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Resumo:
A Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes trata-se de uma inovação jurídica que surge na contemporaneidade de julgados em sede de Controle Difuso de Constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal em nosso país. Este é o tema trabalhado.
Texto enviado ao JurisWay em 14/09/2016.
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Este trabalho tem por objetivo a discussão de uma inovação jurídica aplicada ao controle difuso de constitucionalidade denominada Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes. Apoiando-se em pesquisas bibliográficas, buscar-se-á uma compreensão de tal inovação e suas implicações no universo jurídico.
Para tanto, aborda-se inicialmente sobre o controle de constitucionalidade, suas facetas e aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. Sequencialmente faz-se uma análise crítica da adoção da Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes e sua correlação com o Senado Federal e a abstrativização do controle difuso de constitucionalidade.
Como é conhecido, a Constituição da República Federativa do Brasil, refere-se a um conjunto de normas que se prestam, além de estabelecer direitos e garantias fundamentais, à organização do Estado, instituindo para tanto, em seu artigo 2º, os Poderes da União, bem como a independência e harmonia entre os mesmos.
Nossa Constituição revela-se desta forma tão abrangente em decorrência da adoção do nosso Estado pelo regime da civil low, herdado do sistema romano-germânico, onde, tipicamente as normas são escritas e sistematizadas. Neste diapasão, nosso ordenamento jurídico se organiza de forma hierárquica, tendo como Carta Magna a Constituição Federal.
Desta forma, toda norma que venha a ser criada deve estar devidamente harmonizada com o texto constitucional. Para que se possa efetuar esta fiscalização de consonância da norma instituída com a Constituição, surge o que se denomina como controle de constitucionalidade, cujo mesmo se subdivide em difuso e concentrado.
O controle concentrado é realizado pelo Supremo Tribunal Federal, que julga objetivamente a constitucionalidade da norma, aplicando às decisões efeito erga omnes.
A outra forma de controle difuso de constitucionalidade, lado outro, julga o caso concreto em que se envolve a norma alegada inconstitucional, e, seu julgamento deve produzir, em princípio, apenas efeito inter partes.
No entanto, se apoiando na teoria denominada Transcendência dos Motivos Determinantes, o STF vem modificando os efeitos das decisões em julgamentos de controle concreto, aplicando a estes, efeitos erga omnes.
O primeiro caso em que se viu essa nova tendência foi o julgamento do Recurso Extraordinário nº 197.917-SP, em que o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do artigo 6º da Lei Orgânica do Município de Mira Estrela, no Estado de São Paulo, reduzindo o número de parlamentares, daquela municipalidade, de 11 (onze) para 9 (nove) vereadores.
A referida teoria tem origem no direito alemão, cujo Tribunal Constitucional defende que o efeito vinculante extrapola a parte dispositiva, abarcando os fundamentos determinantes da decisão.
Seria a teoria da transcendência dos motivos determinantes reflexo de um extremado ativismo judicial? A adoção de tal teoria a fim de modificar a interpretação do art. 52, inciso X, da Constituição Federal, fere o princípio da divisão dos poderes? Fere direitos fundamentais?
Estes são alguns dos questionamentos que se pretende aqui enfrentar.
Para que venhamos a compreender o que de fato é o controle de constitucionalidade, é necessário primeiramente que possamos entender um pouco sobre o ordenamento jurídico de nosso Estado.
No ordenamento jurídico brasileiro encontramos uma formação similar a uma pirâmide, onde, no ápice temos a Constituição Brasileira; escrita, rígida, com dispositivos que determinam a formação do estado e de suas instituições, atribuições de competências e poderes, bem como os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Logo abaixo temos as demais normas, denominadas infraconstitucionais, pois, todas devem estar em consonância e harmonia com a carta constitucional. Consoante, nos ensina Paulo Bonavides (2011, p. 296):
As Constituições rígidas, sendo Constituições em sentido formal, demandam um processo especial de revisão. Esse processo lhes confere estabilidade ou rigidez bem superior àquela que as leis ordinárias desfrutam. Daqui procede, pois a supremacia incontrastável da lei constitucional sobre as demais regras de direito vigente num determinado ordenamento. Compõe-se assim uma hierarquia jurídica, que se estende da norma constitucional às normas inferiores (leis, decretos-leis, regulamentos, etc.) e a que corresponde por igual uma hierarquia de órgãos.
Paulo Roberto de Figueiredo Dantas (2013, p.55) leciona que este tipo de organograma jurídico das normas foi idealizado por Hans Kelsen, e foi defendido por este como o "sentido jurídico-positivo" da constituição. Vejamos:
No sentido jurídico-positivo, é a lei fundamental do Estado, a norma positiva (direito posto, portanto) que condiciona a edição das normas infraconstitucionais. Trata-se da norma superior do sistema, que empresta validade para as demais normas do ordenamento jurídico estatal, consistindo, portanto, no fundamento destas.
Kelsen trouxe-nos a ideia da existência de um escalonamento de normas, ou seja, de uma verdadeira hierarquia entre as normas que compõem a ordem jurídica de um Estado, na qual as normas de hierarquia inferior extraem seu fundamento de validade das normas superiores, até chegarmos à constituição jurídico-positiva, que se encontra no ápice da pirâmide normativa estatal, e que é o fundamento de validade de todas as demais normas. (DANTAS, 2013, p.55)
Compreendemos assim que, neste sistema hierárquico, a Constituição é tida como a lei maior, suprassumo do Estado brasileiro. É o que leciona Paulo Bonavides (2011, p. 296), ao dizer que a consequência dessa hierarquia é o reconhecimento da “superlegalidade constitucional”, que faz da Constituição a lei das leis, a lex legum, ou seja, a mais alta expressão jurídica da soberania.
Portanto, em um Estado que adota uma Constituição rígida, como é o caso de nosso país, todos os atos normativos estão submetidos a tal supremacia constitucional, não podendo de forma alguma, modificar ou contrariar a Carta Magna, como nos ensina Paulo Bonavides (2011, p. 296).
Neste diapasão surge o denominado controle de constitucionalidade, que, por sua vez é decorrente justamente desta rigidez constitucional, bem como de uma verticalização das normas e a consequente atribuição de supremacia às normas constitucionais. Neste sentido, nos ensina o professor Dantas:
(...) o controle de constitucionalidade pressupõe a existência de rigidez constitucional, e, por consequência, de supremacia jurídica da constituição em face das demais espécies normativas que compõem o ordenamento jurídico estatal. Ademais, o inverso também é verdadeiro. Caso não existam mecanismos de controle da adequação das normas aos ditames fixados pela constituição, não se pode falar em rigidez constitucional e supremacia jurídica da carta magna. (DANTAS, 2013, p. 169)
Importante destacar também o que nos ensina Gilmar Ferreira Mendes, ao afirmar que:
O reconhecimento da supremacia da Constituição e de sua força vinculante em relação aos Poderes Públicos torna inevitável a discussão sobre formas e modos de defesa da Constituição e sobre a necessidade de controle de constitucionalidade dos atos do Poder Público, especialmente das leis e atos normativos. (MENDES, 2013, p. 1006)
Compartilhando do mesmo entendimento Paulo Bonavides doutrina que:
O sistema das Constituições rígidas assenta numa distinção primacial entre poder constituinte e poderes constituídos. Disso resulta a superioridade da lei constitucional, obra do poder constituinte, sobre a lei ordinária, simples ato do poder constituído, um poder inferior, de competência limitada pela Constituição mesma. As Constituições rígidas, sendo Constituições em sentido formal, demandam um processo especial de revisão. Esse processo lhes confere estabilidade ou rigidez bem superior àquela que as leis ordinárias desfrutam. Daqui procede, pois, a supremacia incontrastável da lei constitucional sobre as demais regras de direito vigente num determinado ordenamento. Compõe-se assim uma hierarquia jurídica, que se estende da norma constitucional às normas inferiores (leis, decretos-leis, regulamentos etc.), e a que corresponde por igual uma hierarquia de órgãos. A consequência dessa hierarquia é o reconhecimento da “superlegalidade constitucional”, que faz da Constituição a lei das leis, a lex legum, ou seja, a mais alta expressão jurídica da soberania. (Bonavides, 2011, p.296)
Destarte, entendemos que o controle de constitucionalidade consiste, em suma, numa forma de fiscalização de compatibilidade das leis e atos normativos infraconstitucionais em relação ao texto constitucional.
É justamente o que nos ensina Paulo Roberto de Figueiredo Dantas.
[...] o controle de constitucionalidade consiste justamente na fiscalização da adequação (da compatibilidade vertical) das leis e demais atos normativos editados pelo Poder Público com os princípios e regras existentes em uma constituição rígida, para que se garanta que referidos diplomas normativos espeitem, tanto no que se refere ao seu conteúdo, quanto à forma como foram produzidos, os preceitos hierarquicamente superiores ditados pela carta magna. (DANTAS, 2013, p. 169)
Para Alexandre de Moraes, temos duas espécies de controle de constitucionalidade: o controle preventivo e o controle repressivo.
A presente classificação pauta-se pelo ingresso da lei ou ato normativo no ordenamento jurídico. Assim, enquanto o controle preventivo pretende impedir que alguma norma maculada pela eiva da inconstitucionalidade ingresse no ordenamento jurídico, o controle repressivo busca dele expurgar a norma editada em desrespeito à Constituição. (MORAES, 2011, p. 733)
Por hora, nos enveredaremos neste trabalho apenas na espécie controle repressivo, que busca extirpar do ordenamento jurídico norma que contrarie a Carta Magna.
Alguns doutrinadores defendem a existência de três as modalidades de controle de constitucionalidade da espécie repressiva, dentre tais defensores, encontramos o Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Para ele as modalidades de controle de constitucionalidade repressivo existentes são:
A)concentrado (também chamado austríaco);
(b)difuso (também chamado americano);
c) misto. (MENDES, 2013, p. 1008)
Vejamos agora o que alguns doutrinadores dizem a respeito de cada um destes sistemas de controle.
Segundo Dantas,
O controle concentrado (ou por via de ação direta), criado pela constituição austríaca, é aquele realizado pela Corte Suprema de um país, e que tem por objeto a obtenção da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, em tese, independente da existência de casos concretos em que a constitucionalidade esteja sendo discutida. (DANTAS, 2013, p.188)
Para o mesmo autor ainda,
O controle difuso (ou por via de exceção ou defesa), criado pelos norte-americanos, permite a qualquer juiz ou tribunal realizar – este o motivo de ser denominado difuso -, no julgamento de um caso concreto, a análise incidental da constitucionalidade de uma lei ou ato normativo. No controle difuso, portanto, a análise da constitucionalidade do dispositivo não é o objeto principal da ação, sendo apreciada apenas em caráter incidental. (DANTAS, 2013, p.188)
Como dito, para o constitucionalista Mendes ainda haveria um controle misto de constitucionalidade:
(...) o controle misto de constitucionalidade congrega os dois sistemas de controle, o de perfil difuso e o de perfil concentrado. Em geral, nos modelos mistos defere-se aos órgãos ordinários do Poder Judiciário o poder-dever de afastar a aplicação da lei nas ações e processos judiciais, mas de reconhece a determinado órgão de cúpula – Tribunal Supremo ou Corte Constitucional – a competência para proferir decisões em determinadas ações de perfil abstrato ou concentrado. Talvez os exemplos mais eminentes desse modelo misto sejam o modelo português, no qual convivem uma Corte Constitucional e os órgãos judiciais ordinários com competência para aferir a legitimidade da lei em face da Constituição, e o modelo brasileiro, em que se conjugam o tradicional modelo difuso de constitucionalidade, adotado desde a República, com as ações diretas de inconstitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, ação direta de inconstitucionalidade por omissão e representação interventiva), da competência do Supremo Tribunal Federal. (MENDES, 2013, p.1009)
Apoiando-nos no entendimento de Mendes, constatamos que nosso ordenamento jurídico é composto por um controle misto de constitucionalidade, uma vez temos presente tanto o controle concentrado (abstrato) e o difuso (incidental).
Ultrapassadas as noções preliminares, avancemos para um estudo mais detalhado em relação ao controle concentrado e o difuso, principalmente no que tange aos seus efeitos.
O controle de constitucionalidade concentrado foi consagrado com a promulgação da Constituição Austríaca, em 1920, cuja mesma foi amplamente inspirada nos ensinamentos de Hans Kelsen, sendo este, de fato, o criador do controle concentrado de constitucionalidade. Assim leciona Moraes:
A Constituição austríaca de 1°-10-1920 consagrou, no dizer de Eisenmann, como forma de garantia suprema da Constituição, pela primeira vez, a existência de um tribunal – Tribunal Constitucional – com exclusividade para exercício do controle judicial de constitucionalidade, em oposição ao consagrado judicial review norte-americano, distribuído por todos os juízes e tribunais.
Hans Kelsen, criador do controle concentrado de constitucionalidade, justificou a escolha de um único órgão para exercer o controle de constitucionalidade (...). (MORAES, 2011, p. 754)
Bonavides (2011, p. 309), coaduna com o mesmo entendimento e contribui amplamente com seus ensinamentos ao mencionar em sua obra que:
A ideia de constituir um órgão jurisdicional que enfeixasse toda a competência decisória em matéria de constitucionalidade - o sistema de "jurisdição concentrada" - partiu de Kelsen e se positivou na Constituição austríaca de 1º de outubro de 1920, de que foi ele abalizado inspirador.
Disso resultou o chamado sistema austríaco de controle de constitucionalidade, exercitado por "via principal" e concentrado numa Corte especial (...).
O controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade inaugura no Brasil através da Emenda Constitucional n°16, de 6-12-1965, nos moldes preconizados por Hans Kelsen.
Esse controle é exercido nos moldes preconizados por Hans Kelsen para o Tribunal Constitucional austríaco e adotados, posteriormente, pelo Tribunal Constitucional alemão, espanhol, italiano e português, competindo ao Supremo Tribunal Federal processar e julga, originariamente, ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (MORAES, 2011, p. 755).
Neste diapasão, para o enfrentamento das questões constitucionais na via abstrata (modelo concentrado), surge o Pretório Excelso, o Supremo Tribunal Federal, cujo mesmo recebe como função precípua, a de "guardião" da Constituição.
O Supremo Tribunal Federal, composto por onze Ministros, dentre cidadãos com mais de trinta e cinco anos e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, tem por função precípua (e não única) a guarda da Constituição. (DANTAS, 2013, p. 484)
As competências originárias conferidas STF estão fixadas no artigo 102, inciso I. No que tange ao controle de constitucionalidade, mais especificamente na alínea a do dispositivo em comento.
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. (BRASIL, Constituição Federal - online).
Segundo Mendes (p.1.044), o controle de constitucionalidade concentrado, também denominado abstrato, foi inaugurado em nosso ordenamento jurídico por meio da Emenda n. 16 de 26-11-1965. No entanto, à época ainda não tinha exatamente os mesmos padrões consagrados na atual Constituição Federal, uma vez que, naquela ocasião ainda não permitia o efeito erga omnes.
No controle concentrado, o objeto principal da ação é justamente a questão constitucional, ou seja, trata-se de um processo objetivo, em que, nenhum interesse particular está sendo analisado na demanda. O que se busca é de fato o exame da questão constitucional.
Assim nos ensina Dantas:
Trata-se, portanto, de um processo de natureza objetiva, uma vez que nenhum interesse subjetivo de particulares está sendo apreciado na demanda. Aqui, o exame da constitucionalidade da norma é o objeto mesmo da ação, realizado por uma Corte especialmente designada para tal fim, que produz eficácia em relação a todos (eficácia erga omnes). (DANTAS, 2013, p. 224)
Em nosso país, compete ao Supremo Tribunal Federal apreciar matérias de cunho constitucional, por via de ação direta, ou seja, no modelo concentrado, quando o objeto da análise refere-se à inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, face à Constituição Federal. É o que estatui os artigos 102, inciso I, alínea a da Carta Magna.
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. (BRASIL, 1988, Constituição Federal - on line).
Os procedimentos para a Ação Direta de Inconstitucionalidade e para a Ação Declaratória de Constitucionalidade foram regulamentados pela Lei 9.868/99, ou seja, onze anos após a promulgação de nossa Constituição.
Vale aqui fazer menção crítica a referida lei, uma vez que em momento algum nossa Carta Magna fez menção neste sentido que lei ordinária iria discipliná-la.
Assim, ínclito que mencionemos brilhante intelecção do professor Streck (2013, p. 689 citado por Freitas 2014, on line).
[...] tomando a história institucional do direito a sério, é possível afirmar que a Lei 9.868/1999 não é uma simples regra de direito processual, é, sim, é algo novo no direito brasileiro, porque trata da especificação do funcionamento da jurisdição constitucional. Desse modo, somente por emenda constitucional que estabelecesse a possibilidade de elaboração de uma lei poderia tratar-se dessa matéria. E tudo estaria a recomendar que uma lei desse quilate devesse ser votada e aprovada por quorum de maioria qualificada. Aqui caberia, muito bem, a convocação do caso Marbury v. Madison. Se uma lei ordinária pode dizer aquilo que a Constituição não disse, é porque a noção de rigidez constitucional resta enfraquecida.
Deixando de lado esta polêmica da Lei 9.868/99, temos, além da ADI (ação direta de inconstitucionalidade), e da ADC (ação declaratória de constitucionalidade) a questão constitucional poderá ser suscitada no controle concentrado de constitucionalidade por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, prevista no artigo 102, § 1º da Constituição Federal.
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
(...)
§ 1º A arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. (BRASIL, 1988, Constituição Federal - on line).
Não obstante, no texto constitucional encontram-se ainda duas outras modalidades de exame no modelo concentrado; trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva, estatutos previstos nos artigos 103, §2º e 36, inciso III da Carta Magna, respectivamente.
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
(...)
§ 2º Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.
Art. 36. A decretação da intervenção dependerá:
(...)
III de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal. (BRASIL, 1988, Constituição Federal - on line).
Em relação aos efeitos da sentença no modelo concentrado, Dantas nos ensina que:
(...) a decisão que reconhece a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, como regra geral, terá eficácia erga omnes (em face de todos) e efeitos ex tunc (retroativos à data da edição do diploma normativo). (DANTAS, 2013, p.225)
O efeito, portanto, em outras palavras, será de extirpar a referida norma ou ato normativo do mundo jurídico, como se esta nunca tivesse existido (ex tunc), aplicando-se o efeito à todos (erga omnes).
Essa é a regra, mas como se sabe, no direito nada é tão exato. Surgem desta forma as exceções, e em se tratando do controle concentrado, esta exceção está prevista no artigo 27 da Lei 9.868 de 10-11-1999, que tratou de regulamentar o processo e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal.
A respeito, Mendes leciona que:
À decisão de inconstitucionalidade atribui-se eficácia ex tunc. O Tribunal poderá, porém, por maioria de 2/3 dos juízes, restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (Lei n. 9.868/99, art. 27) (MENDES, 2013, p.1141).
A transcrição literal do mencionado artigo excepciona que:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.(BRASIL, Lei 9.868 de 10-11-1999 - online)
Assim sendo, conforme o referido dispositivo e a interpretação citada por Mendes, o STF tem a prerrogativa, mediante a anuência da maioria de 2/3 de seus membros de, em se tratando de circunstância que envolva segurança jurídica ou relevante interesse social, modificar os efeitos da sentença, podendo assim deixar de ter aplicação erga omnes e ex tunc (regra), passando, por exemplo, a ter efeito inter partes e ex nunc.
Em síntese, são os esclarecimentos necessários ao controle concentrado (abstrato) de constitucionalidade.
Realizado tais esclarecimentos, trataremos para outra modalidade de controle de constitucionalidade - o difuso, ou incidental, cujo mesmo é o campo onde se instaura a celeuma que deu origem a este trabalho.
O controle de constitucionalidade pela via difusa foi inaugurado em 1.803 nos Estados Unidos da América, no famoso caso de Marbury versus Madison, julgado pelo chief justice Jonh Marshall, conforme leciona Dantas (2013, p. 196).
Segundo Dantas (p.197), em nosso país, o controle difuso existe desde a primeira constituição republicana, isto é, desde 1.891.
Tradicionalmente, o controle de constitucionalidade difuso tem grande importância em nosso Estado. Como dito, data de 1.891 sua incorporação ao rol de Competências do Poder Judiciário, cujo mesmo, tem o STF como a última instância neste e em outras questões, conforme encontramos em Streck, Oliveira e Lima (2007 – on line).
Dantas (p.197) coaduna ainda que o controle difuso foi inequivocamente inspirado no modelo norte-americano e permite a qualquer juiz ou tribunal realizar, no julgamento de um caso concreto, a análise da constitucionalidade de uma lei ou ato normativo federal, estadual, distrital ou municipal.
Por aqui se percebe a primeira diferença entre o controle concentrado e o difuso. Conforme já mencionado, a competência para julgamento da inconstitucionalidade no modelo concentrado pertence apenas ao STF, no caso de lei ou ato normativo federal ou estadual, que, esteja em desarmonia com o texto constitucional, e, no caso de lei municipal que fira a constituição estadual, a competência pertence ao Tribunal do estado em questão. Por outro lado, no modelo difuso, permite a qualquer juiz ou tribunal realizar o controle de constitucionalidade no julgamento de um caso concreto.
Outra diferença substancial é que, no difuso, o objeto principal da lide não é a análise da inconstitucionalidade do dispositivo. A análise inconstitucionalidade ocorre apenas de forma incidental no julgamento de um caso concreto.
Nesse sentido, relata Dantas:
A análise da constitucionalidade do dispositivo, (...), não é o objeto principal da ação, sendo apreciada apenas em caráter incidental. Muito embora o juiz do feito possa, ou, mais que isso, deva realizar de ofício tal controle, é mais comum que as partes em litígio invoquem tal inconstitucionalidade. (DANTAS, 2013, p. 196)
Este também é o posicionamento de Alexandre de Moraes:
Na via exceção, a pronúncia do Judiciário, sobre a inconstitucionalidade, não é feita enquanto manifestação sobre o objeto principal da lide, mas sim sobre questão prévia, indispensável ao julgamento o mérito. Nesta via, o que é outorgado ao interessado é obter a declaração de inconstitucionalidade somente para o efeito de isentá-lo, no caso concreto, do cumprimento da lei ou ato, produzidos em desacordo com a Lei maior. Entretanto, este ato ou lei permanecem válidos no que se refere à sua força obrigatória com relação a terceiros.(MORAES, 2011, p. 740)
A previsão constitucional do controle difuso encontra guarida no artigo 102, inciso III, da Constituição Federal, atribuindo a competência ao STF no caso do julgamento de um caso concreto, através de um recurso extraordinário, conforme nos ensina Dantas (p.196), senão, vejamos:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
(...)
III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a) contrariar dispositivo desta Constituição;
b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.
d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.
(BRASIL, 1988, Constituição Federal - on line)
Dantas (p.196) salienta ainda que temos duas previsões no Código de Processo Civil no que tange o controle difuso. A primeira refere-se ao controle perante os Tribunais de Segundo Grau, e, está contida no Título IX, Capítulo II, a partir do artigo 480 do referido código. Já a segunda trata das regras de interposição e admissão do recurso extraordinário, a partir do artigo 541.
Outro ponto muito importante, e, que, mais uma vez difere do controle concentrado, diz respeito aos efeitos da sentença.
No modelo difuso, em descompasso ao modelo concentrado, os efeitos são ex tunc e operam-se apenas inter partes, ou seja, entre as partes litigantes.
(...) a sentença que declarou a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo somente tem eficácia inter partes. A norma, portanto, não é retirada do ordenamento jurídico, permanecendo válida e eficaz em relação a todas as demais pessoas, que não foram partes do processo. (DANTAS, 2013, p.197)
É muito importante ressaltar, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal, em caráter excepcional, ao julgar um recurso extraordinário, poderá conferir eficácia ex nunc ou mesmo pro futuro à decisão proferida no controle difuso, em se tratando de questões de segurança jurídica e interesse social. Para tanto, aplica-se artigo 27, da Lei 9.868/99, por analogia, conforme nos ensina Dantas, p. 197.
O primeiro caso onde se aplicou esta mudança nos efeitos, baseando-se numa interpretação analógica do artigo 27 da Lei 9.868/99, trata-se do julgamento do Recurso Extraordinário nº 197.917-SP, onde, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do artigo 6º da Lei Orgânica do Município de Mira Estrela - SP, reduzindo o número de parlamentares, daquela municipalidade, de onze para nove vereadores. Segue a ementa do acórdão:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MUNICÍPIOS. CÂMARA DE VEREADORES. COMPOSIÇÃO. AUTONOMIA MUNICIPAL. LIMITES CONSTITUCIONAIS. NÚMERO DE VEREADORES PROPORCIONAL À POPULAÇÃO. CF, ARTIGO 29, IV. APLICAÇÃO DE CRITÉRIO ARITMÉTICO RÍGIDO. INVOCAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA RAZOABILIDADE. INCOMPATIBILIDADE ENTRE A POPULAÇÃO E O NÚMERO DE VEREADORES. INCONSTITUCIONALIDADE, ‘INCIDENTER TANTUM’, DA NORMA MUNICIPAL. EFEITOS PARA O FUTURO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL" (RE Nº 197.917-SP, Rel. Ministro Maurício Corrêa, j. 5.6.2002, DJ 7.5.2004).
Em relação a este caso, colaciona-se a jurisprudência do STF:
Ao constatar-se a inconstitucionalidade da lei impugnada, a situação consolidada deve ser respeitada, em nome do princípio da segurança jurídica. A declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Fazendo prevalecer o interesse público, conferiu–se, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade. (Recurso Extraordinário nº 197.917 - Diário da Justiça - 07/05/2004 - online - disponível em www.stf.jus.br)
Como podemos observar, a declaração de efeitos pró-futuro (ex nunc) no controle de constitucionalidade, trata-se de exceção, e, como relata a jurisprudência do STF em comento, foi proferida com base nos princípios da segurança jurídica e do interesse público.
Conforme já mencionado anteriormente, ao contrário do controle concentrado, no difuso, os efeitos da sentença só se operam, em regra, inter partes. No entanto, a Carta Magna previu situação em que, a inconstitucionalidade julgada incidentalmente em um caso concreto poderá vir a ter amplitude de efeito erga omnes.
Para que a sentença no controle difuso tenha eficácia erga omnes, é necessário que o Senado Federal aprecie a matéria, e, edite resolução modificando o efeito da sentença, que anteriormente, no julgamento do STF aplicara somente às partes envolvidas, passando, a partir de então a ter eficácia erga omnes, na forma do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal.
Nessa espécie de julgamento, a decisão não terá, automaticamente, eficácia contra todos ou efeitos vinculantes, já que necessário que o Senado Federal, na forma do art. 52, inc. X, da CF, edite resolução, afastando a norma impugnada de nosso ordenamento jurídico.
Em apertada síntese, se verifica que a produção de efeitos vinculantes e eficácia contra todos dependem, no controle difuso, de resolução do Senado Federal, enquanto no controle concentrado é automática e decorre da publicação da decisão do STF. (KRUGER - online)
Para uma maior compreensão, faz-se oportuno o comentário de José Afonso da Silva:
(...) a argüição da inconstitucionalidade é questão prejudicial e gera um procedimento incidenter tantum, que busca a simples verificação da existência ou não do vício alegado. E a sentença é declaratória. Faz coisa julgada no caso e entre as partes. Mas, no sistema brasileiro, qualquer que seja o tribunal que a proferiu, não faz ela coisa julgada em relação à declarada inconstitucional, porque qualquer tribunal ou juiz, em princípio, poderá aplica-la por entendê-la constitucional, enquanto o Senado Federal, por resolução, não suspender sua executoriedade (...) No que tange ao caso concreto, a declaração surte efeitos ex tunc, isto é, fulmina a relação jurídica fundada na lei inconstitucional desde o seu nascimento. No entanto, a lei continua eficaz e aplicável, até que o Senado suspenda sua executoriedade; essa manifestação do Senado, que não revoga nem anula a lei, mas simplesmente lhe retira a eficácia, só tem efeitos, daí por diante, ex nunc. Pois, até então, a lei existiu. Se existiu, foi aplicada, revelou eficácia, produziu validamente seus efeitos. (SILVA, 2013, p. 56)
Como a análise da constitucionalidade no controle difuso é incidental, não faz parte do dispositivo da sentença prolatada no julgamento, e sim dos fundamentos, dos motivos que ensejaram tal decisão.
A este respeito Dantas enfatiza:
Para a doutrina clássica, salvo disposição de lei em contrário, a sentença somente faz coisa julgada para as partes litigantes, sendo certo que os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença, e a apreciação de questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo, não fazem coisa julgada. (DANTAS, 2013, p.204)
No entanto, o STF tem conferiu em alguns julgamentos, força vinculante de coisa julgada também aos motivos determinantes no julgamento do caso concreto, modificando, desta forma, o efeito que, deveria originariamente ser apenas inter partes, com base no dispositivo, para erga omnes. Ao proceder desta forma, o STF contraria completamente o disposto no artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, que confere poder apenas ao Senado Federal para, que, por meio de resolução conferir eficácia erga omnes à decisão de inconstitucionalidade. Tal posicionamento é sustentando pela denominada teoria da transcendência dos motivos determinantes.
É o parecer que encontramos em Dantas:
Ocorre que, mais recentemente, parte da doutrina, e até mesmo julgados do Supremo Tribunal Federal, vêm defendendo a possibilidade de que também a ratio decidendi, que os motivos determinantes, em uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no controle difuso de constitucionalidade, passem a produzir efeitos erga omnes, vinculantes. Trata-se da chamada teoria da transcendência dos motivos determinantes.
A teoria da transcendência dos motivos determinantes da sentença, proferida no controle difuso de constitucionalidade, implica verdadeira alteração na interpretação do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, de maneira que a suspensão da norma deixe de ser uma faculdade do Senado, passando referida Casa Legislativa a ficar vinculada à decisão do Supremo Tribunal Federal, que apenas daria publicidade àquela decisão. (DANTAS, 2013, p. 204)
Obtidos os presentes esclarecimentos fundamentais em relação ao controle de constitucionalidade, bem como os modelos concentrado e difuso, nos debruçaremos no próximo capítulo em busca de maiores esclarecimentos sobre a teoria da transcendência dos motivos determinantes.
Em regra, somente a parte dispositiva de uma sentença/ acórdão é o que de fato faz coisa julgada. Ou seja, os motivos, apesar de fundamentais para darem sustentação ao dispositivo, não constituem coisa julgada. Assim estatui o artigo 469 do Código de Processo Civil (CPC):
Art. 469. Não fazem coisa julgada:
I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;
Il - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;
III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo. (BRASIL. 1973. Lei 5.869).
Neste mesmo sentido, o professor Luís Roberto Barroso (2009, p. 124) nos esclarece que:
“[...] por dicção legal expressa, nem os fundamentos da decisão nem a questão prejudicial integram os limites objetivos da coisa julgada, de modo que não há falar em auctoritas rei iudicata em relação à questão constitucional”.
A Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes vem na contra mão deste entendimento, defendendo que não só o dispositivo do acórdão, mas, também, os fundamentos determinantes da decisão teriam efeitos vinculantes. Assim sendo, a ratio decidendi, ou seja, a razão da decisão, motivos que serviram como base para o julgado, passam a ter eficácia erga omnes.
Nesta linha de raciocínio, reconhece-se a eficácia vinculante não tão-somente do dispositivo do julgado, mas também do chamado ratio decidendi, ou seja, dos motivos determinantes que são os fundamentos jurídicos embasadores da decisão. Trata-se da teoria da transcendência dos motivos determinantes. (BOMFIM FILHO, p.21, on line)
Em nosso país, tal teoria tem como um dos seus principais defensores o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. Podemos constatar isso em alguns de seus votos em julgamentos no STF, como é o caso do voto que proferiu no julgamento da Reclamação 2.363/PA:
“a aplicação dos fundamentos determinantes de um leading case em hipóteses semelhantes tem-se verificado, entre nós, até mesmo no controle de constitucionalidade das leis municipais. Em um levantamento precário, pude constatar que muitos juízes desta Corte têm, constantemente, aplicado em caso de declaração de inconstitucionalidade o precedente fixado a situações idênticas reproduzidas em leis de outros municípios. Tendo em vista o disposto no ‘caput’ e § 1º-A do artigo 557 do Código de Processo Civil, que reza sobre a possibilidade de o relator julgar monocraticamente recurso interposto contra decisão que esteja em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, os membros desta Corte vêm aplicando tese fixada. A Transcendência dos Motivos Determinantes e a Força Normativa da Constituição em precedentes onde se discutiu a inconstitucionalidade de lei, em sede de controle difuso, emanada por ente federativo diverso daquele prolator da lei objeto do recurso extraordinário sob exame.” (Reclamação 2.363/PA. Supremo Tribunal Federal).
Conforme já ventilamos no capítulo anterior, no controle difuso de constitucionalidade, a inconstitucionalidade é arguida de forma incidental, fazendo-se necessário, neste caso, que a matéria seja encaminhada para análise do Senado Federal, para que, desta forma, o órgão legislativo possa proceder com a declaração de inconstitucionalidade na forma do que preconiza o artigo 52, X, da CRFB/88.
A declaração de inconstitucionalidade, na via indireta, não anula a lei nem a revoga; teoricamente, a lei continua em vigor, eficaz e aplicável, até que o Senado Federal suspenda sua executoriedade nos termos do art. 52, X, (...). (SILVA, 2013, p. 55).
A despeito do que estatui o artigo supramencionado da Carta Magna, e de forma diversa do que nos ensina José Afonso da Silva, 2013, p. 55, Gilmar Ferreira Mendes, em artigo intitulado “O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional”, diserta que:
É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto. (MENDES, 2004, Revista de Informação Legislativa, p. 165).
A defesa do Ministro Gilmar Mendes para adoção da teoria da transcendência dos motivos determinantes reside justamente na afirmação de que, em relação ao artigo 52, X, da Constituição de 1988, houve uma mutação constitucional. Sob esta interpretação, o papel do Senado Federal passara a ser apenas de dar publicidade à decisão já proferida pelo STF.Assim, no Informativo454/STF, traz-nos breve relatório em relação ao posicionamento do Ministro Gilmar Mendes em relação à Reclamação 4335/AC, processo em cujo mesmo foi relator:
“reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que publique a decisão no Diário do Congresso, Concluiu, assim, que as decisões proferidas pelo juízo reclamado desrespeitaram a eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão do STF no HC 82.959/SP (‘progressão do regime na lei dos crimes hediondos’, acrescente-se). Após, pediu vista o Min. Eros Grau”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - on line)
Em seu voto no julgamento da Reclamação 4335/AC, o Ministro Eros Graus (outro grande defensor da teoria dos motivos determinantes), deixa claro que o que houve a mutação refere-se não somente a uma nova interpretação, mas, diz respeito a uma mudança na literalidade do dispositivo. Seria como se literalmente o texto constitucional houvesse sido alterado, conforme observamos em trecho de seu voto colacionado.
"passamos em verdade de um texto pelo qual compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, a outro texto: "compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo". (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – on line) (grifos nossos).
O doutrinador Pedro Lenza, (2011, on line), por sua vez, não coaduna com tal entendimento de mutação constitucional do artigo supramencionado, afirmando que:
O efeito erga omnes da decisão foi previsto somente para o controle concentrado e para a súmula vinculante (EC n. 45/2004) e, em se tratando de controle difuso, nos termos da regra do art. 52, X, da CF/88, somente após atuação discricionária e política do Senado Federal.
O papel do Senado Federal no controle difuso é substancial. A Constituição de 1934 já outorgava competência para esta casa legislativa de suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF. Na Constituição de 1988, o poder constituinte manteve esta competência senatorial, em via de controle difuso, que como aduzido, foi normatizado no art. 52, X da Carta Magna.
A partir da Constituição de 1934 até os dias atuais, permanece a competência do Senado Federal de, por meio de resolução, suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Aqui também uma tradição já consolidada no constitucionalismo brasileiro, na medida em que são corridos mais de setenta anos da mencionada realidade institucional. (STRECK, OLIVEIRA, LIMA, 2007, on line).
No entanto, fato é que, em alguns casos, o STF utilizou-se de amparo na teoria da transcendência para conferir efeito erga omnes mesmo se tratando de controle difuso de constitucionalidade.
(...) o Supremo Tribunal Federal vem adotando uma exegese bastante peculiar, estendendo os limites de suas decisões em controle de constitucionalidade tanto na seara concentrada como na difusa. Nesta linha de raciocínio, reconhece-se a eficácia vinculante não tão-somente do dispositivo do julgado, mas também do chamado ratio decidendi, ou seja, dos motivos determinantes que são os fundamentos jurídicos embasadores da decisão. Trata-se da teoria da transcendência dos motivos determinantes. (BOMFIM FILHO, 2012, p.23, on line).
Neste cenário um dos principais precedentes que se destacam como parâmetros à aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes, trata-se do tão famoso e já mencionado Recurso Extraordinário nº 197.917/SP (redução do número de vereadores do Município de Mira Estrela); do qual relacionamos a decisão:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MUNICÍPIOS. CÂMARA DE VEREADORES. COMPOSIÇÃO. AUTONOMIA MUNICIPAL. LIMITES CONSTITUCIONAIS. NÚMERO DE VEREADORES PROPORCIONAL À população. Cf, ARTIGO 29, IV. APLICAÇÃO DE CRITÉRIO ARITMÉTICO RÍGIDO. INVOCAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA RAZOABILIDADE. INCOMPATIBILIDADE ENTRE A POPULAÇÃO E O NÚMERO DE VEREADORES. INCONSTITUCIONALIDADE, ‘INCIDENTER TANTUM’, DA NORMA MUNICIPAL. EFEITOS PARA O FUTURO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL.
1. O artigo 29, inciso IV da Constituição Federal, exige que o número de Vereadores seja proporcional à população dos Municípios, observados os limites mínimos e máximos fixados pelas alíneas a, b e c.
2. Deixar a critério do legislador municipal o estabelecimento da composição das Câmaras Municipais, com observância apenas dos limites máximos e mínimos do preceito (CF, artigo 29) é tornar sem sentido a previsão constitucional expressa da proporcionalidade.
3. Situação real e contemporânea em que Municípios menos populosos têm mais Vereadores do que outros com um número de habitantes várias vezes maior. Caso em que a falta de um parâmetro matemático rígido que delimite a ação dos legislativos Municipais implica evidente afronta ao postulado da isonomia.
4. Princípio da razoabilidade. Restrição legislativa. A aprovação de norma municipal que estabelece a composição da Câmara de Vereadores sem observância da relação cogente de proporção do a ADI 3.345 / DF respectiva população configura excesso do poder de legislar, não encontrando eco no sistema constitucional vigente.
5. Parâmetro aritmético que atende ao comando expresso na Constituição Federal, sem que a proporcionalidade reclamada traduza qualquer afronta aos demais princípios constitucionais e nem resulte formas estranhas e distantes da realidade dos Municípios brasileiros. Atendimentos aos postulados da moralidade, impessoalidade e economicidade dos atos administrativos (CF, artigo 37).
6. Fronteiras da autonomia municipal impostas pela própria Carta da República, que admite a proporcionalidade da representação política em face do número de habitantes. Orientação que se confirma e se reitera segundo o modelo de composição da Câmara dos Deputados e das Assembleias Legislativas (CF, artigos 27 e 45, §1º).
7. Inconstitucionalidade, ‘incidenter tantum’, da lei local que fixou em 11 (onze) o número de Vereadores, dado que sua população de pouco mais de 2600 habitantes somente comporta 09 representantes.
8. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ‘ex tunc’, resultaria grave ameaça a todo sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - on line)
Para Dantas, este é o primeiro caso em que se viu de fato um julgamento com a influência da teoria da transcendência.
O primeiro caso em que se viu essa nova tendência foi o julgamento do já mencionado Recurso Extraordinário n° 197.917-SP, em que o plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do artigo 6° da Lei Orgânica do Município de Mira Estrela, no Estado de São Paulo, reduzindo o número de parlamentares, daquela municipalidade, de onze para nove vereadores.
Com efeito, além de determinar, como vimos que referida decisão só produziria efeitos pro futuro, restou estabelecido, pelo Supremo Tribunal Federal, que os motivos determinantes daquela decisão também se prestavam a vincular o Tribunal Superior Eleitoral, que deveria respeitar os termos da decisão proferida naquele recurso extraordinário, em casos análogos.
Isso significa, em outras palavras, que os fundamentos daquela decisão, proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade, passou a gerar efeitos erga omnes e vinculantes (...). (DANTAS, 2013, p. 203)
Contudo, além do RE 197.917/SP podemos citar ainda como precedentes para a aplicação da teoria da transcendência o Habeas Corpus nº 82.959/SP (constitucionalidade da progressão do regime nos crimes hediondos), bem como a Reclamação 4335/AC, cuja mesma já mencionamos anteriormente. De fato, a lista não para por aí, poderíamos citar outras diversas decisões monocráticas proferidas pelo STF que tiveram amparo em tal teoria. Mas, para a construção de nosso entendimento, estes são o bastante.
Em todos estes casos presenciamos total afronta ao art. 52, X da CRFB/88, uma vez que, o próprio STF conferiu efeitos erga omnes. Ora, não é por um acaso que o poder constituinte manteve a competência do Senado Federal para extinguir efeitos de lei julgada inconstitucional em via difusa pelo STF. O Senado Federal, como sabemos, trata-se de órgão legislativo, representando o povo. O que o poder constituinte objetivou, então é que houvesse, mesmo que indiretamente, uma participação popular no controle de constitucionalidade. Neste sentido, Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont´Alverne Barreto Lima são brilhantes na abordagem sobre a questão.
Mas o modelo de participação democrática no controle difuso também se dá, de forma indireta, pela atribuição constitucional deixada ao Senado Federal. Excluir a competência do Senado Federal – ou conferir-lhe apenas um caráter de tornar público o entendimento do Supremo Tribunal Federal – significa reduzir as atribuições do Senado Federal à de uma secretaria de divulgação intra-legistativa das decisões do Supremo Tribunal Federal; significa, por fim, retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de 1988. (STRECK, OLIVEIRA, LIMA, 2007, on line).
A adoção de da teoria da transcendência aproxima em muito o controle difuso do concentrado. De fato, quando analisamos os efeitos, podemos sem dúvida alguma afirmar que o difuso passa a se confundir com o abstrato (concentrado).
É preciso entender que a questão do papel do Senado no controle difuso de constitucionalidade diz respeito aos efeitos da decisão. Isso parece claro. O texto do art. 52, X, da Constituição do Brasil, somente tem sentido se analisado – portanto, a norma que dele se extrai - a partir de uma análise do sistema constitucional brasileiro. O sistema é misto.
Portanto, parece óbvio que, se se entendesse que uma decisão em sede de controle difuso tem a mesma eficácia que uma proferida em controle concentrado, cairia por terra a própria diferença. É regra que o controle concentrado tenha efeitos ex tunc (a exceção está prevista na Lei nº 9.868/99). O controle difuso tem na sua ratio o efeito ex tunc entre as partes. (STRECK, OLIVEIRA, LIMA, 2007, on line).
Chegamos então ao que a doutrina tem denominado de “abstração do controle difuso de constitucionalidade, consubstanciando uma nítida aproximação do controle concentrado ao controle difuso de constitucionalidade”, conforme nos ensina Bomfim Filho (2012, p. 23, on line).
Para Bomfim Filho (2012, p. 23, on line), “a teoria da transcendência dos motivos determinantes é o principal alicerce à tendência de abstração da declaração incidental de inconstitucionalidade proferida pelo Pretório Excelso”.
Para o mesmo autor, a aplicação do termo “tendência” reside no fato de existir divergência entre os próprios Ministros quanto à aplicação da aludida teoria. (Bomfim Filho, 2012, pág. 23, on line).
Portanto, como podemos ver, a aplicação da teoria dos motivos determinantes ainda não se encontra pacificada junto ao STF.
Ainda na busca pela construção de um raciocínio que permita-nos emitir opinião sobre as indagações ora aventadas, passaremos à abordagem inauguraremos nosso capítulo derradeiro: A Abstrativização do Controle de Constitucionalidade Difuso.
A abstrativização do controle difuso de constitucionalidade traduz-se, portanto, em uma aproximação dos efeitos da sentença neste modelo, aos efeitos do controle abstrato de constitucionalidade.
Muitos juristas defendem que o fenômeno da abstrativização do controle difuso já se encontra presente, de fato em nosso ordenamento jurídico. Para tanto, apontam as mudanças implementadas pela Emenda Constitucional 45/2004, cuja mesma trouxe consigo os institutos da repercussão geral e súmula vinculante. Este é o entendimento de Rachel Gonçalves Silva, emitido em brilhante trabalho de conclusão do curso de pós-graduação da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro.
O controle de constitucionalidade na forma abstrata tem-se tornado o modelo dominante no ordenamento jurídico brasileiro. Tal assertiva pauta-se na priorização, pelo Constituinte de 1988, das formas de controle abstrato e ainda nas mudanças trazidas pela EC 45/04, que diminuíram o subjetivismo do recurso extraordinário, levando alguns a defenderem a atribuição de efeito erga omnes e vinculante também às decisões tomadas nessa sede. (SILVA, R., 2009, p. 8, on line).
A repercussão geral, como dito, trazida pela EC 45/2004, teve sua previsão constitucional assentada no art. 102, § 3° da Carta Magna. Tal dispositivo constitucional veio posteriormente a ser regulamentado pela Lei 11.418/06, cuja mesma acrescentou no Código de Processo Civil os artigos 543-A e 543-B na parte que se trata dos recursos extraordinários.
Tal instituto tem o condão de “diminuir” a incidência de recursos extraordinários levados ao STF, uma vez que, a partir de então, somente são admitidos os recursos extraordinários em cuja repercussão geral restou demonstrada. Conforme Dantas (2013, p. 211) nos ensina, “(...) era comum chegarem ao Supremo Tribunal Federal, por meio de recurso extraordinário, questões de interesse restrito, como locação de imóveis, por exemplo. A repercussão geral corrigirá essa anomalia”.
Prosseguindo no raciocínio, Dantas leciona que:
Por repercussão geral, devemos entender as questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, e que ultrapassem os interesses subjetivos da causa (§ 1°, do artigo 543-A). Estará também caracterizada a repercussão geral quando o recurso extraordinário tiver sido interposto para impugnar decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal (§ 3°, do mesmo artigo 543-A). (DANTAS, 2013, p. 212)
Conforme podemos observar, foi uma lei quem definiu as hipóteses de ocorrência da repercussão geral. Não deixando, este poder de definição, portanto, ao STF. Podemos concluir, que trata-se aqui mais uma vez de uma participação popular indireta (por meio do legislativo) do procedimento de controle de constitucionalidade, assim como já abordado anteriormente quando tratávamos do controle difuso.
Destarte, a súmulas vinculantes estão dispostas no art. 103-A e são de competência do Supremo Tribunal Federal, que,
“poderá de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar enunciado de súmula vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma prevista em lei.” (SILVA, 2013, p. 567).
A Súmula Vinculante se assenta no princípio da razoável duração do processo, contido no art. 5°, LXXVIII da CRFB/88. Neste sentido tendo diversas demandas sobre um mesmo tema, por meio de edição de súmula o STF vincula a decisão fazendo com que esta tenha observação obrigatória em todos os casos semelhantes.
A busca por celeridade, tempo razoável do processo, economia processual, apresenta-se de extrema relevância uma vez que, encontramos um cenário caótico no judiciário, com acúmulo de processos, recursos que parecem intermináveis, restando desta forma uma sensação ao cidadão de que seu direito não está sendo de fato protegido. Neste sentido observa o Professor e Juiz Federal Walter Nunes da Silva Júnior:
Essa situação seria apenas cômica se ela não fosse trágica diante de duas consequências diretas: a) o inchaço do Judiciário, que deveria ter o seu tempo preservado para apreciar os verdadeiros conflitos, assuntos sobre os quais ainda reina divergência na jurisprudência; b) a demora no reconhecimento do direito do cidadão, o que fomenta o exsurgir de uma imagem fantasmagórica do judiciário. (SILVA JÚNIOR, p. 2, on line).
Tanto a súmula vinculante, quanto a repercussão geral, portanto, constituem-se em institutos previstos no texto constitucional, que indiretamente ocasionam na abstrativização do controle difuso de constitucionalidade. Esta questão está diretamente relacionada com o que a doutrina denomina de “judicialização”.
Vale aqui trazer em comento trecho da abordagem de Luis Roberto Barroso, sobre o tema judicialização.
Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro. (BARROSO, on line).
Prosseguindo o raciocínio o mesmo autor afirma que
A judicialização decorre do modelo de Constituição analítica e do sistema de controle de constitucionalidade abrangente adotados no Brasil, que permitem que discussões de largo alcance político e moral sejam trazidas sob a forma de ações judiciais. Vale dizer: a judicialização não decorre da vontade do Judiciário, mas sim do constituinte. (BARROSO, on line).
Com vistas, a judicialização surge como fenômeno arquitetado e autorizado pelo poder constituinte, como é o caso das súmulas vinculantes, que encontram guarida na constituição. Por meio dessa autorização dada pelo poder constituinte, o Judiciário atua de forma bem semelhante a um “legislar”, editando suas súmulas.
A abstrativização por meio da supressão do art. 52, X, ou seja, a adoção da famigerada teoria da transcendência dos motivos determinantes, não encontra guarida em nosso ordenamento jurídico e, desta forma, não se constitui como fenômeno da judicialização. Na verdade, tal prática trata-se de uma demonstração típica de um extremado “ativismo judicial”.
Com fulcro em embasar este entendimento, traremos à baila mais uma vez o mestre Luis Roberto Barroso.
Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. (BARROSO, on line)
Utilizando-nos dos ensinamentos do mestre Barroso, temos que o ativismo judicial resulta de uma postura proativa do judiciário em interpretar a Constituição, elevando os efeitos e objetivos dos dispositivos da Carta Magna para além do que realmente esta expressa, deturpando o que originalmente desejou o Poder Constituinte ao redigi-la e promulga-la.
Ora, conforme já ventilado em capítulo anterior, a Carta Magna em seu artigo 52, X, deixa claro que o poder de extirpar norma julgada inconstitucional pelo STF em sede de controle difuso, pertence ao Senado Federal. Isso não é por acaso. Com este dispositivo, o Poder Constituinte, efetiva a participação popular de forma indireta nessas decisões, uma vez que os senadores são legitimamente representantes eleitos pelo povo.
Portanto, temos aqui uma questão extremamente relevante: a interferência do judiciário nos demais Poderes. Em especial, neste caso, interferência no poder Legislativo, uma vez que, ao proferir efeito erga omnes no controle difuso, o STF deixa de observar o texto constitucional que legitima o Senado Federal como competente para tanto. Nas palavras de Pedro Lenza (2011, on line), a teoria dos motivos determinantes faz do Senado Federal apenas “um menino de recado”.
A teoria da transcendência rompe com a consagrada teoria da separação dos poderes, defendida em nosso ordenamento jurídico e chancelada em nossa Constituição Federal, uma vez que, tira do Senado Federal uma de suas funções típicas definidas pelo poder constituinte originário – a de suspender eficácia de norma declarada inconstitucional em controle difuso, dando a tal decisão efeito erga omnes.
Uma das afrontas mais visíveis seria ao princípio da separação dos poderes, já que o Poder Legislativo, no caso, o Senado Federal, possui como uma de suas funções típicas, definida pelo poder constituinte originário, a de editar resolução para suspender a eficácia da norma declarada inconstitucional, o que, por consequência, atingirá a todos, indistintamente.
Já ao Poder Judiciário, a Constituição Federal previu o controle de constitucionalidade como forma de fiscalizar os atos normativos produzidos pelo Legislativo (mecanismo de “freios e contrapesos”), que, por sua vez, fixou os parâmetros legais para tanto.
Ora, a constituição possui dispositivo expresso no sentido de competir ao Senado Federal a opção de estender, para todos, o efeito da decisão de inconstitucionalidade de norma proferida em sede de controle difuso. É o que está previsto no artigo 52, inciso X, da CF/88.
O efeito erga omnes foi previsto apenas para as decisões proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade e não para o controle difuso. Neste, para que o efeito da decisão de inconstitucionalidade, no controle difuso, alcance a todos é preciso que o Senado Federal edite uma resolução suspendendo a eficácia da norma. Do contrário, a decisão só produzirá efeitos para as partes envolvidas no caso concreto.
Por isso, o STF, no exercício de seu mister, não pode simplesmente invadir a esfera do poder que compete ao Legislativo, poder esse conferido pela própria Constituição Federal, uma vez que não há nenhum inconveniente no sistema adotado até então. Até porque, a própria Lei Maior previu a possibilidade de o Judiciário utilizar de outro instrumento para se chegar ao mesmo fim pretendido pela teoria da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade.
Esse instrumento é a Súmula Vinculante, que pode ser editada pelo Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, mediante decisão de 2/3 de seus membros, depois de reiteradas decisões sobre matéria constitucional controvertida. Tal súmula terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública, direta e indireta, conforme previsto no artigo 103-A, da Constituição Federal. (MEDEIROS, online)
Sobre o tema, ínclito fazermos menção ao belo trabalho de pesquisa de Romaniuc, onde corrobora tal entendimento ao afirmar que:
Apesar da existência de doutrinadores, como Gilmar Ferreira Mendes, que defendem a perda do sentido do que dispõe o art. 52, X, da Constituição Federal, em virtude da ampliação de Poderes da Corte Suprema, trazemos posicionamento diametralmente oposto.
Não há razões lógicas para se conferir uma liberdade incondicional e irrestrita ao Poder Judiciário, posto se tratar de Poder constituído, sem qualquer hierarquia sobre os demais.
Dessa forma, a tese do ilustre ministro do STF, apesar de sua intenção altruística, acarretará excesso de Poder a um órgão jurisdicional que, em virtude de sua posição privilegiada sobre os demais Tribunais e Juízes de nosso país, já profere decisões tendenciosamente arbitrárias, como a questão da supralegalidade, da LC 135/2010, da prerrogativa exclusiva de foro dos próprios ministros do STF em casos de improbidade administrativa, dentre outras. (grifos nossos) (ROMANIUC, on line)
Assim, com apoio nos ensinos supra, temos demonstrada a abstrativização do controle difuso, com fulcro na teoria da transcendência dos motivos determinantes eivada de extremo ativismo judicial, resultado de um excesso de poder exercido pelo STF, atuando para além do que estatui o texto constitucional. Culminando, desta forma, em visível desiquilíbrio da teoria da separação dos poderes.
Defender a teoria da transcendência dos motivos de terminantes traduz-se em conferir ao STF um poder que não está previsto na Constituição.
Ademais, a adoção de tal teoria, culmina por “extirpar” de nosso ordenamento jurídico o controle difuso de constitucionalidade, tornando este, tal como o abstrato (concreto).
Em meio ao discurso de defensores da abstrativização - ao defenderem tal prática com fulcro na celeridade, tempo razoável do processo, dentre outros - se esquecem, no entanto, que, temos que refletir que tal evento, em especial sob a édge da teoria da transcendência fere, além do princípio da separação dos poderes, diversos direitos fundamentais, dentre eles o do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, conforme destaca Streck, Oliveira e Lima.
Como se não bastasse reduzir a competência do Senado Federal à de um órgão de imprensa, há também uma consequência grave para o sistema de direitos e de garantias fundamentais. Dito de outro modo, atribuir eficácia erga onmes e efeito vinculante às decisões do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade é ferir os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art. 5.º, LIV e LV, da Constituição da República), pois assim se pretende atingir aqueles que não tiveram garantido o seu direito constitucional de participação nos processos de tomada da decisão que os afetará. Não estamos em sede de controle concentrado! Tal decisão aqui terá, na verdade, efeitos avocatórios. Afinal, não é à toa que se construiu ao longo do século que os efeitos da retirada pelo Senado Federal do quadro das leis aquela definitivamente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal são efeitos ex nunc e não ex tunc. Eis, portanto, um problema central: a lesão a direitos fundamentais. (STRECK, OLIVEIRA, LIMA, 2007, on line)
É imprescindível, no entanto, salientar que, recentemente (20/03/2014), o Supremo Tribunal Federal, pôs fim ao julgamento da Reclamação 4335/AC, reconhecendo a possibilidade de progressão de regimes no caso de crimes hediondos. Não obstante, apesar dos votos incisivos do Min. Gilmar Mendes e do Min. Eros Grau, a tese de mutação constitucional do art. 52, X da CRFB/88 foi rejeitada. Assim, colacionamos informe do STF.
Quinta-feira, 20 de março de 2014
Plenário conclui julgamento sobre decisão que impediu progressão de regime
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, na sessão de hoje (20), o julgamento da Reclamação (RCL) 4335, na qual a Defensoria Pública da União (DPU) questionou decisão do juízo da Vara de Execuções Penais de Rio Branco (AC) que negou a dez condenados por crimes hediondos o direito à progressão de regime prisional.
O STF reconheceu a possibilidade de progressão de regime nesses casos no julgamento do Habeas Corpus (HC) 82959, em fevereiro de 2006, por seis votos contra cinco, quando foi declarado inconstitucional o parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), que proibia tal progressão. No caso específico da Reclamação 4335, no entanto, o juiz do Acre alegou que, para que a decisão do STF no habeas corpus tivesse efeito erga omnes (ou seja, alcançasse todos os cidadãos), seria necessário que o Senado Federal suspendesse a execução do dispositivo da Lei de Crimes Hediondos, conforme prevê o artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, o que não ocorreu.
Na sessão desta tarde, o julgamento foi concluído após voto-vista do ministro Teori Zavascki, cujo entendimento foi seguido pelos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello. Em seu voto, o ministro Teori salientou que, embora o artigo 52, inciso X, da Constituição estabeleça que o Senado deve suspender a execução de dispositivo legal ou da íntegra de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF, as decisões da Corte, ao longo dos anos, têm-se revestido de eficácia expansiva, mesmo quando tomadas em controvérsias de índole individual.
O ministro também citou as importantes mudanças decorrentes da Reforma do Judiciário (EC 45/2004), a qual permitiu ao STF editar súmulas vinculantes e filtrar, por meio do instituto da repercussão geral, as controvérsias que deve julgar. “É inegável que, atualmente, a força expansiva das decisões do STF, mesmo quando tomadas em casos concretos, não decorre apenas e tão somente da resolução do Senado, nas hipóteses do artigo 52, inciso X, da Constituição”, afirmou. O fenômeno, segundo o ministro, “está se universalizando por força de todo um conjunto normativo constitucional e infraconstitucional direcionado a conferir racionalidade e efetividade às decisões dos Tribunais Superiores e especialmente à Suprema Corte”.
Para o ministro, contudo, é necessário dar interpretação restritiva às competências originárias do STF, pois o uso indistinto da reclamação poderia transformar o Tribunal em “verdadeira corte executiva”, levando à supressão de instâncias locais e atraindo competências próprias de instâncias ordinárias.
No caso em análise, entretanto, o ministro Teori acolheu a Reclamação 4335 por violação à Súmula Vinculante 26 do STF, segundo a qual, “para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990”. Embora a reclamação tenha sido ajuizada mais de três anos antes da edição da súmula, a aprovação do verbete constitui, segundo o ministro, fato superveniente, ocorrido no curso do julgamento do processo, que não pode ser desconsiderado pelo juiz, nos termos do artigo 462 do Código de Processo Civil (CPC).
Votos
Os ministros Sepúlveda Pertence (aposentado), Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio julgavam inviável a Reclamação (não conheciam), mas, de ofício, concediam habeas corpus para que os dez condenados tivessem seus pedidos de progressão do regime analisados, individualmente, pelo juiz da Vara de Execuções Criminais. Os votos dos ministros Gilmar Mendes (relator) e Eros Grau (aposentado) somaram-se aos proferidos na sessão desta quinta-feira, no sentido da procedência da reclamação. Para ambos, a regra constitucional que remete ao Senado a suspensão da execução de dispositivo legal ou de toda lei declarada inconstitucional pelo STF tem efeito de publicidade, pois as decisões da Corte sobre a inconstitucionalidade de leis têm eficácia normativa, mesmo que tomadas em ações de controle difuso. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – on line)
Destarte, a questão ainda não está pacificada, uma vez que a teoria ainda tem dois ferrenhos defensores na corte (Min. Gilmar Mendes e Min. Eros Grau). Ademais, apesar de não citarem explicitamente, vários ministros do STF, em decisões monocráticas, têm julgado com base em precedentes, fazendo uso de forma velada da teoria da transcendência dos motivos determinantes.
Neste diapasão torna-se ínclito citar esplêndido trabalho publicado na Revista de Atualização Legislativa, Ano 52, n° 205 jan./mar. 2015, do Senado Federal, de autoria do Mestre Breno Baía Magalhães, intitulado “A trajetória da transcendência dos motivos determinantes. O fim da história?”. Como exemplo, dentre outros mencionados no artigo, colacionamos o que segue.
No julgamento da Rcl. 2.425/ES45, o município de Vila Velha impugnou decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 17a Região, que confirmou decisão da presidência do tribunal que concedeu os pedidos de sequestro de verbas públicas apresentados por sindicatos de trabalhadores, em razão do seu não pagamento no prazo legal.
O relator do caso, Min. Dias Toffoli, após afastar a exceção de coisa julgada, em função da natureza administrativa do procedimento de pagamento de precatórios, ponderou que o sequestro de verbas, no caso, ocorreu em decorrência do escoamento do prazo legal, com base na interpretação feita do art. 78, § 4o do ADCT, algo vedado pelo julgado na ADI 1.662/SP, oportunidade em que ficara assentada (o ministro cita trecho da ementa da ADI) a inexistência de nova possibilidade de sequestro de verbas para precatórios de origem alimentar pela EC no 30/00.
É válido ressaltar que o ministro citou um curioso precedente para sustentar a sua decisão. Trata-se da Rcl. 1.923/RN, de 2001, Rel. Maurício Corrêa. A referida reclamação é semelhante à Rcl. 1.987/DF, apesar de o ministro não citar a última como precedente.
Notório opositor da tese da transcendência, Toffoli não teceu nenhum comentário sobre sua aplicabilidade ou não ao caso, mesmo tendo julgado a reclamação indo além do dispositivo da ADI 1.662/SP46. Não por outra razão, o Ministro Marco Aurélio alegou a falta de identidade entre a decisão reclamada e o acordão paradigma, por conta de novidades normativas não presentes na análise da ADI 1.662/SP e divergiu do relator. Apesar da divergência, Marco Aurélio não citou a tese da transcendência. (grifos nossos)
Assim, vemos que a questão ainda encontra-se em aberto, neste sentido, por derradeiro, encerramos com outra abordagem do Mestre Breno Baía Magalhães (2015, p.187, on line): “A única certeza, todavia, é a de que, apesar de sua rejeição pela maioria da Corte, o tema da transcendência dos motivos determinantes voltará a ocupar a pauta do STF em um futuro breve”.
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