No último dia 14 de maio, foi apresentada na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº. 369/2009, que propõe a seguinte redação ao artigo 5º, inciso XLIII: “a lei considerará crimes inafiançáveis, insuscetíveis de graça ou anistia, devendo a pena ser cumprida em regime integralmente fechado, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
Considerando a atual redação desse inciso (“a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”), percebe-se que a alteração proposta consiste na determinação do regime integralmente fechado para os crimes hediondos e equiparados (tortura, tráfico de drogas e o terrorismo).
Deixando de lado as críticas sobre o oportunismo e a motivação político-eleitoral da proposta, este artigo analisará, nos estreitos limites deste espaço, sua consistência jurídica.
Lembre-se, antes de tudo, que o regime integralmente fechado não constitui novidade, tendo sido previsto no artigo 2º, § 1º, da Lei nº. 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), que foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, por ofensa ao princípio da individualização da pena (art. 5º, inc. XLVI, CF), no julgamento do Habeas Corpus nº. 82959/SP, em 23 de fevereiro de 2006.
A indagação que ora se coloca é se a PEC nº. 369/2009 é sustentável, em confronto com o artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, o qual prevê que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado (inc. I), o voto direto, secreto, universal e periódico (inc. II), a separação dos Poderes (inc. III) e os direitos e garantias individuais (inc. IV).
A resposta a essa questão não demanda maiores indagações, uma vez que o princípio da individualização da pena é uma garantia individual, incidindo, portanto, a hipótese prevista no inciso IV, que abrange, como visto, os direitos e garantias individuais.
Na lição de Vicente Leal de Araújo – e de todos os penalistas – o princípio da individualização da pena compreende três fases: “a) fase legislativa, ensejo em que o legislador, na qualidade de representante do pensamento da Nação, elegendo o bem jurídico tutelado, formula o preceito descritivo da conduta vedada (matar alguém) e estabelece a sanção, ou seja, a pena cominada, mensurada, em regra, em tempo de privação da liberdade, estabelecendo balizas entre o máximo e o mínimo do castigo (6 a 20 anos de reclusão); b) fase judicial, contemplada em nosso sistema com moldura legal exemplar, quando o juiz, após aferir um leque de circunstâncias de natureza subjetiva — culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do agente — e de natureza objetiva — motivos, circunstâncias e conseqüências do crime —, fixará aquela aplicável entre; as cominadas, em quantidade necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do delito, definindo, também, o regime inicial de cumprimento da sanção prisional; c) fase executória, em que se conjugam ações judiciais e administrativas, de alta relevância no processo de ressocialização e de reinserção social do condenado, fase em que é de rigor a observância dos direitos fundamentais inerentes ao resguardo da dignidade da pessoa humana” (Princípio da individualização da pena. Fonte: http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/8388) (grifamos).
A PEC nº. 369/2009, ao impor o regime integralmente fechado, afronta o princípio da individualização da pena na exata medida em que impede a individualização na fase executória. A propósito, no voto que proferiu no Habeas Corpus nº. 82959/SP, o Ministro Cezar Peluzo afirmou que a individualização da pena, perante a Constituição, compreende “a individualização de sua execução, segundo a dignidade humana (art. 1º, III), o comportamento do condenado no cumprimento da pena (no cárcere ou fora dele, no caso das demais penas que não a privativa de liberdade) e à vista do delito cometido (art. 5º, XLVIII)”.
E o Ministro Gilmar Mendes afirmou: “Não é difícil perceber que a fixação in abstracto de semelhante modelo, sem permitir que se levem em conta as particularides de cada indivíduo, sua capacidade de reintegração social e os esforços envidados com vistas à ressocialização, retira qualquer caráter substancial da garantia da individualização da pena. Ela passa a ser uma delegação em branco oferecida ao legislador, que tudo poderá fazer. Se assim se entender, tem-se a completa descaracterização de uma garantia fundamental”.
Em conclusão, a PEC nº. 369/2009 não pode ser objeto de deliberação pelo Congresso Nacional, uma vez que pretende abolir uma garantia individual (a individualização da pena), nos termos do artigo 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal.
Se passar pelo crivo do Poder Legislativo Federal – o que é possível, tendo em vista o que se tem visto em termos de produção legislativa penal – essa proposta não passará pelo exame do Supremo Tribunal Federal, que “já assentou o entendimento de que é admissível a Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional, quando se alega, na inicial, que esta contraria princípios imutáveis ou as chamadas cláusulas pétreas da Constituição originária (art. 60, § 4º, da C.F.)” (Tribunal Pleno – Medida Cautelar a Ação Direta de Constitucionalidade nº. 1.946/DF – Acórdão de 29 de abril de 1999, publicado no DJU de 14 de setembro de 2001, p. 48).