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Resumo:
O presente trabalho tem por objetivo a análise da polêmica questão que se trava entre os pensadores do direito moderno acerca do direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado e classificado em concursos públicos.
Texto enviado ao JurisWay em 01/08/2008.
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CONCURSO PÚBLICO: UMA VINCULAÇÃO RECÍPROCA
O direito subjetivo à nomeação de candidatos aprovados em concurso público
Fábio Henrique Alves Dias
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo a análise da polêmica questão que se trava entre os pensadores do direito moderno acerca do direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado em concurso público e classificado dentro do número das vagas previstas no edital que inaugura o processo de seleção.
Focado nos aspectos principiológicos que envolvem a questão, a abordagem da matéria se faz preponderantemente à luz dos princípios constitucionais administrativos vigentes, bem como do postulado magno que consagra o ideal de Estado Democrático de Direito no qual o Brasil se funda. Reservou-se vez ainda às divergentes posições doutrinárias e jurisprudenciais que debatem o tema, prestigiando a que vislumbra o direito subjetivo à nomeação como consectário do referido princípio democrático, em detrimento da corrente tradicional que atribui à discrição do administrador público a nomeação do candidato aprovado.
Palavras-chave: nomeação, subjetivo, vinculação, candidato, concurso
SUMÁRIO: I – Introdução. II – A sujeição da Administração Pública aos motivos ensejadores do concurso público e o reflexo de seu descumprimento. II.1 – Problemática. II.2 – Dissenso jurisprudencial e doutrinário. II.3 – A vinculação ao edital como elemento moralizador dirigido ao administrador público. III – Considerações finais. IV – Referências bibliográficas.
A evolução histórica das ciências política, social e jurídica aperfeiçoou o conceito de Estado para deflagrar a idéia de que este não subsiste senão para constituir meios hábeis à promoção do bem comum, assim entendido, como conceituou o Papa João Paulo XXIII, “o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana” [1].
À guisa desse pensamento, hoje já se entende por superada a idéia de que o ente soberano pode ignorar os direitos que ele próprio se propõe a garantir, acabando por culminar tal evolução no surgimento do Estado Democrático de Direito, que se baseia na noção de um Estado cumpridor de suas obrigações, sujeitando-se ao mesmo direito que impõe aos administrados.
É nesse sentido que o presente trabalho se propõe a fazer uma análise constitucional sobre o direito à nomeação de candidatos aprovados em concursos públicos e classificados dentro do número de vagas veiculadas no instrumento que dá publicidade ao certame.
O tema é extremamente controverso. A partir de definições antagônicas acerca da natureza jurídica do ato administrativo que dá provimento ao cargo público, a doutrina mais encorpada divide-se basicamente em duas vertentes: a primeira entende ser o ato discricionário, condicionando o provimento dos cargos públicos ao talante do respectivo ente administrativo que promoveu a sua criação, ao passo que a segunda, insurgindo-se contra esta visão tradicional, defende que as normas editalícias publicadas no instrumento próprio vinculam tanto o candidato como a Administração.
À luz da jurisprudência mais atualizada, este trabalho apresenta uma série de questionamentos sobre o entendimento tradicional acerca da matéria, manifestado não só nos julgados das cortes mais importantes do país, mas também constante das diferentes posições doutrinárias que se digladiam diante da questão, extraindo-se da rica discussão um posicionamento condizente com o postulado do Estado Democrático de Direito.
Orientando-se pela doutrina moderna que privilegia o princípio da segurança jurídica, por intermédio deste estudo, pretende-se demonstrar o dever jurídico e moral do Poder Público de realizar as nomeações dos candidatos classificados dentro do número de vagas ofertadas em edital de concursos públicos, ao fito de assegurar-lhes o direito à respectiva nomeação, minimizando, pois, o desarrazoado comportamento da Administração Pública, que por vezes deixa de nomear candidatos de determinado concurso público em vigor, visando a realizar outro.
Superada a fase em que se concebia a relação entre Estado e indivíduo meramente como oriunda do poder de império e do exercício da gestão discricionária da Administração Pública, ocasião em que o poder político se proclamava desvinculado dos limites jurídicos emanados pelo próprio Estado, almeja-se hodiernamente uma nova perspectiva de Estado, própria dos regimes democráticos, que visa ao equilíbrio e à harmonia das relações havidas entre o Poder Público e o administrado.
No constitucionalismo contemporâneo, não subsiste mais idéia de uma Administração autoritária, desrespeitosa ou descumpridora de seus deveres. Um Estado que se erige sob a forma democrática deve pautar sua administração segundo os ideais éticos e morais reinantes na sociedade. Essa evolução resultou da prática constante com que a humanidade conviveu de inúmeros abusos perpetrados pelo Estado em nome de um putativo interesse público.
Essa deturpação da finalidade estatal serviu como fonte empírica à construção do que hoje se entende por Estado constitucional, no qual, em tese, nos encontramos inseridos atualmente. Diante dessa nova concepção constitucional, novos parâmetros de garantia ao administrado devem ser observados pela Administração Pública, balizando e legitimando todo ato administrativo, sob pena de, ante à sua inobservância, regredirmos a passos largos rumo ao totalitarismo.
Nesse ambiente, uma das grandes questões do Direito Administrativo que ocupa as mais brilhantes mentes administrativistas até os tempos atuais é a discussão acerca do direito subjetivo à nomeação de candidatos aprovados em concursos públicos e classificados dentro do número de vagas ofertadas no edital. Essa questão requer certa meditação sobre um questionamento que lhe é anterior, que conduzirá a sua resolução, qual seja, o dever objetivo de a Administração honrar as cláusulas editalícias firmadas e veiculadas no instrumento que dá publicidade ao certame.
Pelo que já foi abordado nessas linhas preliminares, como qualquer outro ato que evidencie uma manifestação de vontade da Administração Pública, o exercício do poder administrativo de prover o cargo público deve coadunar-se com o princípio democrático que impera nos Estados de Direito, objetivando a prática de atos administrativos condizentes com tal postulado, ou seja, que assegure e respeite os interesses constitucionalmente garantidos dos administrados, principalmente aqueles que afetam potencialmente a sua esfera jurídica.
Chaga do sistema capitalista de produção, o desemprego é realidade palpável em países que, como o Brasil, adotam o sistema de economia de mercado. Por conseguinte, os postos que proporcionam condições dignas de trabalho ganham destaque na sociedade e passam a ser alvos de grandes disputas entre os indivíduos da classe trabalhadora que temem o “grande rolo compressor” do mercado liberal, uma vez que, por ser o trabalho assalariado, o valor da remuneração depende da qualificação profissional e da maior ou menor oferta de mão-de-obra[2].
Nesse cenário, a oportunidade de alcançar a tão sonhada estabilidade econômica e profissional se corporifica no almejado ingresso na carreira pública, o que faz o candidato abdicar-se de importantes momentos de sua vida para se dedicar a um processo de seleção cujos ditames confia ser honrados pela Administração Pública, face ao consectário lógico da presunção de legitimidade dos atos administrativos. Para tanto, o “concursando” investe esforços de toda ordem ao fito de ser aprovado: gastos pessoais e financeiros com estudos direcionados, aquisição de livros e materiais didáticos, abdicação de momentos de lazer e do convívio familiar, etc. Não raro, tais competidores distanciam-se até mesmo de suas atividades laborais, com o fim de dedicar a totalidade de seu tempo na preparação para o exame, confiando, sempre, na premissa de que a Administração honrará com seriedade os compromissos assumidos, para a consecução do interesse público, pelo que só se justifica a despesa, o tempo e o dinheiro público gastos para a realização de um concurso público.
Eis, portanto, o ponto nodal da questão abordada pelo presente trabalho. Seria a indicação do número de vagas no edital do concurso elemento vinculador entre a Administração e os candidatos, obrigando-a a convocar os aprovados até a expiração do prazo de validade do certame? Ou a nomeação ao cargo insere-se no campo da discricionariedade administrativa, reconhecendo-se aos aprovados tão-somente a expectativa de direito ao referido ato de provimento? É o que se pretende elucidar.
Por muito tempo, desenvolveu-se no direito pátrio a sólida doutrina que defende a inexistência de direito subjetivo do candidato aprovado em concurso público à respectiva nomeação, refletindo esse entendimento nas decisões proferidas pelas cortes mais altas do país, em especial o Supremo Tribunal Federal, que sumulou a matéria sob o verbete de nº 15[3].
Aprovada em 1963, sob a égide da Constituição Federal de 1946, à súmula 15, como toda jurisprudência e legislação pré-constitucional, reconhece-se a necessidade de um reexame à luz do que dispõem os princípios constitucionais estatuídos pela Carta de 1988.
Nessa orientação sumular, o Pretório Excelso, ao declarar expressamente que o candidato aprovado em concurso público só teria direito subjetivo à nomeação se o Estado violasse a ordem classificatória do certame em desfavor do candidato preterido, tornou tal candidato, em caso de não preterição, detentor de mera expectativa de direito à sua convocação, não gerando a aprovação, por conseguinte, ainda que dentro do quadro de vagas ofertadas pelo edital, direito subjetivo à respectiva nomeação ao cargo para o qual fora aprovado.
Assim, rejeitou-se a tese que sustenta o direito subjetivo à nomeação em prestígio à que se baseia na premissa de que o ato de nomeação se encerra no exercício discricionário da atividade estatal, submetendo-se a expectativa do candidato ao juízo de conveniência e oportunidade da Administração. No entanto, assentou-se na súmula o entendimento que, evidenciada a necessidade de preenchimento da vaga, nasceria ao candidato aprovado o direito subjetivo à sua nomeação ao cargo. Isso em razão de não se permitir à Administração a arbitrariedade de deixar de prover as vagas depois da prática de atos que caracterizariam, de modo inequívoco, a necessidade de seu preenchimento. Logo, extrai-se do citado enunciado a conclusão de que se o Poder Público não é obrigado a nomear todos os aprovados, face à discricionariedade de que dispõe, a ocorrência de eventual burla à ordem classificatória faz surgir, em benefício do aprovado, o direito de ser nomeado dentro do prazo de validade do concurso, sob pena de grave violação à Constituição Federal de 1988.
Deve ficar registrado que, à época da criação do verbete em comento, a Constituição Federal então vigente não fazia qualquer previsão próxima à que consta no artigo 37, inciso IV, da Constituição de 1988, que estabelece prioridade de nomeação do aprovado em concurso público vigente sobre aqueles aprovados em concursos ulteriores, o que justificou a preocupação da suprema corte em preservar a ordem classificatória, dada a ausência de previsão constitucional expressa.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o Brasil constituiu sua nova ordem jurídica voltada à moralização da Administração Pública, erigindo em seus princípios informativos como objetivo prioritário a seriedade no trato com a coisa pública, já que o quadro político brasileiro é historicamente marcado por escândalos envolvendo o erário.
Nesse aspecto, resta certo que a vigência da posterior Constituição de 1988 torna necessária uma nova leitura da súmula examinada, que deve ser feita à luz dos princípios e ditames estabelecidos pela nova Carta Magna. Isso porque, como norma jurídica mais elevada, a Constituição nova não respeita a ordem jurídica anterior, isto é, não há direito adquirido contra a nova ordem constitucional, a não ser que a nova Constituição assim disponha expressamente, caso em que o direito adquirido atingido deve guardar estreita afinidade com o teor normativo constante do novo comando constitucional. Tal conclusão decorre, tão-somente, da aplicação do princípio da supremacia da Constituição perante todos os outros atos jurídicos.
Apesar de se encontrar alguns posicionamentos diferenciados no Supremo Tribunal Federal, como em alguns julgados isolados da lavra do Ministro Marco Aurélio[4], a suprema corte continuou maciçamente adotando, inclusive em decisões recentes[5], o tradicional entendimento que propugna pela aplicação do sistema deflagrado pela súmula nº 15, qual seja, o descabimento ao candidato do referido direito subjetivo à nomeação. Em especial, deve-se registrar o entendimento do Supremo ao apreciar a constitucionalidade do artigo 77, inciso VII, Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que estabelecia a nomeação de candidatos aprovados em concurso público no prazo máximo de 180 dias, contados da data da homologação de seu resultado. Em sessão plenária realizada em 24/02/2005, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade[6], ao argumento de que o direito à nomeação do candidato aprovado tem sua existência condicionada ao querer discricionário da Administração estatal quanto à conveniência e oportunidade do chamamento daqueles tidos por aprovados, o Supremo julgou, por maioria dos votos, inconstitucional o dispositivo legal supracitado, não obstante o Procurador Geral da República, que propôs a ação, tê-lo reconhecido como regra moralizadora da Administração Pública, apesar de também ter opinado pela inconstitucionalidade do referido dispositivo legal.
Em que pese o tradicional entendimento sustentado pela corte mais elevada do Poder Judiciário brasileiro, alguns juízos de primeira instância e outros tantos Tribunais estaduais e federais do país passaram a mitigar o posicionamento do Supremo[7], inaugurando no ordenamento jurídico nacional idéias mais condizentes com o princípio magno insculpido no artigo 1º da Constituição Federal, que consagra que o Brasil constitui-se
Com acerto, essa nova corrente jurisprudencial advoga no sentido de que a não nomeação de candidatos aprovados encontra-se em desacordo com os princípios administrativos previstos na Constituição, notadamente o da moralidade e o da impessoalidade, reconhecendo, por conseguinte, a ilegalidade do ato omissivo do agente público que não procede à referida nomeação. Defende ainda que o Poder Público, ao abrir um concurso público, destinando verbas em grande escala para a sua realização, deve fazê-lo fundado em razões sérias, principalmente na premente necessidade de provimento dos cargos a que se destina o certame.
Em suma, orienta-se tal corrente pelo pressuposto lógico que deve pautar todos os atos administrativos componentes de um Estado que pretende reconhecer-se como Democrático de Direito, qual seja, a atuação de uma Administração estatal que privilegie a moralidade, a boa-fé, a lealdade e o respeito aos administrados. Desse modo, conforme nos ensina Maria Sylvia Zanella di Pietro, a violação ao princípio da moralidade administrativa se deflagra “quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições” [8].
Nesse diapasão, merece destaque a decisão inovadora ocorrida no âmbito dos Tribunais Superiores [9], na qual o Superior Tribunal de Justiça, corte que tem por competência, dentre outras, a análise da compatibilidade das decisões judiciais com lei federal, foi de encontro à jurisprudência dominante e reconheceu ao candidato aprovado em concurso público o direito subjetivo líquido e certo à nomeação. O pronunciamento foi proferido em sede de Recurso Ordinário em Mandado de Segurança interposto em face de acórdão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que denegou a ordem no referido mandamus, impetrado contra ato do Presidente daquele Tribunal. Assim, essa corte firmou a compreensão de que, se aprovado dentro do número de vagas previstas no edital, o candidato deixa de ter mera expectativa de direito para adquirir direito subjetivo à nomeação para o cargo a que concorreu e foi habilitado.
Entre os doutrinadores, o assunto é igualmente polêmico. Ante a ausência de previsão constitucional expressa, a doutrina também é antagonicamente dividida acerca da matéria, travando-se intenso debate sobre a questão. Defendendo o posicionamento tradicional já esposado, autores como o eminente Hely Lopes Meirelles, José dos Santos Carvalho Filho, Diógenes Gasparini, José Maria Pinheiro Madeira e outros, ao argumento de que o ato de nomeação subordina-se à análise meritória de conveniência e oportunidade da Administração, sustentam que a prática de tal ato de provimento originário fica à inteira discrição do Poder Público, não gerando ao candidato qualquer direito subjetivo à nomeação a classificação dentro do quadro de vagas anunciado pelo ente promotor do concurso público.
Defende essa corrente que o direito que assiste ao candidato aprovado em concurso público é o de, em a Administração desejando prover o cargo, ter de necessariamente recair sobre ele a respectiva nomeação. Desse modo, o que se revela é a reserva à Administração do juízo de conveniência e oportunidade quanto à expedição do ato administrativo de admissão do candidato.
Por outro lado, oxigenando o entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante, a doutrina mais moderna vem adotando posicionamento diferenciado em relação ao tema discutido. Evocando os princípios da moralidade administrativa e da finalidade, sustenta essa corrente haver o dever jurídico da Administração de nomear os candidatos aprovados dentro do número das vagas publicadas no edital, resultando, caso contrário, em ofensa aos princípios em exame, haja vista que o não aproveitamento desses candidatos importará em elevados gastos à maquina estatal, com a celebração de outro certame ou a contratação de pessoal que se fizer necessária, não sendo lícito à Administração, portanto, deixar exaurir o prazo legal de validade do concurso sem proceder às respectivas nomeações dos candidatos habilitados. Desse modo, se aberto concurso para preenchimento de determinado número de vagas, é porque, em verdade, o interesse público assim o demanda, motivo pelo que justificam as verbas, o pessoal e o tempo empregados na realização do concurso.
Dessa forma, observa essa corrente que a Administração Pública, ao publicar edital divulgador da necessidade de preenchimento de determinado número de vagas, obriga-se para com todos os particulares que depositaram no Estado a confiança de ver cumpridas as normas editalícias assumidas pelo ente que promoveu o certame, estabelecendo verdadeira relação jurídica com tantos quantos acorrerem ao edital. Tem-se como defensores dessa corrente os distintos juristas Marçal Justen Filho, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Márcio Barbosa Maia, Ronaldo Pinheiro de Queiroz, Fabrício Motta, dentre outros.
Destarte, conquanto antigo, percebe-se que o tema ainda é motivo de perplexidade no universo jurídico e acadêmico, reproduzindo-se tal dissenso doutrinário em interpretações díspares da lei pelos diversos tribunais de todo o país, quando da análise do caso concreto, o que importa na distribuição inequânime da justiça que o Estado se propõe a prestar.
II.3.1 – O Edital como lei do concurso: uma questão de segurança jurídica
Não se concebe, hoje, na estrutura de um Estado moderno fundado sob a égide do princípio democrático, que seu ordenamento jurídico não consagre como princípio fundamental a noção de segurança jurídica, que repousa na idéia da absoluta e completa previsibilidade da ação estatal pelos cidadãos e demais administrados. Deve o Poder Público, portanto, em respeito a tal princípio, agir com segurança nas situações jurídicas que constituir, velando para que permaneçam estáveis, de modo a privilegiar uma atuação administrativa moral, respeitosa e previsível, sob pena de levar ao descrédito a seriedade das suas ações.
Nesse sentido, apresenta-se o conceito de segurança jurídica como a garantia assegurada pela Constituição Federal ao administrado para que uma determinada situação concreta de direito não seja alterada, especialmente quando o responsável pela preservação de tal direito seja o Poder Público. Assinala a doutrina de Luís Roberto Barroso[10], discorrendo acerca da importância da certeza jurídica como vetor exegético do sistema legal, que a segurança jurídica encerra valores e bens jurídicos que não se esgotam na mera preservação da integridade física do Estado e das pessoas, mas açambarca também, em seu conteúdo, conceitos fundamentais para a vida civilizada, como a continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas.
Exemplo histórico mais marcante de observância a esse princípio nos é fornecido pela Antiguidade, com a morte de Sócrates. Condenado injustamente à morte pelo tribunal ateniense, ao ser acusado de que estaria corrompendo a juventude da época ao culto de outros deuses, o filósofo, mesmo instado por seus discípulos a fugir, não se furtou à sentença e curvou-se à injusta execução. Isso porque, para esse pensador, a obediência irrestrita à lei significava o limite entre a civilização e a barbárie[11].
Diante do atual quadro jurídico constitucional, estabelecido pela Constituição Federal de 1988, o princípio em exame foi elevado à categoria de garantia fundamental, em razão de sua previsão pelo legislador constituinte originário no artigo 5º, inciso XXXVI, da aludida Carta, que protege o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada em face das mudanças repentinas na legislação e na interpretação desta pelas esferas administrativa e judicial. E, como corolário dele, a doutrina e a jurisprudência consagraram também o princípio da boa-fé nas relações jurídicas administrativas, baseando-se na premissa de não ser justo a Administração Pública punir quem, sem ter agido de má-fé, confiou no desempenho honesto das funções exercidas pelo Estado com o fim de angariar algum direito que se entendia devido.
E não há de se observar de modo diverso, pois se a lei é garantia de estabilidade das relações sociais, o princípio aludido deriva de forma inafastável dessa garantia, o que nos leva à compreensão de que esse princípio possui conexão direta com os direitos fundamentais e ligação com demais princípios que dão funcionalidade ao ordenamento jurídico.
Já lecionava o ilustre mestre Miguel Reale, ao dissertar sobre a obrigatoriedade ou a vigência do Direito, que a idéia de justiça se encontra estreitamente ligada à idéia de ordem, chegando à conclusão que “No próprio conceito de justiça é inerente uma ordem, que não pode deixar de ser reconhecida como valor mais urgente, o que está na raiz da escala axiológica, mas é degrau indispensável a qualquer aperfeiçoamento ético”[12].
Dessa forma, como em todas as outras situações, há de se concluir que a atuação administrativa exercida no bojo de um processo de seleção pública deve sempre estar em estreita harmonia com o princípio em debate, que serve como elemento norteador destinado aos atos do administrador público.
A boa-fé da Administração Pública, entendida como um desdobramento natural da moralidade administrativa, tem como uma de suas facetas o mandamento de proteção à confiança jurídica na relação Estado-indivíduo. Tal mandamento, comumente abordado pela doutrina administrativa moderna, parte do pressuposto de que o Estado Democrático de Direito assegura a situação jurídica do candidato-cidadão que contou com a existência de determinadas informações e regramentos quando da publicação do edital.
Nessa linha de raciocínio, impõe-se mencionar o estudo de José Guilherme Giacomuzzi[13], para quem a proteção da confiança, ou confiança legítima, liga-se também à idéia de estabilidade das relações jurídicas, princípio só aparentemente conflitante com a justiça e revelados, num patamar de análise mais abstrato, de uma das aspirações mais insatisfeitas do gênero humano, havendo quem também a indique como postulado básico do Estado de Direito.
O concurso público, entendido como o conjunto de atos administrativos que visa à aferição das aptidões de candidatos ao fito de selecionar os melhores para o provimento dos cargos públicos[14], por se tratar de procedimento marcado por acirradas disputas entre os candidatos, deve ter suas regras disciplinadoras minuciosamente traçadas no edital que lhe dá publicidade. E isso porque à Administração, em nome da segurança jurídica, não é lícito agir incoerentemente com as diretrizes adotadas, de modo a exigir do candidato determinada postura a que não fez referência no edital, uma vez que suas opções geram na coletividade a expectativa do seu cumprimento, e nunca o contrário.
Indubitável, pois, que o comportamento desrespeitoso do Poder Público investe contra os princípios inscritos no artigo 37 da Constituição. Percebe-se indiscutível que, assim agindo, ignora a Administração os princípios básicos da moralidade, da legalidade e da finalidade, na medida em que tem o dever, no exercício regular da gestão da coisa pública, de não agir de modo temerário, sem o que gerará inúmeros problemas à coletividade, esses também geradores de ineficiências e custos adicionais com a manutenção de demandas judiciais, sendo sempre causadores de insegurança jurídica.
Com efeito, a garantia da aplicação objetiva das regras constantes do edital revela inarredável direito do candidato, que depositou toda sua confiança na manifestação de vontade da Administração Pública. Nesse prisma, não se pode admitir que a conduta estatal coloque em risco a estabilidade e a confiança social, sob pena de estimularmos um Estado da desconfiança, da desonestidade, da discórdia, além de germinar os inevitáveis conflitos judiciais, o que vai de encontro ao princípio democrático que visa à harmonização e equilíbrio das relações sociais, nas quais ambas as partes devem ter compromissos com o interesse público.
Pactuam-se, assim, normas preexistentes entre os dois sujeitos da relação editalícia, qual seja, a Administração e o candidato. Tal relação tem o poder de vincular ambas as partes ao constante do teor do instrumento convocatório que as unem. A alteração superveniente das regras do concurso, principalmente a que importe mudança significativa em relação ao comportamento assumido pela Administração ao divulgar o edital, enseja nulidade, pois se traduz em violação aos princípios da legalidade e da segurança jurídica, e fulmina o processo seletivo de invalidade.
Restou evidenciado, dessa forma, que o edital é verdadeira lei interna do certame, e nele se encerra suas normas fundamentais, obrigando tanto a Administração quanto o candidato ao cumprimento de seus preceitos. Assim, dispondo da necessidade de provimento de cargos declarados vagos, deve a Administração reconhecer ao último o direito subjetivo à nomeação.
II.3.2 – A discricionariedade administrativa e a Teoria dos Motivos Determinantes: a transmudação da natureza jurídica do ato administrativo de nomeação
Fato facilmente perceptível a um cientista do direito é o de a experiência revelar através dos tempos que as leis, ainda que bem planejadas, não logram disciplinar toda a gama de relações havidas no seio de uma sociedade, bem como as conseqüências delas advindas. A dinâmica das relações humanas não encontra seus limites nas ortodoxias do direito. Pelo contrário, conforme nos ensina Paulo Nader[15], pode-se dizer que as lacunas são imanentes à legislação, pois haverá sempre situações que desbordam dos parâmetros legais. Miguel Reale, ao referir-se ao artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, complementa, com distinção, que o legislador reconhece primeiramente a impossibilidade de o sistema legal prever todo o campo da experiência humana, havendo sempre um grande número de situações imprevistas[16].
No âmbito da Administração Pública, na qual impera o princípio da legalidade, que determina a vinculação de todos os atos administrativos ao comando normativo, também se reconhece a incapacidade da lei em traçar todas as condutas exigíveis ao administrador público. Assim, em alguns casos, oferece a lei a possibilidade de atuação do administrador segundo seu critério de valoração da conduta a ser adotada no caso concreto, ocasião em que avaliará os aspectos da conveniência e oportunidade do ato a ser praticado[17]. É o que a doutrina denomina de Poder Discricionário.
Contudo, desenvolveu-se na doutrina o postulado de que, ainda que discricionário, o ato administrativo, para preservação de sua validade, nunca poderá deixar de preencher determinados requisitos, quais sejam, a competência, a forma prescrita em lei e a finalidade. Outrossim, também prosperou com a evolução do Direito Administrativo a Teoria dos Motivos Determinantes, que consiste na estreita pertinência entre as razões ensejadoras do ato administrativo e a situação fática declarada como seu motivo. Irretocável, pois, a lição de Hely Lopes Meirelles, ao declarar que “tais motivos é que determinam e justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver perfeita correspondência entre eles e a realidade” [18].
Dessa forma, mesmo diante de um ato discricionário, que em tese não necessita da exposição das razões que levaram o agente público à sua prática, se essas forem externadas, passa-se à vinculação do ato aos motivos que o justificaram.
É nesse contexto que ganha espaço a discussão sobre o direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado em concurso público. A doutrina maciçamente adota o posicionamento de situar-se no campo discricionário da Administração Pública a decisão sobre a contratação e nomeação de pessoal para engrossar seus quadros funcionais. E assim o é por ser somente o ente administrativo responsável pela promoção do concurso o real conhecedor de suas carências e dotações que condicionam a contratação de pessoal, o que legitima o fato de a realização de um concurso estar inserida no âmbito da discricionariedade administrativa. Bem assim que deverá o administrador não só aferir a existência orçamentária que sustentará as despesas, como também a sua adequação aos limites legais, em especial o artigo 19 da Lei Complementar 101/2000, que dispõe sobre responsabilidade fiscal. Indubitavelmente, tais análises são inerentes à função administrativa, restando, portanto, de absoluta necessidade a conferência de discrição para a prática destes atos administrativos de gestão. Logo, não se pretende aqui negar o caráter discricionário da nomeação, mas sim avaliar até que momento a opção discricionária subsiste, bem como os seus efeitos jurídicos decorrentes.
Com a singularidade que lhe é peculiar, Hely Lopes Meirelles[19] destaca, com acerto, a liberdade da Administração em estabelecer as regras que regerão o concurso, assim como os respectivos critérios de julgamento. E assim deve ser por se presumir que o Poder Público, ao decidir realizar um concurso, esteja calcado em estudos detalhados acerca da real necessidade e da funcionalidade do provimento dos cargos que pretender preencher, bem como em pesquisas minuciosas sobre o impacto orçamentário da realização do certame e das contratações de pessoal dele decorrente.
Com efeito, há de se presumir a existência da necessidade pública no provimento dos cargos públicos. Isso porque, ante os princípios dogmáticos informativos do Direito Administrativo, deve-se sempre se pautar na premissa de que a Administração Pública age com base em motivos sérios, relevantes, voltados à realização do interesse público. Dessa afirmativa decorre o postulado que afirma que, quando os atos administrativos surgem para o mundo jurídico, estes trazem em seu bojo a presunção de legitimidade, na qual se pressupõe que sua edição se deu em conformidade com as normas e princípios então vigentes. O fundamento principal de tal prerrogativa inerente aos atos administrativos é o de que, conforme os ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho[20], os agentes públicos competentes para a edição de atos administrativos, no exercício de parcela do Poder Público, estão imbuídos do objetivo de alcançar o bem comum.
Logo, ao abrir um concurso para provimento de cargos públicos, a Administração exterioriza a carência existente no quadro de pessoal do serviço público, havendo, inevitavelmente, de se concluir que o interesse público reclama pelo preenchimento de tais cargos, razão apta a justificar as despesas advindas da movimentação da máquina estatal.
Por oportuno, destaca-se que também há, nessa discussão, uma questão de economia administrativa e, quiçá, de bom senso, já que o não aproveitamento dos aprovados dentro do número de vagas importará em gastos elevados ao Estado, que deverá promover a celebração de outro certame para compor o quadro de funcionários da unidade estatal.
Assevera o insigne jurista Marçal Justen Filho que, dado os princípios administrativos da objetividade e eficácia da atividade administrativa, não é lícito a movimentação do aparato estatal a propósito de caprichos ou termos irracionais praticados pela Administração Pública[21].
Do contrário, corresponderia a admitir a gestão temerária e irresponsável do administrador público, que, com os mais diversos ônus à Administração, realiza determinado concurso sem qualquer necessidade de contratar os aprovados[22], o que não entra na cabeça de um operador do direito.
Evidentemente, isso importaria ir de encontro ao princípio da moralidade administrativa previsto expressamente no artigo 37 da Constituição Federal.
Neste sentido, a melhor e a mais atual doutrina concorda com a idéia de que a decisão de realizar um concurso público esteja circunscrita à esfera discricionária da Administração, em razão de esta possuir maior capacidade de avaliar as suas condições e necessidades de admitir pessoal, mas defende que tal premissa só subsiste, ressalte-se, até o momento em que o ente estatal expressa a necessidade de preenchimento de cargos públicos, veiculando em edital o oferecimento de determinado número de vagas.
A partir da veiculação, pelo instrumento convocatório, da necessidade de se prover um certo número de vagas, aquilo que seria, num primeiro momento, um ato discricionário, transmuda-se em um ato vinculado para o Poder Público, ensejando, em contrapartida, direito subjetivo à nomeação aos candidatos aprovados e classificados dentro do número das vagas anunciadas. Isso porque o edital, como ato normativo que visa a disciplinar o processamento do concurso, situa-se subordinado à lei e vincula, em observância recíproca, Administração e candidatos, que dele não podem se distanciar, salvo em situações que conflitem com regras e princípios superiores, caso em que serão afastadas as regras do certame.
A vinculação ao instrumento que dá publicidade ao concurso é garantia tanto da Administração como do administrado. Tal vinculação é de suma importância, pois por ela se evita as exigências de requisitos que não estejam especificados no edital, bem como serve de forma de controle à moralidade, à improbidade administrativa e à impessoalidade.
Seguindo essa linha de raciocínio, a publicação do edital exterioriza as regras pelas quais a Administração e os candidatos se pautarão, decorrendo de tal declaração de vontade a necessidade de estrita observância bilateral, conforme ocorre nas licitações, em que o Poder Público estabelece as condições de participação e o particular interessado as assume, configurando verdadeiro vínculo jurídico do qual nascem direitos e obrigações.
Assim, embora a decisão quanto a realização ou não do concurso esteja inserta no âmbito de suas atribuições discricionárias, a Administração sujeita-se às diretrizes editalícias estabelecidas por ela própria como regras do certame, de sorte que, no momento em que dá publicidade ao concurso, convocando a sociedade para nele participar, obriga-se a nomear os candidatos aprovados [23], pois ao produzir e veicular o instrumento convocatório, a Administração Pública exaure a esfera discricionária de sua atuação e se obriga perante os particulares interessados a honrar as regras constantes do instrumento que publica a sua manifestação inequívoca de vontade.
Há, em sentido semelhante, quem sustente que a expectativa de direito à nomeação se refere não à convocação em si, mas sim ao seu momento, o que reserva à Administração Pública somente a discrição de nomear o candidato aprovado a qualquer tempo durante o prazo legal de validade do concurso, mas não a discricionariedade de nomeá-lo ou não. Nessa esteira, a eminente Desembargadora Cristina Tereza Gaulia do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, deparando-se com questão idêntica em sede de Apelação Cível[24] da qual serviu como Relatora, afirmou que o direito à nomeação existe, ressalvando que o que não há é o direito ao momento da nomeação.
Admitir que a administração pudesse, sem uma justificativa relevante, deixar de nomear candidatos classificados dentro do número das vagas ofertadas equivale a considerar inútil a regra editalícia disciplinadora do processo seletivo, o que agride os princípios norteadores da hermenêutica das leis, e até mesmo a dos atos administrativos. Se o Estado promove um concurso público (e assim o faz por ser esse o meio constitucionalmente previsto para as contratações de pessoal para o serviço público), impondo uma série de sacrifícios aos particulares que dele pretendam participar, somente poder-se-ia cogitar de deixar de se proceder à nomeação dos respectivos aprovados mediante motivação em que se verifiquem razões satisfatórias para tanto, sob pena de a discricionariedade inerente à realização do concurso esvair-se no campo da arbitrariedade, eivando de vício tal processo de seleção. Nesse mesmo passo, definiu com maestria o notável jurista já citado, Marçal Justen Filho, que a decisão pela Administração de deixar de promover a nomeação deve ser satisfatoriamente justificada, não podendo se restringir à invocação da titularidade de uma competência discricionária.
Ora, deve-se registrar que a idéia aqui defendida não é a de que o candidato tem direito absoluto à nomeação, ou o de a Administração ter o dever absoluto de nomear os candidatos. Isso porque nenhum direito tem sua extensão absoluta, pois todos são passíveis de modificações com o tempo, em compasso com a evolução das necessidades crescentes do ser humano.
O raciocínio aqui defendido é o de que, mantendo-se inalteradas as condições, necessidades e circunstâncias existentes à epoca da abertura do concurso, deve o Estado prover os cargos. Deduz-se, portanto, que se a Administração abre concurso público, ocasionando por conseguinte despesas públicas, para preenchimento de um certo número de vagas, ela se obriga a nomear, no prazo do concurso, os aprovados dentro do número de vagas, a menos que surja motivo significativo e imprevisível, devidamente justificado e comprovado, a recomendar o contrário.
Nesse particular, é relevante registrar que tal compreensão se extrai da correta interpretação das normas. Há tempos que se entende o direito como um sistema, e, como tal, considera-se errônea a interpretação de determinada regra isoladamente, pois ela faz parte de um único sistema jurídico, sendo complementada pelas demais que o compõem, através de uma interpretação sistemática.
Dessa forma, nos ensina Humberto Ávila[25] que a forma de aplicação de uma norma não está determinada pelo texto objeto da interpretação, mas sim pelas conexões axiológicas de que são constituídas, havendo, inclusive, a possibilidade de se obter uma interpretação diversa daquela que inicialmente é tida por elementar. Com efeito, por vezes, quando diante da análise de todas as circunstâncias que gravitam em torno do caso concreto, a natureza absoluta de uma regra é consideravelmente destituída para dar lugar a uma interpretação mais completa, desde que se vislumbrem razões superiores que justifiquem às da própria regra.
Por isso, repise-se, não se pretende nesta sede sustentar o caráter absoluto do direito à nomeação, posto que as normas e os princípios informativos de que se extrai tal direito devem coadunar-se com as demais normas do ordenamento jurídico, de modo a conduzir o aplicador da lei à justa e proporcional solução. Destarte, apesar da inexistência de comando legal expresso que assegure o direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado, ainda que se conclua por tal inexorável direito, deve-se, ao fito de se alcançar a máxima justiça, observância às demais circunstancias que qualificam o caso concreto.
Contudo, revela-se necessário frisar que as razões hábeis a ensejar a interpretação e aplicação da lei de forma diversa da sustentada pelo presente trabalho devem se restringir a eventos fortuitos, ou a casos de força maior, como os eventos naturais, tragédias, desastres, catástrofes, etc., nos quais não reste à Administração qualquer outra opção senão a de deixar de nomear os candidatos habilitados no concurso. E assim deve ser por prestígio ao princípio da segurança jurídica, que consagra a aplicação de norma determinada até que essa seja superada por razões que justifiquem a aplicação de outra.
Na oportunidade, impende destacar que a mera alegação de indisponibilidade financeira como justificativa do não aproveitamento dos candidatos aprovados não se mostra capaz de dar azo ao descumprimento do preceito normativo que impõe a devida contratação. Isso porque, conforme o teor do voto lavrado pelo Ministro Paulo Medina, em sede de Recurso em Mandado de Segurança já referido neste trabalho, no qual funcionou na qualidade de Ministro Relator, essa alegação se relaciona com a questão da governabilidade e esta pressupõe um mínimo de responsabilidade para com os atos administrativos praticados, principalmente quando afetam de forma direta a esfera jurídica do cidadão.
Ademais, a própria abertura de concurso público evidencia a existência de verbas para a realização das nomeações dele decorrentes, havendo necessariamente de ser concluir que, caso contrário, seria ilógica a sua realização. Logo, resta plausível o entendimento de que a realização de um concurso público demonstra cabalmente a necessidade da administração em nomear candidatos aprovados, bem como a possibilidade de fazê-lo.
A sujeição ao edital se apresenta, portanto, como elemento moralizador dirigido ao administrador público, visto que restringe sua ingerência na esfera do particular aos limites já conhecidos por ambas as partes da relação jurídica nascida pela divulgação do interesse da Administração em contratar, reduzindo espaços para arbitrariedades e irregularidades. Vale salientar ainda, em derradeira oportunidade, que essa assertiva encontra guarida em uma interpretação analógica realizada à luz da lei de licitações. Estabelece o artigo 41, caput, da Lei nº 8.666/93, que "A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada”. Ora, conforme nos ensina Ricardo Marcelino Santana[26], repousando tanto a licitação como o concurso público sobre a mesma base finalística, qual seja, o oferecimento de iguais oportunidades aos membros da sociedade para que com a Administração seja aperfeiçoada uma relação jurídica, é razoável supor que o ordenamento normativo dispense isonômico tratamento às situações jurídicas semelhantes.
Há, pois, vinculação do Poder Público à sua manifestação de vontade veiculada no edital, mormente quando de tal manifestação de vontade despertar no particular sonhos e estimular investimentos dispendiosos em um árduo processo de competição pública. Do contrário, teríamos uma burla do Estado àquele que, de boa-fé e confiando na seriedade dos atos da Administração, atendeu ao chamamento, dedicou-se, prestou o concurso, foi aprovado e não aproveitado em vaga existente.
Traçado o quadro fático da questão abordada neste trabalho, pôde-se adentrar minimamente no universo peculiar do concurso público, de maneira que se possibilitou enxergar o motivo pelo qual cada vez mais um maior número de pessoas são atraídas pela carreira pública: o crescente nível de desemprego, essa fatídica mazela social que acompanha o Brasil ao longo de sua história.
Observou-se, ao mesmo passo, que, apesar de pacífico o entendimento de ser as súmulas dos Tribunais elementos relevantes no plano do processo de integração das normas – pois atuam como instrumento norteador para as decisões de juízes e Tribunais, com o fim de orientá-los ao que exprime o entendimento majoritário dos Tribunais superiores na interpretação do assunto de que cada uma trata –, não se pode considerar a súmula nº 15 do Supremo Tribunal Federal como diretriz soberana na solução do dilema apresentado, sob pena de inarredável restrição à proteção normativa da Constituição vigente, que se norteia por princípios administrativos inexistentes à época edição da súmula examinada.
À vista da evolução doutrinária e jurisprudencial, incompatível com noção de Estado Democrático de Direito se mostrou a postura desrespeitosa da Administração Pública ao ofertar em edital de concurso público vagas para preenchimento de cargos, sem proceder às respectivas nomeações. Concluiu-se, então, que, ao provocar tal expectativa e não honrar com as regras editalícias a que se compromissaram Administração e candidato, descamba o exercício da atividade administrativa para o terreno da arbitrariedade, eivando o ato omissivo do Poder Público de vício, e infringido, por conseqüência, os princípios administrativos consagrados pela Constituição Federal de 1988.
Alicerçado sobre a teoria dos motivos determinantes, ao ato administrativo de nomeação reconhece-se a sua natureza vinculada a partir do momento em que a Administração exterioriza a carência de pessoal e convoca a coletividade à participação do concurso público, haja vista que as razões que ensejam o certame devem estar em perfeita harmonia com a situação de fato declarada como motivo de sua realização. Dessa forma, veiculada a vontade de contratar um certo número de funcionários através de concurso, deve a Administração levar a cabo tal intento, visto que se vinculou ao motivo que justificou a realização do dispendioso procedimento seletivo. Tal conclusão lógica encontra espeque no princípio da segurança jurídica, elemento basilar do ordenamento jurídico constitucional, consistente no direito fundamental a uma atuação estatal previsível, estável, séria, condizente com a moralidade e com as diretrizes traçadas em suas ordens políticas.
Nessas condições, a não nomeação de candidato aprovado em concurso público dentro do quadro de vagas inicialmente previsto no edital viola seu direito subjetivo líquido e certo, lesão esta que, ante os princípios constitucionais que informam o Direito Administrativo, resta apta a ensejar a tutela jurisdicional.
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SITES
[1] Papa João XXIII, Pacem in Terris (Encíclica), I, 58. apud DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva 2002.
[2] LUCCI, Elian Alabi, BRANCO, Anselmo Lazaro e MENDONÇA, Cláudio. Geografia geral e do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003.
[3] BRASIL. STF – Súmula 15: Dentro do prazo de validade do concurso, o candidato aprovado tem direito à nomeação, quando o cargo for preenchido sem observância da classificação.
[4] BRASIL. STF – RE 192568/PI. CONCURSO PÚBLICO - VAGAS - NOMEAÇÃO. O princípio da razoabilidade é conducente a presumir-se, como objeto do concurso, o preenchimento das vagas existentes. Exsurge configurador de desvio de poder ato da Administração Pública que implique nomeação parcial de candidatos, indeferimento da prorrogação do prazo do concurso sem justificativa socialmente aceitável e publicação de novo edital com idêntica finalidade. Disponível em
[5] BRASIL. STF - RE 229450-RJ. EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. ARTIGO 77, VII, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO: NOMEAÇÃO DE CANDIDATO APROVADO
[6] BRASIL. STF - ADIN 2931/2003. EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Artigo 77, inciso VII, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Texto normativo que assegura o direito de nomeação, dentro do prazo de cento e oitenta dias, para todo candidato que lograr aprovação em concurso público de provas, ou de provas de títulos, dentro do número de vagas ofertadas pela administração pública estadual e municipal. Disponível em
[7] BRASIL. TJRJ – Ap. Cível 2007.001.30259. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. CANDIDATOS APROVADOS
[8] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991.
[9] BRASIL. STJ – RMS 20718-SP. EMENTA: ADMINISTRATIVO - SERVIDOR PÚBLICO - CONCURSO - APROVAÇÃO DE CANDIDATO DENTRO DO NÚMERO DE VAGAS PREVISTAS EM EDITAL - DIREITO LÍQUIDO E CERTO À NOMEAÇÃO E À POSSE NO CARGO - RECURSO PROVIDO. 1. Em conformidade com jurisprudência pacífica desta Corte, o candidato aprovado em concurso público, dentro do número de vagas previstas em edital, possui direito líquido e certo à nomeação e à posse.
[10] BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
[11] BITTAR, Eduardo. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2000.
[12] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1996
[13] GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2002.
[14] FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
[15] NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
[16] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2003
[17] FILHO, José dos Santos Carvalho. Op. cit. pág. 42
[18] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1999.
[19] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit. pág. 405
[20] FILHO, José dos Santos Carvalho. Op. cit. pág. 111.
[21] FILHO, Marçal Justen. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007.
[22] MAIA, Márcio Barbosa e QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. O Regime jurídico do concurso público e o seu controle jurisdicional. São Paulo: Saraiva 2007.
[23] MAIA, Márcio Barbosa e QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. Op. cit. pág. 225
[24] BRASIL. TJRJ - Ap. Cível 2007.001.16989 EMENTA: Apelação Cível. Administrativo. Mandado de segurança. Concurso público para provimento de cargos de odontologista e especialistas em odontologia no Município de Carmo. Candidato aprovado dentro do número de vagas na especialidade endodontia. Omissão da autoridade impetrada em convocá-lo para nomeação e posse. Afastamento da prejudicial de decadência. (...) Vinculação da administração ao número de vagas divulgado pelo edital. Decorrência dos princípios da legalidade e da moralidade. Se a administração publicou o número de vagas é porque fez prévio estudo quanto à sua necessidade, funcionalidade e impacto orçamentário. Candidatos aprovados dentro do número de vagas têm direito subjetivo à nomeação e expectativa de direito quanto ao momento da nomeação, que pode – e deve – ocorrer dentro do prazo de validade do concurso. Manutenção da sentença. Recurso desprovido. Disponível em
[25] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2007.
[26] SANTANA, Ricardo Marcelino. Comentários à Súmula 15 do STF: uma necessária atualização interpretativa. Disponível em
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