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Resumo:
Debate a Exclusão Social e a responsabilidade do Estado visto como garantidor de direitos fundamentais e promotor de justiça social.
Texto enviado ao JurisWay em 05/03/2009.
Última edição/atualização em 06/03/2009.
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O surgimento do Estado de Direito constituiu uma evolução frente às concepções de domínio arbitrário dos governantes. O poder de governar, dentro dessa evolução, deixa de ser visto apenas como uma mera prerrogativa, um privilégio de alguns em relação à sujeição de muitos. Essa noção passa a ser substituída pela idéia de munus, encargo, pois aquele a quem se concede o Poder Público deve exercê-lo seguindo parâmetros previamente estabelecidos, de forma que, somente cumprindo sua função de promotor da justiça social poderá se desincumbir dessa responsabilidade.
O Estado contemporâneo, dentro dessa concepção de Estado de Direito, está subordinado ao Direito Objetivo e tem como primado a Constituição. Isso significa que o estado moderno é estabelecido sobre bases constitucionais num duplo sentido: que ele sofre limitações constitucionais de poder e, além disso, tem sua atividade direcionada à consecução de objetivos estabelecidos constitucionalmente.
A construção do novo modelo de Estado, marcadamente influenciada pelas concepções do Welfare State, ou Estado do Bem-Estar Social, possibilitou o surgimento histórico de uma nova noção de responsabilidade estatal frente às demandas da sociedade. Tais demandas, que anteriormente eram limitadas à esfera de responsabilidade e satisfação meramente individuais, passam a constituir uma gama de direitos e garantias que vinculam a atividade estatal à sua promoção.
Assim, o Estado passa a ser visto como o principal responsável pela promoção da cidadania e, simultaneamente a essa evolução, dentro da concepção de Estado de Direito, também se promoveu um amplo desenvolvimento da própria noção de direitos e garantias fundamentais. Esses direitos, que constituem o núcleo constitucional, são os principais norteadores do papel do estado frente aos direitos do homem e da coletividade.
A doutrina costuma destacar diferentes fases e transformações dentro do processo de reconhecimento desses direitos, não somente com relação ao seu conteúdo e abrangência mas também em relação à sua titularidade e concretização. Nesse aspecto, convém contrapor a utilização do termo gerações de direitos fundamentais, que transparece a idéia de sucessividade entre os direitos, e dimensões, que busca a idéia de complementaridade e interdependência.
A despeito dessa discussão terminológica, consoante entendimento da doutrina majoritária, pode-se classificar em três gerações, ou dimensões, os direitos fundamentais, sem, no entanto, desconsiderar as diversas teorias acerca da existência de direitos cuja natureza não esteja compreendida nessas fases, constituindo posições jurídicas de quarta ou mesmo quinta dimensões.
Na primeira dimensão, há o surgimento de direitos eminentemente defensivos, ou seja, de não-intervenção do Estado e de particulares, numa espécie de demarcação do território de abrangência da autonomia do indivíduo, tais como o direito à vida, à igualdade, à liberdade e à propriedade. Posteriormente, num segundo momento, pode-se observar que, diante dos movimentos de valorização e reivindicação de direitos, atribui-se ao Estado o papel de fomentador da justiça social, havendo necessidade de um comportamento ativo em prol da efetivação de uma segunda dimensão de direitos fundamentais, de que são exemplos os direitos sociais, tais como o direito à saúde e à moradia. Finalmente, numa terceira fase, ou terceira dimensão, há o surgimento de direitos fundamentais que visam à proteção da coletividade, daí serem denominados de direitos coletivos ou difusos, como o direito à paz, ao meio-ambiente e à qualidade de vida, cujos titulares podem ser a família, o povo, o país.
Com o mesmo sentido da classificação exposta, os direitos fundamentais também podem ser classificados conforme tenham um conteúdo negativo – como as liberdades públicas, ou direitos de primeira geração, que requerem uma abstenção do estado e de particulares aos atos que lesem esses direitos; ou positivo – cujos maiores exemplos são os direitos sociais prestacionais, de segunda dimensão, na medida em que a sua realização depende da atuação concreta do Poder Público. Nesse sentido, o papel do Estado ultrapassa a idéia de não-intervenção e manutenção da liberdade particular, estendendo sua função para a atuação concreta, positiva, tendo em vista o cumprimento de deveres constitucionais e a efetivação de diversos direitos fundamentais.
A Constituição Federal de 1988 prevê inúmeros deveres do Estado. Esses deveres se relacionam tanto com imposições de cunho negativo, que implicam a abstenção da prática de atos lesivos a direitos inseridos em âmbito constitucional, quanto também se referem a garantias que o poder estatal é obrigado a prestar, seja através da defesa do direito resguardado pela Constituição, seja no cumprimento de prestações que se lhe impõe satisfazer. A CF, nesse sentido, insere os direitos sociais entre os direitos e garantias fundamentais do seu Título II, sob os seguintes termos:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Além disso, a CF dedicou o Título VIII especialmente à Ordem Social, no qual dispõe sobre questões como seguridade social, educação, cultura e desporto, ciência e tecnologia, comunicação social, meio ambiente, bem como acerca da família, da criança e do adolescente, dos idosos e indígenas.
Frederico Menezes Breyner (2007), ao analisar o caráter de fundamentalidade dos direitos prestacionais, afirma que :
Os direitos prestacionais são direitos fundamentais e imputam ao Estado o dever de empreender ações positivas para sua implementação. A inércia estatal configura ofensa ao direito fundamental do cidadão na medida em que impossibilita a obtenção de condições mínimas de vida (mínimo existencial), e assim o investe no direito subjetivo para exigir a prestação e assegurar sua dignidade.
Nesse sentido, analisando-se o papel do Estado face a essas determinações constitucionais, ou seja, seus deveres de garantia e efetivação dos direitos humanos fundamentais e concretização desses direitos sociais, se pode observar que esses direitos caracterizam-se por outorgar ao indivíduo o desenvolvimento de políticas que correspondam ao cumprimento dessas prestações sociais estatais, tais como assistência social, saúde, educação, trabalho e moradia. Esses direitos, segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 55), acabam “revelando uma transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas”.
Também Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2000, p. 49-51), nessa esteira, ensina que:
Como as liberdades públicas, os direitos sociais são direitos subjetivos. Entretanto, não são meros poderes de agir – como é típico das liberdades públicas de modo geral – mas sim poderes de exigir. São direitos “de crédito”. [...] Há, sem dúvida, direitos sociais que são antes poderes de agir. É o caso do direito ao lazer. Mas assim mesmo quando a eles se referem, as Constituições tendem a encará-los pelo prisma do dever do Estado, portanto, como poderes de exigir prestação concreta por parte deste. [...] O objeto do direito social é, tipicamente, uma contraprestação sob a forma de uma prestação de um serviço. O serviço escolar, quanto ao direito à educação, o serviço médico-sanitário-hospitalar, quanto ao direito à saúde, os serviços desportivos, para o lazer etc. [...] A garantia que o Estado, como expressão da coletividade organizada, dá a esses direitos é a instituição dos serviços públicos a eles correspondentes. Trata-se de uma garantia institucional, portanto.
Os direitos fundamentais de conteúdo positivo, como os direitos sociais, constituem uma evolução, dentro do processo de reconhecimento dos direitos humanos, decorrente de movimentos de reivindicação de uma atuação efetiva do Estado face à necessidade de valorização da pessoa humana e promoção do bem-estar da coletividade.
Essa evolução dá contornos à própria modernização da noção de função do Poder Público e não descarta o sentido de complementação aos direitos de cunho negativo, com o que se pode concluir que:
O Estado Social de Direito, também denominado de Estado do Bem-Estar, distingue-se justamente por ter avocado para si a tarefa de realização da justiça social, de tal sorte que, juntamente com os direitos sociais, pode ser considerado ao mesmo tempo produto, complemento, corretivo e limite do Estado Liberal de Direito e dos clássicos direitos de defesa de matriz liberal-burguesa. (SARLET, 2004, p. 217)
EXCLUSÃO SOCIAL
Dentro da concepção moderna de Estado, a responsabilidade pela viabilização dos direitos sociais e garantias fundamentais, pela condução de políticas públicas em prol do bem-estar da coletividade, pelo desenvolvimento de mecanismos de inclusão, enfim, o encargo de promoção do bem-estar coletivo e da justiça social é aspecto indissociável do exercício regular – constitucional - da função do Poder Público.
O fenômeno da Exclusão Social, por sua vez, está diretamente ligado à forma como esse poder se apresenta e atua no contexto social. Apesar de existir consenso entre a maioria dos autores que o termo exclusão tem origem na obra de René Lenoir, Les Exclus, de 1974, no que tange ao significado desse fenômeno no âmbito social, inúmeras elaborações teóricas foram desenvolvidas.
Numa posição marcadamente influenciadora das modernas concepções sociológicas acerca do tema, a Exclusão Social pode ser vista como um processo de desvinculação social, um constante afastamento do indivíduo da tutela do Estado, da participação social e da proteção, e mesmo reconhecimento, de seus direitos.
Assim, analisando os mecanismos pelos quais se dão os processos de Exclusão Social tem-se que, consoante Bonetti (1998, apud TAVEIRA, 2002, p. 25):
A exclusão se dá graças à ruptura de três grandes vínculos: econômicos – através do desligamento das (ou do não “ligamento” às) relações de produção, sociais – através do afastamento de familiares e amigos, e simbólicos – através da renúncia dos sonhos acalentados e da introjeção dos valores que permeiam o meio social e relativos à inutilidade do excluído – a própria inutilidade.
Sarah Escorel (1999), estudiosa dos mecanismos de exclusão, também é sectária do entendimento segundo o qual a Exclusão Social é representada através de um processo de desligamento de sucessivos vínculos sociais, com o que compreende a autora ser o fenômeno da exclusão:
Um processo porque fala de um movimento que exclui, de trajetórias ao longo de um eixo inserção/exclusão, e que é potencialmente excludente (vetores de exclusão ou vulnerabilidades). Mas é, ao mesmo tempo, um estado, a condição de exclusão, o resultado objetivo de um movimento. As formas de exclusão social podem ser caracterizadas por trajetórias de labilidade dos vínculos sociais até a sua ruptura completa, atravessando terrenos de dissociação ou desvinculação. (ESCOREL, 1999, 67)
Segundo Xiberras (1993 apud Leal, 2004), vários são os vínculos sociais que se rompem durante o processo de exclusão. Na colocação daquele que é um dos mais renomados estudiosos da problemática da exclusão, destaca-se no processo a desvinculação econômica, ou seja, do sistema produtivo, mas a essa se segue outras, de natureza simbólica, com o que, consoante entende Pedro Demo (1998), a exclusão não se esgota com o mero afastamento do mercado de trabalho. Da mesma forma, José Carlos Taveira (2002, p. 27), considerando essa concepção, afirma que “a exclusão social é um processo desencadeado pela ruptura no sistema produtivo, que apresenta desdobramentos pelos quais outras dimensões são atingidas, como a simbólica e a social”.
Similarmente, Escorel (1999), que tem como principais bases os trabalhos de Hannah Arendt e Robert Castel, constrói uma abordagem segundo a qual o processo de Exclusão Social ocorre numa sistemática de desvinculação em cinco dimensões, quais sejam: econômico-ocupacional, sociofamiliar, da cidadania, das representações sociais e da vida humana. Na concepção da autora, haveria, na primeira dimensão, uma desvinculação do indivíduo da esfera do trabalho, na qual se podem apresentar diversos sintomas, como a diminuição de vagas, a exigência de qualificações cada vez menos acessíveis às classes menos favorecidas, a instabilidade e a precariedade das condições do emprego e a subvalorização do empregado.
Ao afetar a esfera sociofamiliar, por outro lado, a exclusão aparece na ofensa às relações familiares, de vizinhança e de comunidade. Aqui, o processo faz com que o indivíduo não pertença a nenhum grupo, ou seja, não tenha ninguém a zelar por si, atingindo a estrutura de solidariedade que, se houvesse, poderia ser um contrapeso frente às repercussões da desvinculação ocupacional, pois aquele que tem família tem mais condições de se recuperar diante de vicissitudes econômicas.
Noutro momento, ainda durante o processo de fragilização, são atingidos os direitos políticos e a idéia de cidadania, quando ocorre cada vez menos participação nas decisões politico-administrativas sociais, no pertencimento à esfera pública na qualidade de cidadão, solidificando-se uma visão de descrédito nas instituições do Estado.
A dimensão das representações sociais, por sua vez, inserida na concepção de desligamento de vínculos, é uma abordagem que, segundo Escorel (1999, p.78-79.) “possibilita entender a exclusão social para além dos elementos de sua produção (vínculos econômicos) e de sua consolidação (vínculos sociais e políticos) nos elementos que o tornam natural (vínculos culturais e éticos).” Dentro desse raciocínio, não havendo mais sentimento de representação dentro da sociedade, de pertencimento coletivo e de proteção de direitos, passa-se á invisibilidade no contexto social e à estigmatização.
Finalmente, o processo se completa chegando ao limite da desvinculação, que é a expulsão do indivíduo da própria condição de ser humano. O “ser” indigente não só é abandonado às condições de sobrevivência mais aviltantes, como é (ou melhor, NÃO É) considerado um objeto da estrutura física da cidade, relegado a um mero problema histórico-paisagístico. O processo culmina, pois, com o desaparecimento do indivíduo não somente como cidadão, mas como ser humano, permanecendo apenas material e estatisticamente vivo, mas numa existência da qual não mais emanam direitos, mesmo aqueles mais fundamentais.
Nesse sentido, sinaliza Escorel (1999, p. 81):
[...] a exclusão social se caracteriza não só pela privação material mas, principalmente, porque essa mesma privação material ‘desqualifica’ seu portador, no sentido de que lhe retira a qualidade de cidadão, de brasileiro (nacional), de sujeito e de ser humano, portador de desejos, vontades e interesses legítimos que o identificam e diferenciam.
Completa a autora ainda que:
A exclusão social significa, então, o não encontrar nenhum lugar social, o não pertencimento a nenhum topos social, uma exigência limitada à sobrevivência singular e diária. Mas, e ao mesmo tempo, o indivíduo mantém-se prisioneiro do próprio corpo. Não há (mais) um lugar social para ele, mas ele deve encontrar formas de suprir suas necessidades vitais e sobreviver sem suportes estáveis materiais e simbólicos. A ausência de lugar envolve uma ‘anulação’ social, uma diferença desumanizadora, que reveste seu cotidiano com um misto de indiferença e hostilidade. (ESCOREL, 1999, p.81)
Dentro dessa noção acerca da Exclusão Social, como sendo a expulsão do círculo social através do desligamento de sucessivos vínculos, deve-se lembrar que as “fases” estão relacionadas, mas não são necessariamente sucessivas, podendo até mesmo acontecer de algumas serem mais enfáticas enquanto outras sequer ocorrerão. No entanto, esse fracionamento do processo demonstra bem a idéia de que o mecanismo da exclusão pode se operar das mais variadas formas e de que são possíveis diversas abordagens na tentativa de se frear ou reverter o quadro de afastamento. Porém, somente através de um olhar amplo, para além das questões econômicas, se poderá enxergar as verdadeiras origem do processo.
A exclusão é inicialmente uma ausência durável de emprego, mas é igualmente uma perda de relações sociais. Para a explicar, é mister interrogar as evoluções das políticas de emprego, dos funcionamentos do mercado de trabalho, mas também as transformações da família, das políticas urbanas, dos bairros periféricos. Não podemos compreender nada da exclusão se não é analisada a maneira pela qual é produzida pelas instituições: a empresa, a escola, a cidade. (DUBAR, 1996, p. 111, apud DEMO, 1998 , p. 24)
Diversos autores simpatizam com essa idéia de exclusão como um processo de desvinculação, cada qual com suas especificidades. Giuliana Franco Leal (2004) lembra que vários autores franceses, que marcadamente influenciaram as concepções nacionais sobre o tema, como Castel (1998), Paugam (1996), Schnapper (1996) e Xiberras (1993), assim como um brasileiro, Nascimento, (1994), dão mais ênfase às desvinculações na esfera do trabalho, principalmente quando se analisa o contexto francês do século passado. Por outro lado, Escorel, analisando as especificidades do panorama nacional, informa que a família exerce um papel especial na sustentação dos vínculos sociais do indivíduo e na definição de um lugar para ele na sociedade, possibilitando relevante contribuição na análise da fragilização da estrutura sociofamiliar como um fator essencial no processo de desvinculação excludente.
Outro aspecto doutrinário bastante divergente concerne ao fato de haver questionamento acerca do processo de Exclusão Social ser um fenômeno que denota crise no modelo social ou se ele é aspecto inerente ao próprio modelo. Assim discute-se se a exclusão seria realmente um processo de desvinculação fruto de uma crise do estado do Bem Estar Social, como colocam os autores supra mencionados, ou se é resultado do próprio funcionamento do sistema.
O próprio Marx, em seu tempo, já assinalava que o modo de produção capitalista é natural e estruturalmente excludente, com o que se pode concluir que a Exclusão Social não é um fenômeno novo, mas inerente ao sistema de acumulação moderno. Pedro Demo (1998, p 25.) também menciona que, ainda que se procure interpretar os fatos como uma “degeneração do sistema, é sempre possível argumentar que esse tipo de exclusão faz parte da dinâmica capitalista de produção.”
Nesse sentido, Sawaia (2001 apud Leal, 2004), afirma o seguinte:
A exclusão é parte de um processo de contradição, uma vez que ela nega a inclusão, ao mesmo tempo em que faz parte dela. Em síntese, a exclusão é um processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é um processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e nem é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema.
Não se trata, portanto, de ruptura de laços sociais. Trata-se simplesmente de um determinado tipo de ligações. Também não representa estado de anomia ou qualquer tipo de crise de fundamentos da sociedade, mas parte do seu funcionamento.
Da mesma maneira Santos (2001 apud Leal, 2004):
Enxerga na exclusão uma conseqüência das contradições da acumulação capitalista. A autora não está preocupada exatamente em conceituar exclusão social, embora se refira ao termo como um conceito. No entanto, o que escreve a seu respeito fornece indícios do que seja sua noção de exclusão: basicamente, exclusão de riquezas, associada à exclusão de participação política, advindos sobretudo do desemprego mas também da ausência de proteção social.
Neste sentido, para além da análise dos pontos de fragilidade dos vínculos sociais que se rompem durante o processo de exclusão, das causas de desvinculação e da discussão acerca dos meios de sustentação e reconstrução desses liames, passa-se à análise do próprio modelo capitalista-liberal em que se constrói a sociedade e suas contradições, partindo-se de ponto diametralmente oposto, ou seja, a inclusão social.
Em qualquer sociedade, as regras de participação no cenário social estão mais ou menos definidas e, a partir dessas definições, estabelece-se uma barreira frente àqueles que não seguem essas normas. Não há, pois, exclusão sem que haja inclusão. Assim, para essa segunda corrente, somente determinando os contornos de como a inclusão ocorre no sistema, respondendo à indagação de por que se é ou não inserido e definindo quais as condições de inserção é que se poderá realmente atuar frente à questão dos excluídos.
Apesar das divergências entre as diversas teorias sobre a Exclusão Social, seja quanto à ênfase que se dê a determinada dimensão no processo de exclusão ou mesmo se ela é efetivamente o resultado de uma anomalia ou se constitui um fenômeno natural da sociedade, se pode concluir que a maioria dos autores enxerga características similares ao fenômeno excludente, das quais se pode elencar: a redução da qualidade de vida provocada pela pobreza e pela segregação sociofamiliar; a indisponibilidade ou a precarização dos meios de acesso a serviços públicos básicos, como saúde e educação; a inexistência de sistemas de infra-estrutura essenciais como luz, água ou esgoto; a falta de segurança e a exposição à violência física; o preconceito e a desqualificação do indivíduo como portador de direitos perante a sociedade e o Estado; a ausência ou falibilidade dos mecanismos de inserção social.
Essas características, que servem como indicadores de que a exclusão está se operando em determinada localidade ou a algum grupo ou indivíduo, estão diretamente relacionadas a um conjunto de violações de direitos constitucionalmente assegurados ao ser humano. Esses direitos, dentro de um novo modelo estatal que prevê responsabilidades frente às demandas da sociedade, vinculam a função pública à sua promoção de forma que o Estado passa a ser visto como o principal viabilizador de posições jurídicas fundamentais, com o que se pode concluir que, independentemente de como se opera o mecanismo da exclusão, na medida em que ele se relaciona às violações desses direitos fundamentalmente consagrados em âmbito constitucional, constitui, pois, um fenômeno de responsabilidade do Estado.
EXCLUSÃO SOCIAL E CRISE NO MODELO DE ESTADO
Quando se analisa o fenômeno da Exclusão Social num dado contexto, algo importante a se considerar é a o papel estatal frente a tais demandas sociais, papel este que, dependendo de cada sociedade, pode ser mais ou menos protetivo. Nesse aspecto, deve-se considerar que o tamanho do Estado, ou seja, suas limitações de poder e a definição dos contornos do exercício da função pública, são dadas em âmbito constitucional. Assim, considerando a sociedade brasileira, sob a égide da Constituição Federal de 1988, compreende-se que se instituiu um novo modelo de Estado, baseado da composição de responsabilidades sociais que pressupõem uma universalização da noção de cidadania e a promoção de justiça social.
Pedro Demo (1998) lembra que esse novo modelo dá origem à noção de Estado Providência que, segundo Rosanvallon (1997 apud DEMO, 1998), constitui uma evolução frente às concepções do Estado como um Protetor dos direitos fundamentais.
Nesse aspecto:
Para dar sustentação à sua tese , Rosanvallon passa por Locke e Hobbes, que encontraram no Estado, entre outras coisas, a marca protetora da produção da segurança e da redução da incerteza [...]. Todavia, ‘o Estado Providência não é senão uma extensão e um prolongamento do Estado Protetor’ [...]. ‘A passagem do estado protetor para o Estado Providência traduz, no nível das representações do Estado, o movimento no qual a sociedade deixa de se pensar como um corpo para se conceber como um mercado’ [...] o Estado Providência exprime a idéia de substituir a incerteza da providência religiosa pela certeza da providência estatal”. [...] facilitada também pelo surgimento do manejo da estatística, pois “é a idéia da probabilidade estatística que torna praticamente possível e teoricamente pensável a integração da idéia de Providência do estado”. (DEMO, 1998, p. 89 e 90)
Ainda que seja tomada em seus mais diversos sentidos, seja de desvinculação de liames sociais ou de mera não-inclusão no panorama social, de crise no sistema capitalista ou mesmo como resultado natural das contradições desse sistema, a Exclusão Social assume um caráter de ruptura da noção de responsabilidade social e pública e afronta diretamente a concepção de estado como garantidor dos direitos sociais e da cidadania.
A exclusão denota, pois, uma crise do Estado Providência, não porque há um direcionamento inadequado desse modelo, mas sim porque constitui um desvirtuamento de um sistema baseado no modo de acumulação capitalista, que jamais colocará a defesa dos direitos sociais à frente dos reclames econômicos das classes dominantes, pois “é impossível privilegiar a assistência, em desfavor da competitividade, o que também denota que uma democracia capitalista não alcança orientar-se, em última instância, pela justiça social” (DEMO, 1998, p. 31).
Nesse sentido, pode-se afirmar a responsabilidade direta do Estado frente ao surgimento ou agravamento do fenômeno da exclusão num dado momento além da necessidade constitucional de intervenção tendo em vista a recuperação e viabilização de direitos fundamentais violados no contexto excludente. O Estado é, senão o principal culpado diante do surgimento do processo de Exclusão Social num dado momento, o grande responsável pelas intervenções positivas diretas bem como na condução da mobilização da sociedade em prol da discussão do problema. A extensão e as conseqüências desse processo, então, devem ser minimizadas pelo poder público, que deve agir de forma preventiva e reguladora, inserindo a sociedade na discussão e ampliando os mecanismos de inclusão e proteção daqueles que, a princípio, são deixados à míngua de direitos consagrados constitucionalmente.
REFERÊNCIAS
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