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Resumo:
Este trabalho analisa a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Texto enviado ao JurisWay em 29/03/2010.
Última edição/atualização em 30/03/2010.
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EFICÁCIA PRIVADA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
LUCIANA DE SOUSA LIMA
RESUMO
Este trabalho analisa a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Nosso objetivo consiste em demonstrar que a teoria dos direitos fundamentais passou por um grande processo evolutivo, e o seu resultado mais importante consiste no denominado efeito horizontal dos direitos fundamentais, que projeta a eficácia desses direitos em todo o ordenamento jurídico. É nosso propósito mostrar que o efeito horizontal é uma importante ferramenta para construir uma sociedade livre, justa e solidária, especialmente em nosso país. Ao analisar as teorias específicas que debatem as vinculações entre direitos fundamentais e direito privado, iremos comprovar que a eficácia na esfera privada não somente é possível, como necessária, na ordem constitucional brasileira.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Relações entre particulares. Relações privadas. Efeito horizontal.
ABSTRACT
This report analyzes the effectiveness of fundamental rights in the private relations. Our objective consists in demonstrating that fundamental rights theory has passed by a great process of evolution and most important result of this process consists in the so-called horizontal effect of the fundamental rights, which holds that their effectiveness reaches in the juridical order. It is our proposal to show that the horizontal effect is a strong juridical tool to build a free, just and solidary society, especially in our country. Analyzing the specific theories about the relations between fundamental rights and private law, we intend to propose that the effectiveness in this sector is not only possible, but necessary, in the brazilian constitutional order.
Keywords: Fundamental rights. Private relations. Horizontal effect.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Os direitos fundamentais, para muitos, são aqueles consagrados na Constituição Federal, embora nem todos os dispositivos ali inseridos sejam efetivamente dessa natureza – fundamental.
Eles são, hodiernamente, o parâmetro de aferição do grau de democracia de uma sociedade. Ao mesmo tempo, a sociedade democrática é condição imprescindível para a eficácia dos direitos fundamentais.
Os direitos essenciais da pessoa humana, a partir da Constituição de 1988, assumem uma dimensão extraordinária, colocando nossa Lei Magna como umas das mais avançadas no mundo moderno, dada a sua maneira abrangente e pormenorizada ao tratar dos direitos e garantias fundamentais do homem.
A produção doutrinária sobre direitos fundamentais mostrou-se, nos últimos anos, prodigiosa. Multiplicaram-se as obras, tanto no exterior quanto em nosso país, enfatizando a importância que essas garantias ostentam no cenário jurídico deste milênio que se inicia.
Entre nós, porém, o estudo da eficácia desses direitos nas relações privadas ainda não foi merecedor da atenção apropriada. Em que pese a existência de trabalhos de grande valor a respeito do tema, este ainda reclama mais atenção na doutrina pátria.
Conforme pretendemos demonstrar, apesar de terem sido criados para regular a relação indivíduo-Estado, ao longo do tempo verificou-se que, diversas vezes, a ameaça a direitos não provém necessariamente do Estado, mas também entre relações eminentemente privadas.
Dessa forma, veremos que é possível e recomendável que sejam aplicados em todas as relações, inclusive as privadas, a fim de minimizar as desigualdades eventualmente existentes entre os indivíduos e os detentores de poder social.
1 HISTÓRICO
Historicamente, há quem veja a origem dos direitos fundamentais no Código de Hamurabi, pois este inseriu limitações aos seus próprios poderes e aos poderes de seus esperados descendentes ou sucessores.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2005, pp. 9-10, apud Cocurutto, 2008, p. 36) afirma que
“remoto ancestral da doutrina dos direitos fundamentais é, na Antiguidade, a referência a um Direito superior, não estabelecido pelos homens, mas dado a estes pelos deuses. Neste passo cabe a citação habitual à Antígona, de Sófocles (...). (...) de forma refinada, recoloca-a Tomás de Aquino no século XIII. Na Suma Teológica existe, inclusive, uma hierarquia. Suprema é a lei eterna (que só o próprio Deus conhece na plenitude), abaixo da qual estão, por um lado, a lei divina (parte da lei eterna revelada por Deus ou declarada pela Igreja), por outro, a lei natural (gravada na natureza humana que o homem descobre por meio da razão), e, mais abaixo, a lei humana (a lei positiva editada pelo legislador)”[1]. (grifo original)
Oportuno consignar, segundo os adeptos do cristianismo, que Paulo (apóstolo de Jesus Cristo), referindo-se ao tema “liberdade”, escreveu que esta deve ser circunscrita pela caridade.
Trata-se efetivamente de um preceito social de natureza fundamental, evidentemente relacionado aos direitos humanos e à dignidade do homem, que, livre, deve ser fraterno em suas relações sociais (COCURUTTO, 2008, p. 37).
É comum apontar-se a doutrina do cristianismo, com ênfase especial para a escolástica e a filosofia de Santo Tomás, como antecedente básico dos direitos humanos. A concepção de que os homens, por serem criados à imagem e semelhança de Deus, possuem alto valor intrínseco e uma liberdade inerente à sua natureza, anima a idéia de que eles dispõem de direitos que devem ser respeitados por todos e pela sociedade política. Santo Tomás de Aquino defendia, como exposto acima, um direito natural, fundado na concepção do homem como criatura feita à semelhança de Deus e dotada de especiais qualidades. Esse direito subordinava o direito positivo e a discrepância entre um e outro autorizaria o direito de resistência do súdito (BRANCO, 2002, p. 3).
Nos séculos XVII e XVIII, as teorias contratualistas vêm enfatizar a submissão da autoridade política à primazia que se atribui ao indivíduo sobre o Estado. A defesa de que certo número de direitos preexistem ao próprio Estado, por resultarem da natureza humana, desvenda característica crucial do Estado, que lhe empresta legitimação – o Estado serve aos cidadãos, é instituição concatenada para lhes garantir os direitos básicos.
Essas ideias tiveram decisiva influência sobre a Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, e sobre a Declaração Francesa, de 1789. Talvez, por isso, com maior frequência, situa-se o ponto fulcral do desenvolvimento dos direitos fundamentais na segunda metade do século XVIII, sobretudo com o Bill of Rights de Virgínia (1776), quando se dá a positivação dos direitos tidos como inerentes ao homem, até ali mais afeiçoados a reivindicações políticas e filosóficas do que a normas jurídicas obrigatórias, exigíveis judicialmente (BRANCO et al., 2009, p. 266).
Norberto Bobbio ensina que os direitos do homem ganham relevo quando se desloca do Estado para os indivíduos a primazia na relação que os põe em contato. Segundo o autor (apud BRANCO et al., 2009, p. 266),
“a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade (...) no início da idade moderna”[2].
Os direitos fundamentais assumem posição de definitivo realce na sociedade quando se inverte a tradicional relação entre Estado e indivíduo e se reconhece que o indivíduo tem, primeiro, direitos, e, depois, deveres perante o Estado, e que os direitos que o Estado tem em relação ao indivíduo se ordenam ao objetivo de melhor cuidar das necessidades dos cidadãos.
1.1 Gerações (ou dimensões) de Direitos Fundamentais
Os direitos fundamentais não surgiram simultaneamente, mas em períodos distintos conforme a demanda de cada época, tendo esta consagração progressiva e sequencial nos textos constitucionais dado origem à classificação em gerações. Como o surgimento de novas gerações não ocasionou a extinção das anteriores, há quem prefira o termo dimensão por não ter ocorrido uma sucessão desses direitos. Atualmente, todos eles coexistem. Enquanto o entendimento acerca dos direitos integrantes das duas primeiras dimensões já se encontra consolidado, em relação às demais, por serem recentes, ainda há grandes divergências doutrinárias.
O lema revolucionário do século XVIII (liberdade, igualdade e fraternidade) proclamou o conteúdo e a sequencia histórica de surgimento dos direitos fundamentais (NOVELINO, 2008, p. 226-227).
Inicialmente, os direitos fundamentais foram concebidos como direitos da liberdade, diziam respeito aos direitos civis e políticos do indivíduo, oponíveis ao Estado. A preocupação era resguardar a liberdade do cidadão perante o poder estatal absoluto, ao mesmo tempo em que o fazia partícipe do poder político (ROCHA, 1988).
Destacam-se como direitos de primeira geração (ou dimensão) aqueles que surgiram com a ideia de Estado de Direito, submisso a uma ordem constitucional. Concebeu-se a ideia de Estado em que as funções do poder fossem atribuídas a órgãos distintos. Surgiram os denominados direitos civis, individuais e políticos.
O escopo é a proteção do indivíduo perante o Estado. Por sua vez, a função do Estado é a de guardião das liberdades individuais, permanecendo afastado de qualquer interferência no relacionamento social (Cocurutto, 2009, p. 35)
Pretendia-se, sobretudo, fixar uma esfera de autonomia pessoal refratária às expansões do Poder. Daí esses direitos traduzirem-se em postulados de abstenção dos governantes, criando obrigações de não fazer, de não intervir sobre aspectos da vida pessoal de cada indivíduo. O paradigma é o homem individualmente considerado.
O descaso para com os problemas sociais, aliado às pressões decorrentes da industrialização em marcha, o impacto do crescimento demográfico e o agravamento das disparidades no interior da sociedade gerou novas reivindicações, impondo ao Estado um papel ativo na realização da justiça social. Como consequência, uma diferente gama de direitos ganhou espaço nos catálogos de direitos fundamentais, que não correspondiam mais a uma pretensão de abstenção do Estado, mas que o obrigam a prestações positivas. São os direitos de segunda geração, por meio dos quais se intenta estabelecer uma liberdade real e igual para todos, mediante a ação corretiva dos Poderes Públicos. Dizem respeito a assistência social, saúde, educação, trabalho, lazer, etc. (BRANCO et al., 2009, p. 266).
Sua essência volta-se às necessidades humanas, cujo objetivo é conferir condições mínimas ao exercício de uma vida digna, devendo o Estado fazer-se presentes, mediante prestações concretas que afastem qualquer afronta à dignidade humana.
Na sequência, surge uma nova dimensão dos direitos fundamentais a ser tutelada, relacionada à essência do ser humano, sua razão de existir, ao destino da humanidade, considerando o ser humano como gênero, não apenas como indivíduo.
Nessa terceira geração de direitos fundamentais emerge a concretização de uma preocupação com o próximo, a defesa da existência do ser humano de forma digna, ao mesmo tempo em que as fronteiras físicas e econômicas se dilatam em face de um mundo globalizado (Cocurutto, 2009, p.36).
O surgimento desta dimensão de direitos tem em vista a constatação da necessidade de atenuar as diferenças entre as nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, por meio da colaboração de países ricos com os países pobres. Dentre os direitos integrantes dessa dimensão, temos aqueles relacionados ao desenvolvimento (progresso), ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, entre outros (NOVELINO, 2008, p. 228).
Há ainda, doutrinadores que defendem a existência de uma quarta geração de direitos fundamentais. Conforme leciona Novelino (2008, p. 229) tais direitos foram
“introduzidos no âmbito jurídico pela globalização política, compreendem o direito à democracia, informação e pluralismo. Os direitos fundamentais de quarta dimensão compendiam o futuro da cidadania e correspondem à derradeira fase da institucionalização do Estado social sendo imprescindíveis para a realização e legitimidade da globalização política”[3]. (grifo original).
A visão dos direitos fundamentais em termos de gerações (ou dimensões) indica o caráter cumulativo da evolução desses direitos no tempo. Não se deve deixar de situar todos os direitos num contexto de unidade e indivisibilidade. Cada direito de cada geração interage com os das outras e, nesse processo é que se chega à compreensão.
2 Eficácia Privada dos Direitos Fundamentais
Na doutrina liberal clássica, os direitos fundamentais são compreendidos como limitações ao exercício do poder estatal, restringindo-se ao âmbito das relações entre o particular e o Estado. Por esta relação ser hierarquizada, de subordinação, utiliza-se a expressão eficácia vertical dos direitos fundamentais.
Discutiu-se muito sobre a possibilidade de os direitos fundamentais produzirem efeitos também nas relações particulares. Hodiernamente, pode-se afirmar que poucos são os publicistas que restringem essa aplicabilidade apenas para as relações indivíduo-Estado. A grande maioria admite a aplicação desses direitos de forma horizontal, ou seja, indivíduo-indivíduo. Daí, se denominar essa aplicabilidade de eficácia horizontal ou privada dos direitos fundamentais.
Essa mudança de entendimento iniciou-se na doutrina alemã, tendo propagado-se depois, em virtude da constatação de que a opressão e a violência contra os indivíduos são oriundas não apenas do Estado, mas também de múltiplos agentes privados.
Seguindo a linha de pensamento do Prof. Virgílio Afonso da Silva[4], o problema consiste não mais em saber se os direitos fundamentais produzem efeitos entre as relações privadas, mas como esses efeitos são produzidos.
De acordo com o grau de influência dos direitos fundamentais, podem ser destacados três modelos: o primeiro, que nega quaisquer efeitos sobre as relações privadas, e mais dois que sustentam a produção de efeitos, um, de forma direta, e outro, apenas indiretamente.
2.1 Teoria da ineficácia horizontal
Trata-se de uma das mais originais construções teóricas a respeito da aplicação dos direitos fundamentais em relações privadas, também chamada doutrina da “state action”, desenvolvida pela Suprema Corte dos Estados Unidos.
Desde seus primórdios como nação, é de notória sabença que os Estados Unidos sempre privilegiaram a ideologia liberal, marcadamente no que tange às liberdades individuais asseguradas pela Constituição Federal de 1787. Daí manter-se firme no pensamento jurídico americano, mesmo hoje, a unidirecionalidade dos direitos fundamentais, posto que essas garantias possuem o somente Estado como único destinatário. Daí que apenas quando a conduta do particular equivaler, ao menos em certo grau, a uma “ação estatal” (State Action), é que se tornará suscetível de sindicalização à luz dos princípios constitucionais catalogados no Bill of Rights.
Conforme afirma Costa (2007, p. 59),
“O modelo americano de direitos fundamentais é marcado, na observação de Peces-Barba, por uma profunda influência do jusnaturalismo racionalista, bem como por uma certa religiosidade, derivada do fato de serem os primeiros colonos – os famosos peregrinos do Mayflower – pessoas que fugiam da perseguição movida pelos anglicanos britânicos. Com isso, criou-se todo um ambiente favorável ao mais alto respeito às garantias de liberdade religiosa, de liberdade de pensamento e de consciência, no que se convencionou chamar o ‘direito à busca da felicidade’. (...) Bem se vê que, naquele país, aceitar que os valores jusfundamentais possam operar livremente no tráfico jurídico privado é um ‘tabu jurídico’ ainda distante de ser quebrado”[5].
Além de não admitir, em princípio, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a jurisprudência norte-americana tem criado obstáculos à possibilidade de tutela legislativa destes direitos no âmbito das relações privadas.
Entretanto, essa concepção é a menos prestigiada, uma vez que este modelo, apesar de não aceitar expressamente a aplicação dos direitos fundamentais às relações que não envolvam o Estado na prática, leva a um resultado equivalente à vinculação dos particulares.
O que se vê na prática jurisprudencial da Suprema Corte é a utilização de artifícios com o intuito de equiparar os atos privados questionados aos atos estatais (Sarmento, 2006, p. 197).
Como conclui Silva (2005, p. 99), a finalidade desta doutrina é tentar afastar a impossibilidade de aplicação dos direitos fundamentais aos particulares e definir, ainda que de forma casuística e assistemática, em que situações uma conduta privada está vinculada a esses direitos. Cuida-se de uma negação meramente aparente, pois consiste na equiparação dos atos privados aos atos estatais.
2.2 Teoria da eficácia horizontal indireta
Para os adeptos desta teoria, os valores constitucionais, incorporados nas normas consagradoras de direitos fundamentais, aplicam-se ao direito privado por meio das cláusulas gerais oferecidas pela legislação civil que devem ser interpretadas conforme seus ditames.
Esta concepção tem como ponto de partida o reconhecimento de um direito geral de liberdade, que incluiria a possibilidade de os participantes de uma relação privada afastarem as disposições de direitos fundamentais, sem a qual a liberdade contratual restaria comprometida. Assim, os direitos fundamentais poderiam ser relativizados nas relações contratuais a favor da autonomia privada e da responsabilidade individual.
Para este modelo, os direitos fundamentais não podem ser invocados a partir da Constituição por não ingressarem no cenário privado como direitos subjetivos. A incidência direta dos direitos fundamentais aniquilaria a autonomia da vontade, causando uma desfiguração do direito privado (Novelino, 2008, p. 233).
Por esta razão cabe ao legislador mediar a aplicação dos direitos fundamentais aos particulares, sem descuidar da tutela da autonomia da vontade, de modo a estabelecer uma disciplina das relações privadas que se revele compatível com os valores constitucionais.
Invocando os ensinamentos de Canotilho e Konrad Hesse para explicar essa teoria, Adriano Pessoa da Costa aduz que a atividade legislativa deve pautar-se também pelo princípio da igualdade, no sentido de que a lei, ao regulamentar normativamente relações jurídicas privadas, não pode nem deve estabelecer regimes jurídicos discriminatórios, a não ser que haja fundamento material para um tratamento desigual. O direito civil, diante da colisão desses direitos, tem a tarefa de definir, por si mesmo, o modo e a intensidade com que se dará a influência desses direitos, mediante seu equilíbrio e/ou ponderação (Costa, 2007, pp. 74/75).
Entretanto, embora a teoria em foco tenha como indispensável a mediação estatal na trajetória dos direitos fundamentais para o direito privado, seus autores não chegam a um consenso sobre qual intermediação seria ideal – a legislativa ou judiciária.
Não se discute que aos juízes impõe-se a obrigação de assegurar o maior grau possível de eficácia aos direitos fundamentais em seus julgamentos e que, igualmente, devem protegê-los de todas as ameaças, venham de onde vierem. De outra parte, também o legislador está a eles diretamente vinculado na confecção de normas jurídicas, sob pena de incorrer em vício de inconstitucionalidade.
Ademais, é certo que cabe ao Poder Judiciário o dever de preencher as cláusulas indeterminadas criadas pelo legislador, para aplicar normas privadas em compatibilidade com os preceitos fundamentais.
Para esta corrente, a força jurídica dos preceitos constitucionais no âmbito das relações entre particulares incide apenas mediatamente, por meio dos princípios e normas próprias do direito privado, vez que os direitos fundamentais servem apenas para princípios de interpretação das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados, suscetíveis de concretização ou preenchimento de lacunas (Savazzoni, 2009, p. 2).
2.3 Teoria da eficácia horizontal direta
Defendida a partir da década de 50, a concepção que sustenta a vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais teve Hans Carl Nipperdey como um de seus defensores pioneiros. Para este doutrinador, a eficácia dos direitos fundamentais no tráfico jurídico privado provém diretamente da Constituição. Apesar de não ter obtido grande aceitação na Alemanha, é atualmente a teoria majoritária na Espanha, na Itália e em Portugal.
Nos termos desta concepção, a incidência dos direitos fundamentais deve ser estendida às relações entre particulares, independentemente de qualquer intermediação legislativa, ainda que não se negue a existência de certas especificidades nesta aplicação, bem como a necessidade de ponderação dos direitos fundamentais com a autonomia da vontade. Os efeitos inerentes aos direitos fundamentais dispensam recursos interpretativos para sua aplicação nas relações privadas, apesar de esta não ocorrer da mesma forma e com a mesma intensidade que se dá em relação aos poderes públicos, pois enquanto estes são responsáveis por gerir o bem da coletividade, aqueles desfrutam de proteção constitucional à autonomia da vontade, fundamento da dignidade da pessoa humana (Novelino, 2008, pp. 234/235).
Como se vê, não se prega a desconsideração da liberdade individual nas relações jurídicas privadas, já que não se nega a necessidade de se ponderar o direito fundamental com a autonomia privada.
Esclarece-nos Costa (2007, p. 91) que
“Em sua teoria eficácia imediata, Nipperdey compreendia que o vasto rol de direitos fundamentais abrange disposições de caráter distinto entre si, cujo significado, modo e grau de ação devem ser verificados detalhadamente em cada caso particular. Jamais pretendeu que a incidência desses direitos no plano privado se desse de modo generalizado e absoluto, como seus críticos tentaram fazer crer (...) Se aplicarmos a lição de Nipperdey à realidade brasileira, torna-se fácil compreender a razão pela qual a doutrina nacional, em grande parte, filia-se à teoria da Unmittelbare Drittwirkung. Em um país onde os assustadores abismos sociais são a regra, e os grupos de pressão aumentam exponencialmente sua força a cada dia, é quase impossível condicionar a força dos direitos fundamentais a uma gradação através da lei e de sua interpretação judicial – principalmente diante da já referida regra insculpida no art. 5º, §1º da Constituição Federal[6].
Para esta corrente, justifica-se a eficácia direta dos direitos fundamentais na esfera privada, sobretudo nos casos em que a dignidade da pessoa humana estiver sob ameaça ou diante de uma ingerência indevida na esfera de intimidade pessoal. Considera-se, assim, um mecanismo de correção de desigualdades sociais.
A mediação do legislador não poderia ser considerada um trâmite indispensável, pois não tem um caráter constitutivo, senão meramente declaratório. O reconhecimento de um direito fundamental não depende do legislador, sob pena de ser um direito de cunho simplesmente legal. O direito fundamental se define justamente pela indisponibilidade de seu conteúdo ao legislador (Costa, 2007, p. 93).
3 A vinculação dos particulares na ordem jurídica brasileira
Novelino (2008, p.234), é enfático ao declarar que
“No direito pátrio não há qualquer justificativa plausível para se negar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Este modelo não é coadunável com a triste realidade brasileira na qual as desigualdades sociais estão entre as piores do mundo, impondo a necessidade de uma preocupação ainda maior com a proteção dos direitos fundamentais, sobretudo em relação aos hipossuficientes. As doutrinas jurídicas não podem ser simplesmente reproduzidas ou elaboradas isoladamente da realidade social, política, econômica e cultural na qual se inserem”[7].
Entre nós, ao ser atribuída aos direitos fundamentais a condição de cláusula pétrea (art. 60, §4º, CFRB/1988), pretendeu o constituinte explicitar o especial significado objetivo dos direitos fundamentais, como elementos da ordem jurídica objetiva.
Os direitos fundamentais são essenciais não só ao Estado Democrático – liberdade opinião, de reunião, etc. – como também para o Estado de Direito – vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais (Savazzoni, 2009, p. 3).
O problema da eficácia inter privatos dos direitos fundamentais não se mostra relevante nos poucos países em que a matéria foi alvo de previsão no texto constitucional, como Portugal, Suíça e África do Sul. Porém, naqueles em que isto não ocorreu, caso do Brasil, é questão das mais relevantes definir se a Constituição oferece, ou não, fundamento para tal dimensão de eficácia jusfundamental.
Ao estabelecer que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art. 5º, § 1º, CFRB/1988), a Constituição consagrou o princípio da máxima efetividade, impondo que na interpretação dos direitos fundamentais se atribua o sentido capaz de conferir a maior efetividade possível para que tais direitos realmente cumpram sua função social. Em outras palavras, este princípio impõe a preferência por opções que favoreçam a efetiva atuação dos direitos fundamentais, corroborando a adoção do modelo que sustenta a aplicabilidade direta às relações particulares. Não há necessidade de utilização de artifícios jurídicos para lhes garantir efetividade (Novelino, 2008, p. 235.).
De outra banda, Virgílio Afonso da Silva não se mostra seguro quanto à serventia do art. 5º, § 1º da CF/88 para o propósito de fundamentar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Segundo ele, no trato do assunto
“há uma confusão entre a eficácia dos direitos fundamentais, sua forma de produção de efeitos e seu âmbito de aplicação. O texto constitucional, que dispõe que os direitos fundamentais terão aplicação imediata, faz menção a uma potencialidade, à capacidade de produzir efeitos desde já. Mas a simples prescrição constitucional de que as normas definidoras de direitos fundamentais terão ‘aplicação imediata’ não diz absolutamente nada sobre quais relações jurídicas sofrerão seus efeitos, ou seja, não traz indícios sobre o tipo de relação que deverá ser disciplinada pelos direitos fundamentais. Somente se se pressupõe que direitos fundamentais devem produzir efeitos – diretos – em todas as relações jurídicas possíveis é que se poderá interpretar o § 1º do art. 5º como aplicável – de imediato – às relações entre particulares”[8].
Para Ingo Sarlet (apud Costa, 2007, pp. 109/110), o que pretendeu o Constituinte, com a previsão no sentido de que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, foi evitar um esvaziamento dos direitos fundamentais, impedindo que permaneçam letra morta no texto da Constituição. A par de tal premissa, opina que ao dispositivo em exame é possível atribuir, sem sombra de dúvidas, o mesmo sentido outorgado ao art. 18.1 da Constituição da República Portuguesa – o qual estabelece, precisamente, que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
Portanto, embora não se refira de modo expresso à vinculação dos particulares, parece esposar o pensamento de que essa dimensão de eficácia jusfundamental encontra guarida no preceito constitucional em estudo.
Todavia, cumpre esclarecer que alguns direitos fundamentais são oponíveis exclusivamente ao Estado e que a produção direta de efeitos nem sempre ocorrerá. A aplicação será direta apenas se o enunciado sua natureza o permitirem e quando o direito fundamental for aplicável a esta espécie de relação.
Os modelos que admitem os efeitos diretos ou indiretos dos direitos fundamentais nas relações entre particulares não são necessariamente inconciliáveis ou incompatíveis entre si. Novelino (2008, p. 235) defende que
“A partir do momento em que se admite aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações entre particulares, torna-se possível uma harmonização dos dois modelos. O ideal é que nesta espécie de relação ocorra a irradiação dos efeitos dos direitos fundamentais por meio de lei. Todavia, não existindo a mediação por parte do legislador no sentido de determinar o alcance dos direitos fundamentais na vinculação dos particulares, tais direitos podem (e devem) ser aplicados diretamente[9].”
Importa ainda observar que os defensores da eficácia horizontal direta não sustentam a sobreposição das ponderações judiciais em relação às legislativas. Havendo regulação específica, desde que compatível com a Constituição e os direitos fundamentais, deve prevalecer aplicação da norma infraconstitucional. Somente na hipótese de serem deficitárias ou manifestamente inconstitucionais é que deverão ser afastadas as concretizações legislativas.
Também não se defende a prevalência absoluta dos direitos fundamentais sobre a autonomia da vontade. Ao contrário, esta constitui um fundamento da dignidade humana e toda natureza racional. Deve, portanto, receber proteção constitucionalmente adequada, e deve ser maior na medida em que a vontade seja autêntica e efetivamente livre (Novelino, 2008, p. 236).
3.1 A vinculação dos particulares na jurisprudência do STF
Existe uma uniformidade na doutrina brasileira, contudo, quando se trata de apontar os arestos em que o Supremo Tribunal Federal enfrentou de modo mais direto a questão da eficácia entre particulares dos direitos fundamentais: trata-se de duas paradigmáticas decisões da década de 90, que estão em praticamente todas as obras jurídicas nacionais sobre o tema (Costa, 2007, p. 149).
Na primeira delas, tomada no Recurso Extraordinário nº 158.215/RS, também relatado pelo Min. Marco Aurélio, o Pretório Excelso decidiu que ato de exclusão praticado no âmbito de entidade privada não se furta à observância do direito fundamental ao devido processo legal, a fim de assegurar a ampla defesa. A ementa é transcrita:
DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. COOPERATIVA - EXCLUSÃO DE ASSOCIADO - CARÁTER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa[10].
No ano seguinte, um dissídio individual configurado entre funcionário brasileiro e a empresa aérea Air France, no qual o recorrente pleiteava o direito à isonomia salarial em relação aos empregados de origem francesa, levou o STF a declarar a eficácia do direito fundamental à igualdade naquela relação entre particulares:
CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido.[11]
Uma década se passou sem que o assunto fosse retomado pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal. O silêncio hermenêutico somente veio a ser quebrado em 2005, quando novamente o tema da exclusão de sócio de associação privada veio à tona. Veja-se a ementa:
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. Recurso extraordinário desprovido[12].
A União Brasileira de Compositores (UBC) desligara, por motivos irrelevantes, um de seus sócios sem que lhe fosse oportunizada apresentação de defesa. O ato foi anulado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em decisão que ensejou a interposição do recurso extraordinário pela associação privada.
A relatora do processo, Minª Ellen Gracie[13], posicionou-se em favor do provimento do recurso, argumentando que “as associações privadas têm liberdade para se organizar e estabelecer normas de funcionamento e de relacionamento entre os sócios, desde que respeitem a legislação em vigor”. Além disso, segundo ela, como “cada indivíduo, ao ingressar numa sociedade, conhece suas regras e seus objetivos”, então “a controvérsia envolvendo a exclusão de um sócio de entidade privada resolve-se a partir das regras do estatuto social e da legislação civil em vigor”, concluindo que é “totalmente descabida a invocação do disposto no art. 5º, LV da Constituição para agasalhar a pretensão do recorrido de reingressar nos quadros da UBC”.
O Min. Gilmar Ferreira Mendes[14] – não coincidentemente, expoente no conhecimento do jusconstitucionalismo alemão –, após pedir vista dos autos, proferiu aquele que seria o voto vencedor, no qual teceu minuciosas considerações acerca do tema da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Dentre as passagens mais significativas, salientou que não era sua intenção “discutir no atual momento qual a forma geral de aplicabilidade dos direitos fundamentais que a jurisprudência desta Corte professa para regular as relações entre particulares”; importava-lhe, isto sim, “ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já possui histórico identificável de uma jurisdição constitucional voltada para a aplicação desses direitos às relações privadas”.
Finalmente, vale aqui repisar a constatação do Min. Gilmar Ferreira Mendes, no sentido de que não mais se discute que o Supremo Tribunal Federal acolhe a idéia de que os direitos fundamentais aplicam-se às relações privadas; falta ainda esclarecer o modo através do qual esta eficácia se manifesta. Resta aguardar que nos anos vindouros, a corte possa estabelecer os contornos definitivos sobre o assunto com a precisão dogmática que se deseja.
CONCLUSÃO
Os direitos fundamentais não possuem a finalidade de solucionar diretamente conflitos de direito privado, mas devem ser aplicados através de meios colocados à disposição pelo próprio ordenamento jurídico.
Isto se dá porque, na qualidade de princípios constitucionais, e por força do princípio da unidade do ordenamento jurídico, ou ainda, pelo princípio da máxima efetividade, eles devem ser aplicados relativamente a toda a ordem jurídica, inclusive privada.
Entre as teorias mais relevantes, destacamos as teorias da ineficácia horizontal, da eficácia horizontal indireta e da eficácia horizontal direta.
A primeira, vigente nos Estados Unidos, negando qualquer interferência dos direitos fundamentais nas relações privadas, mas, como vimos, tem seu ponto fraco ao se evidenciar que a Corte Americana utiliza-se do subterfúgio de equiparar atos privados a estatais.
A segunda, por sua vez, defende que cabe ao legislador mediar a aplicação dos direitos fundamentais aos particulares, sem descuidar da tutela da autonomia da vontade, de modo a estabelecer uma disciplina das relações privadas que se revele compatível com os valores constitucionais.
Já para a terceira, justifica-se a eficácia direta dos direitos fundamentais na esfera privada, principalmente quando a dignidade da pessoa humana estiver sob ameaça ou diante de uma ingerência indevida na esfera de intimidade pessoal, caracterizando assim, um mecanismo de correção de desigualdades sociais.
Finalmente, após analisar alguns julgados do Supremo Tribunal Federal, percebemos que o tema, apesar de não ocupar posição de destaque, nem ser objeto de maior preocupação naquela Corte, já parece ter aceitação ampla, uma vez que, sempre que instado a manifestar-se, tem apresentado decisões no sentido de admitir a vinculação dos particulares à observância dos preceitos constantes dos direitos fundamentais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. “Direitos fundamentais na constituição de 88”. Themis: Revista da ESMEC, Fortaleza, v. 1, n. 2, p. 109-124, 1998. Disponível em:
SARMENTO, Daniel. “A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil”. A nova interpretação constitucional: Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Luís Roberto Barroso [org.]. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 193-284.
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VIEIRA, Carolina Fontes. Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006.
[1] COCURUTTO, Ailton. Os Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Inclusão Social. São Paulo: Malheiros, 2009
[2] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Et. al. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
[3] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2.ed. Rev. Atual. e ampl. São Paulo: Método, 2008
[4] SILVA, Vírgilio Afonso da. “Direitos Fundamentais e Relações entre Particulares”. Revista DireitoGV. V.1. n. 1. Maio de 2005. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2005.
[5] COSTA, Adriano Pessoa da. Direitos Fundamentais entre Particulares na Ordem Jurídica Constitucional Brasileira. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2007.
[6] Ob. cit. p. 12.
[7] Ob. cit. p. 10.
[8] Ob. cit. p. 11.
[9] Ob. cit. p. 10.
[10] STF – RE 158215/RS – 2ª Turma – Rel. Min. Marco Aurélio – DJU 07/06/1996.
[11] STF – RE 161243/DF – 2ª Turma – Rel. Min. Carlos Velloso – DJ 19/12/1997.
[12] STF – RE 201819 / RJ – 2ª Turma – Relª. Minª. Ellen Gracie – DJ 27/10/2006.
[13] Idem.
[14] Ibidem.
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