ESCOLA SUPERIOR DOM HELDER CÂMARA
COORDENAÇÃO DO Curso De Pós-Graduação lato sensu em“Segurança Pública e Complexidade”
DANIEL BARCELOS FERREIRA
A ANÁLISE DA LEGÍTIMA DEFESA NO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE:
A (IM) POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DA LEGÍTIMA DEFESA NO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE
Tema Monográfico: Segurança Pública e Direitos Humanos
Belo Horizonte, 2008.
Daniel Barcelos Ferreira
A ANÁLISE DA LEGÍTIMA DEFESA NO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE:
A (IM) POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DA LEGÍTIMA DEFESA NO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE
Tema Monográfico: Segurança Pública e Direitos Humanos
Este trabalho monográfico é resultado final do Curso de Pós-Graduação lato sensu em “Segurança Pública e Complexidade”, promovido pela Escola Superior Dom Helder Câmara, integrando a RENAESP (Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública) – Ministério da Justiça; a partir de convênio celebrado em 2007.
Orientador: Professor Doutor João Batista Moreira Pinto
Co-orientador: Professor Jésus Trindade Barreto Júnior
Belo Horizonte, 2009.
Daniel Barcelos Ferreira
O presente trabalho monográfico tem por objetivo a análise da situação fático-jurídica da prisão em flagrante de indivíduo que atuou em legítima defesa, sob o aspecto das consequências da prisão e da amplitude da análise do delegado de polícia no auto de prisão em flagrante. A dissertação enfoca a atuação da autoridade policial à luz do direito processual penal constitucional, inarredável após a carta magna de 1988 que trouxe diversos princípios e normas de aplicação obrigatória ao ordenamento jurídico infraconstitucional. A releitura do Código de Processo Penal de 1941 a partir de uma interpretação conforme a Constituição demonstra não só a possibilidade, mas a obrigatoriedade de que as autoridades policiais analisem as excludentes de ilicitude por ocasião da formalização do auto de prisão e da decisão fundamentada pela sua efetivação ou desconsideração sob o aspecto do encarceramento, de forma à estrita e inafastável obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: prisão em flagrante – legítima defesa – delegado de polícia – dignidade da pessoa humana
ABSTRACT
The present monographic has objective the analysis of the legal situation
of the caught in the act of individual that acted in self defense, under
the aspect of the consequences of the arrest and the wide of the analysis
of the Policy Agent Commission at this moment. The paper focuses the
performance of the police authority to the light of the constitutional,
and the criminal procedural law the great letter of 1988 that it brought
diverse principles and norms of obligator application to the
infraconstitutional legal system. The re-read of the Criminal Procedure
Code of 1941 to the agreement interpretation the Constitution not only
demonstrates the possibility, but the obligatoriness the police
authorities analyze the exculpatory ones of illegality for occasion to the
made of auto of arrest and the decision based for to do or disrespect
under the aspect of the imprisonment, of form to the strict and out of
obedience the beginning of the dignity of the person the human being.
Key words: caught in the act - self defense - commission agent- dignity of
the person human being
SUMÁRIO
1 – INTRODUÇÃO ............................................................................................................
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2 – A NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL...................................................................
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2.1 – O processo penal pós Constituição de 1988.............................................................
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2.2 – Os princípios constitucionais penais e processuais penais.....................................
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2.3 – A prisão cautelar no ordenamento jurídico pátrio.................................................
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2.4 – Espécies de prisão cautelar.......................................................................................
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2.4.1 – A prisão em flagrante.............................................................................................
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2.4.2 – A prisão temporária................................................................................................
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2.4.3 – A prisão preventiva.................................................................................................
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2.5 – Os princípios norteadores das prisões cautelares...................................................
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3 – A PRISÃO EM FLAGRANTE E SUAS ETAPAS: DETENÇÃO X RATIFICAÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE.........................................................
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3.1 – Situação fática: a atuação dos agentes da autoridade policial...............................
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3.2 – Situação jurídica preliminar: a atuação da Polícia Civil.......................................
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3.3 – A lavratura do auto de prisão em flagrante e suas conseqüências........................
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4 – A ATUAÇÃO DO DELEGADO DE POLÍCIA – A AMPLITUDE DA ANÁLISE JURÍDICA DO FATO.....................................................................................
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4.1 – A análise jurídica do delito........................................................................................
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4.2 – A obrigatoriedade de análise da legítima defesa no auto de prisão em flagrante
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5 – SITUAÇÃO JURÍDICA POSTERIOR – A ATUAÇÃO DO JUIZ DE DIREITO DIANTE DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE...................................................
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6 – O DIREITO PENAL E A REALIDADE....................................................................
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7 – CONCLUSÃO...............................................................................................................
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REFERÊNCIAS..................................................................................................................
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1 INTRODUÇÃO
O sistema policial brasileiro se funda no art. 144 da Constituição da República, onde se prevêem os órgãos policiais e sua atribuição. Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares. Interessa-nos aqui a atuação da Polícia Judiciária, no âmbito da união, Polícia Federal e no dos Estados e Distrito Federal, as Polícias Civis.
As Polícias Civis, compreendendo-se aqui a Federal, são dirigidas por delegado de polícia de carreira, profissional de inegável carreira jurídica, consoante disposição constitucional derivada, no Estado de Minas Gerais, onde se dispõe no art. 140, § 3º que “para o ingresso na carreira de Delegado de Polícia, é exigido o título de Bacharel em Direito e concurso público, realizado com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado de Minas Gerais...”.
São atribuições das Polícias Civis as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Significa dizer que as Polícias Civis trabalham na ponta da persecução penal, através da realização de investigação criminal com o inquérito policial, procedimento administrativo com previsão legal, prazos e formas de controle bastante delineados no ordenamento jurídico pátrio. Ademais, é ainda função das Polícias Civis o apoio ao Poder Judiciário e à eficiência e eficácia de suas decisões, nos termos previstos na lei. O sistema brasileiro é exceção no sentido de trazer na chefia da investigação policial, profissional com formação jurídica, o que, se por um lado é alvo de críticas por muitos daqueles que possuem um conhecimento superficial e genérico sobre o sistema, é motivo de aplausos por parte daqueles que possuem larga experiência jurídica. Nas palavras de Fernando Tourinho da Costa Filho:
“A nosso ver, o sistema brasileiro supera, em muito, os demais. Parece-nos ser o melhor de todos. Poderíamos até dizer, parafraseando Winston Churchill quando afirmava que “a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros”, expressão também usada por Jean-Claude Soyer a respeito da Justiça Francesa (La procédure pénale bilan dês reformes depuis 1993, Paris, Dalloz, 1995, p. 75): a nossa investigação preliminar ou preparatória para o exercício do direito de ação, conhecida como Inquérito Policial, é a mais abominável de todas, à exceção de todas as outras.” (TOURINHO, 2008).
O Brasil se configura em um Estado Democrático de Direito, fundado em uma Constituição que delineia a estrutura e organização dos poderes e delimita direitos e garantias constitucionais, tendo como um dos mais importantes princípios a promoção da dignidade da pessoa humana, ou seja, o absoluto respeito e a tutela aos atributos da personalidade que formam cada ser humano tal quais suas particularidades. Não está em perfeita consonância com os objetivos constitucionais a previsão de que a chefia da investigação criminal esteja a cargo de profissional detentor de formação jurídica própria dos operadores do Direito para que também ele, na ponta da persecução penal, possa ser o primeiro promotor e defensor dos direitos humanos, a partir da completa obediência aos preceitos constitucionais e à legislação pátria? Não há como se responder de forma negativa.
Nessa concepção, é coerente ou viável prescindirmos de uma autoridade pública com formação jurídica adequada, presente vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, acessível diretamente, e com condições de analisar a constitucionalidade e legalidade de quaisquer atos tendentes a restringir a liberdade e que possam configurar ofensa aos direitos e garantias fundamentais no calor dos acontecimentos, ou seja, de imediato? A nova ordem constitucional que exige a releitura de todo o ordenamento pátrio não tem nesse profissional um de seus mais eficazes e eficientes instrumentos da democracia?
Essas reflexões iniciais são inevitáveis e as respostas nos parecem óbvias e evidentes. O fato de o delegado de polícia ser bacharel em direito é ponto positivo e que deve ser devidamente valorado e reconhecido em nosso ordenamento jurídico.
Extrai-se a importante missão do delegado de polícia de analisar, imediatamente, os aspectos de constitucionalidade e legalidade da detenção daqueles que lhes são apresentados como presos em flagrante, geralmente, por agentes militares, de forma a adotar as providências e salvaguardar a liberdade, os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, ali, ainda enquanto os fatos contemplam toda sua ardência, momento em que a carga emocional de envolvidos atinge seu ápice e a ordem pública precisa ser restaurada.
É sobre tão imprescindível mister que desenvolvemos a modesta dissertação, pontuando sobre a atuação do delegado de polícia como titular da investigação e mais, como defensor dos indivíduos que atuarem com autorização legal, ainda que a conduta possua a aparência de delito, tal qual na legítima defesa.
2 A NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL
2.1 – O processo penal pós Constituição de 1988
É concreta a necessidade de reformulação do Código de Processo Penal de 1941 de forma ampla considerando-se o gritante descompasso de suas previsões com nova ordem constitucional e com os pactos internacionais de proteção aos direitos humanos.
É óbvia a subordinação do Código de Processo Penal à Constituição de 1988, mas, é imprescindível insistir-se na releitura do diploma legal, coadunando-o com a Carta Maior, de forma que eventual inércia legislativa não inviabilize a absoluta aplicação dos preceitos constitucionais, efetivando-se o novo processo penal constitucional.
Aliás, todo o ordenamento jurídico infraconstitucional tem se “constitucionalizado”. Fala-se agora, conforme a mais moderna e sofisticada doutrina, em Direito Civil Constitucional, Direito Processual Civil Constitucional, etc., e o grande pilar dessa constitucionalização do ordenamento é a releitura de legislações e a hermenêutica baseadas no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Os bens e valores existenciais da pessoa humana devem pesar na análise da aplicação da lei, buscando-se, sobretudo, estabelecer tais valores como superiores na ordem pública.
Na seara do Direito Processual Penal, é gritante a necessidade dessa “constitucionalização”. Conforme o Professor Eugênio Pacelli de Oliveira:
“O nosso CPP foi elaborado com bases notoriamente autoritárias, por razões óbvias de origem. O princípio fundamental que norteava o CPP era, como se percebe, o da presunção da culpabilidade. Manzini, penalista italiano que ainda goza de grande prestígio entre nós, ria-se daqueles que pregavam a presunção de inocência, apontando uma suposta inconsistência lógica no raciocínio, pois, dizia ele, como justificar a existência de uma ação penal contra quem seria presumivelmente inocente?” (PACELLI, 2004).
Uma análise ainda que superficial do CPP de 1941 autoriza-nos, ainda conforme as colocações de Pacelli, a algumas conclusões inquestionáveis, exempli gratia, o réu é tratado como culpado em potencial, especialmente no caso de prisão em flagrante; o interrogatório do réu é realizado como meio de prova exclusivamente, não havendo intervenção das partes. É fato que na década de 70 algumas alterações legislativas flexibilizaram alguns institutos.
Percebe-se, pois, que o CPP de 1941 preocupava-se exacerbadamente com a segurança pública, fundando-se em base nitidamente autoritária e relegando a segundo plano os direitos do investigado ou réu. O Código de Processo Penal de 1941 fundou-se em doutrina italiana, de cunho fascista considerável.
A nova Carta Magna traçou direção exatamente oposta em 1988, especialmente através da previsão de direitos e garantias individuais e de princípios fortes como o da presunção da inocência. Não que não estivessem contemplados no ordenamento constitucional anterior, entretanto, nele, de forma minimizada e mais tímida, sem se considerar ainda o aspecto cultural e histórico de sua análise e aplicabilidade. Ninguém mais, segundo a ordem constitucional, poderá ser considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Não se tratam de pequenas observações ou mitigações de institutos processuais penais, mas de extrema e radical modificação da estrutura do direito processual penal. O investigado ou réu que antes eram tratados como objetos do processo (visto em última análise especialmente como instrumento de formalização de uma pena que já se sabia que seria aplicada) agora são partes e devem ser tratados em pé de igualdade com o Estado acusador, gozando de amplos instrumentos de defesa para buscar a prova de sua inocência.
O Professor Eugênio Pacceli muito bem expõe:
“para nós, não é mais admissível compreender e muito menos seguir aplicando o processo penal sem a filtragem constitucional. O Código de Processo Penal de 1941 não está superado apenas pelo tempo. Está superado também por força da incompatibilidade normativa com o Texto de 1988, em cujo bojo se construiu um sistema de garantias individuais com abrangência suficiente para fazer evaporar diversos dispositivos do nosso CPP.” (PACELLI, 2004).
Nesse sentido, o próprio art. 5º da Constituição trouxe diversos princípios aplicáveis obrigatoriamente ao processo penal.
2.2 - Os Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais
Não se pretende aqui exaurir a questão dos princípios constitucionais aplicáveis ao novel e obrigatório processo penal constitucional, mas tão somente explicitar alguns deles, demonstrando-se de forma inequívoca a nova face do instituto de aplicação do Direito ao caso concreto na esfera penal.
a) Princípio da Dignidade da Pessoa (art. 1º, III da CRFB/88) – todo o direito pátrio deve voltar-se agora para a dignidade da pessoa. Dignidade é preceito fundamental de existência da pessoa e sustenta os direitos da personalidade, entendendo-se assim como o conjunto de valores inerentes às esferas física, psíquica e moral de cada indivíduo em sua singularidade e que devem ser respeitados. Dentre os direitos da personalidade estão a vida (direito por excelência), a honra, o nome, etc.;
b) Princípio da Legalidade (art. 5º, II da CRFB/88) – ninguém pode ser compelido a fazer algo ou a omitir-se em relação a alguma conduta sem que haja previsão legal em tal sentido;
c) Princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV da CRFB/88) – qualquer pessoa poderá bater às portas do Poder Judiciário para que seja analisada sua petição, acreditando se tratar de lesão ou ameaça de lesão a direito seu ou de terceiro em determinados casos;
d) Princípio da retroatividade benéfica da lei penal (art. 5º, XL da CRFB/88) – implica no fato de que a lei penal somente retroagirá para alcançar fatos ocorridos antes de sua vigência em caso de ser mais benéfica ao réu ou investigado;
e) Princípio da pessoalidade da pena (art. 5º, XLV da CRFB/88) – o Estado não poderá responsabilizar terceiros pela infração penal praticada pelo réu. Ele e apenas ele poderá ser apenado por sua conduta;
f) Princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV da CRFB/88) – nenhuma pessoa poderá ser privada de sua liberdade ou de seus bens senão através do devido processo legal com todas as garantias e instrumentos de defesa previstos no ordenamento constitucional;
g) Princípio da inocência (art. 5º, LVII da CRFB/88) – somente será considerada culpada a pessoa condenada e que, em relação à sentença não caiba mais recurso;
h) Princípio restritivo da prisão (art. 5º, LXI da CRFB/88) – não haverá prisão que não seja em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, à exceção das prisões militares em casos específicos;
i) Princípio da excepcionalidade da prisão (art. 5º, LXVI da CRFB/88) – a pessoa somente será levada a prisão ou nela mantida se não for caso de liberdade provisória admitida por lei;
j) Princípio da liberdade de locomoção (art. 5º, LXVIII da CRFB/88) – qualquer limitação ou ameaça de limitação violenta ou coativa à liberdade de locomoção das pessoas será repelida por habeas corpus, havendo ilegalidade ou abuso de poder.
Mencionem-se ainda os princípios implícitos da ultima ratio, fagmentariedade, culpabilidade, proporcionalidade, adequação social e insignificância, somente para se ter idéia da amplitude de princípios de observância obrigatória à luz do processo penal constitucional
Poder-se-ia enumerar quase meia centena de princípios constitucionais aplicáveis ao novo processo penal, no art. 5º ou espalhados pelo texto constitucional, mas limitamo-nos a explicitá-los em número de dez objetivando demonstrar o radicalismo da transformação do processo penal, exigindo-se a releitura do CPP de 1941 sob pena de desobediência à Constituição.
2.3 – A prisão cautelar no ordenamento jurídico pátrio
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, traz em seu art. 5º, LIV que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Trata-se de previsão inarredável de direito individual que tutela a liberdade das pessoas, uma das maiores e mais palpáveis expressões da dignidade da pessoa humana, princípio também consagrado na Carta Magna no art. 1º, III e que, atualmente, tem servido de norte a todo o ordenamento jurídico pátrio.
No mesmo art. 5º, LXI, afirma-se que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. Por sua vez, o art. 5º, LXVII dispõe que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia” (releitura a partir de decisão do STF sobre o descabimento da prisão civil do depositário infiel). Portanto, à exceção dos casos militares previstos e da prisão civil por débito alimentar, cujos enfrentamentos não foram objeto da pesquisa, temos que a prisão no Brasil, em razão de expressa disposição constitucional somente terá cabimento em duas hipóteses: flagrante delito ou ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente.
Necessária ainda se faz a distinção entre prisão cautelar e prisão penal ou prisão sanção.
Toda prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória é considerada provisória e, portanto, cautelar. Cautelar no sentido de que sua deflagração e manutenção somente serão verificadas em havendo uma razão preponderante de ordem pública, geralmente verificada através de requisitos objetivos e subjetivos previstos em lei. No ordenamento processual penal atual estão previstas a prisão em flagrante, a prisão temporária e a prisão preventiva. Pretendemos crer aqui que, com a recente reforma da legislação processual penal em 2008, não há mais que se cogitar em prisão decorrente de pronúncia ou prisão decorrente de sentença condenatória recorrível.
Por outro lado, como a própria nomenclatura está a nos indicar, prisão pena ou prisão sanção é aquela decorrente do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Trata-se, evidentemente, de sanção imposta pelo Estado Juiz àquele cuja culpa (leia-se, responsabilidade penal) restou demonstrada através do devido processo legal, onde lhe foram asseguradas todas as garantias constitucionalmente previstas como o contraditório e a ampla defesa, incluindo-se aí todos os recursos cabíveis às decisões judiciais.
2.4 – Espécies de prisão cautelar
2.4.1 – A prisão em flagrante
De acordo com o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa (Ministério da Educação – 11ª edição – 1986 – pag. 494) flagrante é “ardente; acalorado; evidente...”. A expressão advém do latim flagrare, que significa exatamente ardência, flagrância. Extrai-se uma nítida relação de imediatismo entre a conduta criminosa e a prisão, apesar de que o rol de modalidades da prisão em flagrante tenha se distanciado em certa medida desse imediatismo, como veremos.
Nos ensinamentos do Professor Hélio Tornaghi,
“flagrante é, portanto, o que está a queimar, e em sentido figurado, o que está a acontecer” (TORNAGHI, 1990).
Já José Frederico Marques aponta:
“flagrante delito é o crime cuja prática é surpreendida por alguém no próprio instante em que o delinqüente executa a ação penal ilícita.” (JOSÉ FREDERICO MARQUES, 2002).
Na lição de Júlio Fabbrini Mirabete:
“flagrante é o ilícito patente, irrecusável, insofismável, que permite a prisão do seu autor, sem mandado, por ser considerada a certeza visual do crime”. (MIRABETE, 1997).
O art. 301 do Código de Processo Penal assevera que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. Logo em seguida, em seu art. 302, dispõe:
“considera-se em flagrante delito quem: I – está cometendo a infração penal; II – acaba de cometê-la; III – é perseguido, logo após, pela autoridade pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.” (Vademecum Referenciado da Legislação Brasileira, 2007).
Portanto, a prisão em flagrante é aquela ocorrida no momento da execução do crime, sendo o agente apanhado, conforme o jargão popular, “com a boca na botija” ou imediatamente após cometê-lo e, ainda, nas hipóteses de ser perseguido ou encontrado algum tempo depois em situações que levem à presunção de que foi o autor do crime.
Nota-se que em relação às duas primeiras hipóteses de prisão em flagrante, nenhuma dúvida se impõe. O agente é preso no exato momento em que pratica o crime ou no instante imediatamente posterior à sua prática. Nas outras duas situações, a própria redação do artigo gera dúvidas e discussões.
No caso de perseguição, o legislador previu como situação de flagrância desde que “logo após” a prática da infração penal, mas o que vem a ser “logo após”? A melhor doutrina e jurisprudência entendem que o importante aqui é a relação de imediatismo entre a prática da infração e o início da perseguição, requisito imprescindível à caracterização do estado flagrancial. Não importa a visibilidade da conduta, mas, a visibilidade da fuga que, analisada com outros tantos fatores peculiares em cada caso concreto poderá levar à visualização de que se trate do autor do crime.
A última hipótese também traz termo eivado de indefinição. É a do agente que é encontrado, “logo depois”, com instrumentos, armas ou objetos que levem à presunção de ser ele o autor do crime. Mas o que vem a ser logo depois? Mais uma vez se exige a relação de imediatismo para que se vislumbre o estado de flagrância, sem o qual, não se tratará da espécie acautelatória.
A prisão em flagrante não se dará por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, mas, sim, por formalização e decisão da autoridade policial competente, nas situações cabíveis, conforme ampla análise dos institutos jurídicos constitucionais e infraconstitucionais e é exatamente aqui que residiu a pesquisa originária do trabalho monográfico, conforme será amplamente demonstrado em capítulo próprio.
2.4.2 – A prisão temporária
A prisão temporária está prevista na lei 7.960/1989, tratando-se de instituto que encontra resistência em parte da doutrina, visto até como inconstitucional por alguns estudiosos do direito.
A prisão temporária é cabível limitadamente no caso de delitos mais graves, exaustivamente arrolados no art. 1º, I da legislação citada. Casos como o homicídio, o sequestro, o estupro, o genocídio, etc. Nota-se, preliminarmente, que tal espécie de prisão cautelar somente e tão somente terá cabimento nos crimes previstos na lei, sendo impossível sua deflagração em outros casos.
A lei prevê a existência de três requisitos para a decretação da prisão cautelar, quais sejam, o fato de ser a medida imprescindível para as investigações do inquérito policial, de o investigado não possuir residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade e ainda que haja fundadas razões de que o desfavorecido seja autor ou partícipe de uma das espécies de crimes previstas no rol taxativo da legislação.
No primeiro requisito, denota-se inequivocamente que o instituto da prisão temporária destina-se à eficiência da investigação policial. Trata-se de ferramenta cabível quando imprescindível, ou seja, nas situações em que, sem ela, seja impossível o andamento e eficácia das investigações no inquérito policial.
No que se refere ao segundo requisito, temos que somente a impossibilidade de identificação do suspeito possa sustentar o decreto cautelar. O fato de ele não possuir residência fixa pode interessar, em última análise, ao instituto da prisão preventiva, que veremos a seguir.
Extrai-se, sem qualquer dúvida, que a prisão temporária somente poderá ser decretada por representação da autoridade responsável pela investigação. É que ela e somente ela terá legitimidade para avaliar a imprescindibilidade da medida. Portanto, em se tratando de inquérito policial, caberá ao Delegado de Polícia a valoração fática e jurídica das circunstâncias a fim de que remeta ao Poder Judiciário o pleito, cuja necessidade, uma vez reconhecida, resultará em ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária para determinar a restrição da liberdade. E mais, não obstante haver previsão legal de duração da prisão temporária, qual seja de 05 (cinco) dias em crimes não hediondos e 30 (trinta) dias nestes e nos assemelhados, se, durante o período o Delegado de Polícia não mais vislumbrar a necessidade da privação, assim informará ao Juízo competente que, obrigatoriamente, deverá determinar a soltura do suspeito. O fato é que, se a prisão é instrumento da investigação e o responsável por esta afirma categoricamente que seus requisitos não mais se revelam, alternativa não caberá ao Juiz.
2.4.3 – A prisão preventiva
A prisão preventiva está prevista no art. 311 e seguintes do Código de Processo Penal. Pela lei, será cabível durante o inquérito policial ou no decorrer do processo penal, desde que se trate de crime punido com reclusão; o réu seja reincidente em crime doloso ou ainda se tratando de violência doméstica, nos termos da Lei 11.340/06.
A aplicação da prisão preventiva exige ainda a prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, o que, aliás, se apresentam como requisitos para o oferecimento da denúncia.
A prisão preventiva será decretada, presentes os requisitos legais, com o objetivo de se garantir a ordem pública, a ordem econômica, para assegurar a aplicação da lei penal (diante de indícios de pretensão de fuga do investigado ou réu) e por conveniência da aplicação da lei penal (diante da probabilidade de que o réu, em liberdade, interfira na produção de provas, especialmente através da intimidação de testemunhas).
A decretação da prisão preventiva dependerá da conjugação de requisitos subjetivos e objetivos, analisados em cada caso concreto, sempre, como medida de exceção, assim como toda prisão cautelar.
2.5 – Os princípios norteadores das prisões cautelares
O cabimento de prisões cautelares no processo penal constitucional está vinculado à excepcionalidade em razão dos princípios que o norteiam.
É fato que o CPP de 1941 partia da premissa de antecipação da culpabilidade, admitindo, por exemplo, a imposição de prisão cautelar como simples consequência da pronúncia do réu ou em razão da prolação de sentença penal condenatória recorrível, prisões que foram batizadas pela doutrina de prisões processuais. Bastava a previsão da lei, de forma objetiva, ou seja, sem qualquer explicitação subjetiva, sem qualquer razão cautelar específica.
Com a nova ordem constitucional, as prisões cautelares passaram a se tratar de excepcionalidade, com cabimento apenas e tão somente a partir de fundamentação concreta de sua necessidade e sua adequação à legislação. Agora, as prisões cautelares assim são denominadas em razão da finalidade de acautelamento de interesses de ordem pública, os quais deverão estar devidamente fundamentados na ordem escrita que as decretar.
Decorrem-se daí os princípios da indispensabilidade e da necessidade, impondo que a decretação da prisão cautelar somente terá lugar se absolutamente necessária e indispensável aos interesses de ordem pública que exigem tutela.
Imprescindível ainda é o princípio da proporcionalidade, significando que a análise de decretação de prisão cautelar deve lançar vista aos resultados finais do processo, já que este é a razão de existir da custódia cautelar. Impõe-se verificar se, ao final do processo, haverá possibilidade e probabilidade de aplicação de sanção privativa da liberdade, de forma que, se não for possível vislumbrá-la, não será proporcional efetivá-la como meio enquanto o próprio fim não chegará a tanto.
Nesse sentido, trazemos o ensinamento do Professor Eugênio Pacelli de Oliveira:
“Embora a nossa legislação, ao contrário da portuguesa e da italiana, não faça referência expressa à necessidade da adoção de critérios de proporcionalidade na fixação das prisões cautelares, não podemos deixar de reconhecer que o CPP não descurou completamente de semelhante preocupação. Como a prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória é sempre uma medida cautelar, faz-se necessário que na sua aplicação não se perca de vista os resultados finais do processo, o que, em última análise, é a sua razão de ser. Com efeito, a prisão cautelar é utilizada, e somente aí se legitima, como instrumento de garantia da eficácia da persecução penal, diante de situações de risco real devidamente previstas em lei. Se a sua aplicação pudesse trazer consequências mais graves que o provimento final buscado na ação penal, ela perderia a sua justificação, passando a desempenhar função exclusivamente punitiva. A proporcionalidade da prisão cautelar é, portanto, a medida de sua legitimação, a sua ratio essendi”.(PACELLI, 2004).
O professor Fernando Capez ensina:
“no entanto, a prisão provisória somente se justifica, e se acomoda dentro do ordenamento pátrio, quando decretada com base no poder geral de cautela do juiz, ou seja, desde que necessária para uma eficiente prestação jurisdicional. Sem preencher os requisitos gerais da tutela cautelar (fumus boni iuris e periculum in mora), sem necessidade para o processo, sem caráter instrumental, a prisão provisória nada mais seria do que uma execução da pena privativa da liberdade antes da condenação transitada em julgado, e, isto sim, violaria o princípio da presunção da inocência.” (CAPEZ, 2004).
Outro não é o posicionamento pacífico da jurisprudência brasileira, aqui exposto através de decisões do Superior Tribunal de Justiça:
“HC 93554/SP HABEAS CORPUS 2007/0255713-0
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Ministro FELIX FISCHER (1109)
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02/12/2008
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DJe 09/02/2009
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PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO.
ROUBO MAJORADO (TRÊS VEZES). PRISÃO EM FLAGRANTE. PEDIDO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO NA DECISÃO QUE A INDEFERIU. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA PROLATADA.
INEXISTÊNCIA DE NOVOS FUNDAMENTOS.
I - A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional (HC 90.753/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 22/11/2007), sendo exceção à regra (HC 90.398/SP, Primeira Turma. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJU de 17/05/2007).
Assim, é inadmissível que a finalidade da custódia cautelar, qualquer que seja a modalidade (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva, prisão decorrente de decisão de pronúncia ou prisão em razão de sentença penal condenatória recorrível) seja deturpada a ponto de configurar uma antecipação do cumprimento de pena (HC 90.464/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJU de 04/05/2007). O princípio constitucional da não-culpabilidade se por um lado não resta malferido diante da previsão no nosso ordenamento jurídico das prisões cautelares, por outro não permite que o Estado trate como culpado aquele que não sofreu condenação penal transitada em julgado (HC 89501/GO, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 16/03/2007). Desse modo, a
constrição cautelar desse direito fundamental (art. 5º, inciso XV, da Carta Magna) deve ter base empírica e concreta (HC 91.729/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 11/10/2007).
II - O indeferimento do pedido de liberdade provisória feito em favor de quem foi detido em flagrante deve ser, em regra, concretamente fundamentado, o que, na hipótese dos autos não ocorreu(Precedentes).
III - No caso, a r. decisão que indeferiu o pedido de liberdade provisória não trouxe fundamentos concretos aptos a justificar a necessidade da custódia cautelar. A circunstância de o paciente ter sido preso em flagrante e armado é ínsita ao próprio delito de roubo
majorado não sendo motivo apto para o encarceramento provisório.
IV - A superveniência da r. sentença condenatória não supre a ilegalidade, vez que o r. decisum não trouxe qualquer fundamentação adicional concreta que pudesse justificar, à luz do art. 312 do CPP, a manutenção, sob novo título, da custódia do paciente, que, antes
do trânsito em julgado da condenação, permanece sob o cunho da cautelaridade e da excepcionalidade (Precedente).
Ordem concedida.” (acessível no sítio: stf.jus.gov.br)
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Nota-se, sob todos os aspectos que a prisão cautelar é fundada no princípio da excepcionalidade, do qual decorrem os outros que a norteiam, tais qual a proporcionalidade e necessidade.
3 A PRISÃO EM FLAGRANTE E SUAS ETAPAS: DETENÇÃO X RATIFICAÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE
O estudo e análise do instituto constitucional da prisão em flagrante exigem-nos a bipartição do fenômeno em dois momentos bastante distintos, quais sejam a detenção, isto é, a visualização e imobilização do agente que supostamente se encontre em flagrante delito, em uma daquelas hipóteses previstas no já citado art. 302 do Código de Processo Penal, e a apresentação do agente à Autoridade Policial, braço estatal responsável pela verificação imediata da legalidade da prisão e de sua manutenção ou de sua não ratificação, esta segunda etapa sim, a prisão em flagrante propriamente dita.
Portanto, esclareça-se, desde já que o Delegado de Polícia é quem, via de regra, possui a atribuição legal de verificar, reconhecer e materializar a prisão em flagrante.
3.1 – Situação Fática: a atuação dos Agentes da Autoridade Policial
A maioria estridente das prisões em flagrante de que se tem notícia são efetuadas por policiais militares, por uma razão bem simples. É que a Polícia Militar é responsável pelo policiamento ostensivo e repressivo, objetivando-se a manutenção da paz social através da não ocorrência da infração penal, especialmente em razão da intimidação dos sujeitos em potencial, diante da presença ostensiva do Estado. Estando os policiais militares na rua, diuturnamente, colocam-se em situação privilegiada quanto à visualização da conduta que configura, em tese, flagrante delito.
É o primeiro momento da prisão em flagrante, em que, exempli gratia, o policial militar é acionado via rádio para informar que próximo àquele local em que se encontra acabou de haver um roubo. O policial é obrigado a se dirigir ao local e adotar as primeiras providências, que serão a verificação da segurança das vítimas e população próxima e a busca pela prisão em flagrante do autor.
Havendo sucesso no empenho policial, o autor do crime será alcançado e preso, ou seja, imobilizado, com o uso legítimo da força, se necessário for, em razão de que, na visão daqueles agentes ele acabou de cometer uma infração penal, enquadrando-se na hipótese prevista no art. 302, II do Código de Processo Penal.
Muito se confunde esta primeira etapa da situação flagrancial com a prisão propriamente dita e daí decorrem várias consequências gravosas, tais qual a exposição à mídia daquele contra o qual se proferiu preliminar e precariamente a voz de prisão. Esta primeira etapa é tão precária que qualquer um do povo poderá prender quem esteja em flagrante delito. Esta detenção não vincula a Autoridade Policial, isto é, o Delegado de Polícia, na decisão que adotará após a lavratura do auto de prisão em flagrante se esse for o caso.
3.2 – Situação jurídica preliminar - A atuação da Polícia Civil
Ultrapassada a situação fática, deverá o agente da Autoridade Policial, geralmente, um policial militar, apresentar o autor do crime, preso em flagrante, à Delegacia de Polícia da área ou conforme critérios específicos de divisão de atribuições na esfera da Polícia Judiciária.
Casos há em que o episódio é tão distante das situações legais que autorizam a prisão em flagrante que sequer haverá a lavratura do auto próprio, tendo em vista, exempli gratia, a atipicidade do fato como nos corriqueiros e diários boletins de ocorrência da Polícia Militar que atribuem às partes conduta de “atrito verbal”, sem que se vislumbre sequer crime contra a honra.
Havendo elementos de possível ocorrência de crime e consequente prisão em flagrante, lavrar-se-á o auto de prisão em flagrante.
Enquanto o art. 302 do Código de Processo Penal disciplina as situações que configuram flagrante delito, regulamentando, pois, a previsão constitucional, o art. 304 do mesmo diploma legal prevê a formalização da pseudo-prisão em flagrante, destrinchando-se aí em pormenores o auto de prisão em flagrante delito.
Pois bem, o auto de prisão em flagrante nada mais é do que um documento que contém o termo de depoimento do condutor, ou seja, aquele agente da autoridade policial que conduziu a pessoa na condição precária de presa à presença do Delegado de Polícia, os termos de depoimentos das testemunhas que presenciaram o delito ou, pelo menos, a apresentação do preso à Autoridade Policial e o termo de declarações do preso sobre as imputações que lhe foram feitas pelo responsável pela prisão/condução.
Considerando-se que o ordenamento processual pátrio contempla duas grandes espécies de tutela, quais sejam a inibitória (ou preventiva) e a reparatória (ou de reparação) e que a amplitude de possibilidade de utilização das tutelas inibitórias é critério para visualização do nível de evolução e maturidade do ordenamento, pois que o objetivo é impedir a ofensa ao direito material, buscando a tutela estatal antes mesmo que a ofensa ocorra, é forçoso o questionamento: haveria melhor momento para a defesa e efetivação dos direitos e garantias fundamentais, para a efetivação dos direitos humanos, do que o exato momento da prisão em flagrante em sua concepção técnico-jurídica (formalização e decisão), através de autoridade pública com formação jurídica adequada? Parece-nos óbvio que não. Reparar eventual ofensa a direito material posteriormente é imensamente distinto de se impedir que a ofensa ocorra.
3.3 – A lavratura do auto de prisão em flagrante e suas consequências
Visto do que se trata o famoso auto de prisão em flagrante, nos exatos termos do art. 304 do Código de Processo Penal, tem-se que o mesmo diploma legal, no § 1º do artigo já citado prevê explicitamente as conseqüências da lavratura do auto de prisão em flagrante, conforme colacionamos
“art. 304... § 1º - Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja.” (Vademecum Referenciado da Legislação Brasileira, 2007).
Nota-se que mesmo a redação original do CPP de 1941, cuja essência autoritarista já fora exposta anteriormente, guardou a cautela de atribuir à Autoridade Policial o dever de efetivar a valoração jurídica dos fatos, verificando as circunstâncias da prisão (detenção) em flagrante e suas consequências jurídicas.
Vê-se, pois, que nem mesmo a redação ultrapassada do dispositivo legal furta ao Delegado de Polícia o dever-poder de atuar em duas vertentes, o início da persecução penal através da instauração do inquérito policial, objetivando a investigação do fato, e a salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais daquele que é apresentado como preso, através de uma verificação integral e inarredável dos aspectos legais da prisão, constitucionais e infraconstitucionais. Não se trata, portanto, de prestar simples formalização a um ato precedente, qual seja o da condução de uma pessoa na condição de presa em razão da alegação de que foi capturada em flagrante delito, mas, muito pelo contrário, de uma auditoria completa nas circunstâncias da prisão e, especialmente, nas consequências jurídicas daquele ato, determinando-se, a partir daí o encarceramento do autuado ou sua imediata soltura, condicionada ou não ao recolhimento de fiança.
4 A ATUAÇÃO DO DELEGADO DE POLÍCIA – A AMPLITUDE DA ANÁLISE JURÍDICA DO FATO
Ao Delegado de Polícia caberá a apurada análise do auto de prisão em flagrante para decidir conforme o ordenamento jurídico e em estrita obediência aos princípios constitucionais que vigoram na atualidade.
O trabalho da Autoridade Policial deverá, inevitavelmente, responder a algumas questões:
a) Houve realmente o fato?
b) Há elementos suficientes para atribuir a conduta ao autuado apresentado como preso?
c) Essa conduta configura infração penal?
d) Quais as consequências legais do fato?
Somente obtendo respostas a estas questões é que poderá o Delegado de Polícia agir em conformidade com o ordenamento jurídico.
É evidente a complexidade e a grandeza da atuação do Delegado de Polícia nessa fase imediata. Reflitamos, por oportuno, quão complexo e tortuoso é ao juiz de direito dizê-lo ao caso concreto no final de todo um processo, onde houve ampla margem de produção de provas de toda ordem. Ocasião em que se decorreu considerável lapso temporal, permitindo-se a incidência de atos e fatos posteriores capazes de influenciar na convicção do magistrado. Ao final de todo o processo penal, o Poder Judiciário adequará à norma penal os fatos sob julgamento, muitas vezes, dando-lhe tipicidade distinta daquela que foi registra na peça inaugural, via de regra, a denúncia do MP. E mais, ao final de todo esse processo, não é raro que órgãos de segunda instância do judiciário dêem nova roupagem ao fato, modificando a decisão de primeiro grau.
Ora, que tal fazê-lo (aplicar o direito ao caso concreto, evidentemente, aqui, de forma preliminar) no momento de calor, de trepidação moral dos fatos? Explicita-se aqui a exigência de exercício profissional em nível de excelência, objetivando-se, na melhor concepção coloquial popular “atuar no fogo sem se queimar”.
Em primeiro lugar é necessário se verificar quais as provas imediatas que autorizam a conclusão de que o autuado é o agente da conduta, de forma que, inexistindo elementos mínimos que sejam suficientes a essa conclusão, sua prisão deverá ser afastada. Não se pode, como pretendem alguns, aplicar-se o indubio pro societat para justificar a privação à liberdade de alguém sob pena de absoluto desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Havendo dúvida quanto à autoria não há como se justificar a prisão mediante a possibilidade mínima que seja de se estar encarcerando um inocente. Note-se que nas outras espécies de prisão cautelar, a temporária e a preventiva, são requisitos da decretação que haja indícios suficientes de autoria ou fundadas razões de que o suspeito ou réu seja o autor do crime.
No caso da prisão em flagrante, afora a hipótese de o agente ser preso no exato momento em que praticava o delito, observando-se aí a certeza visual da conduta, é necessário se verificarem os elementos que representam indícios suficientes de autoria ou fundadas razões de que o autuado seja o autor do crime. Não basta aqui a simples alegação, geralmente emocionada e influenciada pelo calor dos fatos ou envolvimento emocional direto de vítimas e testemunhas, tampouco o apelo vergonhoso da mídia para que se faça justiça a qualquer custo, buscando-se tão somente o aumento de vendas.
O Delegado de Polícia deverá perquirir os elementos apresentados como aptos a se concluir pela autoria da conduta, analisando questões objetivas e avaliando criteriosamente as circunstâncias e características da prova subjetiva produzida. É comum, exempli gratia, a apresentação de testemunha que aponta o autuado como autor do crime, alegando haver presenciado a conduta, entretanto, não resiste a uma série de perguntas bem formuladas, cujas respostas expõem que era faticamente impossível àquela “testemunha presencial” ter visto a conduta.
Em outros casos a própria vítima reconhece o autor, preso logo após o crime com base nas características de vestuário, entretanto, sem portar a arma que teria sido utilizada tampouco o produto do crime. Ora, a vítima, no momento de uma abordagem armada, sofre inevitável abalo emocional que influencia nos sentidos e na capacidade de percepção e observação. A simples alegação da vítima poderá ser levada em consideração, em absoluto, para atribuir-se a autoria da conduta ao autuado?
Na visão do Professor Guilherme de Souza Nucci:
“Conforme o auto de prisão em flagrante desenvolve-se, com a colheita formal dos depoimentos, observa a autoridade policial que a pessoa presa não é, aparentemente, culpada. Afastada a autoria, tendo constatado o erro, não recolhe o sujeito, determinando sua soltura.” (NUCCI, 2007).
Júlio Fabbrini Mirabete discorre mais um pouco, ainda que timidamente, sobre a atuação do Delegado de Polícia:
“Apresentado o preso capturado em situação de flagrância à autoridade competente deve esta lavrar o auto respectivo. Não se trata, porém, de ato automático da autoridade policial pela simples notícia do ilícito penal pelo condutor. A autuação em flagrante delito pressupõe a certeza absoluta da materialidade do crime e indícios mínimos de sua autoria. Inexistentes tais elementos, a autuação em flagrante delito pode constituir-se em abuso de autoridade.” (MIRABETE, 1997)
Veja-se que ao Delegado de Polícia incumbe, antes de tudo, tarefa árdua de analisar friamente os fatos, contracenando os aspectos fáticos e jurídicos para adotar a providência cabível. É a autoridade policial o “órgão” público incumbido de analisar os fatos e subsumi-los ao ordenamento penal e processual penal de imediato, extraindo-se daí a irrevogável necessidade de que a definição como “autoridade policial” exige amplo conhecimento jurídico, obtido pela formação em direito, auferida em rigoroso certame público.
Ultrapassada a fase mais complexa, a de verificar a suficiência de elementos para atribuir a conduta ao autuado, deverá a Autoridade Policial verificar se se trata de infração penal e quais as consequências jurídicas previstas para a hipótese. Observa-se que a prisão em flagrante será verificada pelo Delegado de Polícia e não por aquele agente responsável pela prisão/condução do autuado. Daí se lamentar que frequentemente, policiais militares tem conduzido pessoas em tese presas em flagrante para as unidades militares, onde são apresentadas à imprensa como autoras de determinado crime, significando uma antecipação do julgamento e da condenação com ampla e irremediável exposição à mídia sem sequer se saber se a pessoa permanecerá presa, ou seja, se se trata realmente de prisão em flagrante e estão presentes todos os requisitos legais a justificar a privação da liberdade.
4.1 – A análise jurídica do delito
Vencida a etapa de indícios suficientes ou fundadas razões para se atribuir a autoria da conduta ao autuado, prossegue a Autoridade Policial na verificação de ocorrência de uma infração penal que justifique a custódia cautelar da prisão em flagrante.
Nota-se que as prisões cautelares são exceção em nosso ordenamento jurídico e que se verificarão na hipótese do flagrante ou de ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial.
O Juiz de Direito é a autoridade que aplica o direito ao caso concreto com força de coisa julgada, ou seja, com a consequência de não mais se discutir a matéria do processo. O magistrado, ao decretar a custódia cautelar deverá fazê-lo através de minuciosa fundamentação onde se demonstre a presença de todos os requisitos legais, sob pena de abuso de autoridade e de desrespeito aos princípios constitucionais.
No caso da prisão em flagrante, quem analisa os requisitos da custódia cautelar é o Delegado de Polícia, cujo exercício do cargo exige exatamente a mesma formação jurídica do magistrado, e lhe é dada na hipótese, parcela de poder semelhante àquele que possui o Poder Judiciário, sabidamente, em termos técnicos, mais amplo do que o da Autoridade Policial.
Ora, é razoável se imaginar que se ao Juiz se impõe o dever de fundamentar a decretação da prisão cautelar, com muito mais razão ao Delegado de Polícia lhe é imposto fazê-lo em relação ao reconhecimento do estado flagrancial e da necessidade da prisão em flagrante. Não se trata, como já dissemos, de apenas formalizar um ato precedente, mas sim de analisá-lo cabalmente, fornecendo-lhe a legitimidade necessária à luz do ordenamento jurídico, incluídos aí os seus princípios constitucionais, evidentemente.
Na doutrina mais restritiva, infração penal é a soma de um fato típico e ilícito, ou seja, é necessária que a conduta esteja prevista formalmente em lei penal como infração e que não haja, in casu, nenhuma causa eu autorize ao agente a prática da conduta, autorização esta fornecida pelo próprio Estado, através da lei penal. É que em alguns casos, não se pode atribuir à conduta o status de crime, tendo em vista circunstâncias que a justifiquem, preenchidos, evidentemente, os requisitos legais. São as chamadas excludentes de ilicitude, previstas no art. 23 do Código Penal Brasileiro, quais sejam: o estado de necessidade; a legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal.
Interessa-nos aqui a análise de eventual existência de legítima defesa na conduta daquele autuado em flagrante pela prática, em tese, de infração penal.
4.2 – A obrigatoriedade de análise da legítima defesa no auto de prisão em flagrante
Há de se observar que o art. 23 do Código Penal Brasileiro prevê que não há crime se o agente praticou o fato em legítima defesa. A legislação é expressa e afirma veementemente que não existe crime.
A Constituição da República e a legislação infraconstitucional já explicitadas autorizam, pois a prisão em flagrante daquele que foi apanhado cometendo ou pouco tempo depois de cometer um crime. A leitura legal, especialmente à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, leva-nos a conclusão de que é imposto ao Delegado de Polícia, operador do direito, com formação jurídica devida, analisar se existe justificativa legal para a prática da conduta, sob pena de omissão estatal e de encarceramento daquele que agiu acobertado pela lei. Não basta verificar se o autuado praticou a conduta formalmente prevista na lei penal, sendo necessário que se verifique a existência de excludente de ilicitude, de tal forma a tornar o ato lícito, legítimo e incapaz de produzir conseqüências jurídicas graves, mormente a restrição da liberdade com o encarceramento do indivíduo.
Considerável parte da doutrina, assim não entende, afirmando que ao Delegado de Polícia caberá tão somente a verificação da previsão formal da conduta na lei penal.
Nesse sentido a lição do Professor Guilherme de Souza Nucci:
“Note-se que isso se dá em relação à autoria, mas não quando a autoridade policial perceber ter havido alguma excludente de ilicitude ou de culpabilidade, pois cabe ao juiz proceder a essa análise.” (NUCCI, 2007).
Por sua vez, Fernando Capez, vai além. Deixa a entender o citado professor que a lavratura do auto de prisão em flagrante seria mera formalização de ato precedente, quando afirma que
“Antes da lavratura do auto, a autoridade policial deve comunicar à família do preso, ou à pessoa por ele indicada, acerca da prisão.”(CAPEZ, 2004).
O mesmo doutrinador afirma:
“Recolhimento: encerrado o auto de prisão em flagrante, a autoridade poderá relaxá-lo se das declarações não resultar fundada a suspeita contra o preso.” (CAPEZ, 2004).
Percebe-se aí cabalmente o seu entendimento de que a prisão será configurada pelo ato do condutor e não após a lavratura do auto e a análise pelo Delegado de Polícia, sendo aí, caso de relaxamento de prisão em flagrante.
Ora, e se a condução foi equivocada e se não se estiver diante de qualquer possibilidade de prisão do conduzido que será imediatamente colocado em liberdade, como se justificar a necessidade de lavratura de auto de prisão ou de comunicação à família dele?
Nota-se, entretanto, que a maioria esmagadora da doutrina processual penal não discorre acerca da amplitude da análise do Delegado de Polícia no auto de prisão em flagrante, cuja construção doutrinária deve ser feita a partir da releitura do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República, inafastadamente com base no princípio da dignidade da pessoa humana, já retratado anteriormente.
A questão é demonstrar-se que não só é possível como é dever inarredável do Delegado de Polícia de analisar se o autuado atuou em legítima defesa, deixando de se configurar aí, em tese, a infração penal e não se justificando o encarceramento do indivíduo.
O art. 25 do Código Penal Brasileiro esclarece:
“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” (Vademecum Referenciado da Legislação Brasileira, 2007).
O consagrado membro do Ministério Público de Minas Gerais e Professor, Rogério Greco, brilhantemente afirma:
“para que se possa falar em legítima defesa, que não pode jamais ser confundida com vingança privada, é preciso que o agente se veja diante de uma situação de total impossibilidade de recorrer ao Estado, responsável constitucionalmente por nossa segurança pública, e, só assim, uma vez presentes os requisitos legais de ordem objetiva e subjetiva, agir em sua defesa ou na defesa de terceiros. Este, também, é o pensamento de Grosso, citado por Miguel Reale Júnior, quando aduz que “a natureza do instituto da legítima defesa é constituída pela possibilidade de reação direta do agredido em defesa de um interesse, dada a impossibilidade de intervenção tempestiva do Estado, o qual tem igualmente por fim que interesses dignos de tutela não sejam lesados.” (ROGÉRIO GRECO, 2004).
Nota-se que o instrumento da legítima defesa existe em razão da impossibilidade de o Estado se fazer presente em todos os momentos e lugares ininterruptamente, inviabilizando assim que ofereça segurança concreta e aja em defesa das pessoas a todo o tempo. Diante dessa impossibilidade fática é que o ordenamento jurídico confere ao indivíduo a possibilidade de se defender de agressão injusta. Não se poderia imaginar ser imposto ao indivíduo o dever de se manter inerte e suportar ofensa a bem jurídico próprio ou alheio.
É preciso, pois que se estabeleça que legítima defesa não significa vingança privada e que somente ocorrerá quando houver uso moderado dos meios necessários para repelir agressão injusta atual ou iminente. Pode-se falar, portanto, em legítima defesa, diante de agressão ou ameaça de agressão, desde que iminente sua concretização.
Agressão injusta, na lição de Maurach, é “a ameaça humana de lesão de um interesse juridicamente protegido” (Derecho Penal – parte general, p. 440), enquanto, no ensinamento de Welzel, agressão injusta é “a ameaça de lesão de interesses vitais juridicamente protegidos (bens jurídicos), proveniente de uma conduta humana.” (Derecho penal alemán, p. 101).
Por meios necessários devem-se entender aqueles que estiverem ao alcance e que forem suficientes e eficientes à repulsa da agressão.
Júlio Fabbrini Mirabete ensina que meio necessário
“é aquele que o agente dispõe no momento em que rechaça a agressão, podendo ser até mesmo desproporcional com o utilizado no ataque, desde que seja o único à sua disposição no momento.” (MIRABETE, 1997).
No que se refere à moderação no uso dos meios necessários, Francisco de Assis Toledo:
“o requisito da moderação exige que aquele que se defende não permite que sua reação cresça em intensidade além do razoavelmente exigido pelas circunstâncias para fazer cessar a agressão. Se, no primeiro golpe, o agredido prostra o agressor tornando-o inofensivo, não pode prosseguir na reação até matá-lo.” (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, 2003).
Ainda em relação à moderação do uso dos meios, Mirabete ensina que:
“a legítima defesa, porém, é uma reação humana e não se pode medi-la com um transferidor, milimetricamente, quanto à proporcionalidade de defesa ao ataque sofrido pelo sujeito.” (MIRABETE, 1997).
Em relação ao tempo da ação repelida, tem-se que atual é a agressão que está acontecendo e iminente é aquela que está prestes a acontecer.
Por fim, para que se verifique a ocorrência de legítima defesa, é necessário ainda que o agente saiba que está agindo nessa condição ou pelo menos acredite assim estar agindo, configurando-se aí o requisito subjetivo da conduta acobertada.
Em linhas gerais, a reflexão proposta é de ser possível que o Delegado de Polícia analise se o autuado agiu usando moderadamente dos meios necessários para repelir agressão injusta e, assim sendo, deixe de determinar a restrição de sua liberdade ou se, ainda que se verifique essa condição, é lícito que o agente seja encarcerado e aguarde a manifestação do Poder Judiciário nesse sentido.
Em outras palavras, ainda que o Delegado de Polícia reconheça elementos indicativos de que o agente atuou estritamente dentro dos requisitos legais com o objetivo de defender bem jurídico tutelado, é crível que ele determine o encarceramento desse indivíduo? É admissível que esse indivíduo passe um minuto sequer no interior do cárcere, apenas à espera de que o Juiz reconheça sua condição e determine sua soltura? Ainda que, sendo realmente caso de legítima defesa, esse indivíduo, se for processado, será absolvido sumariamente, não havendo probabilidade de que venha a ter contra si a aplicação de qualquer sanção penal?
Considerando-se os princípios norteadores do novel processo penal, a partir da Constituição da República de 1988, especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana, não vemos como admitir que seja lícito ao Estado obrigar o indivíduo que agiu autorizado por este próprio Estado, a permanecer o mínimo período que seja no interior de um cárcere.
O Delegado de Polícia não só poderá, como deverá analisar se o autuado agiu dentro do que lhe permite o ordenamento jurídico, de forma a não se permitir que ele seja “punido” por sua conduta.
É imprescindível se registrar, contudo, que o não encarceramento do indivíduo não significa a paralisação da persecução penal ou a subtração ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário de cumprirem cada qual o seu papel. É bom lembrar que o auto de prisão em flagrante é peça inaugural do inquérito policial, o qual será plenamente realizado, concluído e encaminhado ao poder Judiciário. Não é sem razão que o art. 304, § 1º do Código de Processo Penal estabelece que a autoridade policial prosseguirá nos atos do inquérito se para isso for competente.
Analisemos o que dispõe o art. 309 do Código de Processo Penal:
“Se o réu se livrar solto, deverá ser posto em liberdade, depois de lavrado o auto de prisão em flagrante” – Vide artigo 5º, LXV e LXVI da Constituição Federal (Vademecum Referenciado da Legislação Brasileira, 2007).
Nota-se que a obra citada faz menção, no rodapé do artigo, aos incisos LXV e LXVI do art. 5º da Constituição da República, os quais respectivamente dispõem que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” e “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.
Eis a questão: é legal a prisão (leia-se, o recolhimento ao cárcere) do indivíduo cuja conduta é, preliminarmente, reconhecida pela Autoridade Policial, como autorizada pelo ordenamento jurídico em razão de se tratar de legítima defesa, isto é, uso moderado dos meios necessários para se defender de injusta agressão, cujo procedimento penal resultará muito provavelmente na absolvição sumária do agente sem que lhe seja imposta qualquer sanção penal de qualquer espécie, muito menos qualquer forma de restrição da liberdade, para que, nessa condição, de preso recolhido ao cárcere, ele aguarde a manifestação do Poder Judiciário? Parece-nos que a melhor resposta é a negativa. Ainda mais se considerarmos (o que precisa ser considerado inegavelmente) a realidade da estrutura da Justiça e da Defensoria Pública no Brasil. Suponhamos que o indivíduo seja preso em flagrante, nestas condições, ao final da tarde uma sexta-feira, sem que tenha condições financeiras de constituir advogado, sendo sua prisão comunicada à Defensoria Pública (possivelmente inexistente naquela Comarca). Quantos dias ele aguardará até que a Justiça se manifeste acerca da liberdade provisória?
O que geralmente se alega é que ao Delegado não seria possível tal análise tendo em vista que a legítima defesa somente poderá ser reconhecida pelo juiz de direito, argumentando-se com o que dispõe o art. 310 do Código de Processo Penal:
“Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 23, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação. (Vademecum Referenciado da Legislação Brasileira, 2007).”
Inicialmente voltamos a insistir o cunho autoritarista em que foi editado o Código de Processo Penal de 1941, em que se havia, conforme já amplamente exposto, uma presunção de culpabilidade. Note-se que a redação do art. 309 afirma que o juiz, mesmo reconhecendo que o autuado agiu sob alguma das excludentes de ilicitude, poderá colocá-lo em liberdade. Não se tratando de obrigação, isto é, ainda que se reconhecesse que o agente atuou autorizado pelo ordenamento, dependeria do bel prazer do juiz, não se tratando de dever, colocá-lo em liberdade. E mais, o artigo referenciado trata o preso em flagrante como réu, antecipando-se a certeza de que será denunciado e sofrerá os rigores de um processo penal. Tais aspectos, por si só, explicitam o caráter ditatorial e ultrapassado do dispositivo legal, sabidamente não recepcionado pela Constituição da República como já quase exaustivamente abordado.
Não foi sem razão que o legislador, através da lei 6.416, de 24 de maio de 1977, incluiu ao art. 309 seu parágrafo único, nos seguintes termos: “Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (arts. 311 e 312).”
A alteração legislativa já dava indicativos, nos idos de 1977, de que a prisão cautelar caminhava para exceção e não regra, como outrora concebido, ao prever que se não houvesse motivo para decretação da prisão preventiva, ou seja, se não fosse em razão da necessidade, proporcionalidade e eficiência da custódia cautelar, ela não deveria ser mantida.
É fato indiscutível que o atual ordenamento jurídico pátrio prevê a custódia cautelar como exceção absoluta, somente justificável em último caso, preenchidos os requisitos legais, sob pena de afrontar a Constituição da República, mormente em seus inúmeros princípios constitucionais penais e processuais penais previstos no art. 5º.
É gritante, óbvio, público e notório o caráter excepcional das prisões cautelares, cuja aplicação somente terá espaço quando rigorosamente justificado pelas circunstâncias, não sendo sequer razoável que à Autoridade Policial não seja concebida a análise e soltura do autuado no caso de reconhecimento preliminar de ocorrência de legítima defesa. Repita-se, apesar de colocado em liberdade, o autuado terá sua conduta investigada através do inquérito policial que foi inaugurado pelo auto de prisão em flagrante no qual figurou e o procedimento de polícia judiciária será concluído e remetido à Justiça, sendo entregue ao Ministério Público para que exerça seu múnus como titular da ação penal, onde lhe será absolutamente viável discordar da interpretação do Delegado de Polícia, dando início à ação penal e requerendo, se assim entender, a decretação da prisão preventiva do réu, presentes os requisitos legais. Não é de se imaginar, todavia, que a interpretação da Autoridade Policial seja tão equivocada a ponto de tamanha reversão, mas é juridicamente possível.
O novel e já consagrado processualista penal, Nestor Távora, vai mais além, ao afirmar
“advirta-se ainda que com a reforma do CPP, trazida com a lei 11.719/08, passou-se a admitir o julgamento antecipado da lide, nas hipóteses elegidas no art. 397 do código, de forma que, se o membro do parquet vislumbra, pela análise dos elementos que lhe são trazidos pelo inquérito ou por quaisquer outras peças de informação, que está demonstrada hipótese autorizadora de absolvição sumária, não deve promover a denúncia, sob a justificativa de que o processo deve ser deflagrado para que o réu seja absolvido. Quem tem de ser absolvido, não deve ser processado.” (Távora, 2009.)
O código de processo penal traz agora a previsão de julgamento antecipado da lide com a absolvição sumária do réu em algumas hipóteses, dentre as quais, existência manifesta de causa excludente de ilicitude. O autor foi muito feliz ao afirmar que quem será sabidamente absolvido, não deve suportar o peso de um processo penal. Ora, que dirá suportar a indignidade do cárcere!
Outro instituto presente no ordenamento jurídico nos clareia a visualização do que ora se demonstra. Trata-se da concessão de liberdade provisória mediante o arbitramento de fiança. Foi dado à Autoridade Policial o poder de concessão de liberdade provisória com fiança nos crimes punidos com detenção, ou seja, poderá a Autoridade Policial colocar em liberdade o autuado cuja conduta efetiva e precariamente se configurou como delituosa, não havendo qualquer causa justificativa. Não o seria autorizado deixar de encarcerar aquele que agiu autorizado pelo Estado?
O art. 322 do Código de Processo Penal autoriza ao Delegado de Polícia o arbitramento de fiança nos casos de infração penal punida com crime de detenção, observados os requisitos previstos nos arts. 323 e 324, dentre os quais destacamos o inciso IV do art. 324, prevendo que não será concedida fiança “quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312).”
Como visto, em tais casos, ao Delegado de Polícia será lícito conceder a liberdade provisória, mas, para tanto, deverá analisar se está presente algum motivo que autorize a decretação da prisão preventiva, caso em que não será possível a concessão da liberdade. Note-se que à Autoridade Policial, por expressa previsão legal, é lícito analisar a existência de motivos de decretação da prisão preventiva, apesar de ser óbvio que não será ela a autoridade a decretá-la.
No mesmo sentido, é lícito ao Delegado de Polícia analisar a ocorrência de legítima defesa após a lavratura do auto de prisão em flagrante, apesar de não ser ele a Autoridade que dirá, ao final do processo (em caso de oferecimento de denúncia) que realmente ocorreu a legítima defesa, através de sentença absolutória.
É inconcebível, diante do processo penal constitucional que hoje vigora, entender-se que o Delegado de Polícia tem legitimidade para analisar critérios de prisão e não de liberdade. É afrontar os princípios constitucionais e manter-se o cunho autoritário do Código de Processo Penal de 1941 como se fosse recepcionado pela Constituição da República, aplicando-se o juízo de antecipação de culpabilidade que existia na edição da norma legislativa.
É inquestionável se concluir que a legislação processual penal concedeu ao Delegado de Polícia o poder de, após lavrado o auto de prisão em flagrante e reconhecidos o estado flagrancial e os indícios razoáveis de autoria da conduta, colocar o autuado em liberdade para que assim aguarde a conclusão do inquérito policial e eventualmente responda ao processo criminal, através do recolhimento de fiança.
É crível se admitir que, reconhecendo a ocorrência de uma infração penal, a autoria da conduta e o estado flagrancial o Delegado de Polícia possui autorização legal para colocar o autuado em liberdade, enquanto, em segunda hipótese, reconhecida a existência da conduta e o fato de que o autor a praticou autorizado pelo ordenamento jurídico para se defender, mediante o uso moderado dos meios necessários para repelir a agressão injusta que sofria, o Delegado de Polícia não possui autorização legal para colocá-lo em liberdade e prosseguir nos atos do procedimento? É absurdo, sob todos os aspectos.
Propomos então a elaboração de um pequeno quadro esquemático que contraponha as duas situações: a concessão de liberdade provisória àquele cuja conduta restou demonstrada como crime punido com detenção sem a existência de causa justificativa e a providência a ser adotada quanto ao autuado cuja conduta foi reconhecida pelo Delegado de Polícia, preliminarmente, como autorizada pelo ordenamento jurídico para se defender de injusta agressão, através do uso moderado dos meios necessários:
ETAPAS PROCEDIMENTAIS
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PRESO EM FLAGRANTE DELITO POR CRIME PUNIDO COM DETENÇÃO
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PRESO EM FLAGRANTE ATUANDO EM LEGÍTIMA DEFESA
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1ª ETAPA
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Prisão do autor por agentes da Autoridade Policial
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Prisão do autor por agentes da Autoridade Policial
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2ª ETAPA
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Condução do autor à presença da Autoridade Policial na condição de preso
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Condução do autor à presença da Autoridade Policial na condição de preso
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3ª ETAPA
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Lavratura do auto de prisão em flagrante
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Lavratura do auto de prisão em flagrante
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4ª ETAPA
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Despacho fundamentado da Autoridade Policial analisando as circunstâncias fáticas da prisão e adequando-as às questões jurídicas, no qual determinará a providência a ser adotada conforme se segue
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Despacho fundamentado da Autoridade Policial analisando as circunstâncias fáticas da prisão e adequando-as às questões jurídicas, no qual determinará a providência a ser adotada conforme se segue
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5ª ETAPA
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Concessão de liberdade provisória com arbitramento de fiança com a colocação do autuado em liberdade mediante o recolhimento da fiança
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Reconhecimento de conduta autorizada pelo ordenamento jurídico – excludente de ilicitude = legítima defesa e recolhimento do autuado ao cárcere para que, preso, aguarde a manifestação do juiz
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6ª ETAPA
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O autuado vai para casa livre
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O autuado é recolhido a uma cela de uma unidade prisional
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Aqueles que pretendem afirmar que não cabe ao Delegado de Polícia a análise preliminar e precária de que o autuado agiu em legítima defesa valem-se de pseudo ausência de previsão legal. É forçoso se admitir que realmente não existe o artigo de lei expresso, mas igualmente é forçoso se admitir a existência inarredável de norma legal que não só autoriza como impõe ao Delegado tal análise, a partir de uma releitura do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República de 1988, especialmente sob a égide da excepcionalidade das prisões cautelares e da prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana.
Retomando o que já se constou, o Professor Eugênio Pacceli muito bem expõe:
“para nós, não é mais admissível compreender e muito menos seguir aplicando o processo penal sem a filtragem constitucional. O Código de Processo Penal de 1941 não está superado apenas pelo tempo. Está superado também por força da incompatibilidade normativa com o Texto de 1988, em cujo bojo se construiu um sistema de garantias individuais com abrangência suficiente para fazer evaporar diversos dispositivos do nosso CPP.” (PACELLI, 2004).
Insistindo na análise do princípio da dignidade da pessoa humana, na breve lição do Professor Alexandre de Moraes:
“a dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre, sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” (ALEXANDRE DE MORAES, 2003).
O conceito explicita que apenas em casos excepcionalíssimos, a pessoa poderá sofrer limitações no exercício dos direitos fundamentais. Certamente não se enquadra na hipótese a restrição da liberdade daquele indivíduo que agiu autorizado pelo Estado, para se defender ou defender a terceiro, nos limites legais, ainda que essa restrição seja por um período mínimo.
Não é demais trazer à colação que o art. XI, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, garante que “todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.” Parece inegável que, dentre os direitos assegurados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem está o de que sua atuação em legítima defesa seja de imediato analisada pelo Estado, através do Delegado de Polícia, tendo como consequência o não aprisionamento daquele que agiu autorizado pelo ordenamento jurídico.
A atuação em legítima defesa já foi inclusive argumento do Supremo Tribunal Federal para afastar eventual ilicitude de provas obtidas nessas circunstâncias. O Ministro Moreira Alves, em voto como relator no habeas corpus nº 74.6781/SP afirmou que
“evidentemente, seria uma aberração considerar como violação do direito à privacidade a gravação pela própria vítima, ou por ela autorizada, de atos criminosos, como o diálogo com seqüestradores, estelionatários e todo tipo de achacadores. No caso, os impetrantes esquecem que a conduta do réu apresentou, antes de tudo, uma intromissão ilícita na vida privada do ofendido, esta sim merecedora de tutela. Quem se dispõe a enviar correspondência ou a telefonar para outrem, ameaçando-o ou extorquindo-o, não pode pretender abrigar-se em uma obrigação de reserva por parte do destinatário, o que significa o absurdo de qualificar como confidencial a missiva ou a conversa.”
Observa-se que a decisão do STF é no sentido de afastar-se a ilicitude de provas obtidas através de gravações desconhecidas por um dos interlocutores, tendo em vista que o responsável pelas gravações é, na verdade, vítima de uma investida delituosa, agindo, de tal forma, na condição de legítima defesa. É forçoso se questionar mais uma vez: é admissível que quem assim atua possa permanecer, um minuto sequer, no interior de um cárcere, à espera do pronunciamento do Estado?
De genial didática o artigo de lavra do Juiz de Direito da Comarca de Rio Real, Estado da Bahia, que assevera:
“Outra questão relevante, e que desperta resistências de toda ordem, é a possibilidade do delegado livrar alguém detido por suposto flagrante porque reconheceu, após a coleta dos dados na lavratura do auto, alguma excludente de ilicitude prevista no art. 23 do CP. Um aspecto normalmente esquecido é que a prisão de alguém não é o fato mais significativo no processo penal, pois a máquina estatal se move para buscar a verdade ao final, na sentença. Se o delegado soltar e o magistrado entender que não havia excludente, a prisão ainda pode ser possível. E mesmo que o indivíduo fuja, o processo ainda continuará e as provas ainda serão colhidas, mesmo dentro das regras do art. 366 do CPP. Não é a presença do réu que viabiliza o fim do processo. Por outro lado, o reconhecimento de excludente é situação corriqueira, sem maiores questionamentos. Diuturnamente os agentes policiais apresentam cadáveres com a alegação de resistência à prisão, sendo lavrados os autos de resistência. Pergunta-se: houve ou não morte, devidamente prevista no art. 121 do CP? Claro que sim! E alguém reclama com a autoridade policial que não lavra o flagrante? Claro que não! O crime não se perfaz por conta da excludente. Alguns protestarão: o reconhecimento da excludente é prerrogativa jurisdicional! Não se está subtraindo atuação jurisdicional. A manifestação do delegado se faz de forma precária, da mesma forma que é precária a tipificação do delito. Esta fase da ação estatal é gerida pela autoridade policial, que tem o dever de especificar e relacionar a infração cometida - art. 5º e 23 do CPP, por exemplo -, sendo que se há excludente, não há crime. Outros sustentarão que no caso do policial que mata alguém há a fé pública do policial. Deixando de lado que o policial ao apresentar um detido assume a função de condutor – onde sua fé pública perde o sentido -, pergunto-me o que aconteceria se um policial apresentasse outro policial como preso em flagrante: qual manifestação teria maior fé pública?
A liberação do detido, de qualquer forma, não exime o delegado, nos termos do art. 304 do Código de Processo Penal, de lavrar o auto. O dispositivo é claro: ouve-se o condutor e testemunhas e lavra-se "afinal o auto". Depois, "resultando das respostas fundada suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhe-lo à prisão". Percebe-se que nem sempre, após o auto, pode ocorrer a prisão, embora o auto ou documento equivalente exista sempre.
Na verdade, a autoridade policial, liberando ou não o detido, deve fundamentar sua decisão, especificando porque há ou não crime, porque existe ou não excludente. Não é burocracia, não é exagero, não é liberalismo: é dever mesmo. Longe de se acrescentar atividades à autoridade policial, já passou da hora de valorizarmos uma cepa de profissionais capacitados e formados na ciência jurídica.” Sublinhados e grifos inexistentes no original. (CERQUEIRA, Josemar Dias. O delegado e a conclusão do auto de flagrante . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1375, 7 abr. 2007. Disponível em: www.jus.com.br . Acesso em: 15 de fevereiro 2009.)
5 SITUAÇÃO JURÍDICA POSTERIOR – A ATUAÇÃO DO JUIZ DE DIREITO DIANTE DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE
O art. 5º, em seus incisos LXII e LXV, prevê respectivamente:
“a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada” e “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (Vademecum Referenciado da Legislação Brasileira, 2007).
Nos ensinamentos de Júlio Fabbrini Mirabete:
“encerrada a lavratura do auto de prisão em flagrante, a prisão deve ser comunicada imediatamente ao juiz competente (art. 5º, LXII, 1ª parte, da CF), que será, havendo mais de uma na circunscrição judiciária, aquele a quem for destinada a comunicação por distribuição.” (MIRABETE, 2002).
Assevera ainda o autor:
“havendo ilegalidade na autuação em flagrante (não havia situação de flagrância, houve excesso de prazo para a lavratura, etc.) a prisão deve ser relaxada pelo juiz (art. 5º, LXV, da CF), sem prejuízo do desenvolvimento das investigações e do inquérito policial.” (MIRABETE, 2002).
Nota-se, pois, que a atuação do Delegado de Polícia diante da autuação em flagrante delito é submetida incontinenti à apreciação do Poder Judiciário para que se proceda a uma segunda análise de legalidade, considerando-se especialmente o fato de que é o Poder Judiciário que dirá, ao final do processo, o direito ao caso concreto com força de coisa julgada.
Os doutrinadores de cunho constitucional entendem que o Juiz deverá, de ofício, analisar não só a legalidade da prisão, como também a possibilidade de concessão de liberdade provisória, tendo em vista o direito processual penal constitucional e os princípios norteadores das prisões cautelares, já exaustivamente expostos.
Vê-se, pois, que este não é o entendimento externado pelo Ministro Hamilton Carvalhido, do Superior Tribunal de Justiça, quando relator do HC 54.403/RJ, julgado em 21.09.2006, publicado no DJ em 09.04.2007, página 271:
“Por certo, não oferecendo o auto de prisão em flagrante senão a notícia que lhe é própria, vale dizer, do crime flagrante que determinou a prisão do agente, não se há de exigir do juiz que demonstre a necessidade da preservação da constrição cautelar, até porque presumido em lei.”
É inegável se admitir, em outras palavras, que o Ministro do STJ valorizou em muito a análise efetuada pelo Delegado de Polícia, a ponto de afirmar que não se exige do Juiz que fundamente a necessidade da prisão cautelar já que tal já fora feito pela Autoridade Policial.
Há de se perceber, portanto, que ao Judiciário caberá, recebendo a comunicação da prisão em flagrante, acompanhada evidentemente do auto de prisão em flagrante, analisar sua legalidade determinando a soltura do autuado em tal caso ou mantendo sua prisão, inexistindo irregularidade, sem que seja necessário sequer fundamentar a manutenção conforme exposto na decisão do STJ. Vale dizer que, livre ou solto, o inquérito policial será concluído e submetido ao Judiciário que, por sua vez, abrirá vistas ao Ministério Público para que exerça em sua plenitude o múnus constitucional que lhe foi entregue. Não é a liberdade ou não do autuado que ditará o prosseguimento do feito, neste caso.
6 O DIREITO PENAL E A REALIDADE
Nos brilhantes ensinamentos do Professor Rogério Greco,
“a finalidade do Direito Penal é a proteção dos bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade.” (ROGÉRIO GRECO, 2005).
Já Luiz Regis Prado expõe:
“o pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à sociedade.” (LUIZ REGIS PRADO, 1995).
De forma inconteste, o Direito Penal visa à proteção dos bens jurídicos mais valiosos em determinada sociedade, conforme critérios políticos de seleção. Daí advém que as infrações penais são dinâmicas e a conduta que outrora figurou como tal hoje pode não mais se encontrar no rol da legislação penal como merecedora de sanção.
Há que se considerar ainda que o Direito Penal Subjetivo é a possibilidade de efetivação do Direito Penal, ou seja, é a possibilidade de o Estado criar e fazer cumprir suas próprias normas, através de um devido processo legal constitucionalmente previsto.
Dentre os princípios norteadores do processo penal está o da verdade real, consubstanciado nas palavras de Fernando Capez no sentido de que:
“no processo penal, o juiz tem o dever de investigar como os fatos se passaram na realidade, não se conformando com a verdade formal constante dos autos. Desse modo, o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir a sentença, determinar de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. Este princípio é próprio do processo penal, já que no cível o juiz deve conformar-se com a verdade trazida aos autos pelas partes, embora não seja um mero espectador inerte da produção de provas.” (CAPEZ, 2004).
É interessante se perceber que a expressão “verdade real” significa o retrato mais fidedigno possível dos fatos tais quais ocorreram, considerando-se exatamente que o Direito Penal é a ultima ratio, já que tutela os bens jurídicos mais valiosos e prevê, por isso, a imposição das sanções mais graves, como a restrição da liberdade.
O Direito Penal deve, portanto, aproximar-se tanto quanto possível da realidade dos fatos, isso porque, lamentavelmente não é possível reproduzi-los exatamente como aconteceram. Mas não podemos limitar a essas ponderações a função da verdade real.
Muito mais que o princípio norteador do processo penal, a verdade real (leia-se, realidade) é inegavelmente um dos princípios basilares do próprio Direito Penal que deve buscar em seus fatos a base de sua atuação, sob pena de aplicar-se a teorias vazias e distantes do meio social.
Pode-se, portanto, esperar muito mais do Direito Penal (através da atuação do Delegado de Polícia), como uma ciência de análise de fatos, de causas e de consequências, que pode e muito balizar políticas públicas e governos na busca do bem estar social, em vez de simplesmente encarregá-lo de aplicar as normais penais. É ou não absolutamente condizente com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana?
E o que se dizer, nesse sentido, do Delegado de Polícia? Ora, é o profissional que possui, antes de tudo, formação jurídica necessária para analisar quase de imediato a análise do delito, de forma a não se intoxicar, na maioria dos casos, com a participação pessoal na detenção do suspeito. Mais do que um bacharel em direito, o Delegado de Polícia aplica conhecimentos interdisciplinares como a psicologia (na identificação e interrogatório de suspeitos e testemunhas) e a sociologia (na análise do meio social de ocorrência do delito e todas as diretrizes que tais dados fornecem), exempli gratia.
O Delegado de Polícia está, dentro da persecução penal, mais próximo do fato e, possuindo os conhecimentos interdisciplinares já citados, tem condições inegáveis que em muito auxiliarão na construção da realidade e de todas as consequências jurídicas que isso implicará, tais qual a de não encarcerar o indivíduo que atuou autorizado pelo ordenamento jurídico, na defesa de direito próprio ou de terceiro.
A atuação do Delegado de Polícia na defesa e garantia dos direitos dos indivíduos merece especial atenção.
Ora, a Autoridade Policial está em posição imparcial para analisar um fato que acabou de ocorrer, com a tranquilidade, impessoalidade e serenidade que o calor desse fato e o envolvimento emocional direto podem afastar, possuindo formação jurídica para fazê-lo à luz do ordenamento jurídico em sua amplitude, ou seja, na melhor concepção e aplicação de princípios e normas e não só de leis em sentido estrito. E mais, possui formação interdisciplinar que lhe possibilita a análise de fenômenos sociais na melhor concepção do que se pode chamar verdade real. Então, por que não fazê-lo?
Nota-se que, no exato momento em que ocorreu o fato delituoso e nos instantes que se seguem, há um período de agigantadas tensões emoções que tendem a trazer o desequilíbrio social. Basta entender que os familiares dos envolvidos, sejam da vítima, sejam do autor, os vizinhos, amigos, curiosos e a imprensa, acomodam-se no palco do conflito de forma tendenciosa e parcial, cada qual sob o ângulo de defesa das versões que melhor lhe convierem e a mídia, de forma geral, sob o aspecto mercadológico da notícia. Exige-se, de forma inconteste, a ponderação ética, técnico-jurídica de um profissional do direito. A Autoridade Policial representa, neste instante ímpar, o Estado e seu dever legal de estabelecer a credibilidade moral de um sentimento de justiça indexado à temperança emocional e à ponderação jurídica. Não se pode negligenciar no reconhecimento de tais atributos ao Delegado de Polícia, sob pretextos históricos e simbolismos jurídicos.
É necessário, pois, adentrar-se ainda que de forma tímida, às reflexões sobre o poder e seus simbolismos no meio jurídico. Pierre Bourdieu assevera:
“O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, no qual se defrontam agentes investidos de competência – ao mesmo tempo – social e técnica, isto é, na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre e autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social. Para tanto, diz respeito a um corpo fortemente integrado de instâncias hierarquizadas que declina sobre as instituições e seus poderes, as normas e suas fontes, assim como os modos de resolução de conflitos correlatos aos seus intérpretes e/ou interpretações.” Negritos e sublinhados inexistentes no original. (FERNANDO TOMAZ, 2005).
Não se pode negar que há, no contexto histórico atual, como talvez sempre tenha ocorrido, uma disputa de atribuições e de prerrogativas entre órgãos e instituições públicas. Há, inegavelmente, uma visão de concorrência entre agentes públicos. Basta citar, a exemplo, a atuação de centenas de policiais militares que estiveram no Congresso Nacional protestando contra uma proposta de emenda à Constituição que sequer lhes diz respeito, mas, sim, à Polícia Civil.
Sob esse prisma, qual seria a consequência simbólica de se reconhecer ao Delegado de Polícia o poder-dever de analisar a legítima defesa na prisão em flagrante? O reconhecimento desta autoridade pública? O enfraquecimento de outros atores do sistema de persecução penal? Há, de forma oculta, sob os argumentos de impossibilidade, algum cunho de luta por poder? São reflexões das quais não se pode esquivar sob pena de incompreensão de todo o contexto social real.
O mesmo autor expõe:
“A situação judicial funciona como lugar neutro, que opera uma verdadeira neutralização das coisas em jogo por meio da “des-realização” e da distanciação implicadas na transformação da defrontação directa dos interessados em diálogo entre mediadores. Os agentes especializados, enquanto terceiros – indiferentes ao que está directamente em jogo (o que não quer dizer desinteressados) e preparados para apreenderem as realidades escaldantes do presente atendo-se a textos antigos e a precedentes confirmados – introduzem, mesmo sem querer nem saber, uma distância neutralizante a qual, no caso dos magistrados pelo menos, é uma espécie de imperativo da função que está inscrita no âmago dos habitus: as atitudes ao mesmo tempo ascéticas e aristocráticas (...) constantemente lembradas e reforçadas pelo grupo dos pares (...). Negritos e sublinhados inexistentes no original (FERNANDO TOMAZ, 2005).
A atuação do Delegado de Polícia sob a óptica de primeiro defensor material e formal dos direitos e garantias fundamentais e gestor da investigação criminal que não só visa descobrir o crime e seu autor, em contraposição à visão limitada de simples investigador e “caçador de bandidos”, talvez desenhada e imposta pelas circunstâncias históricas, é um papel de incomensurável valor que não pode ser desprezado pelo Estado e, especialmente, pela sociedade.
Não há fundamento filosófico que sustente não caber ao Delegado de Polícia o não encarceramento do indivíduo que agiu em legítima defesa, atribuindo, através de uma visão fascista e inconstitucional, ser responsabilidade somente do juiz fazê-lo.
O Direito penal não pode se afastar da realidade. Realidade que imporá ao indivíduo sem condições financeiras de nomear imediatamente um advogado diligente, a restrição de sua liberdade por dias, até que sua situação seja analisada pelo Poder Judiciário, sob o falso discurso de que o juiz é um profissional mais bem preparado que o delegado de polícia, enquanto ambos possuem a mesmíssima formação acadêmica como requisito de investidura no cargo.
Aos diversos operadores do Estado que atuam no mundo jurídico não é permitido, sob pena de injustiça social e descumprimento de normas e preceitos constitucionais obrigatórios, a indiferença à realidade nua e crua. Expedir um mandado de prisão guarda gritante abismo entre a materialização desta prisão e, por exemplo, as circunstâncias de captura do desfavorecido e as condições da unidade prisional.
As consequências de cunho emocional e psicológico, desencadeadas a partir do encarceramento em situação ilícita, especialmente em um país marcado pelas gritantes diferenças sociais e pelos escândalos que envolvem a Administração Pública de forma geral, são incalculáveis e ultrapassam a pessoa do preso, atingindo de forma fática a família e até futuras gerações.
7 CONCLUSÃO
A mais ampla análise do fenômeno criminal, através de uma releitura do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 atribuem um novo e moderno perfil ao Delegado de Polícia, não só como um dos atores da persecução penal, mas, como um dos mais importantes órgãos estatais na defesa dos direitos e garantias fundamentais e na preservação da verdade real, em inequívoca contribuição na construção diária da justiça.
Nesse contexto, compreendendo-se que a prisão em flagrante é espécie de custódia cautelar e que terá como consequência a restrição da liberdade do indivíduo, não só será possível, mas será dever inafastável do Delegado de Polícia analisar todas as circunstâncias fáticas e jurídicas do fato, inclusive e especialmente a possível ou provável ocorrência de legítima defesa, excludente de ilicitude que leva à inexistência do crime nos termos da lei penal e que impedirá que o autuado seja levado pelo menor prazo que seja à restrição da liberdade e ao conhecimento do cárcere.
A ausência de previsão legal expressa no sentido de autorizar a medida pelo Delegado de Polícia não pode ser fundamentado para afastá-lo de tão importante mister, vez que a releitura do Código de Processo Penal de 1941 embasado na Constituição da República leva à conclusão inequívoca de que existe hoje, norma processual penal constitucional que impõe ao Delegado de Polícia a avaliação de possível conduta autorizada pelo Estado, de responsabilidade daquele que lhe é apresentado como preso em flagrante delito. A hermenêutica acerca dos direitos e garantias fundamentais deve ser levada a cabo de forma ampliativa e inserir o Delegado de Polícia como órgão de defesa dessas prerrogativas está em perfeita consonância com a nova ordem constitucional. Não fazê-lo, pelo contrário, significa atentar contra a liberdade individual.
A liberdade do autuado, entretanto, não impedirá de forma alguma a conclusão das investigações iniciadas através do auto de prisão em flagrante e a consequente remessa do inquérito policial à Justiça, permitindo-se já que de outra forma não se poderia conceber, a atuação do Ministério Público e do próprio Poder Judiciário nos papéis que lhes foram impostos pela Carta Magna, não lhes furtando, em momento algum, o exercício profissional com todas as prerrogativas explícitas e implícitas que a atividade compreenda.
É incoerente e inconsistente querer se afirmar que na atual conjuntura de um processo penal absolutamente constitucional em que as prisões cautelares, decretadas pelo Poder Judiciário somente serão legais diante do preenchimento dos requisitos legais, havendo extrema necessidade, utilidade e proporcionalidade com o preceito secundário previsto para a conduta delituosa, a prisão em flagrante, sob atribuição do Delegado de Polícia será como que regra, permitindo-se, somente em momento posterior, através da atuação do Magistrado, a observância aos princípios constitucionais e a mais ampla efetivação dos direitos e garantias fundamentais.
Não se pode mais deixar de reconhecer ao Delegado de Polícia o seu claro e inarredável dever constitucional de zelar pela ordem pública, pela justiça e pelo bem-estar social, através da mais ampla observância dos princípios constitucionais que salvaguardam o indivíduo. Tampouco, sob o propósito de desvalorizar a atuação de tão importante e nobre agente público, esquivar-se à observância de princípios constitucionais e constranger-se alguém à tão violenta e excepcional medida de restrição de liberdade sem que exista o preenchimento de todos os requisitos jurídicos exigidos.
A atuação do Delegado de Polícia no momento da detenção e análise da prisão em flagrante é meio eficaz de apontar-se à comunidade que o conflito está sendo acolhido de forma justa, impessoal e, paralelamente, com a garantia de que traçará caminho de igual solidez no curso de sua tramitação, mesmo nas esferas que se sucedem no judiciário e outros órgãos. A presença do delegado-bacharel é a presença do operador das liberdades, posto que portador, inicial e incondicionalmente, da Constituição da República e, secundariamente, das leis penais.
Por fim, a robustez de tudo quanto se busca provar restou externada no anteprojeto do novo Código de Processo Penal, elaborado por uma comissão de juristas a partir de requerimento do Senado Federal, o qual, uma vez findado e apresentado à mesa diretora daquela casa, transformou-se no PLS 156/2009, cujo texto, ao disciplinar a prisão em flagrante, prevê expressamente em seu art. 540, § 6º que “A autoridade policial, vislumbrando a presença de qualquer causa excludente da ilicitude, poderá, fundamentadamente, deixar de efetuar a prisão, sem prejuízo da adoção das diligências investigatórias cabíveis.”
Impõe-se, pois, pelo todo o que exaustivamente se expôs a aplicação imediata da medida, havendo para tanto e conforme amplamente demonstrado, inegável respaldo no ordenamento constitucional pátrio, sem que se aguarde a futura e eventual aprovação do PLS 156/2009 que trará efetividade expressa e literal à atuação do Delegado de Polícia.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 5ª ed.. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 214;
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