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 Sala dos Doutrinadores - Artigos Jurídicos
Autoria:

Albano Francisco Schmidt
Albano Francisco Schmidt é advogado, formado em direito pela Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE. Atualmente cursa MBA em Direito Empresarial na FGV/Sociesc e LLM em Direito na Northwestern University, em Chicago.

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Monografias Direito Processual Civil

A relativização da coisa julgada

Verifica a difusão e discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da teoria da relativização da coisa julgada, com suas definições jurídicas, histórico, análise de casos práticos, detendo-se especialmente nos mecanismos processuais.

Texto enviado ao JurisWay em 04/06/2012.

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RESUMO

Verifica a difusão e discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da teoria da relativização da coisa julgada, com suas definições jurídicas, histórico, análise de casos práticos, detendo-se especialmente nos mecanismos processuais para a rediscussão da coisa julgada e o impacto dessa aceitação no ordenamento jurídico pátrio, principalmente no que tange quais direitos devem ser preservados e quais poderiam ser relativizados. Conclui que tal tema deverá ser um dos grandes paradoxos a ser enfrentado pela Justiça brasileira, uma vez que sua aceitação poderia comprometer a segurança jurídica e a sua negação a legitimação da injustiça. 

 

PALAVRAS-CHAVE: Relativização da coisa julgada; coisa julgada material; coisa julgada formal; Direito Processual Civil; Teoria Geral do Processo

 

1. CONFLITO: Segurança Jurídica (representada pela coisa julgada material) x Justiça (que servirá de fundamento para as propostas de relativização da coisa julgada).

 

2. INTRODUÇÃO

            O presente trabalho tem como objetivo o estudo acerca da possibilidade de aplicação da Teoria da Relativização da Coisa Julgada no ordenamento jurídico brasileiro, sua previsão legislativa, principais correntes doutrinárias acerca da matéria e em especial uma análise de prós e contras de sua utilização pelos magistrados pátrios. O tema não é de nada novo, pois desde o Direito Romano já havia o problema acerca da dicotomia Segurança Jurídica versus Justiça, ou seja, nem sempre uma decisão humana, passível de erro ou má-interpretação, será justa e pacificadora. Nesse instante entra o maior trunfo da relativização da coisa julgada: transformar novamente o branco em preto, buscando uma nova chance de “dar a cada um o que é seu e precisamente o que é seu”.

            Apesar de pouco difundido na jurisprudência, sendo o acórdão do recurso especial número 226436/PR, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, acerca das investigações de paternidade um marco, o assunto é alvo de verdadeiras cruzadas doutrinárias e acadêmicas, ainda mais com sua inclusão na pauta dos maiores congressos e simpósios de todo país. A importância da coisa julgada é tamanha que a própria Constituição Federal a prevê em seu rol de Direitos e Garantias Fundamentais, tendo reflexo em todos os outros ramos do Direito, afinal, onde houver uma decisão contrária ao Direito, certamente haverá uma parte buscando de todos os meios para provar sua causa.

 

3. COISA JULGADA: DEFINIÇÕES PRELIMINARES

3.1. Definição jurídica moderna

Pela definição da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº4.657), a coisa julgada é a decisão judicial de que não cabe mais recurso e é também uma das bases do direito. A imutabilidade dela decorrente é uma garantia constitucional (art. 5º, inciso XXXVI), sendo por isso direito fundamental e em razão do disposto no art.60, § 4º, inciso IV, também cláusula pétrea da Constituição.

 

3.2. A Ação Rescisória

            O Código de Processo Civil (Lei nº 8.869) prevê, em seu art.485, a possibilidade da ação rescisória, que visa com exclusividade alterar uma sentença que tenha transitadoem julgado. Paraisso, deve se atentar para uma série de requisitos inerentes ao objetivo da ação tais como corrupção do juiz, prova falsa, aparecimento de documento novo até então desconhecido e outros. O prazo para ingresso da ação rescisória é de 2 anos a contar do transito em julgado da decisão.O que aqui se analisa é quando tal tempo já se esgotou e não haviam surgido, neste pequeno lapso temporal, alterações substanciais na realidade, no caso concreto, a ponto de ação rescisória ter todos os seus quesitos preenchidos em tempo hábil. Como é, por exemplo, o caso do advento dos exames de  DNA (que atestam com 99,99% a possibilidade de uma pessoa ser ou não pai de uma criança) a e as respectivas ações de investigação paternidade que haviam transitado em julgado há muito mais de dois anos antes de sua invenção e a questão de muitos filhos biológicos sem filiação. O que embasa, aliás, a relativização da coisa julgada é justamente o processo hermenêutico que se faz do inciso VII deste artigo que diz que “a sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando depois da sentença o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável”. A pergunta que resta é: e se este “documento” surgir apenas após os dois anos que faz alusão o art.495 (“O direito de propor ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão”)? Tem-se então o início da problemática da relativização da coisa julgada.

 

4. HISTÓRICO        

A coisa julgada material, durante muitos séculos, foi posta tal qual um dogma católico: insuscetível de discussão, ainda que um olhar mais atento perscrutasse toda a sua fragilidade. Os mais afoitos já afirmavam que a “sentença que passa em julgado é havida por verdade” ou ainda, como tanto gostam os doutrinadores, “teria o poder de transformar preto no branco”. Por ter o escopo de pacificação social, a sentença teria um momento de se tornar imutável, sob pena de se eternizar o conflito. Enquanto houvesse recursos a serem interpostos, a verdade ainda não teria vindo à tona.

Contudo, uma vez que uma das partes desistisse de recorrer ou todos os recursos já houvessem se exaurido, deveria ser porque finalmente se chegou “a uma verdade”. Para estes, a sentença injusta era apenas um problema passageiro, pois uma vez que transitada em julgado, revestida do manto protetor da imutabilidade, passaria até mesmo a ser justa! Tal pensamento encontra-se hoje superado. No entanto, até mesmo processualistas consagrados como Liebman (apud CÂMARA et al, 2008, p.19) tem definições um tanto quanto duras sobre a coisa julgada, afirmando esta ser,

a imutabilidade do comando emergente de uma sentença. Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua essência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato.

Montelone (apud CÂMARA et al, 2008, p.19) vai ainda além:

Quando o direito é declarado, as controvérsias e as contestações são anuladas, ficando então estabelecido qual das pretensões em conflito é fundada e tem dignidade jurídica, ou seja, quem tem razão ou não.

 

Por outro lado, uma luz no fim do nebuloso túnel no qual caminha o processo é dada por Couture (apud CÂMARA et al, 2008, p.21). Concordando o autor com boa parte das principais características da coisa julgada (imutável, indiscutível, certeza do final do processo, mantenedora da segurança jurídica), faz uma perturbadora ponderação:

A verdade é que, ainda assim, a necessidade de certeza deve ceder, em determinadas condições, ante a necessidade de que triunfe a verdade. A coisa julgada não é de razão natural. Antes, a razão natural pareceria aconselhar o contrário: que o escrúpulo de verdade fosse mais forte que o escrúpulo de certeza; e que sempre, em face de uma nova prova, ou de um fato novo fundamental e antes desconhecido, se pudesse percorrer de novo o caminho já andado, a fim de estabelecer o império da justiça.

E finaliza, posteriormente, sua lição, que serve de escopo e base para toda a teoria da relativização da coisa julgada: “A coisa julgada é, em resumo, uma exigência política e não propriamente jurídica; não é de razão natural, mas sim de exigência prática”. O ponto crucial a ser enfrentado pelos juristas e acadêmicos modernos é: até que ponto se pode chamar de prático e pacífico uma sentença errada e imutável, uma mentira que será juridicamente tomada como verdade, para sempre, por questão “de segurança”?

 

5. ANÁLISES PRÁTICAS

Tal problema é recorrente e se intensifica quando nos deparamos com uma sentença inconstitucional que transiteem julgado. Aprimeira vista tal aberração parecerá impossível, no entanto, exemplos não faltam nos tribunais de acórdãos que impedem a liberdade de atuação dos cultos ou que autorizem (muito presentes em nossa cidade) uma empresa a não pagar seus funcionários em momentos de crise extrema e “reestruturação”. Estes, para boa parte da doutrina, já tem uma solução evidente: nunca terão força de coisa julgada e poderão, a qualquer tempo, serem desconstituídas. Não é, contudo, o que se tem visto na prática: no caso concreto, revestem-se sim do manto sagrado da coisa julgada, tornando-se imutáveis, ainda que inconstitucionais. Começa então a real problemática: relativizar ou não a coisa julgada? Se sim, até que ponto?

Há sempre que se ter em vista que embora todo o ordenamento jurídico esteja voltado a oferecer a necessária segurança e estabilidade nas relações humanas, o certo é que não é a segurança jurídica o fim máximo buscado pelo Direito. Certamente acima dele encontram-se outros objetivos. Dentre esses, destaque-se, em especial, o princípio da justiça.

Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni (Sobre a chamada relativização da coisa julgada material. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5716>. Acesso em: 10 jun. 2008)

A posição que até hoje prevalece está ligada à idéia de que o Direito – e a norma do caso concreto produzida pelo Judiciário – é válido porque foi assim declarado pelo ‘soberano’, e não porque é justo. Tal noção de Direito tem claras raízes na concepção de validade do Direito de Thomas Hobbes, que por sua vez fundamenta a conhecida posição de Hans Kelsen. Pode-se afirmar com convicção que o ordenamento jurídico brasileiro não é partidário absoluto da concepção hobbesiana de direito. Prova disto, no âmbito da legitimidade das decisões judiciais, é a própria existência de hipóteses legais de relativização da coisa julgada mediante a ação rescisória.

Continua posteriormente o autor, dessa vez fazendo um contraponto muito interessante:

Em favor da relativização da coisa julgada, argumenta-se a partir de três princípios: o da proporcionalidade, o da legalidade e o da instrumentalidade. No exame desse último, sublinha-se que o processo, quando visto em sua dimensão instrumental, somente tem sentido quando o julgamento estiver pautado pelos ideais de Justiça e adequado à realidade. Em relação ao princípio da legalidade, afirma-se que, como o poder do Estado deve ser exercido nos limites da lei, não é possível pretender conferir a proteção da coisa julgada a uma sentença totalmente alheia ao direito positivo. Por fim, no que diz respeito ao princípio da proporcionalidade, sustenta-se que a coisa julgada, por ser apenas um dos valores protegidos constitucionalmente, não pode prevalecer sobre outros valores que têm o mesmo grau hierárquico. Admitindo-se que a coisa julgada pode se chocar com outros princípios igualmente dignos de proteção, conclui-se que a coisa julgada pode ceder diante de outro valor merecedor de agasalho. (...) Contudo, admitir que o Estado-Juiz errou no julgamento que se cristalizou, obviamente implica em aceitar que o Estado-Juiz pode errar no segundo julgamento, quando a idéia de "relativizar" a coisa julgada não traria qualquer benefício ou situação de justiça. (...) O que se deseja evidenciar é que a eternização da possibilidade da revisão da coisa julgada pode estimular a dúvida e, desse modo, dificultar a estabilização das relações.

Um dos exemplos que a doutrina tem usado para dar fundamento à tese da relativização é o da ação de investigação de paternidade cuja sentença, transitada em julgado, declarou que o autor não é filho do réu (ou o inverso), vindo depois um exame de DNA a demonstrar o contrário. Diante disso, e para tornar possível a rediscussão do que foi afirmado pela sentença transitada em julgado, argumenta-se que a indiscutibilidade da coisa julgada não pode prevalecer sobre a realidade, e que assim deve ser possível rever a conclusão formada. Em defesa desta idéia insurgem-se os processualistas mineiros Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiros, para quem a inconstitucionalidade de uma sentença transitada em julgado poderia ser “reconhecida por qualquer juízo ou tribunal, até mesmo de ofício, a qualquer tempo”. Afinal, a tal decisão faltaria aptidão ou idoneidade para gerar efeitos, assim, “embora existente, (...) o ato judicial seria nulo”.

Leonardo Greco (apud CÂMARA et al, 2008, p.24-25) tende a discussão para outro ponto ao indagar se seria

a coisa julgada um direito fundamental ou uma garantia de direitos fundamentais e, como tal, se a sua preservação é um valor humanitário que mereça ser preservado em igualdade de condições com todos os demais constitucionalmente assegurados; ou se, ao contrário, seria apenas um princípio ou uma regra de caráter técnico processual e de hierarquia infraconstitucional, que, portanto deva ser preterida ao primado da Constituição e da eficácia concreta dos direitos fundamentais e das demais disposições constitucionais.

Reconhece o autor que a segurança jurídica não é um valor absoluto, afirmando que a ela devem se sobrepor a vida e a liberdade do ser humano (crendo, por exemplo, que a declaração de inconstitucionalidade deve determinar a anulação de qualquer condenação criminal anterior com base na lei tida como inválida).

A solução proposta por Porto (apud CÂMARA et al, 2008) seria o aumento do prazo para a propositura da ação rescisória, superior a 2 anos, ou até mesmo a inexistência do prazo para a propositura (encontrando arrimo na revisão criminal). Não é das idéias mais bem vindas no atual andamento da questão a proposição de uma reforma que queira deixar sem prazo o direito a rescisão. Isso sim seria desconsiderar completamente a segurança jurídica e estar alheio à necessidade da pacificação social. Surge então mais um grande problema: uma vez que concordemos que podem as sentenças transitadas em julgado serem relativizadas, qual o prazo que se dará para a propositura de tal ação? Ou, como quer o professor, não haveriam prazos, já que a tecnologia e o mundo são mutáveis e imprevisíveis? Tal dificuldade somente virá a ser sanada com lei futura, que poderá eventualmente adotar o prazo do atual Código Civil (de 10 anos, entretanto, isto apenas suscitaria novas discussões de relativização) ou ainda trará algum dispositivo concernente a um determinado decurso de tempo após a invenção de uma nova tecnologia ou descoberta de novo fato-documento. Por exemplo, a ação rescisória poderia ser proposta 5 anos após o desenvolvimento de um invento que reconstituísse fielmente o passado ou 2 anos após a descoberta de um documento até então desconhecido, nos moldes do Direito Penal. Em seu art.103 o Código Penal (Decreto-Lei nº2.848) estatui que “o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime”, ou transpondo para nosso exemplo, “decai o direito de proposição da ação rescisória  se esta não for proposta dentro do prazo de 2 anos, contado do dia em que se tornou disponível nova tecnologia-documento”, evitando assim que o prazo decadencial se torne eterno.

Entende-se, junto da corrente doutrinária majoritária, que a coisa julgada é sim uma garantia constitucional, afinal ela é expressamente mencionada no artigo 5º caput da Constituição Federal de 1988: “(...) garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito (...) à segurança”, a qual, por um processo lógico, entende-se que seja também jurídica. Posteriormente, de maneira cristalina, o inciso XXXVI reforça esta afirmação, na santíssima trindade do Direito brasileiro: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Contudo, como bem pondera Alexandre Câmara, isso não implica em afirmar que tais garantias sejam absolutas. Nem mesmo as garantias constitucionais são imunes às relativizações e ponderações, ou as antinomias reais nela presentes seriam simplesmente insolúveis. O que se deve buscar é sempre o “todo harmônico” de que tanto fala a doutrina portuguesa, em especial na figura de Canotilho e seu discípulo tupiniquim José Afonso da Silva. Ou mesmo Cançado Trindade e Flávia Piovesan, se fôssemos entrar no mérito da proteção aos Direitos Humanos e sua inabalável crença na aplicação de norma mais favorável a vítima (num exemplo claro de relativização de Direitos e Garantias Fundamentais).

Vale ser mencionado, aliás, a ampla adoção pela doutrina e jurisprudência pátria ao dito “Princípio da Razoabilidade”, que nada mais é do que o afastamento de uma garantia constitucional para a aplicação de outra, protegendo sempre o bem da vida de maior relevância (pacífico hoje, por exemplo, que num conflito envolvendo a vida e um direito de propriedade, aquele deve prevalecer). Tal princípio insere-se sem nenhuma dificuldade na defesa que se faz da relativização da coisa julgada, afinal, não seria o caso de se querer fazer prevalecer um direito constitucionalmente assegurado sobre outro? E não só isso. Afirma ainda Alexandre que “a norma infraconstitucional pode, por sua própria conta, ponderar tais interesses e estabelecer o modo como essa relativização se dará”, citando o caso da relativização ao direito, constitucionalmente assegurado, de herança. Este “é limitado pelas normas infraconstitucionais que tratam da dignidade”. A grande questão torna-se, uma vez mais, decidir quando e em que circunstâncias poderia uma sentença transitada em julgado ser reformada. De doutrina ainda não plenamente pacífica, a corrente predominante afirma que apenas as sentenças manifestamente inconstitucionais poderão sofrer reapreciação, ou correr-se-ia o risco de cair em um ciclo vicioso: a parte perdedora iria recorrer indefinidamente, até o esgotamento de seus recursos financeiros ou de sua paciência, numa alegação permanente de que a sentença proferida está, genericamente falando, “errada”. Isto seria inconcebível e traria sérias conseqüências para a manutenção da paz e da ordem jurídica interna.


6. MECANISMOS PROCESSUAIS PARA A REDISCUSSÃO DA COISA JULGADA

Existiu, por Medida Provisória (número 2.180-35) que alterava o artigo 741 do Código de Processo Civil, a possibilidade expressa de relativização da coisa julgada, pois o alegado parágrafo único do art.741 dizia que “para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”. Ou seja: é inexigível o título judicial, uma sentença transitada em julgado, caso o Supremo Tribunal Federal entenda que a lei em que foi baseado o julgamento for, ainda que posteriormente, declarada inconstitucional.

Outro modo processual muito semelhante à idéia de relativização da coisa julgada é a querela nullitatis, instituto originário do Direito Romano que ainda sobrevive no Direito Moderno, que tem por escopo o reconhecimento da ineficácia de uma sentença (pelos mais diversos motivos, desde a inconstitucionalidade de seus fundamentos até a falta da citação de um litisconsorte necessário). No entanto, não nos ajuda tal instituto, pois este também é alvo de muita polêmica jurisprudencial e doutrinária acerca de sua validade no ordenamento pátrio.

A decisão processual mais acertada no caso de uma questão de sentença inconstitucional transitada em julgado é também a mais simples. Para Câmara (2008) qualquer meio idôneo poderia reconhecer sua ineficácia, ou seja, “por qualquer meio capaz de permitir que essa questão seja suscitada em outro processo, como questão principal ou como questão prévia”. Contudo, o que de fato deveria ser feito para não ficarmos com um sistema confuso e desregulado seria a inclusão, em leis futuras, da possibilidade de relativização da coisa julgada no art.485 do CPC, ampliando os poderes e prazos da ação rescisória.

 

7. JURISPRUDÊNCIA

Vale analisar aqui o entendimento firmado no Egrégio Superior Tribunal de Justiça ao analisar o recurso especial 226436/PR, em 4 de Fevereiro de 2002, que deu todo o embasamento necessário a uma maior difusão da teoria da relativização da coisa julgada.  Um verdadeiro marco citado em todos os artigos e livros publicados acerca do tema. Vai além, diga-se de passagem, sendo um grito de libertação que já vinha sendo esperado desde o Direito Romano, quando começaram as primeiras discussões acerca da revisão de sentenças. Não menos válido ressaltar, ainda, que tal decisão possui um teor muito tocante, pois trata justamente de uma investigação de paternidade:

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processo civil. Investigação de paternidade. Repetição de ação anteriormente ajuizada, que teve seu pedido julgado improcedente por falta de provas. Coisa julgada. Mitigação. Doutrina. Precedentes. Direito de família. Evolução. Recurso acolhido. Recurso especial n.226436/PR. Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Brasília, 4 de fevereiro de 2002. Fonte: DJ, Data 04.02.202, p. 370, fev. 2002.

I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame de DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido.

II – Nos termos da orientação da Turma, ‘sempre recomendável a realização da perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza’ na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real.

III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca, sobretudo, da realização do processo justo, ‘a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem que estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade’.

IV – Este tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum”

 

8. CONCLUSÃO

O tema é atual e palpitante. Por hora a doutrina racha-se em discussões de cunho filosófico e constitucional, afirmando que “a única ação cabível” num eventual caso de decisão transitada em julgado totalmente contrária ao ordenamento jurídico é a famigerada “ação rescisória”, que, , nem de longe, como se constata, consegue apanhar a vasta gama de problemas que hoje se enfrenta.

Sócrates, em uma clássica passagem, disse certa vez a um aluno: “Crês, porventura, que um Estado possa subsistir e deixar de se afundar, se as sentenças proferidas nos seus tribunais não tiverem valor algum e puderem ser invalidadas e tornadas inúteis pelos indivíduos?”. No entanto, se hoje visse a tecnologia e a crise do Direito, certamente teriam sido outras as suas palavras: “Crês, porventura, que um Estado possa subsistir e deixar de se afundar, se as sentenças proferidas nos seus tribunais não tiverem justiça alguma? Forem vazias, falácias tidas como verdade, apenas pelo desejo de uma segurança em verdade inexistente?”.

A relativização da coisa julgada deverá ser um dos grandes paradoxos a ser enfrentado pelo Judiciário moderno nesta aurora do terceiro milênio ou estaremos fadados ao eterno estigma da Justiça brasileira ser uma Justiça que tarda, falha e ainda legitima a injustiça. Se há mesmo uma justa medida em todas as coisas (modus in rebus) ela certamente não está em manter os olhos da deusa Themis vendados para um tema de tanta importância, que é a possibilidade de transformar um erro em justiça novamente. Se preto pode virar branco, porque branco não poderia tornar-se preto?


9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CÂMARA, Alexandre Freitas et al. Relativização da Coisa Julgada: Enfoque Crítico - vol. 2. Salvador: Juspodivm, 2006.

 

TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Fabris, 2003.

 

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo et al. Teoria Geral do Processo: São Paulo: Malheiros, 2008.

 

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional: São Paulo: Saraiva, 2008.

 

FILHO, Vladimir Brega. A relativização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2185>. Acesso em: 9 jun. 2008.

 

MARIONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada relativização da coisa julgada material. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5716>. Acesso em: 10 jun. 2008.

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