A Constituição Federal de 1988 prevê apenas duas hipóteses de prisão civil: a do devedor de alimentos, e a do depositário infiel. Enquanto a primeira sempre foi aceita por doutrina e jurisprudência, a segunda sempre foi alvo de diversos ataques por parte da doutrina.
A primeira grande discussão envolvendo a prisão do depositário infiel envolvia a sua constitucionalidade. Isso porque o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, no qual se comprometeu a adotar dentro de seu ordenamento jurídico interno a prisão do devedor de alimentos como a única hipótese de prisão por dívidas.
Tal questão, entretanto, foi resolvida pelo Supremo Tribunal Federal, que entendeu a superioridade da previsão constitucional em relação à norma oriunda de tratados internacionais. Apesar do descontentamento de parte da doutrina (inclusive desta Coordenadoria), a manifestação do Pretório Excelso fez calar as vozes discordantes.
Atualmente, a questão já é outra. O celeuma está centrado nas condutas que possibilitariam a prisão do depositário infiel. Nossa proposta nesse artigo é discutir apenas uma delas. É possível a prisão do depositário de bens penhorados, cuja natureza é fungível?
A doutrina se divide, existindo duas correntes a respeito do assunto. Uma primeira corrente admite a possibilidade de prisão do depositário infiel independentemente da natureza do bem. Ou seja, não importa se os bens são fungíveis ou não. O contrato de depósito tem como base a confiança existente entre as partes contratantes. A partir do momento em que a confiança é quebrada, está ferido mortalmente o princípio orientador dos contratos de depósito, o que autoriza a prisão do depositário, não importando a natureza dos bens penhorados.
Ressalte-se que só se pode falar em contrato de depósito em relação a bens penhorados quando o depositário firma o auto de penhora, comprometendo-se a agir diligentemente na guarda dos bens.
Essa primeira corrente encontra amparo em algumas decisões jurisprudenciais:
“Habeas Corpus – Decretação de Prisão Civil – Infidelidade do Depositário – Análise aprofundada de fatos e provas que foge do alcance do writ – Depósito de coisas fungíveis – Irrelevância – Subsistência do múnus público – Denegação da ordem”.( TJSC. Habeas Corpus 2005.001992-5. Relator: Des. Nicanor da Silveira. Data da Decisão: 24/02/2005).
Uma segunda corrente, com a qual concorda essa Coordenadoria, entende por inadmissível a prisão do depositário infiel em razão da penhora de bens fungíveis. Isso porque, na verdade, nesse caso não haveria tecnicamente um contrato de depósito, mas um contrato de mútuo. Sendo a possibilidade de prisão por dívidas uma exceção dentre do ordenamento jurídico brasileiro, tem-se que a interpretação desse dispositivo deve ser restritiva (mormente porque institui uma possibilidade de coerção da liberdade do cidadão). A aplicação das regras do contrato de mútuo à penhora de bens fungíveis já foi amplamente reconhecida pelos Tribunais:
"EXECUÇÃO. PENHORA. BENS FUNGÍVEIS E CONSUMÍVEIS.DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL. O depósito de bens fungíveis e consumíveis equipara-se ao mútuo. Não se admite prisão do depositário de tais bens". (STJ. HC 18749/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 25/11/2002)
De fato, a jurisprudência do STJ já se posicionou de forma maciça no sentido de não se permitir a prisão civil do depositário de bens fungíveis, mormente porque o Código Civil define expressamente a aplicação das regras do mútuo aos bens dessa natureza (art. 586).
Também o TST vem adotando de forma quase unânime esse entendimento:
“De acordo com o artigo 1.280, do Código Civil, "o depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo (arts. 1.256 a 1.264)". A jurisprudência dominante nos tribunais tem-se orientado no sentido de não cabimento da ação de depósito em que o seu objeto seja restituição de dinheiro ou de qualquer outro bem de natureza fungível. É o que já decidiu, por exemplo, o STJ, no julgamento do AI 114.217-RS-Ag-Rg, do qual foi Relator o Exmo. Sr. Ministro Waldemar Zveiter, em cuja ementa se registrou que "o depósito de bens fungíveis é regulado pelas regras do mútuo e não enseja ação de depósito". ACORDAM os Ministros da Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, dar provimento ao recurso ordinário para, deferindo a ordem de habeas corpus , conceder o salvo-conduto ao Sr. Argeu Antonio de Freitas, Paciente, impedindo, assim, que ele seja reputado depositário infiel”. (PROCESSO: ROHC NÚMERO: 799760 ANO: 2001 PUBLICAÇÃO: DJ - 19/03/2004. Relator: Gelson de Azevedo).
Conclui-se, portanto, que a prisão do depositário infiel deve se ater apenas às hipóteses de guarda de bens infungíveis, preservando-se, assim, a liberdade individual dos cidadãos.