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Resumo:
O presente artigo estuda o instituto do aborto e legislação vigente no Brasil, com contextualização histórica, bem como comparação com a legislação portuguesa, com análise da proposta de emenda constitucional no 29/2015. Trabalho elaborado em dez/19.
Texto enviado ao JurisWay em 28/02/2022.
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1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho é uma proposta de estudo sobre o instituto do aborto e a legislação vigente, bem como alguns projetos que versam sobre este tema, averiguando se são condizentes com os princípios constitucionais da proporcionalidade e da ponderação de valores, ou se violam os direitos fundamentais à saúde, à vida e ao planejamento familiar.
A primeira seção do desenvolvimento (Aborto: Considerações Iniciais) estuda, inicialmente, o que é o instituto do aborto, bem como suas modalidades possíveis, abordando, ainda, seu contexto histórico no Brasil, com as previsões de legislações anteriores, mais especificamente o Código Criminal do Império de 1830 e o Código Penal da República de 1890.
A segunda seção (Legislação Vigente) aborda a legislação atualmente vigente no Brasil, responsável pela regulamentação do aborto, prevista no Decreto Lei no 2.848 de 1940 (Código Penal) com suas hipóteses proibitivas e permissivas, incluindo também a hipótese de excludente de ilicitude garantida através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 54, uma vez que esta permissão não se encontra no supracitado Código.
Já a terceira seção (A PEC no 29/2015 e seus efeitos), se propõe a estudar alguns dos projetos legislativos que versam sobre o tema, principalmente o projeto de emenda constitucional no 29 de 2015, conjecturando sobre seus possíveis efeitos na sociedade brasileira atual e analisando se estão em conformidade com a Constituição Federal (CF), mais notadamente com o direito à saúde, vida e ao planejamento familiar, bem como os princípios constitucionais da proporcionalidade e da ponderação de valores, utilizados nos casos de conflito entre direitos fundamentais, que também serão abordados, mais pormenorizadamente, na seção quatro.
Essa mesma seção aborda também alguns outros projetos que tratam sobre o aborto, realizando também paralelo com a legislação portuguesa, para comparação da abordagem que estes dois países dão para o instituto, bem como um breve exame do limite de viabilidade do feto, com a finalidade de averiguar, ainda que superficialmente, a probabilidade de vida extrauterina em determinada situação, além de abordar o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 124.306, e de referenciar a ADPF no 442, uma vez que trata sobre a descriminalização do aborto, por opção da mulher, até a décima segunda semana de gestação, atualmente em curso e aguardando julgamento.
Por sua vez, a quarta seção (Aplicação da Ponderação de Valores), estuda mais detalhadamente os direitos fundamentais que podem estar sendo violados pela criminalização do aborto, mais especificamente o direito à vida, à saúde e ao planejamento familiar, averiguando se os princípios da proporcionalidade e da ponderação de valores são devidamente levados em consideração pela atual legislação que versa sobre o tema, e não apenas se o Projeto de Emenda Constitucional no 29 de 2015 – objeto da seção 3 – cumpre com esses direitos tutelados.
Por fim, a quinta e última seção (Legalização do Aborto), aborda os dados estatísticos sobre o aborto no Brasil, obtidos através da Pesquisa Nacional sobre o Aborto 2016, verificando se a tipificação impede sua realização cotidianamente pelo país, e analisando as informações prestadas por instituições oficiais na audiência pública realizada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF no 442, com a finalidade de pressupor possíveis efeitos de sua descriminalização, nos casos de aborto consentido pela gestante.
Assim, verifica-se que o presente trabalho tem como objetivo não apenas definir o instituto do aborto, mas também aspectos sobre a legislação (atual e possivelmente futura) que versam sobre ele, para averiguar se sua previsão está em conformidade com a Constituição Federal e os institutos por ela tutelados, como se verá ao longo do presente.
Para a concretização do presente trabalho foi empregado o método bibliográfico.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 ABORTO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Estudando o instituto do aborto, Bittencourt[1] entende que se trata de interrupção da gravidez antes de alcançar seu termo, que ocorre quando a gestante entra em trabalho de parto ao fim do período gestacional; em outras palavras, aborto é a interrupção da gestação.
Nucci[2], que descreve o aborto como “a cessação da gravidez, antes do termo normal, causando a morte do feto ou embrião”, prevê sete classificações de aborto.
O primeiro, conhecido como aborto natural, é a interrupção involuntária da gravidez, decorrente de causas espontâneas e que não constitui crime.
O aborto acidental, por sua vez, se caracteriza pela cessação da gravidez causada por ações exteriores e traumáticas, como quedas e choques, sendo certo que também não há crime nessa hipótese.
O aborto criminoso é a interrupção forçada e voluntária da gravidez, provocando a morte do feto ou embrião, e é tipificado, conforme seção 2.2.
A quarta classificação de aborto é o permitido ou legal, se tratando do fim da gestação, com a morte do feto ou embrião, nas hipóteses autorizadas por lei, caracterizando excludentes de ilicitude, também estudadas na seção 2.2.
O aborto eugênico, também conhecido como eugenésico ou embriopático, é a interrupção da gravidez para evitar o nascimento do feto com graves defeitos genéticos. Há discussão sobre a legalidade deste tipo, uma vez que poderia constituir uma seleção humana. No entanto, o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF)[3] é no sentido de que no caso de anencefalia do feto, exclusivamente, é permitida a realização do aborto, tendo em vista a absoluta inviabilidade de vida extrauterina, se tratando, na verdade, de antecipação terapêutica do parto, conforme seção 2.2.
Por fim, a última classificação prevista é o aborto econômico-social, que ocorre quando a cessação da gestação é realizada por razões econômicas ou sociais.
Vale ressaltar, nos termos de Greco[4], que o início da vida se dá com a concepção, ou seja, quando o óvulo é fecundado pelo espermatozoide. No entanto, juridicamente, a vida só será protegida penalmente a partir da nidação, que pode ser definida como a implantação do óvulo fecundado no útero, que acontece catorze dias após a fecundação.
Conclui-se, portanto, que enquanto não ocorrer a nidação, não há que se falar em aborto, motivo pelo qual os dispositivos ou substâncias que impedem a implantação do óvulo fecundado no útero não têm repercussão jurídica.
Houve, no entanto, em 04/02/2019, apresentação de proposta de lei (PL no 261/2019)[5] que objetivava a proibição dos métodos contraceptivos que impedem a implantação do óvulo no útero, chamados de microabortivos, mais especificamente, mencionava o dispositivo intrauterino (DIU), a pílula só de progestógeno (minipílula), a pílula RU 486, o implante subcutâneo de liberação de progestógeno (Norpant), a pílula do dia seguinte e a vacina anti-HCG.
Todavia, tendo em vista a relevante controvérsia e reprovação social, este projeto de lei foi retirado pelo autor apenas dois dias depois de sua apresentação, ou seja, em 06/02/2019.
É interessante abordar também, ainda que superficialmente, a hipótese de fertilização in vitro, conforme estudado por Capez[6].
Ele entende que, uma vez que os óvulos são fecundados fora do útero e são mantidos em laboratório antes de serem implantados no útero da mulher, os embriões que não são aproveitados, chamados de embriões excedentários, podem ser destruídos e/ou eliminados sem configurar o aborto.
Isso ocorre em decorrência da proteção da vida a partir da nidação que, conforme visto anteriormente, é a implantação do óvulo fecundado no útero.
Verifica-se então, que em razão da adoção desta teoria pela doutrina brasileira, tem-se uma lacuna na legislação no que diz respeito às gestações em que o óvulo fecundado é implantado em lugar diverso do útero (implantações extrauterinas), chamadas de gestações ectópicas[7].
Como um breve contexto histórico sobre esse crime no Brasil, o aborto foi inicialmente tratado em 1830, no Código Criminal do Império[8], principalmente em seu artigo 199, punindo tão somente o terceiro que realizasse o aborto, diferenciando, no entanto, se a conduta havia sido realizada com ou sem o consentimento da gestante, com pena de um a cinco anos no primeiro caso e duplicada no segundo.
A gestante que praticasse o autoaborto ou que consentisse com sua realização, portanto, não era punida, por falta de previsão legal.
Após a revogação do Código Imperial de 1830, o aborto foi tipificado pelo Código Penal da República[9], de 1890, que supriu a ausência de artigo punindo a mulher e previu a conduta da gestante, mantendo também os demais tipos que puniam terceiros, diferenciando, no entanto, os casos de expulsão ou não do feto, com pena de dois a seis anos se ocorresse a expulsão ou seis meses a um ano se não ocorresse, tipificando, ainda, o aborto provocado com anuência da gestante, com pena prevista entre um e cinco anos.
Por fim, o Código Penal de 1940[10] (CP), ainda em vigência, apresenta três tipos penais: um punindo a gestante, que pratica ou permite que outrem o faça, bem como aqueles que o provoquem, com ou sem o consentimento da gestante, conforme os artigos 124 e seguintes do Código Penal, que serão objeto de estudo na seção 2.2 deste trabalho.
2.2 LEGISLAÇÃO VIGENTE
A legislação atual, prevista no Código Penal de 1940[11], seguiu nos moldes da legislação anterior (Código Penal da República, 1890) e manteve a tipificação da conduta da gestante, apesar de não distinguir nos tipos penais se ocorreu ou não a expulsão do feto.
O presente Código prevê o crime de aborto em sua Parte Especial, no Título I “Dos Crimes contra a Pessoa”, Capítulo I “Dos Crimes contra a Vida”, mais especificamente nos artigos. 124 a 128, diferenciando entre as proibições e as permissões, caracterizando, as permissões, excludentes de ilicitude.
Adentrando nos tipos penais proibitivos previstos, há a divisão em três condutas: o crime praticado pela gestante e os crimes praticados por outrem, configurando, portanto, uma exceção à teoria monista (adotada pelo direito brasileiro), uma vez que os participantes respondem por tipos penais distintos, que serão abordados a seguir.
Greco[12] menciona essa exceção, explicando que esta ocorre uma vez que o Código Penal pune os agentes envolvidos no crime de maneira diversa. Vale informar que essa exceção só se configura quando o aborto é realizado por terceiro com consentimento da gestante, uma vez que no autoaborto a única agente é a própria gestante, e no caso de aborto realizado por terceiro sem consentimento da gestante, este é o único agente.
O primeiro tipo penal está previsto no artigo 124 do Código Penal e pune o comportamento da própria gestante, que pode ser tanto por realizar o ato abortivo, conhecido como autoaborto, ou por consentir que outra pessoa lhe provoque, com pena de detenção, de um a três anos, em qualquer das duas hipóteses.
O segundo tipo penal, previsto no artigo 125 do mesmo diploma, por sua vez, pune a conduta de um terceiro que provoca o aborto sem o consentimento da gestante, sendo o tipo com a punição mais grave, reclusão de três a dez anos.
Por fim, o terceiro e último tipo penal previsto, no art. 126, tipifica a conduta de terceiro que realiza o aborto com o consentimento da gestante, tendo uma pena mais branda que o tipo anterior, se tratando de reclusão de um a quatro anos.
Há, no entanto, uma ressalva no parágrafo único do artigo 126, determinando que nos casos em que a gestante não é maior de catorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência, a pena aplicada será a do artigo anterior, ou seja, a do artigo 125 (aborto provocado sem o consentimento da gestante).
Essa ressalva se dá, pois, no caso de se tratar de menor de catorze anos, alienada ou débil mental, seria necessário o consentimento do representante legal da gestante, e no caso de consentimento obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência, esse consentimento é claramente viciado, portanto, nos termos de Capez[13], é inválido, motivo pelo qual incorre na pena do artigo anterior.
Por fim, nos tipos proibitivos, há, ainda, no artigo 127, a previsão de uma forma qualificada dos crimes de aborto praticado por terceiro. Essa previsão é no sentido de que, se, em razão do aborto praticado ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofrer lesão corporal de natureza grave, a pena será aumentada de um terço, e, ainda, que se o resultado for a morte da gestante, a pena será duplicada.
Cumpre ressaltar, no entanto, que se a lesão corporal não for grave, não haverá aumento de pena, uma vez que não há essa previsão na legislação.
Assim, conclui-se o estudo dos tipos penais proibitivos do aborto e inicia-se o estudo das permissões, previstas no artigo 128 do Código Penal.
Ademais, apesar de no Código Penal só estarem previstas duas hipóteses de exceção, a jurisprudência já admite uma terceira hipótese, que se firmou através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no 54, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 14/04/2012 e publicada em 30/04/2013, que também será objeto de estudo.
O primeiro caso de excludente de ilicitude é o de aborto necessário, também conhecido como aborto terapêutico, caracterizado por ser o único meio de salvar a vida da gestante. Ou seja, se o aborto não for realizado, a mulher virá a óbito, portanto o bem jurídico tutelado nesse caso é a vida da mulher, em detrimento do feto.
A segunda exceção é o aborto humanitário, no caso de gravidez decorrente de estupro.
Vale definir o instituto jurídico de estupro, sem grande aprofundamento. O Código Penal, em seu artigo 213, define que o crime de estupro se configura quando o agente, mediante violência ou grave ameaça, constrange alguém para que pratique ou permita com que ele se pratique conjunção carnal ou outro ato libidinoso. Em outros termos, estupro é a realização forçada, decorrente de violência ou grave ameaça de ato sexual.
Na hipótese de aborto humanitário, no entanto, há necessidade de que o procedimento seja precedido do consentimento da gestante ou de seu representante legal, quando incapaz, por previsão expressa no artigo, diferentemente do que ocorre no aborto necessário. Portanto, a contratio sensu, se a vida da mulher estiver em risco, o aborto poderá ser realizado mesmo sem o consentimento, pois este não é um requisito nessa hipótese.
Por fim, temos a última hipótese de exclusão de ilicitude, que não está prevista na legislação, conforme dito anteriormente.
Essa permissão decorre da ADPF no 54[14], que questionava os artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, nos casos de anencefalia do feto, tendo em vista a inviabilidade absoluta de vida extrauterina, alegando que se tratava, em realidade, de uma antecipação terapêutica do parto.
Como descrito na inicial da ADPF no 54, a anencefalia se trata da inexistência do cérebro, órgão responsável pelo sistema nervoso central, sem o qual não há consciência, cognição, vida relacional, afetividade e emotividade, sendo absolutamente impossível existir vida extrauterina sem este órgão.
Ocorre que não há nada que possa ser feito, medicamente, sobre a inviabilidade do feto. No entanto, é possível proteger a saúde da mulher, autorizando a antecipação terapêutica do parto, uma vez que a permanência do feto no útero pode acarretar danos a ela, por conta do alto índice de óbitos, ainda no útero, desses fetos.
Por conta disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da criminalização da interrupção da gravidez de feto anencéfalo. Ou seja, em sentido contrário, legalizaram a realização do aborto nessa situação.
Capez[15], inclusive, faz uma analogia com a remoção post mortem de órgãos e tecidos após diagnosticada a morte encefálica, demonstrando que não há vida sem atividade encefálica, pelo que não se pode falar em aborto no caso de feto anencéfalo.
Portanto, nos casos em que há má-formação fetal e não há o desenvolvimento do encéfalo (anencefalia), em razão da impossibilidade de vida do feto, ainda que a gestação seja levada a termo, permite-se a interrupção da gravidez.
Assim, se encerra o estudo sobre a previsão do aborto na legislação atualmente em vigência, com seus tipos penais proibitivos e permissivos.
2.3. A PEC No 29/2015 E SEUS EFEITOS
O presente projeto de emenda constitucional[16] propõe o acréscimo da expressão “desde a concepção” no artigo 5º da Constituição Federal para garantir a “inviolabilidade do direito à vida”, que poderia levar ao entendimento de não haver hipóteses permissivas na legislação, sob o fundamento de que estaria violando a Constituição Federal.
Ou seja, na prática, a PEC que “apenas acrescenta o termo ‘desde a concepção’” poderia acarretar na obrigação da mulher levar a termo a gravidez ainda que esta tenha decorrido de estupro ou que coloque sua vida em risco.
Percebe-se, portanto, que o que poderia levar a “grave atentado à dignidade da pessoa humana” é o próprio projeto de emenda, uma vez que poderia privar a mulher, pessoa humana já completamente formada e efetivamente viva, do direito de interromper a gravidez, dando fim tão somente a um processo de formação e desenvolvimento do feto.
Cumpre ressaltar, ainda, que o texto do projeto pressupõe que a alteração “terá o poder de garantir o direito à vida de milhares de crianças brasileiras que são assassinadas por falta de proteção jurídica”, mas deixa de se preocupar com a vida dessas “crianças” após o nascimento, como indesejadas ou vivendo em condições precárias, bem como com a vida das mulheres, que não desejam ter filhos ou que arriscam suas vidas para realizarem abortos clandestinos para terminarem a gravidez, pela tal falta de proteção jurídica que ocorre após o nascimento.
Assim, verifica-se pela leitura do projeto de emenda constitucional 29/2015, que seus possíveis efeitos concretos na sociedade brasileira seriam a criminalização absoluta do aborto, extinguindo o direito da mulher de realizar o procedimento nos casos atualmente permitidos em lei, estudados na seção 2.2 deste trabalho.
Logo, conclui-se que este projeto, apesar de alegar que “não altera absolutamente nada no artigo 5º”, na realidade poderia violar direitos da mulher e poderia acabar ferindo os princípios constitucionais da proporcionalidade e da ponderação de valores, visto que colocaria o feto em posição de superioridade em relação à mulher, querendo obrigá-la a manter a gravidez ainda que decorrente de um fato abusivo e violento como o estupro, fato que, inclusive, é punido pelo Código Penal.
Quanto às informações médicas prestadas no texto da PEC, é importante esclarecer que entre as onze e doze semanas de gestação, os órgãos estão presentes no corpo da criança, porém não estão formados; há apenas o início do processo de formação destes, não sendo funcionais nem capacitados, sendo impossível para o feto sobreviver extrauterinamente neste momento, ou seja, não há vida propriamente dita.
No que diz respeito à alegação de que “Atualmente é possível garantir a perfeita sobrevivência de uma criança nascida de um parto com apenas 18 semanas de gestação”, o projeto de emenda foi omisso ao deixar de informar o embasamento médico dessa possibilidade.
No Brasil foi realizado, pela Secretaria de Saúde do Governo do Distrito Federal[17], em 2018, um estudo de limite de viabilidade em neonatologia, que verificou que recém-nascidos com idade gestacional menor do que vinte e quatro semanas ficam classificados como muito imaturos para ter qualquer chance razoável de sobrevivência sem déficits motores, neurológicos, oftalmológicos e pulmonares graves.
Estudos realizados nos Estados Unidos[18], por exemplo, apontam que fetos nascidos prematuramente com vinte e duas semanas de gestação tem viabilidade variando entre zero e trinta e sete por cento, em um país desenvolvido. Além disso, o The New England Journal of Medicine[19] constatou que todos os fetos que nasceram com menos de vinte e duas semanas de gestação morreram dentro de doze horas após o parto.
Vale informar que, em caráter excepcional, o bebê mais prematuro do mundo que sobreviveu nasceu com vinte e uma semanas de gestação[20], portanto a informação de que é possível garantir a sobrevivência de um bebê nascido com apenas dezoito semanas é, no mínimo, duvidosa.
Finda a questão médica, cabe traçar um paralelo com a legislação de Portugal para fins de comparação.
Até 2007 o Código Penal português[21] tipificava o aborto da mesma maneira que o Código Penal brasileiro (Decreto-Lei n° 2.848 de 1940), ou seja, com previsão de três condutas típicas proibitivas: a gestante que realiza o autoaborto ou que consente que terceiro pratique; o terceiro que pratica o aborto com consentimento da gestante e; o terceiro que provoca o aborto sem consentimento da gestante (artigo 140 do CP português).
No que diz respeito às excludentes de ilicitude, Portugal previa hipóteses semelhantes às brasileiras, porém com maior abrangência que os tipos permissivos dessa.
Essas permissões, previstas no artigo142 deste Código, são:
- Quando for a única forma de remover perigo de morte ou de lesão grave à mulher, ou seja, aborto terapêutico, sem previsão de limite para realização do procedimento.
- Quando foi indicada para evitar morte ou lesão grave, desde que realizada nas primeiras doze semanas de gestação (hipótese não prevista na legislação brasileira).
- No caso de aborto eugênico, ou seja, quando a criança possuir grave doença ou malformação congênita incurável, dentro de vinte e quatro semanas de gravidez, ou, no caso de fetos inviáveis, a qualquer tempo.
- Por fim, a última previsão é o caso de aborto humanitário, que ocorre quando a gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual (mais abrangente, portanto, que no Código Penal brasileiro, que só autoriza quando a gestação decorrer de estupro, exclusivamente[22]), desde que realizada nas primeiras dezesseis semanas.
Entretanto, após referendo popular realizado em 11 de fevereiro de 2007[23], por votação de maioria da população portuguesa, foi incluída uma nova hipótese permissiva, através da Lei no 16/2007[24], no artigo 142, determinando que não é punível quando “for realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez”.
Apesar de ainda ser uma das legislações mais restritivas da Europa (a Holanda, por exemplo, admite a interrupção voluntária por escolha da mulher até a vigésima quarta semana de gestação[25]), Portugal conferiu às mulheres o direito de escolha.
O procedimento lá é realizado de forma que, desde o momento em que a mulher decide interromper a gestação até o término do procedimento, a mulher passa por consultas. Inicialmente é manifestado o interesse e é feito um ultrassom para confirmar que a gestação não ultrapassa as dez semanas, limite para terminação, conforme visto anteriormente. Após a primeira consulta, há um período de reflexão de três dias, quando, então, a mulher, na última consulta, pode realizar o procedimento abortivo, cirúrgico ou medicamentoso[26].
Como efeito da descriminalização, atualmente, mais de dez anos após a descriminalização, verifica-se uma redução no número de procedimentos abortivos realizados por ano, apesar de ter ocorrido uma alta nos números nos primeiros anos após a legalização[27].
Além disso, houve redução nos casos de mortalidade materna e os números de mulheres que optam por métodos contraceptivos cresceram, como consequência da política que impõe uma orientação sobre métodos contraceptivos às mulheres que realizam aborto[28].
De acordo com a Direção Geral de Saúde de Portugal[29], noventa e quatro por cento das mulheres que abortaram por opção em 2016 aderiram a métodos contraceptivos — também de graça na rede pública — depois do procedimento.
Constata-se, portanto, que a descriminalização do aborto em Portugal, até a décima semana de gestação, garantiu um direito fundamental das mulheres, acarretando na diminuição do número de procedimentos realizados e de mortes maternas em decorrência do aborto e no aumento do uso de contraceptivos pela população.
Conclui-se, então, que o texto da PEC 29/2015, apesar de buscar fazê-lo sutilmente, poderia acarretar na criminalização generalizada do aborto, violando o princípio da ponderação de valores e direitos já existentes e conferidos à mulher, como, por exemplo, o direito ao planejamento familiar, ao revés dos movimentos da sociedade brasileira e de outros países mais desenvolvidos.
Além da PEC no 29/2015, há outras propostas tramitando na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, que, em sua maioria, visam restringir ainda mais as hipóteses de excludente de ilicitude, ou seja, os tipos permissivos.
A Proposta de Emenda à Constituição no 181 de 2015[30], por exemplo, apesar de ter tratado inicialmente sobre a extensão da licença maternidade em caso de nascimento prematuro, foi alterado para incluir nos artigos 1º, III e 5º, ambos da Constituição Federal, a proteção desde a concepção, no entanto, por não ter qualquer relação com o texto original, a PEC foi muito criticada e ficou conhecida como “PEC Cavalo de Troia”[31].
Mais recentemente, tem-se o Projeto de Lei no 2.574 de 2019[32], que entende que o STF ultrapassou sua competência e legislou no lugar do Congresso Nacional.
A argumentação apresentada é no sentido de que admitir o aborto em casos de anencefalia abre precedentes para que, no futuro, o aborto possa ser discutido no caso de fetos diagnosticados com síndrome de Down ou com outras deficiências, como uma espécie de seleção humana.
Entretanto, como analisado no estudo do aborto em caso de anencefalia, esta se trata de absoluta inviabilidade do feto, não sendo possível, portanto, a vida extrauterina, que não é o caso da microcefalia ou da Síndrome de Down.
O que o STF tutelou, no julgamento desta ADPF[33], foi o direito da mãe de antecipar o parto, em casos de fetos anencéfalos exclusivamente, para não pôr em risco sua própria vida, bem como para preservar seu bem estar mental e emocional.
Muito diferente, portanto, da seleção que era realizada por governos opressores “de estados totalitários do século passado” como fora comparado no texto da proposta de emenda constitucional no 29 de 2015[34].
Inclusive, pode ser prejudicial à sociedade a imposição destas restrições, uma vez que, assim como verificado em Portugal, os efeitos da descriminalização podem ser positivos para a população.
Existem outros projetos que versam sobre este tema no Congresso Nacional, tendo em vista a relevância, controvérsia e atualidade da questão.
O Projeto de Lei no 882 de 2015[35], em direção contrária aos outros projetos estudados neste trabalho, busca revogar os artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, descriminalizando a realização do aborto nas primeiras doze semanas de gestação, e mantendo apenas a tipificação da conduta do terceiro que realiza o procedimento abortivo sem o consentimento da gestante.
Vale mencionar, também, que, em 2016, o STF julgou o Habeas Corpus (HC) 124.306[36], decretando o fim da prisão preventiva de cinco funcionários que trabalhavam em uma clínica abortiva, abrindo precedente para a descriminalização até os três primeiros meses de gestação, sob os fundamentos de que a criminalização do aborto viola direitos fundamentais, como os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que, ainda que não previstos expressamente na constituição, não podem ser ignorados para obrigar a mulher a manter uma gestação indesejada; a integridade física e psíquica da gestante, bem como a autonomia e igualdade da mesma.
Ademais, deve-se levar em consideração o impacto que a tipificação desta conduta tem sobre as mulheres pobres, uma vez que não possuem os recursos necessários para acesso a médicos e clínicas privadas e, por óbvio, não podem recorrer à saúde pública, tendo em vista a ilicitude da conduta. Consequentemente, estas mulheres ou realizam o procedimento em si mesmas, caracterizando o autoaborto, que pode resultar em automutilações, ou recorrem a clínicas clandestinas sem qualificação e preparo, podendo resultar em lesões e até mesmo morte.
Por fim, citamos a ADPF no 442[37], proposta em 08/03/2017, que visa a declaração da não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal, sob a tese central de que as razões jurídicas que serviram para criminalizar o aborto em 1940 não se sustentam, por violarem diversos preceitos fundamentais, tais como o direito à saúde, à integridade física e psicológica das mulheres, à proibição de submissão a tortura ou a tratamento desumano ou degradante, à vida, à segurança, ao planejamento familiar, aos direitos sexuais e reprodutivos, à liberdade e, por fim, à igualdade.
Atualmente a ADPF se encontra em conclusão com a relatora, Weber, após a realização de duas audiências públicas, em agosto de 2018, aguardando julgamento, porém sem data prevista para tal.
Se julgada procedente, a ADPF acarretaria na descriminalização da interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras doze semanas.
2.4 APLICAÇÃO DA PONDERAÇÃO DE VALORES
Antes de analisar a ponderação de valores, é importante apresentar e discutir os direitos que possivelmente estão sendo restringidos no caso concreto.
Inicia-se o estudo do direito à saúde, com previsão expressa no artigo 6º da Constituição.
Lenza[38] entende que a saúde é direito de todos e que é dever do Estado providenciá-la, através de políticas sociais e econômicas que objetivem a redução de doença, bem como o acesso universal e igualitário.
Como se verá na seção 2.5, o fato do aborto ser tipo penal previsto em legislação não obsta sua prática habitual, sendo realizada tão somente sem o devido acompanhamento médico, tendo-se, portanto, que um possível efeito concreto da criminalização é a prática insegura do procedimento, podendo colocar em risco a saúde da mulher, o que, consequentemente, violaria esse direito fundamental.
Ademais, poderia violar o direito ao planejamento familiar previsto no artigo 226, par. 7º, da CF[39], que é fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, se tratando de livre decisão do casal, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
O planejamento familiar é regulado pela Lei no 9.263/96 que caracteriza, em seu artigo 2º[40], que se trata de um conjunto de ações para regular a fecundidade, garantindo a liberdade de constituição, limitação ou aumento da prole, igualmente para a mulher, o homem ou o casal.
A proibição da interrupção voluntária da gravidez, portanto, pode se constituir como um óbice ao livre planejamento.
Apesar de, para determinados setores da sociedade, constituir uma violação de diversos outros direitos, como os que fundamentaram tanto a ADPF 442 quanto o HC 124.306, ambos estudados na seção 2.3, este trabalho focará, por fim, no direito à vida e, consequentemente, a temática da dignidade da pessoa humana.
O Estado busca obrigar a mulher a concluir a gestação e ter o bebê, “garantindo a vida desde a concepção”[41], porém vale questionar que tipo de vida será esta.
A criminalização do aborto pode afetar não somente o direito à vida e da dignidade da pessoa humana da mãe, mas também do feto que buscam proteger.
Essa possível violação ao direito da mulher decorre da imposição tanto física quanto psicológica, conforme mencionado no julgamento do HC 124.306[42]. Física, pois seu corpo passa por diversas alterações ao longo da gestação e até mesmo após o parto, como ocorre com a amamentação, por exemplo. Psicológica, pois ela se torna responsável emocional, física, financeiramente e de tantas outras formas por essa vida – a menos que coloque para adoção.
Quanto à possível violação ao direito do feto, essa pode se dar pelo fato de, ou ser criado por uma mãe que não o desejava e que poderá ressenti-lo por toda sua vida, ou por passar pelo sistema adotivo, que é, no mínimo, árduo.
Assim, deve-se ponderar se a possível violação de tantos direitos fundamentais é proporcional e razoável de se exigir.
Por fim, estudam-se justamente os princípios da proporcionalidade e da ponderação de valores e suas aplicações no caso do aborto.
Primeiramente cumpre definir esses princípios.
O princípio da proporcionalidade, também conhecido como princípio da razoabilidade, é composto por três elementos ou subprincípios.
O primeiro deles é a necessidade, que nos termos de Barroso[43], prevê que a medida que possa limitar direito só é legítima se não poder ser substituída por outra menos radical, devendo ser indispensável para o caso concreto.
O segundo elemento, ainda conforme Barroso[44], é a adequação, ou seja, se o meio escolhido atingirá o objetivo.
O terceiro e último elemento é a proporcionalidade em sentido estrito, que se configura quando o meio utilizado é eficiente para alcançar o fim pretendido, compensando o sacrifício do direito restringido; nas palavras de Barroso[45], “se justificar a partir da análise de seus custos e benefícios.”.
Quanto à ponderação de valores, essa ocorre quando dois ou mais princípios ou direitos fundamentais estão em colisão[46]. Quando há esse conflito, é necessário averiguar qual dos direitos deve ser priorizado em cada caso concreto, certificando-se de observar as particularidades, para então, realizada a ponderação de valores, restringir determinado direito em detrimento do outro.
Agora é possível analisar a aplicação desses institutos no caso do aborto, levando em consideração suas particularidades.
Quanto à necessidade de criminalizar o aborto, é possível aferir outros meios menos restritivos aos direitos das mulheres para redução do número de abortos realizados, como, por exemplo, a educação sexual quanto ao uso de métodos contraceptivos, bem como o amplo acesso a estes.
No que diz respeito à adequação, como se constatará pelos números da Pesquisa Nacional de Aborto 2016[47], estudados na seção 2.5, a prática deste procedimento é cotidiana, portanto não se verifica que o objetivo tenha sido atingido através desta medida.
Por sua vez, a proporcionalidade em sentido estrito também não se verifica necessariamente no presente caso, tendo em vista que os benefícios (suposta proteção do feto) podem não compensar os custos (saúde, segurança, vida e diversos outros direitos das mulheres).
O entendimento do Supremo Tribunal Federal é no mesmo sentido, como se verificou no voto vista do Ministro Barroso, no julgamento do Habeas Corpus no 124.306[48], no qual foi utilizado o fundamento de que o princípio da proporcionalidade não está sendo devidamente aplicado.
No que diz respeito ao elemento adequação, após analisar se e em que medida a criminalização protege o feto, entendeu que, na prática, não há, efetivamente, essa proteção ao direito à vida do feto.
Quanto ao elemento necessidade, por sua vez – ou seja, verificar a existência de meios alternativos - o entendimento foi que, ainda que se verificasse uma efetividade mínima decorrente da proibição, há, de fato, outros instrumentos adequados e eficientes para resguardar os direitos do feto, mas que acarretassem em uma menor lesividade aos direitos das mulheres.
Por fim, versando sobre o elemento proporcionalidade em sentido estrito - ou seja, se as limitações impostas aos direitos fundamentais das mulheres por conta de criminalização são ou não compensadas pela proteção conferida à vida do feto - entende que, ponderados os custos e os benefícios da tipificação penal desta conduta, torna-se clara a ilegitimidade constitucional da criminalização da interrupção da gravidez por escolha da mulher, uma vez que viola seus direitos fundamentais.
No caso do aborto, os direitos em conflito são o direito à vida do feto e os diversos direitos da mulher, mencionados ao longo do trabalho.
Por se tratar de um assunto controverso na sociedade, o direito que deverá preponderar sobre o outro varia entre os setores da sociedade em razão de diferentes fatores, como sociais, econômicos e religiosos.
No entanto, o Estado deve manter-se imparcial, sem influência desses fatores, uma vez que deve zelar pelo bem da população, independentemente do entendimento de seus agentes sobre determinados assuntos.
2.5 LEGALIZAÇÃO DO ABORTO
Apesar de não haver, na doutrina e na sociedade, conflito quanto à definição do aborto, há uma grande discussão em torno da descriminalização do procedimento, por opção da mulher.
Diversos argumentos são utilizados contra a legalização, como, por exemplo, a religião e a existência ou não de vida desde a concepção, ou quando seria o momento em que o feto pode ser considerado um ser vivo.
Cumpre ressaltar, tal como Barroso[49], que a reprovação ideológica do aborto por qualquer pessoa é absolutamente legítima. O que não pode ocorrer, no entanto, é que uma conduta seja criminalizada por conta da ideologia de um grupo de pessoas, uma vez que o Estado deve se posicionar imparcialmente. No caso do aborto inclusive, uma vez que ninguém é obrigado a realizar o procedimento se não o quiser, enquanto que, por outro passo, aqueles que desejam realizá-lo, não podem.
Nos dias atuais, apesar de ilegal, o aborto é praticado frequentemente, apesar de não ser possível aferir com precisão o número de procedimentos realizados, uma vez que não há dados oficiais que sejam 100% confiáveis, em razão da ilicitude da conduta.
Foi realizada, no entanto, uma pesquisa nacional[50], em 2016, por Diniz, Medeiros e Madeiro, que se trata de “um inquérito domiciliar cuja amostra probabilística representa a população feminina de 18 a 39 anos alfabetizada do Brasil”, e que chegou ao seguinte resultado:
A partir das taxas de aborto de alfabetizadas urbanas, aferida em treze por cento, extrapolou-se que, em 2016, o número de mulheres que havia realizado aborto, pelo menos uma vez na vida, seria em torno de 4,7 milhões.
É relevante ressaltar que, uma vez que grande parte dos abortos realizados no Brasil é ilegal, ou seja, é realizado em instituições não regularizadas ou fiscalizadas, este procedimento se trata de um dos maiores problemas de saúde pública no Brasil.
Ou seja, a previsão do aborto como fato típico não impede sua realização em massa, significa apenas que as mulheres que desejam realizar o procedimento o fazem em condições precárias, se tratando, em maioria, de mulheres de baixa renda que não possuem dinheiro para fazê-lo em clínicas ou de viajar para fazê-lo em países em que é legalizado.
Inclusive, os dados portugueses apontam que quatrocentos e quarenta e nove mulheres brasileiras realizaram o procedimento em 2015[51] e trezentas e setenta e nove em 2016[52].
No Brasil, os dados oficiais são aqueles apresentados pelo Ministério da Saúde[53], e decorrem de informações coletadas em atendimentos realizados no Sistema Único de Saúde (SUS) e ajustadas por critérios estatísticos.
Na audiência pública realizada pelo STF[54], em 03/08/2018, para esclarecimentos sobre o aborto, foram prestadas diversas informações por diferentes especialistas que, no referido ato, serviram como representantes de órgãos e instituições oficiais.
Vale destacar algumas dessas informações, como o fato de que uma em cada cinco mulheres já realizou o aborto no Brasil. A estimativa do Ministério da Saúde é que são realizados, por ano, aproximadamente um milhão de abortos induzidos.
O Ministério reconhece, ainda, que apesar da decisão de interromper a gestação não dependa de classe social, quem mais morre por conta desse procedimento, no Brasil, são as mulheres em posições de maior vulnerabilidade, como mulheres jovens, mulheres negras e aquelas que têm até o ensino fundamental.
Constataram também que a realização insegura do aborto acarreta em mais de duzentos e cinquenta mil hospitalizações no Sistema Único de Saúde (SUS), gerando, por ano, quinze mil complicações, cinco mil complicações extremamente graves, em estado de quase morte, e duzentas e três mortes.
Além do Ministério da Saúde, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) argumentou pela descriminalização, pelos fundamentos de que, uma vez que a Constituição Federal considera a saúde um direito fundamental, gera, consequentemente, deveres ao Estado e aos profissionais da área, de zelar pela população, prevenindo quaisquer danos evitáveis.
Ou seja, a FEBRASGO entende que a criminalização do aborto é incoerente, pois os médicos têm o dever de proteger as mulheres que desejam realizar o procedimento da automutilação, lesões graves ou permanentes à saúde e até óbitos, porém são punidos criminalmente se cumprirem com esse dever.
E, por fim, apesar de diversas outras instituições terem prestado depoimentos, analisa-se o informado pela Academia Nacional de Medicina, que entende, em razão dos dados que se tem sobre o aborto no Brasil, que a lei não consegue interferir na decisão da mulher sobre realizar ou não o aborto, uma vez que, mesmo com a possibilidade de serem presas e com riscos à sua integridade física, elas continuam optando pela realização.
Observaram, ainda, que é uma situação injusta e que causa desigualdade, tendo em vista que quem possui recursos financeiros consegue acessar métodos seguros, ainda que clandestinos.
Assim, verifica-se que a questão da descriminalização da interrupção da gravidez apresenta relevante interesse social, devendo ser abordada pela ótica de saúde pública antes de qualquer outro argumento, em razão da realidade da sociedade brasileira no que diz respeito a este instituto, qual seja, a punição de uma conduta que é realizada cotidianamente em todo o país, em sua maioria, sem o devido acompanhamento médico.
3 CONCLUSÃO
Inicialmente verificou-se que a PEC no 29/2015, principal projeto legislativo estudado nesse trabalho, se mostra reprovável, tendo em vista que a proteção da vida desde a concepção implica na criminalização absoluta do aborto, extinguindo até mesmo as hipóteses permissivas atualmente existentes, não devendo, portanto, prosperar, uma vez que é imperiosa a salvaguarda dos direitos das mulheres.
Além disso, conforme demonstrado no trabalho através dos estudos de limite de viabilidade realizados no Brasil e nos Estados Unidos, a alegação de que é possível garantir a perfeita sobrevivência de um feto nascido com apenas 18 semanas de gestação é inverídica, não servindo de fundamento para fins de manter – e muito menos agravar – a criminalização do aborto.
Ademais, conforme se verificou pelo estudo da legislação portuguesa, a descriminalização incorreu na redução da realização de abortos, bem como no aumento da utilização de métodos contraceptivos. Desse modo, a descriminalização poderia ter efeitos positivos mesmo para aqueles que são contra a prática, uma vez que poderia acarretar na diminuição da mesma.
Foi possível verificar também, ao longo deste trabalho, que a criminalização do aborto caracteriza violação ao direito à saúde, à vida e ao planejamento familiar da mulher, bem como outros que foram brevemente mencionados, tendo em vista que inviabiliza o acesso à prática segura do aborto, por conta de entendimento de parte da população que é contra o procedimento.
No entanto, não é justo privar a parcela da população que deseja realizar o procedimento, uma vez que, ainda que descriminalizado, quem não deseja realizar não é obrigado a fazê-lo, enquanto que a recíproca não é verdadeira. Dessa maneira, verifica-se que o Estado está injustamente preponderando o interesse de uma parte da população sobre o restante.
Vale ressaltar que esta violação é decorrente do Código Penal, lei federal hierarquicamente subordinada à Constituição Federal, que protege estes direitos violados, havendo, portanto, uma incompatibilidade material constitucional dos artigos que criminalizam o aborto.
Considerando os princípios da proporcionalidade e da ponderação de valores, não se pode – razoavelmente – exigir que os direitos da mulher, tais como o direito à vida, à saúde e ao planejamento familiar (não se devendo esquecer os demais direitos que foram mencionados no texto, ainda que não estudados individualmente, como, por exemplo, os direitos sexuais e reprodutivos e à integridade física e mental da mulher), sejam sacrificados em prol de um ser ainda em processo de formação e que não possui capacidade para sobreviver extrauterinamente.
Constatou-se também, através da análise da Pesquisa Nacional sobre o Aborto 2016, que o fato do aborto configurar crime não obsta sua prática cotidiana no Brasil, acarretando tão somente em sua prática insegura, muitas vezes causando prejuízo à saúde – e até mesmo vida – da mulher, motivo pelo qual deveria ser descriminalizada e regulamentada pelo Estado, para impedir essa violação.
Desse modo, verificou-se que, para preservar os direitos fundamentais das mulheres, e seguindo o entendimento recente do STF que foi estudado, deveria haver a descriminalização do aborto até a décima segunda semana de gestação, assegurando às mulheres a prática segura do procedimento, sem arriscar sua integridade física, uma vez que se trata de dever do Estado assegurar a saúde de todos.
Assim, concluiu-se com este estudo que a previsão proibitiva em legislação criminal do instituto do aborto, em qualquer hipótese que não o aborto realizado por terceiro sem consentimento da gestante, é prejudicial não apenas à mulher e seus direitos, mas à sociedade como um todo, bem como a ordem jurídica democrática, tendo em vista a afronta à Constituição Federal.
REFERÊNCIAS
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______. Proposta de Emenda Constitucional 29/15. Disponível em:
[1]BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, v. 2: Parte Especial: Dos Crimes contra a Pessoa. 18. Ed. rev. amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 162. E-book. Disponível em: < https://docero.com.br/doc/88vc8x>. Acesso em: 29/08/2019.
[2]NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Direito Penal. 12 ed. rev. amp. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 619-620. E-book. Disponível em: < https://docero.com.br/doc/1x1ve1>. Acesso em: 29/08/2019.
[3]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Pleno. Min. Marco Aurélio. j. 12/04/2012. DJe publ. 29/04/2013. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2226954> Acesso em: 03/09/2019.
[4]GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. 11. ed. rev. amp. e atual. Niterói, RJ. Impetus, 2017, p. 526.E-book. Disponível em: <https://www.academia.edu/35756952/C%C3%B3digo_Penal_Comentado_2017_-_Rog%C3%A9rio_Greco.pdf>. Acesso em: 29/08/2019.
[5]CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 261/19. Dispõe sobre a proibição do comércio, propaganda, distribuição e implantação pela Rede Pública de Saúde de Micro Abortivos e dá outras providências. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2190793>. Acesso em: 07/09/2019.
[6]CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 2, parte especial : arts. 121 a 212. 18. ed. atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 134. E-book. Disponível em: <https://docero.com.br/doc/nv0551>. Acesso em: 15/09/2019.
[7]MOORE, Keith Leon; PERSAUD, TVN.; TORCHIA, Mark G. Embriologia Clínica. 10ª edição, Rio de Janeiro: Elsevier, 2016, p. 79. E-book. Disponível em: < https://docero.com.br/doc/8nvv10> Acesso em: 03/09/2019.
[8]BRASIL. Código Criminal do Império de 1830. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-16-12-1830.htm> Acesso em: 03/09/2019.
[9]BRASIL. Código Penal da República de 1890. Disponível em:
[10]BRASIL. Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de dezembro, p. 2391. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm> Acesso em 03/09/19.
[11]Ibid.
[12]GRECO, op cit, p. 525.
[13]CAPEZ, op cit, p. 141.
[14]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Pleno. Min. Marco Aurélio. j. 12/04/2012. DJe publ. 29/04/2013.Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2226954> Acesso em: 03/09/2019.
[15]CAPEZ, op cit, p. 146.
[16]SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda Constitucional 29/15. Disponível em:
[17]DISTRITO FEDERAL. Secretária de Saúde. Limite de viabilidade em neonatologia. Disponível em:
[18]Disponível em:
[19]Disponível em: <https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1410689#article_introduction>. Acesso em: 03/09/2019.
[20]Disponível em: <https://edition.cnn.com/2017/11/08/health/premature-baby-21-weeks-survivor-profile/index.html>. Acesso em: 11/09/2019.
[21]PORTUGAL. Código Penal (Decreto-Lei n.º 48/95). Diário da República n.º 63/1995, Série I-A de 1995-03-15. Disponível em: <https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/124532375/201909060100/exportPdf/normal/1/cacheLevelPage?_LegislacaoConsolidada_WAR_drefrontofficeportlet_rp=indice>. Acesso em: 03/09/2019.
[22]BRASIL. Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de dezembro, p. 2391. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm> Acesso em 03/09/19.
[23]Disponível em: <http://www.cne.pt/content/referendo-nacional-2007> Acesso em: 01/09/2019.
[24]PORTUGAL. Lei no 16/2007. Disponível em:
[25] Disponível em:
[26]Disponível em:
[27]Disponível em: <https://www.saudereprodutiva.dgs.pt/ficheiros-de-upload-diversos/relatorio-de-ivg-2016-pdf.aspx>. Acesso em: 10/09/2019.
[28]Disponível em: <https://www.saudereprodutiva.dgs.pt/ficheiros-de-upload-diversos/relatorio-de-ivg-2016-pdf.aspx>. Acesso em: 10/09/2019.
[29]Disponível em: <https://www.saudereprodutiva.dgs.pt/publicacoes/interrupcao-da-gravidez/relatorio-de-registos-de-interrupcao-da-gravidez-2016-janeiro-a-dezembro-de-2016.aspx> Acesso em: 07/09/2019.
[30]SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda Constitucional 181/15. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2075449>. Acesso em: 05/09/2019.
[31]Disponível em:
[32]SENADO FEDERAL. Projeto de Lei 2574/19. Dispõe sobre a criminalização do aborto provocado que seja motivado pela má formação fetal. Disponível em:
[33]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Pleno. Min. Marco Aurélio. j. 12/04/2012. DJe publ. 29/04/2013. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2226954> Acesso em: 03/09/2019.
[34]SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda Constitucional 29/15. Disponível em:
[35]CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 882/15. Dispõe sobre as políticas públicas no âmbito da saúde sexual e dos direitos reprodutivos e dá outras providências. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050889>. Acesso em: 10/09/2019.
[36]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas-corpus. Prisão Preventiva. Habeas-corpus n.º 124.306, do Superior Tribunal de Justiça, Rio de Janeiro RJ, 29 de novembro de 2016. Disponível em:
[37] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Audiência pública na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf> Acesso em 10/09/2019.
[38] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 22. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 1232-1233. E-book. Disponível em: < https://docero.com.br/doc/sn5xc0>. Acesso em: 03/09/2019.
[39]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal, 1988. Disponível em:
[40] BRASIL. Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Disponível em:
[41]SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda Constitucional 29/15. Disponível em:
[42]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas-corpus. Prisão Preventiva. Habeas-corpus n.º 124.306, do Superior Tribunal de Justiça, Rio de Janeiro RJ, 29 de novembro de 2016. Disponível em:
[43]BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 253-254.
[44]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas-corpus. Prisão Preventiva. Habeas-corpus n.º 124.306, do Superior Tribunal de Justiça, Rio de Janeiro RJ, 29 de novembro de 2016 Disponível em: <.https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC124306LRB.pdf> Acesso em: 05/09/19.
[45]Ibid.
[46]BARROSO, op cit, p. 300-301.
[47] DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto.Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Cien Saude Coletiva, v. 22, n. 2, p. 653-660. Disponível em:
[48]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas-corpus. Prisão Preventiva. Habeas-corpus n.º 124.306, do Superior Tribunal de Justiça, Rio de Janeiro RJ, 29 de novembro de 2016 Disponível em: <.https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC124306LRB.pdf> Acesso em: 05/09/19.
[49]Ibid.
[50] DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto.Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Cien Saude Coletiva, v. 22, n. 2, p. 653-660. Disponível em:
[51]Disponível em: <https://www.saudereprodutiva.dgs.pt/publicacoes/interrupcao-da-gravidez/relatorio-de-registos-de-interrupcao-da-gravidez-2015-edicao-revista-em-maio-de-2017-pdf.aspx> Acesso em: 07/09/2019.
[52]Disponível em: <https://www.saudereprodutiva.dgs.pt/publicacoes/interrupcao-da-gravidez/relatorio-de-registos-de-interrupcao-da-gravidez-2016-janeiro-a-dezembro-de-2016.aspx> Acesso em: 07/09/2019.
[53]Disponível em: <http://saude.gov.br/acesso-a-informacao/institucional. Acesso em: 07/09/2019.
[54] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Audiência pública na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf> Acesso em 10/09/2019.
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