivo e o critério da democraticidade:

 

A partir dessa função receptiva e do devido desenvolvimento do contraditório, ele pode – e apenas pode – produzir uma verdade que analogicamente expresse a função de lugar-tenência em relação ao passado e que certamente não será uma mentira, possibilitando a condenação. No entanto, inevitavelmente a própria impossibilidade de obtenção de uma verdade correspondente – não importando qual a epistemologia adotada – sempre fará com que exista uma irredutível margem de ilegitimidade em toda condenação, o que deve conduzir a um urgente reforço do dique de contenção do poder punitivo, de acordo com os critérios da democraticidade (KHALED JÚNIOR, 2013, p. 361).

 

A verdade narrativamente construída a partir dos rastros de passeidade tem como escopo, justamente, a redução de danos inerentes ao processo penal e o necessário rompimento com o discurso da busca da verdade, pois tal discurso maximiza a chance de que tais danos ocorram com maior prejuízo ainda. Assim, arremata Khaled Júnior (2013, p. 362):

 

Nosso esforço tem exatamente esta finalidade: demonstrar a necessidade de controles mais rigorosos, para enfatizar as regras do jogo em detrimento de qualquer potencial ambição de verdade e com isso procurar superar uma epistemologia que é a expressão de uma violência contra o acusado e a realidade. Portanto, uma epistemologia da passeidade pode não ter o condão de deslegitimar toda a estrutura penal, mas por outro lado mostra que ela somente pode se legitimar como estrutura de contenção do poder punitivo dedicada primordialmente à redução de danos, o que é absolutamente incompatível com a perspectiva de busca da verdade pelo juiz.

 

Assinala essa inadequação da verdade ao processo de recognição, seja qual for a verdade aventada:

 

Então, pouca dúvida temos de que a verdade contém um excesso epistêmico, principalmente para o processo (melhor, para o ritual judiciário). Quando se argumenta que existe uma “verdade” da acusação, outra da defesa e, por fim, outra que brota da sentença, questiona-se: quantas “verdades” contrapostas podem conviver legitimamente no processo penal? E, mais, como admitir que a sentença seja uma “outra” verdade? Em suma, é verdade demais! Ou de menos, se pensarmos que, quando “tudo” é verdade, nada é verdade...(LOPES JÚNIOR, 2012, p. 573).

 

Por outro lado, a posição da verdade, num lugar não fundante, tem intensa correspondência com um sistema processual no qual haja paridade de armas entre as partes na busca da captura psíquica do juiz, como soem ser os sistemas acusatórios:

 

No sistema acusatório, a verdade não é fundante (e não deve ser), pois a luta pela captura psíquica do juiz, pelo convencimento do julgador, é das partes, sem que ele tenha a missão de revelar uma verdade. Logo, com muito mais facilidade o processo acusatório assume a sentença como ato de crença, de convencimento, a partir da atividade probatória das partes, dirigida ao juiz. Essa luta de discursos para convencer o juiz marca a diferença do acusatório com o processo inquisitório (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 574).

 

Desmontadas as estruturas que tornam possível a persecução da mitológica verdade (real, principalmente), propõe a assunção da sentença (ato para o qual se volta toda a atividade envidada no curso do processo) como um ato de convencimento formado em contraditório a partir do respeito às regras do jogo. O resultado final, caso coincida com a “verdade” será acidentalmente, não precipuamente dirigido a tal. Como não é fundante, mas contingencial, o provimento ao final exarado pelo juiz não será destituído de legitimidade se não buscar, de forma estrênua, a tal verdade. A legitimidade decorre, isso sim, do fair play.

As regras do jogo, conforme Lopes Júnior (2012), servem de limite para evitar o decisionismo e o substancialismo, extremos do ceticismo exacerbado com relação à verdade e da empedernida busca de uma “verdade”, à custa de quase tudo estimado pela democracia. As regras do jogo, portanto, dão legitimidade ao provimento que ao final será emitido pelo Estado.

Constatada a total ausência de sustentação científica para o alcance da verdade correspondente ao real, Khaled Júnior (2013), destacando a função dos mitos como histórias exemplares que servem para estabelecer normas e procedimentos humanos, sempre ocultando sua gênese, assinala a busca da verdade real como um mito, isto é, um elemento de conformação de um sistema processual antidemocrático, incompatível com o Estado Democrático de Direito, mas útil pelo utilitarismo punitivista que o justifica.

O mito da busca da verdade, em suas versões matizadas, conta com a maleabilidade que garante a sua permanência, por mais que mude e procure novas roupagens.

A busca da verdade, seja qual for sua adjetivação, pelo juiz, além dos deletérios efeitos causados à sua imparcialidade, configura o que Chauí (2001) chama de mito fundador, ou seja, aquele que não cessa de encontrar novas roupagens para se exteriorizar, novas linguagens, novos valores, de modo que, quanto mais parece se distanciar da ideia original, tanto mais é a repetição da mesma coisa. Sua aparente mutabilidade não passa de uma continuada reafirmação.

Esse mito se exprime através de uma tradição processual há muitos anos celebrada  no Brasil, vista frequentemente com uma conotação positiva, mas indubitavelmente apta a conformar relações de poder e domínio muito interessantes para certos setores. A atitude crítica e reflexiva, diante de tal tradição, é dever inarredável daqueles comprometidos com a Constituição de 1988 e dos direitos e garantias fundamentais que dela decorrem:

 

Por trás da tradição podem perpetuar-se incessantemente relações excludentes que devem ser rompidas a todo custo, pois obstaculizam a realização de uma sociedade democrática. Certamente é o caso da tradição inquisitória (KHALED JÚNIOR, 2013, p. 490).

 

São momentosas, mais uma vez, as palavras de Lopes Júnior (2012, p. 577), que se amoldam com precisão à epistemologia da passeidade: “Há que se encontrar o entrelugar, onde se recuse a razão moderna e o dogmatismo oitocentista, mas também o relativismo cético tipicamente pós-moderno”.

 

 

4.5 Construção narrativa da verdade: o juiz enquanto ser-no-mundo e um sistema processual acusatório

 

O problema da verdade sempre esteve atrelado aos motivos geradores do sistema inquisitivo, do qual se busca cada vez mais distanciar. Basta lembrar o que foi dito quando se abordou o histórico do sistema inquisitivo e o ambiente que lhe serviu de nascedouro.

A pretensão da verdade absoluta leva, irremediavelmente, à intolerância. O produto que daí surge é aquele já visto no Directorium Inquisitorum, que demonstra, como poucos livros da civilização ocidental, a lógica do poder fundado sobre uma verdade que não admite dissidências, questionamentos, fundada sempre nos mais sublimes motivos, como a fé, o bem comum, a segurança nacional etc. As justificativas mudam apenas a roupagem com a qual se apresentam, perdurando sempre, no seu âmago, o mesmo animus: manter as coisas como estão, protegendo o status quo de uns poucos ou mudando tudo para deixar tudo como está. A tortura, os autos-de-fé, os campos de concentração, os paredões, degredos e desaparecimentos forçados, portanto, sempre têm uma justificativa das mais convincentes.

Aduz Khaled Júnior (2013) que a dinâmica de cada sistema processual analisado e o regime de verdade adotado acabará, sempre, desembocando na figura do juiz, pois ele é, afinal, o agente político que terá que decidir. Como também demonstra Bonduelle (2014, p. 36): “o ato de julgar é necessariamente político, já que o juiz deve escolher. Os juristas, teóricos ou práticos, sabem muito bem disso: ‘aplicar a lei’ quer dizer tudo ou nada”.

Acentuando o signo marcadamente político do ato de julgar e seus efeitos fora da órbita estritamente judiciária, se posiciona o presidente do Sindicato dos Magistrados da França:

 

Acreditamos então detectar por trás de cada decisão uma tomada de posição política, a ponto de, às vezes, deduzir dela a proximidade do juiz com tal ou tal partido. É assim que, quando um ex-presidente da República ou seus amigos são investigados, deduzimos que os juízes são guiados pela vontade de eliminá-los politicamente, principalmente se forem membros do demoníaco Sindicato da Magistratura. Notaremos que essa acusação de parcialidade sempre visa os magistrados “de esquerda”, como se os outros estivessem, por definição, resguardados de tal vício (BONDUELLE, 2014, p. 36).

 

Baseado no quê, todavia, decidirá? Em representações narrativas amparadas em evidências corrigidas até a exaustão por um contraditório dialógico? Na habilidade retórica das partes? Através de suas capacidades, hipótese em que, mesmo munido de suas melhores intenções, pode ser vítima de seu subconsciente?

É necessário, como assevera Coutinho (1989), reconhecer os espaços de subjetividade dentro da jurisdição, a posição de magistrado como ser-no-mundo.

Novamente, é interessante citar o juiz de instrução do Tribunal de Grande Instância de Créteil:

 

Queira-se ou não, entre a lei e o caso particular há um interstício que o magistrado tem a vocação de preencher com sua consciência, seus valores, suas opiniões, suas emoções. O magistrado é humano. Por outro lado, é essencial que ele seja imparcial, quer dizer, que não tenha interesse na solução do problema que lhe é apresentado; que não prejulgue, que não se feche no “julgamento pronto”, que desconfie de si mesmo. Isso supõe não apenas que se conheça, mas que assuma o que ele é, para evitar ao máximo o retorno do que fica reprimido (BONDUELLE, 2014, p. 36).

 

A prevalência do lugar constitucionalmente demarcado ao juiz, todavia, não depende de uma reforma processual, embora a reforma possa auxiliar, senão de uma mudança de postura. Isso só será possível se o juiz estiver cônscio do papel que lhe cabe, o que passa, necessariamente, por rompimentos:

 

Nesse sentido, uma vez que é do papel do juiz que depende a definição do sistema entre um caráter persecutório ou de contenção regrada do poder punitivo, fica a questão: como inseri-lo em uma posição de necessário equilíbrio? O juiz é o ponto nevrálgico, o elemento-chave, a figura a quem cabe zelar pelo devido processo legal e tomar a decisão final. Para determinar esse lugar propriamente, é necessário superar uma série de obstáculos: a sensibilidade inquisitória, a ideia de jurisdição como poder incontestável, a concepção positivista de mera boca da lei e o cientificismo moderno, estruturado na separação entre sujeito e objeto. É preciso superar, acima de tudo, a ideia de que o sujeito do conhecimento dispõe de capacidade para atingir a verdade correspondente, ainda que na versão aproximativa ou relativa, pois a assunção dessa premissa leva à continuidade de atribuição ao juiz do protagonismo da busca dessa tão sonhada verdade (KHALED JÚNIOR, 2013, p. 496).

 

A tentativa de aproximação do processo penal brasileiro com o modelo democrático-constitucional instalado a partir de 5 de outubro de 1988 com a Constituição Cidadã pode ser vista com a instituição, no âmbito do Senado Federal, de comissão de juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal, criada na forma do Requerimento n. 227, de 2008, de autoria do então Senador José Sarney (PMDB/AP).

A comissão de juristas, composta por Hamilton Carvalhido (coordenador), Eugênio Pacelli de Oliveira (relator), Antônio Correa, Antônio Magalhães Gomes Filho, Fabiano Augusto Martins Silveira, Félix Valois Coelho Júnior, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral, teve um ano para trabalhar, período sobre o qual, como assinala Coutinho (2011), pesaram os quinhentos anos de tradição inquisitorial à qual nos submetemos e a resistência para pensar um novo sistema processual penal a partir do paradigma democrático dado pela Constituição de 1988.

A comissão terminou seus trabalhos em abril de 2009 e o anteprojeto se transformou no Projeto de Lei do Senado n. 156/2009, passando, então, a ser relatado pelo Senador Renato Casagrande (PMDB/ES), tendo sido aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, então presidida pelo Senador Demóstenes Torres (DEM/GO) e pelo Plenário do Senado Federal em 07 de dezembro de 2010, sendo, então, encaminhado à Câmara dos Deputados, lá renumerado como Projeto de Lei n. 8.045/2010, aguardando a constituição de Comissão Temporária pela Mesa.

Já na Exposição de Motivos do Anteprojeto, Hamilton Carvalhido e Eugênio Pacelli de Oliveira assinalaram o descompasso entre a configuração política do Brasil de 1940 e o cenário de liberdades públicas abrigadas no atual texto constitucional. A explicitação do sistema acusatório traz a reboque significativos esclarecimentos quanto à vedação de atividades instrutórias ao juiz:

 

A vedação de atividade instrutória ao juiz na fase de investigação não tem e nem poderia ter o propósito de suposta redução das funções jurisdicionais. Na verdade, é precisamente o inverso. A função jurisdicional é uma das mais relevantes no âmbito do Poder Público. A decisão judicial, qualquer que seja o seu objeto, sempre terá uma dimensão transindividual, a se fazer sentir e repercutir além das fronteiras dos litigantes. Daí a importância de se preservar ao máximo o distanciamento do julgador, ao menos em relação à formação dos elementos que venham a configurar a pretensão de qualquer das partes. Em processo penal, a questão é ainda mais problemática, na medida em que a identificação com a vítima e com seu infortúnio, particularmente quando fundada em experiência pessoal equivalente, parece definitivamente ao alcance de todos, incluindo o magistrado. A formação do juízo acusatório, a busca de seus elementos de convicção, o esclarecimento e a investigação, enfim, da materialidade e da autoria do crime a ser objeto de persecução penal, nada tem que ver com a atividade típica da função jurisdicional (BRASIL, 2009, p. 14).

 

De igual modo, com o intuito de blindar o magistrado de qualquer contaminação com o conteúdo dos elementos coligidos na fase de inquérito, o anteprojeto trouxe a figura do juiz das garantias, cuja função seria a de zelar pela tutela imediata e direta das inviolabilidades pessoais no curso do procedimento policial.

Vale assinalar, com Silvério Júnior (2014), que a ambição inquisitória pela verdade mantém íntima relação com fatores políticos e ideológicos, persistindo no inconsciente de muitos até os dias atuais, cuja superação não é tarefa fácil, mormente entre nós, herdeiros de uma cultura inquisitória que nos foi legada desde a colonização lusa e suas respectivas ordenações, passando pelo Código Criminal do Império de 1832 e chegando ao atual Código de Processo Penal de 1941.

 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

 

Cumpre assinalar, antes de tudo, que o resultado da presente pesquisa é produto de um lugar, pois, a fortiori, a cabeça pensa onde os pés pisam, isto é, o conjunto cultural no qual estamos insertos e que constitui nosso horizonte compreensivo demarca simultaneamente as possibilidades e limitações de nossa compreensão.

Procuramos, na presente pesquisa, desvencilhar as possibilidades de conhecimento das limitações impostas, deliberadamente, pelo que se convencionou chamar de tradição no nosso processo penal, notadamente avesso às novas configurações de poder desenhadas na Constituição Federal de1988, ainda que ao arrepio das mais elementares garantias processuais estampadas na Norma Ápice.

Lado outro, não nos contentamos, na revisão bibliográfica demoradamente coligida para instruir a pesquisa, com uma exposição fria dos posicionamentos sustentados pela doutrina estrangeira e doméstica, mas, pelo contrário, buscamos construir uma escrita engajada e comprometida com o ideal de processo penal facilmente identificável no texto. Não há, pois, espaço para neutralidade quando se fala em processo penal. Mesmo a forma, a qual muitos, erroneamente, pensam ser o objeto exclusivo da ciência processual, é uma garantia inarredável, sobre a qual não podemos transigir ou contemporizar, seja com quem for.

Somos cônscios da incompletude do ponto de chegada em que aportamos, o que, aliás, é essencial, pois, como aprendemos, a falta é constitutiva e lá sempre estará. Qualquer pretensão de esgotamento do tema, ainda nascente, não seria consentânea com a tradição a qual nos vinculamos, que explicitamente marca lugar demonstrando o quanto é efêmero e metafórico o nosso conhecimento sobre a realidade.

Demarcado o território de possibilidades que conectamos ao nosso trabalho, podemos sistematizar algumas conclusões a que chegamos a partir da hipótese inicialmente eleita, qualificada pela exaustiva pesquisa bibliográfica e pelo referencial teórico do qual não nos arredamos em ponto nenhum da pesquisa.

Na introdução do trabalho, nosso esforço analítico teve como objetivo demostrar a conformação dos sistemas processuais penais através da história e seu correspondente núcleo fundante ou princípio unificador, isto é, a gestão da prova, mais ou menos nítido conforme a anatomia política, econômica e religiosa então vigente. Procuramos, na análise dos sistemas acusatório e inquisitório, ressaltar a concorrência de fatores variados para a prevalência de um ou de outro modelo de processo e, a rigor, modelo de poder.

O ponto nodal de nossa pesquisa, a questão da verdade na conformação de um sistema acusatório, ou inquisitório, de processo, sempre atrelada à investigação historiográfica, nos permitiu compreender que o excesso epistêmico, repetido reiteradas vezes no texto, permitiu a construção de uma tradição violenta e monológica de construção do conhecimento e imposição da verdade, surgindo em Roma e reaparecendo com a Inquisição na Idade Média.

A compreensão da origem histórica e política de tais sistemas, definidos de acordo com seu princípio unificador (a gestão da prova) e a importância do lugar conferido à noção de verdade, nos permitiu afirmar a impossibilidade de existência de um sistema misto, tão propalado por nossa doutrina e jurisprudência, como sistema eleito pelo Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, nosso provecto Código de Processo Penal. O princípio unificador de um sistema não admite equivocidade, até porque é elementar não existir princípio misto. O problema, assim, é meramente conceitual e não fático. Não existe, absolutamente, sistema processual misto. É o que sustentamos convictamente.

Demonstramos também o início de uma construção doutrinária, encetada por Aury Lopes Júnior, que considera superado o discurso segundo o qual o núcleo fundante de um sistema seria a gestão da prova, para abraçar o critério da democraticidade, fundado na eficácia do sistema de garantias previsto na Constituição e nos documentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Não deixamos de ressaltar a crítica feita por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho a tal proposta. Para esse jurista, que integrou a Comissão de Juristas encarregada de redigir o Anteprojeto que resultou no PLS n. 156/2009, os qualificativos acusatório ou inquisitório se ligam a um sistema, regido por um princípio unificador, e que não pode ser sublimado.

Em seguida, analisamos o vigente Código de Processo Penal e sua notória matriz inquisitorial, a começar por sua Exposição de Motivos, redigida por Francisco Campos, um jurista confessamente caudatário do método autoritário vazado no Código de Processo Penal italiano, elaborado durante o fascismo de Mussolini. Expusemos a epistemologia perversa que é uma constante em todo o corpo do CPP, mesmo depois das alterações pontuais levadas a efeito, que funda um sistema de busca da verdade cujo único interesse é a condenação, a qualquer custo, do inimigo. Trouxemos para essa parte da pesquisa a valiosa construção de Franco Cordero, isto é, os quadros mentais paranoicos que decorrem da possibilidade de iniciativa probatória do juiz, conformando o que aquele grande produtivo processualista italiano chama de primado das hipóteses sobre os fatos.

Foi abordada também a prejudicial contribuição da Teoria Geral do Processo Civil para reificar as categorias jurídicas próprias do processo penal, pensando-as a partir dos interesses discutidos no processo civil. Essa indevida colonização do processo penal pelo processo civil colocou o processo penal num sono dogmático, cujo despertar se deu há pouco tempo. Essa subserviência, como assinalamos, fez com que os processualistas penais ressentissem um lugar de meros escribas que conferisse forma jurídica aos planos de ditadores e tiranetes rendidos ao modelo inquisitorial.

Não deixamos de fazer menção às recentes contribuições à ciência processual feitas pela chamada Escola Mineira de Processo, em cuja lista se inscreve o orientador da presente pesquisa, com o modelo constitucional de processo, segundo o qual o processo é um mecanismo de garantia dos direitos fundamentais. A esse esquema geral de processo, aplicável tanto ao processo civil como aos processos penais, administrativos, legislativos e do trabalho, chamaram modelo constitucional de processo, fundado em princípios que possuem características capazes de fazer com que esse paradigma de processo seja extensível, variável e perfectível. Esse paradigma processual se basearia nos princípios do contraditório, da ampla argumentação, imparcialidade do decididor e fundamentação das decisões. Com base nas características da expansividade, da variabilidade e da perfectibilidade, portanto, seria possível a construção de uma teoria geral do processo, respeitando as categorias jurídicas próprias de cada microssistema processual.

Terminando o segundo capítulo, robustecemos nossa pesquisa com as decisões proferidas no âmbito do Tribunal Europeu de Direitos Humanos sobre a impossibilidade de iniciativa probatória do juiz, ante a necessária garantia da imparcialidade, compreendida sob aspectos subjetivos e objetivos. Para a Corte de Estrasburgo, o juiz que toma iniciativa probatória está prevento, e a prevenção é causa de exclusão de sua competência. Nessa parte do trabalho, trouxemos decisão de nosso Supremo Tribunal Federal, proferida no HC 94.641/BA, relatado pela Ministra Ellen Gracie, onde entendeu o tribunal vulnerada a garantia da imparcialidade em razão de uma magistrado que remeteu elementos de informação para a formação da opinio delicti do órgão ministerial ter também recebido a denúncia posteriormente oferecida e que viria a ser julgada procedente pelo mesmo magistrado. O caso pode ser visto no Informativo n. 528 do STF.

Por fim, tangenciando diretamente o tema, destacamos a inexistência de rompimento na modernidade com o modelo processual inquisitório. Pelo contrário, o sistema inquisitório foi refundado pelo discurso da cientificidade moderna, que foi a responsável por dar continuidade ao engenho inquisitório de persecução da verdade.

A mudança operada com a versão relativa ou aproximativa da verdade manteve o modelo de verdade correspondente, pois ao se dizer que a verdade correspondente é inalcançável, manteve legitimada a busca de uma verdade relativa, mitigada, o que acabou por deixar incólume a pretensão daqueles que sempre se comprometeram com uma pensamento político-criminal autoritário, fazendo da busca da verdade pelo juiz um meio de concretização ritualizada do poder punitivo. Isso, evidentemente, afasta o processo penal do índice de qualidade reclamado por um Estado Democrático de Direito e do nível de controle do poder punitivo, imprescindível a um regime democrático e demarcador do espaço legítimo de atuação do processo penal.

Essa postura ativa do magistrado no processo penal, concluímos, não rima, absolutamente, com o objetivo de contenção regrada do poder punitivo que deve imantar o sistema processual penal, pois o juiz que sai à cata de provas, sob o pretexto de bem instruir o processo, além de vulnerar a equidistância que deve manter em relação aos jogadores, o faz com a intenção de condenar o acusado, já que a dúvida o favorece.

O ponto de chegada da presente pesquisa, por outro lado, não expulsa a verdade do processo, apenas lhe retira de seu lugar quase canônico, pois, conforme exposto, uma justiça penal correspondente integralmente com a verdade é utópica, ao passo que uma justiça dissociada de qualquer noção da verdade é arbitrária.

Superando o excesso epistêmico consubstanciado na ambição inquisitorial de busca da verdade, amparado num conjunto heterogêneo de conhecimentos, propomos uma nova concepção, estruturada a partir da morfologia da passeidade, segundo a qual, no processo penal, estão em questão enunciados relativos aos eventos e não propriamente os eventos.

A atividade cognitiva do magistrado, então, lidaria com rastros de linguagem que possibilitariam um possível conhecimento sobre os fatos a julgar, construindo, assim, a verdade, que deixaria de ser algo a ser encontrado, fundante, para ser contingencial.

Entre a exata correspondência com o real (o Mesmo) e o ceticismo radical que prescinde de qualquer noção de verdade (o Outro), o novo regime da verdade a situaria na esfera ontológica do análogo, isto é, algo que, simultaneamente, se vela e se desvela, sendo finalmente produzida como um artefato narrativo pelo juiz, ou seja, a verdade como (re)produção analógica do passado.

Diante dessa nova posição da verdade no processo penal, que favoreceria o processo como mecanismo de contenção regrada do poder punitivo, as regras do jogo ganhariam primazia sobre qualquer ambição de verdade e a sentença somente se legitimaria caso as regras do jogo sejam estritamente respeitadas. Esse novo paradigma, ao contrário de retirar poderes do juiz, o blindaria em face de quaisquer pré-juízos e pré-conceitos que pudessem resultar em condenações equivocadas, o que traria também o efeito processual de redução de danos causados pelo sistema jurídico-punitivo e pelas agências de controle social, mormente nos dias que correm, tão marcados pela seletividade do sistema penal e crise de legitimidade do discurso penal.

A carga probatória, então, é cometida unicamente ao acusador, enquanto o acusado dispõe, ante a presunção de inocência (regra de tratamento), da assunção de um risco. O aproveitamento de uma chance, por qualquer dos jogadores, significa, então, a liberação de uma carga e/ou a diminuição de um risco.

O convencimento do juiz, assim, se daria de forma dialógica: as partes trazem as evidências a as constroem narrativamente, enquanto o juiz, em posição receptiva, zelaria pelo respeito às regras do jogo, formando sua convicção com base nos rastros que sobreviveram ao confronto dialógico entre as partes, num exercício de constrangimento das evidências. Essa a redefinição do lugar constitucionalmente demarcado ao juiz no processo penal acusatório.

A pesquisa nos traz a um momento reflexivo irrenunciável, de denúncia e rompimento com a verdade violenta, índice de si mesma, aliada a uma atuação inquisitorial por parte do magistrado que, conscientemente ou não, estabelece um primado das hipóteses por ele eleitas sobre os discursos narrativos a conhecer.

Enfim, presentes ciência e consciência possuídas, entendemos ser este o preço a ser pago para se viver em um Estado Democrático de Direito. E é um preço módico.

 

 

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[1] Palestra realizada pelo Ministro Marco Aurélio na Universidade de Coimbra no dia 07/07/2015 

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