Desde as prisões deflagradas pela Operação Satiagraha, voltou à tona a discussão sobre o uso de algemas.
O artigo 199 da Lei de Execução Penal (Lei Federal nº. 7.210, de 11 de julho de 1984) estabelece que o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal. Até a presente data, contudo, a Presidência da República não editou esse ato administrativo.
Embora inexistente uma disciplina específica sobre o uso de algemas, por conta da reiterada omissão da autoridade encarregada de editá-la, não se pode afirmar a ausência absoluta de regras sobre esse tema.
Precisamos lembrar, em primeiro lugar, que a Constituição Federal instituiu um Estado Democrático de Direito. Todos estamos sujeitos às normas e princípios constitucionais, inclusive e sobretudo o Estado.
Assim, ao realizar uma prisão, o agente público deve considerar que a dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III).
Deve observar, ainda, que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, inciso II) e que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (artigo 5º, inciso X).
A menção a esses dispositivos constitucionais mostra-se ainda mais pertinente quando se sabe que a polêmica envolve não apenas o uso de algemas, mas a exposição pública que muitas vezes a acompanha, como ocorreu na Operação Satiagraha.
Mesmo abstraindo as regras constitucionais – num exercício teórico, pois na prática isso não é possível – ainda assim o emprego de algemas encontra limites, pois a autoridade deve se pautar pelo artigo 284 do Código de Processo Penal, assim redigido: não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.
Nos termos desse dispositivo legal, o emprego de algemas apresenta-se como medida excepcional, eis que se relaciona com o emprego de força. Logo, essa não se justifica se não há resistência ou risco de fuga.
Percebe-se, pois, que a ação dos agentes públicos na Operação Satiagraha – que não constitui episódio isolado, frise-se – contrariou a Constituição Federal e o Código de Processo Penal, tanto pelo uso de algemas quanto pela exposição indevida dos investigados.
Registro que o Supremo Tribunal Federal – que é o guardião da Constituição – apreciará em breve o Habeas Corpus nº. 91952,que questiona o uso de algemas durante o julgamento pelo Tribunal do Júri – competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. A defesa argumenta que o fato de o réu ter permanecido algemado, a par de constituir constrangimento ilegal, prejudicou sua defesa.
Observo, para finalizar, que antes e depois da Operação Satiagraha cidadãos brasileiros têm sido presos, algemados e expostos à execração pública pela mídia, diariamente. No entanto, tenho a impressão que o assunto ganha relevância apenas quando a vítima do abuso estatal é uma pessoa de posses.
Essa circunstância me traz à memória os romances ambientados na América Latina do escritor inglês Graham Greene – penso em Nosso Homem em Havana, Os Comediantes, O Poder e a Glória e O Cônsul Honorário. Neles transparece a noção de que existem pessoas torturáveis e não torturáveis. Um desses romances, aliás, expressa essa noção. No Brasil, talvez, tenhamos duas categorias de cidadãos, os algemáveis e os não algemáveis.
Pode ser uma impressão falsa, mas é a minha impressão.