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DESCABIMENTO DA PRISÃO EM FLAGRANTE NO CRIME DE FALSO TESTEMUNHO


Autoria:

Jane Taise Carvalho Da Silva Grigorio


Assistente Técnico Administrativo do Ministério Público do Estado da Bahia. Advogada licenciada. Exerceu os cargos de Agente Especializado e Chefe de Setor pelo Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região. Desempenhou atividades de assessoria a magistrados do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Graduada em Direito pelo Instituto de Educação Superior Unyahna de Barreiras. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera.

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Resumo:

A partir da ameaça ou efetiva violação aos direitos fundamentais, surge a necessidade de atuação estatal para fazer cessar ou inibir a ameaça. Para isso, dentre outros instrumentos, foi prevista pela Constituição Federal a prisão em flagrante.

Texto enviado ao JurisWay em 02/08/2013.



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1. Introdução

 

Um instrumento de que dispõem os cidadãos para atuar contra práticas criminosas é a prisão em flagrante, que pode ser efetuada por qualquer do povo, além, obviamente, da autoridade policial, que tem esse dever se verificar as hipóteses delineadas no art. 302 do Código de Processo Penal. Aliás, essa previsão da prisão em flagrante como dever e como faculdade já fora feita há muito tempo, pela recomendação da Instituição Francesa, que data de 29 de setembro de 1791, conforme citado por GARCIA (2005, p. 10):

 

[...] No caso de flagrante delito, todo depositário da força pública, e mesmo todo cidadão, devem, no interesse da sociedade, prestar-se a prender o delinqüente [sic], porque todos os bons cidadãos devem formar intensamente uma liga santa e patriótica contra os infratores da Constituição e das Leis, concorrer para impedir que seja cometidos [sic] um delito e entregar às mãos dos ministros da Lei os delinquentes surpreendidos em perturbação da ordem pública [...]

 

Como técnica didática, a doutrina classifica o flagrante em diversas espécies, conforme o modo e as circunstâncias como realizado. Há até mesmo hipóteses em que, dada as circunstâncias, não se terá havido crime, como o flagrante provocado, abaixo melhor esclarecido.

Carecia de análise doutrinária o estudo da possibilidade de prender em flagrante a testemunha ou perito que prestar declaração falsa em juízo, ou calar a verdade. Ao que parece, a prisão em flagrante do autor do delito tipificado no art. 342 do Código Penal não se mostra meio razoável. Isso porque o caráter que se atribuiria a essa prisão seria de antecipação de punição, finalidade que está dissociada do entendimento dado à privação preventiva da liberdade pelo ordenamento jurídico brasileiro, conforme ficará demonstrado.

 

2. Prisão

 

2.1. Conceito e evolução histórica

 

Prisão, cadeia ou cárcere é o lugar edificado para abrigar pessoas, sejam as condenadas num processo judicial, sejam aquelas a quem foi decretada judicialmente, em caráter preventivo, uma medida de privação de liberdade, ou ainda pessoas presas às ordens de forças policiais ou militares. O estabelecimento prisional deve ser fisicamente estruturado em unidades celulares que, nos termos da Lei de Execução Penal, devem ter no mínimo seis metros quadrados, e devem respeitar as condições de “salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana.”

A concepção de um local específico para enclausurar pessoas remonta desde a Antiguidade, não exclusivamente, mas também como medida punitiva, a exemplo dos cativeiros onde os escravos eram mantidos sob custódia. Desde esse momento histórico o ato de encarcerar denotava também a “finalidade de conter, manter sob custódia e tortura os que cometiam faltas, ou praticavam o que para a antiga civilização, fosse considerado delito ou crime.” (MISCIASCI,1999).

Discorrendo acerca do desenvolvimento histórico do instituto da prisão, MISCIASCI (1999) continua informando que:

 

Na Idade Moderna, aproximadamente entre os séculos XVI e XVII, a Europa foi atingida de forma extensamente abrangente pela pobreza. Para que pudesse surgir a idéia [sic] da possibilidade de expiar o delito com um quantum de liberdade, abstratamente predeterminado, era necessário que todas as formas de riqueza fossem reduzidas à forma mais simples e abstrata do trabalho humano medido pelo tempo: portanto, num sistema sócio-econômico [sic] como o feudal, a pena-retribuição não estava em condições de encontrar na privação do tempo um equivalente do delito. Com o surgimento do capitalismo, constitui-se a pena por excelência do capitalismo industrial. Na sociedade feudal existia a prisão preventiva e a prisão por dívidas.

 

Com o advento do século XVIII, foi inaugurado o processo de mudança dos métodos de punição, colocando um fim nos espetáculos de execuções públicas que ocorriam por toda a Europa, nascendo mecanismos punitivos diferentes, progredindo para sua concepção atual (SOUZA, 2011).

 

2.2 Finalidades

 

São distintas as teorias que explicam as finalidades da pena privativa de liberdade. Para as teorias absolutas, retribucionistas ou de retribuição, “o fim da pena é o castigo, ou seja, o pagamento pelo mal praticado” (MIRABETE, 2002, p. 22). Já as teorias relativas, utilitárias ou utilitaristas defendem que “à pena era dado um fim exclusivamente prático, em especial o de prevenção geral (com relação a todos) ou especial (com relação ao condenado)”. As teorias mistas, por sua vez, entendem que a pena, “por sua natureza, é retributiva, tem seu aspecto moral, mas sua finalidade não é simplesmente prevenção, mas um misto de educação e correção.” (MIRABETE, 2002, p. 23). No decorrer da história, verifica-se que uma dessas teorias sempre predominará.

 

2.3 Espécies de prisão

 

Atualmente o ordenamento jurídico brasileiro compreende cinco espécies de prisão. São elas: temporária, preventiva, civil, para efeitos de extradição e em flagrante.

A prisão temporária está disciplinada na Lei nº 7.960/1989, e pode ser decretada judicialmente em face de representação da autoridade policial ou do Ministério Público, com fundamento nas hipóteses delineadas no art. 1º, e pode durar 5 ou 30 dias prorrogáveis por igual período.

A prisão preventiva, por sua vez, é tratada pelo Código de Processo Penal, Decreto-Lei nº 3.689/1941, e recentemente sofreu inovações trazidas pela Lei nº 12. 403/2011. O respectivo projeto de lei foi apresentado como sendo suas principais alterações aquelas claramente indicadas na Exposição de Motivos nº 22 – MJ, abaixo transcritas:

 

a) o tratamento sistemático e estruturado das medidas cautelares e da liberdade provisória;

b) o aumento do rol das medidas cautelares, antes centradas essencialmente na prisão preventiva e na liberdade provisória sem fiança do artigo 310, parágrafo único;

c) manutenção da prisão preventiva, de forma genérica para a garantia da instrução do processo e para a execução da pena e, de maneira especial, para acusados que possam vir a praticar infrações penais relativas ao crime organizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira consideradas graves, ou mediante violência ou grave ameaça à pessoa;

d) impossibilidade de, antes da sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar;

e) valorização da fiança.

 

Ficou claro que a privação da liberdade passou a ser tratada como medida secundária às cautelares indicadas no art. 319 do Código de Processo Penal. É dizer, quando se revelar adequada à gravidade do crime, às condições pessoais do acusado e circunstância do fato, as cautelares diversas da prisão preferem à privação da liberdade.

Outras hipóteses de prisão de caráter preventivo estão previstas na Lei nº 6.815/1980, o Estatuto do Estrangeiro, inclusive a hipótese de prisão para efeitos de extradição.

Mais uma espécie de prisão é a civil, anteriormente prevista para hipótese de depositário infiel e descumprimento inescusável de obrigação alimentícia, hoje admitida apenas para esta última hipótese, conforme reiterados pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal:

 

DEPOSITÁRIO INFIEL – PRISÃO. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel.[i]

 

PRISÃO CIVIL – PENHOR RURAL – CÉDULA RURAL PIGNORATÍCIA – BENS – GARANTIA – IMPROPRIEDADE. Ante o ordenamento jurídico pátrio, a prisão civil somente subsiste no caso de descumprimento inescusável de obrigação alimentícia, e não no de depositário considerada a cédula rural pignoratícia.[ii]

 

A propósito, foi editada a Súmula Vinculante nº 25 no seguinte teor: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”            [iii].

Uma nova modalidade de prisão: em flagrante delito, que será objeto de percuciente análise.


 

3. Prisão em flagrante

 

3.1 Conceito e espécies

 

O termo flagrante provém do latim flagrare, que significa queimar, arder, que está crepitando.  É o crime que ainda queima, isto é, que está sendo cometido ou acabou de sê-lo. Desta forma, em sentido figurado, o que está a queimar, crepitar, é o que está acontecendo no ato, no momento, evidente, notório, manifesto. Prisão em flagrante delito é, assim, a prisão daquele que é surpreendido no instante mesmo da consumação da infração penal, e está regulada em suas diversas formas pelo art. 302 do Código de Processo Penal,  in verbis:

 

Art. 302.  Considera-se em flagrante delito quem:

I - está cometendo a infração penal;

II - acaba de cometê-la;

III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

 

A doutrina atribui um nome específico para a previsão de cada inciso, classificando o flagrante em três modalidades (FARINELI, 2010):

 

O flagrante próprio é aquele previsto pelo inciso I do artigo 302, supracitado: quando o agente criminoso é pego quando ainda está consumando o crime. O flagrante impróprio é aquele previsto pelo inciso II do artigo 302: quando o agente é pego quando acaba de consumar o crime, fugindo logo em seguida. O flagrante presumido é aquele previsto pelos incisos III e IV do artigo 302: quando o indivíduo é localizado (não perseguido. Nesta hipótese, trata-se de flagrante impróprio) logo depois de cometer o crime, tendo em sua posse instrumentos que façam presumir que seja ele o autor.

 

Quanto à origem, o flagrante pode ser provocado, esperado, prorrogado ou forjado. JESUS (2003, p. 200), trata do flagrante provocado, e o identifica como sendo “delito putativo por obra do agente provocador”. Este ocorre quando alguém, de forma ardilosa, provoca o agente à prática de uma infração e, concomitantemente, toma providências para que ela não se consume. JESUS (2003, p. 200) ilustra com o seguinte exemplo:

 

O dono de uma loja, desconfiado da honestidade de uma de suas empregadas, manda-a selecionar determinada mercadoria, deixando-a sozinha num compartimento, ao mesmo tempo em que coloca policiais de atalaia, previamente solicitados, que a surpreendem no ato de furtar.

 

Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula nº 145, dispondo que “não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação.”[iv]

Já no flagrante esperado não há obra do agente provocador. Aqui o indivíduo “sabe que vai ser vítima de um delito e avisa a Polícia, que põe seus agentes de sentinela, os quais apanham o autor no momento da prática ilícita.” (JESUS, 2003, p. 203). Veja que, via de regra, o delito ocorreria de qualquer forma, com ou sem o prévio conhecimento da vítima ou a chegada da autoridade policial. Logo, há sim crime na hipótese de flagrante esperado. Foi nesse sentido que entendeu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1215/RJ: “Não há flagrante preparado quando a ação policial aguarda o momento da prática delituosa, valendo-se de investigação anterior, para se efetivar, sem a utilização de agente provocador.”[v]

 

É flagrante prorrogado, retardado ou diferido aquele previsto no art. 2º, inciso II, da Lei 9.034/1995, que dispõe:

 

Art. 2o Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas: (Redação dada pela Lei nº 10.217, de 11.4.2001)

I - (Vetado).

II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações;

 

Neste caso, destarte, a autoridade policial detém discricionariedade para não efetuar a prisão em flagrante no instante em que presencia a prática da infração penal, podendo aguardar um momento mais importante para a investigação criminal ou colheita de prova.

Quanto ao flagrante forjado, PEREZ (2006) informa se tratar daquele em que policiais ou particulares criam provas de um crime inexistente, depositando, por exemplo, no interior de um veículo substância entorpecente, hipótese em que, além de não existir crime, responderá o policial ou terceiro por crime de abuso de autoridade.

 

3.2 Da finalidade da prisão em flagrante

 

A prisão em flagrante tem duas finalidades precípuas: cessar a prática criminosa e facilitar a captação de provas. Uma vez flagrado o indivíduo na prática delituosa, sua prisão é a providência indicada, por conveniência da instrução criminal, como medida acautelatória da prova da materialidade do fato e de sua autoria, e como garantia da ordem pública, no ponto em que faz cessar a conduta delitiva, revelando-se como mecanismo de imediata proteção aos direitos fundamentais. Acrescenta GARCIA (2005, p. 09):

 

Nesse entendimento vemos que a prisão em flagrante é uma medida de autodefesa da sociedade, pois há a necessidade de se fazer cessar a prática criminosa e a perturbação da ordem jurídica, sendo que essa privação do jus libertatis do indivíduo surpreendido em flagrante é uma necessidade, levando-se em conta o bem maior que por detrás se anuncia, ou seja, a segurança da coletividade. (grifamos)

 

Nesse mesmo sentido, SILVA (2007, p. 62):

 

a prisão em flagrante desempenha a necessária função de atualização das funções preventivas das normas penais incriminadoras. Não fosse a prisão em flagrante, perder-se-ia um poderoso instrumento constitucional de defesa contra comportamentos atuais ofensivos a direitos fundamentais/bens coletivos constitucionais. Mais do que qualquer função probatória, realiza um estratégico mister de impedir, pela atualização que traz a toda e qualquer norma incriminadora, comportamentos que as violem: traz, excepcionalmente, a proteção da norma penal, do distante momento do cumprimento da pena, para o momento atual da violação. (grifamos)

 

Não se pode conceber que a prisão em flagrante possa figurar como uma antecipação da pena, primeiro em virtude do princípio do estado de inocência que preleciona que alguém só pode ser considerado culpado após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; segundo porque toda medida privativa de liberdade decretada antes da condenação, como a prisão preventiva e prisão temporária, não pode assumir essa feição. Nem mesmo pode a prisão em flagrante ser admitida como uma resposta para sociedade. Caso esteja essa em risco com o delinquente em seu meio, surge a garantia da ordem pública (art. 312 do Código de Processo Penal) como fundamento para a prisão preventiva, e não para a prisão em flagrante. É certo que a prisão decorrente do flagrante pode ser mantida com a subsequente decretação da preventiva, se sobrevierem os motivos traçados no art. 312 do Código de Processo Penal, o que não autoriza dizer que esses motivos podem embasar a prisão em flagrante.

Assim sendo, a prisão em flagrante não possui outros senão os dois motivos inicialmente indicados: cessar a prática criminosa e facilitar a colheita de provas.


 

4. Do crime de falso testemunho ou falsa perícia (art. 342 do Código Penal)

 

4.1 Conceito e Classificação

 

CHAGAS (2009) desenvolve um brilhante estudo sobre o crime de falso testemunho ou falsa perícia, e nele explica que há duas correntes que conceituam esse delito. “Para a corrente objetiva, falso será o testemunho que não encontra correspondente ao que efetivamente ocorreu, enquanto para a corrente subjetiva, falso será o que não corresponde ao que a testemunha percebeu.”

A doutrina classifica os tipos penais em mais de quarenta espécies, das quais algumas são: crime comum, crime especial, crime de mão própria, crime de dano, crime de perigo, crime instantâneo, crime permanente, crime instantâneo de efeito permanente, crime continuado, crime progressivo, crime condicionado, crime incondicionado, crime impossível, crime falho, crime unissubsistente, crime plurissubsistente, crime de dupla subjetividade passiva, crime exaurido, crime material, crime formal, e crime de mera conduta.

Muito embora o ordenamento jurídico tenha adotado a teoria da imputação objetiva, que concede relevância ao resultado jurídico, o estudo da classificação quanto ao resultado naturalístico (formal, material ou de mera conduta) torna-se imprescindível neste momento, para conduzir à compreensão do descabimento da prisão em flagrante no crime de falso testemunho. Para enriquecer ainda mais esta pesquisa, vale a pena explicar um pouco mais a teoria da imputação objetiva, à luz de STIVANELLO (2003, P. 71):

 

Para que possa haver a imputação objetiva, pela Teoria de Claus Roxin, seria portanto necessária a concorrência de três condições, quais sejam:

1) A criação ou aumento de um risco não-permitido;

2) A realização deste risco não permitido no resultado concreto;

3) Que o resultado se encontre dentro do alcance do tipo / esfera de proteção da norma.

Assim: um resultado causado pelo agente só deve ser imputado como sua obra e preenche o tipo objetivo unicamente quando o comportamento do autor cria um risco não-permitido para o objeto da ação, quando o risco se realiza no resultado concreto, e este resultado se encontra dentro do alcance do tipo

 

O presente estudo se debruçará nas classificações dos crimes quanto ao resultado: material, formal e de mera conduta.

JESUS (2003, p. 191) assim define cada uma dessas três espécies:

 

No crime de mera conduta o legislador só descreve o comportamento do agente. Exs.: violação de domicílio (art. 150), desobediência (art. 330) [...]. no crime formal o tipo menciona o comportamento e o resultado, mas não exige a sua produção para a consumação. Exs.: crimes contra a honra, ameaça, divulgação de segredo, violação de segredo profissional etc. No crime material o tipo menciona a conduta e o evento, exigindo a sua produção para a consumação. Exs.: homicídio, infanticídio, aborto, participação em suicídio, lesão corporal, furto, roubo etc.

 

 A classificação acima permite inferir que no crime de mera conduta, o resultado, compreendido este como a alteração no mundo naturalístico, é despiciendo para a consumação do delito. Nos crimes formal e material a conduta cria um resultado, de existência facultativa para aquele, e necessária para este. Em outras palavras, quando o tipo prevê a conduta somada a uma finalidade específica (“com o fim de”, “com o intuito de obter”) se estará diante de um crime formal, porque basta que essa finalidade esteja na consciência do agente, não exigindo que ela se realize. De outro lado, quando o tipo prevê a conduta e a alteração no mundo naturalístico, quer dizer, quando o “obter” (não a mera vontade, mas a efetiva obtenção) for o próprio núcleo do tipo, se estará diante de um crime material. E, por fim, quando o tipo prevê apenas a conduta, sem descrever o resultado, a finalidade específica, se estará diante de um crime de mera conduta.

Com a devida venia, não merece acolhida o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (HC 208576/SP)[vi] no sentido de ser o crime de falso de natureza material, obviamente porque a lei não prevê nenhum resultado para a conduta, mas a simples conduta (comissiva ou omissiva).

Diante desse entendimento, analisando o tipo previsto no art. 342 do Código Penal, conclui tratar-se de crime de mera conduta. Veja: Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral”. O tipo penal não prevê nenhum resultado advindo da afirmação falsa ou verdade omitida.

 

4.2 Análise da prisão em flagrante diante do crime de falso testemunho ou falsa perícia

 

A partir do entendimento até aqui traçado, já se revela descabida a prisão em flagrante do autor do crime de falso testemunho ou falsa perícia, porquanto não estão presentes as finalidades do flagrante.

É certo que aqui não há que se falar em necessidade de cessação da prática delitiva, porque se trata de crime de mera conduta. Quer dizer, no momento em que a testemunha fala uma mentira ou omite informação verdadeira de que sabe, consuma-se o delito.

Também não se cogita da necessidade de coletar provas, porque a informação que interessa à apuração do crime e que será confrontada com aquela prestada pela testemunha estará nos autos do próprio processo referente ao qual a testemunha delinquiu, em cuja instrução a testemunha prestou informação isolada nos autos, destoada dos demais elementos de prova colhidos.

Ademais, a jurisprudência, embora não unanimemente, já reconheceu o descabimento do flagrante:

 

"HABEAS CORPUS"" - FALSO TESTEMUNHO - PRISÃO EM FLAGRANTE - INADEQUAÇÃO - CONSTRANGIMENTO ILEGAL. Não se mostra escorreita a antecipação valorativa do conteúdo da prova produzida por testemunha durante sua oitiva, havendo aspectos conflituosos e circunstâncias fáticas e normativas a justificar ao Juízo a não - adoção da prisão em flagrante de pessoa que tenha, supostamente, praticado o delito de falso testemunho, até mesmo pela incerteza natural da prévia avaliação da ação típica, suas possíveis implicações e da possibilidade da retratação prevista no art. 342, § 2º, do Código Penal.[vii]

 

HABEAS CORPUS - FALSO TESTEMUNHO - PRISÃO EM FLAGRANTE - IMPOSSIBILIDADE - CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO - ORDEM CONCEDIDA. - Para a configuração do delito previsto no art. 342, do CP, necessário se faz uma avaliação preliminar e antecipada da condição de falsidade do depoimento prestado naquele juízo, condição essa que pode não ser confirmada pelo Juiz natural que irá processar e julgar o crime, vez que, por força do art. 252, II e IV, do CPP, não será o mesmo que impôs a prisão. - Ainda, necessário o dolo específico de prejudicar a correta distribuição da justiça, além de que há infinitas possibilidades que possam levar uma pessoa a cometê-lo, que podem conduzir, até mesmo, à exclusão do crime, não se mostrando, a meu ver, prudente a determinação da prisão em flagrante por esse delito.[viii]

 

HABEAS CORPUS. CRIME DE FALSO TESTEMUNHO. PRISÃO EM FLAGRANTE. TEMORES AUTORIZATIVOS DA PRISÃO PREVENTIVA. INEXISTÊNCIA.

 

I - A prisão em flagrante de qualquer pessoa que, em tese, cometa falso testemunho em juízo, por si só, não justifica seu encaminhamento ao cárcere, pois há instrumentos legais previstos no código de processo penal que substituem com reconhecida eficácia a drástica medida. ademais, não se pode esquecer que toda prisão anterior à condenação transidata [sic] em julgado é medida cautelar, cuja manutenção só se justifica diante dos temores autorizativos da prisão preventiva, o denominado periculum libertatis.

II - Ordem concedida. Unânime.[ix]

 

Há outro ponto que merece ser avultado. O §2º do art. 342 do Código Penal traz uma hipótese de extinção da punibilidade: “se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade”. Isso significa que o processo em que se apura o crime de falso pode não resultar em punição. Assim sendo, não há o que justifique a prisão de alguém por um fato se, por esse mesmo fato ele (autor) sequer será punido, se se retratar. Aqui se aplica analogicamente a previsão de que não se impõe a prisão pela prática de delito ao qual não é cominada pena privativa de liberdade. No caso do falso, sabe-se que é prevista a privação da liberdade como pena, mas uma vez que sua aplicação pode ser impedida pela retratação, a prisão em flagrante seria medida mais grave do que a resultante do próprio processo, e que não se pode conceber.

Arrematando, CHAGAS (2009) expõe que:

 

Para que se justifique a prisão em flagrante, além de incorrer o agente nos artigos acima elencados, deve sua prisão obedecer aos pressupostos da prisão cautelar preventiva. Ou seja, são imprescindíveis a prova da materialidade do crime e indícios suficientes da autoria. Ainda, há a necessidade da existência de um dos fundamentos autorizadores da preventiva, quais sejam, garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e asseguramento da aplicação da lei penal, sem os quais não está autorizada a prisão preventiva, concomitantemente, a prisão em flagrante também não está.

 

Portanto, muito embora ainda timidamente debatido na doutrina, e não amplamente aceito pela jurisprudência, o flagrante revela-se medida irrazoável para autor do crime de falso testemunho ou falsa perícia.

 

5. Considerações Finais

 

A partir da análise e confrontação das informações expostas, conclui-se que, de fato, não se revela razoável a prisão em flagrante do autor do delito tipificado no art. 342 do Código Penal.

É que o instituto da prisão em flagrante foi concebido como meio célere e eficaz para fazer cessar a conduta delitiva, diante da evidência fática de autoria e materialidade. E mais, tende a promover a colheita de provas.

No crime de falso testemunho ou falsa perícia, sendo crime de mera conduta, se consuma instantaneamente, logo não há conduta delitiva a cessar.

Ademais, as provas que interessam à apuração do crime estarão nos próprios autos onde se deu o depoimento, e a soltura do autor não obstaculizará sua colheita.

 

Referências____________________________________________________________

 

BRASIL. Decreto-Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 13 out. 1941. Disponível em: >. Acesso em: 09 jan. 2012.

 

BRASIL. Lei 6.8150, de 19 de agosto de 1980. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 21 ago. 1980. Disponível em: >. Acesso em: 09 jan. 2012.

 

BRASIL. Lei 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 13 jul. 1984. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7210.htm >. Acesso em: 09 jan. 2012.

 

BRASIL. Lei 7.960, de 21 de dezembro de 1989. Dispõe sobre prisão temporária. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 22 dez. 1989. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7960.htm >. Acesso em: 09 jan. 2012.

 

BRASIL. Lei 12.403, de 04 de maio de 2011. Altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 out. 2011. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12403.htm#art1>. Acesso em: 09 jan. 2012.

 

CHAGAS, José Ricardo. A Ilegalidade da Prisão em Flagrante no Crime de Falso Testemunho. Disponível em: . Acesso em: 10-06-2012.

 

FARINELI, Jéssica Ramos. Prisão em flagrante. Disponível em: < http://www.infoescola.com/direito/prisao-em-flagrante/>. Acesso em 10 jun. 2012.

 

GARCIA, Wilson Roberto Barbosa. Da prisão em flagrante: aspectos práticos e doutrinários. Disponível em: . Acesso em 10-06-2012.

 

JESUS, Damásio E. Direito penal – V. 1. Parte geral. 27. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003.

 

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MIRABETE, Julio Fabrini. Execução Penal: comentários à Lei 7.210, de 11-7-84. 10. ed. Revista e atualizada – São Paulo: Atlas, 2002.

 

______. Processo Penal. 17 ed. rev. e atual. até dezembro de 2004 – São Paulo: Atlas, 2005.

 

MISCIASCI, Elisabeth. A primeira prisão e os presídios, aprisionar. Disponível em: < http://www.eunanet.net/beth/news/topicos/nasce_os_presidios.htm>. Acesso em 09 jun. 2012.

 

PEREZ, Marco. Da prisão em flagrante. Disponível em: < http://amigonerd.net/trabalho/31474-da-prisao-em-flagrante>. Aceso em 10-06-2012.

 

SILVA, Marcelo Cardozo da. A prisão em flagrante na Constituição. 1. ed. São Paulo: Verbo Jurídico, 2007.

 

SOUZA, João Marcel Araújo de. Vigiar e punir: ressaltando a origem da prisão. Disponível em: < http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=5729>. Acesso em 09 jun. 2012.



[i] Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 87.585-8 Tocantins. Relator: Min. Marco Aurélio, julgamento em 03-12-2008, publicado no DJe em 26-06-2009.

[ii] Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 92.566-9 São Paulo. Relator: Min. Marco Aurélio, julgamento em 03-12-2008, publicado no DJe em 05-06-2009.

[iii] Supremo Tribunal Federal. Súmulas Vinculantes. Disponível em: .

[iv] Supremo Tribunal Federal. Súmulas. Disponível em: .

[v] Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1215/RJ. Relator: Min. Dias Trindade, julgamento em 13-02-1990, publicado em 12-03-1990 p. 1711.

[vi] Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 208576/SP. Relator: Min. Jorge Mussi, julgamento em 04-10-2011, publicado no DJe em 13-10-2011.

[vii] Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Habeas Corpus 1.0000.06.448655-8/000. Câmaras Criminais Isoladas, 1ª Câmara Criminal. Relator: Des(a). Judimar Biber, julgamento em 03-06-2007, publicado em 13-03-2007.

[viii] Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Habeas Corpus 1.0000.10.001606-2/000. Câmaras Criminais Isoladas, 4ª Câmara Criminal. Relator: Des. Herbert Carneiro, julgamento em 03-03-2010, publicado em 24-03-2010.

[ix] Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Habeas Corpus 2003 00 2 010353-1. 1ª Turma Criminal. Relator: Des. José Divino de Oliveira, julgamento em: 04-12-2003, publicado no DJU em 31-03-2004 p. 70.

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