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 Sala dos Doutrinadores - Artigos Jurídicos
Autoria:

Silvio Couto Neto
Silvio Couto Neto, Promotor de Justiça no Paraná, ex-professor da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa), da Fundação Escola do Ministério Público do Paraná e da Escola da Magistratura do Paraná. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela UEPG.

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Monografias Direito Penal

CRIME ORGANIZADO E CRIME DO COLARINHO BRANCO

Busca-se, no trabalho, explicitar a diferença entre os conceitos de "crime organizado" e o já tradicional na criminologia "crime do colarinho branco, com vistas a uma maior justiça em suas persecuções.

Texto enviado ao JurisWay em 14/10/2008.

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1. Exposição
            Muito se tem falado ultimamente em “crime organizado”; na mídia (diária e reiteradamente), no meio acadêmico e forense, em conversas informais entre colegas; enfim, todos aqueles que se interessam pelo assunto criminalidade, ou de qualquer modo estão vinculados a essa matéria por razões profissionais, e especialmente, os membros do Ministério Público com atuação penal, tem em suas pautas de diálogos e preocupações, o fenômeno do “crime organizado”.
            Mas percebe-se também, de uma observação atenta que se proceda nas manifestações que tratam dessa categoria, uma certa insegurança ou incerteza do que realmente signifique o termo “crime organizado”.
Na imprensa, observa-se que a abordagem chama a atenção da sociedade, mostrando-se o “crime organizado” como a mais perigosa e nefasta forma de criminalidade da atualidade, reiterando a necessidade urgente de sua repressão; entre os operadores do direito e, especificamente, no que importa a este trabalho[i], entre os Promotores e Procuradores de Justiça, nota-se uma movimentação em torno do tema, com a preocupação individual, de cada um dos membros da Instituição, bem como coletiva, na repressão dessa criminalidade, existindo mesmo uma entidade nacional, o GNCOC (Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas).
A conceituação do que seria “crime organizado”, porém, é algo mais complexo; dizendo de outra forma, ao tempo em que há uma forte movimentação e busca de repressão ao fenômeno do “crime organizado”, não há, de outro lado, uma precisão conceitual do que seria, efetivamente, tal criminalidade. Alguns elementos são apontados como presentes nas organizações criminosas, para diferenciar suas atuações de crimes que, ainda que praticados por quadrilhas, não sejam assim considerados.
A dificuldade em conceituar tal atividade criminosa vem desde sua procedência. O termo “crime organizado” não tem origem acadêmica (que facilitaria uma conceituação desde o início), nascendo antes mesmo da denominação “crime do colarinho branco” (esta sim originária de estudos criminológicos); pelo que se sabe, aquela expressão (crime organizado) surge na década de 1920, nos Estados Unidos da América, no interior das agências de segurança que combatiam a máfia italiana, que era uma organização de estrangeiros inicialmente pobres – os italianos – e que ganharam dinheiro com atividades ilícitas (a respeito, interessante e profundo trabalho de Juarez Cirino dos SANTOS[1]).
Dessa maneira, entre as várias tentativas de definir os elementos que constituem as organizações criminosas, atualmente, destacam-se alguns sempre presentes. Assim, buscando uma síntese das várias opiniões, pelo que foi produzido até hoje nessa discussão, pode ser identificada como tal as estruturas que apresentem, entre outras, as seguintes características: sejam de uma certa complexidade e secretas; dediquem-se à prática da criminalidade convencional (tráfico de drogas, contrabandos, contrafações, estelionatos, etc); possuam uma certa hierarquia; utilizem comumente da violência para atingir seus objetivos e causem um grande temor na sociedade.
Pode-se apontar ainda – embora não presente na maior parte dos trabalhos nacionais que tratam do assunto – e tendo como paradigma a organização que deu origem ao termo, uma outra característica: a origem, de regra marginal dos componentes dessas organizações (embora comporte algumas exceções). Assim, lembra-se novamente, a máfia, que atuava nos Estados Unidos no início do século XX, era formada por italianos, marginalizados pela sociedade racista americana, pelo fato de serem estrangeiros e pobres.
Essa condição marginal dos italianos que formaram a máfia que atuou na América do Norte, é apontada, inclusive, como um dos fatores que ensejaram o sucesso (se é que pode chamar assim) da atuação criminosa dessa organização. Com efeito, como havia uma identidade cultural, racial e lingüística entre os componentes da máfia, ensejava tais características uma identidade muito grande entre seus componentes, com uma conseqüente fidelidade e coesão, sendo praticamente impenetráveis as “famílias” da máfia a qualquer elemento estranho, não pertencente àquela comunidade.
À guisa de curiosidade, vale lembrar que, além da legalização da bebida alcoólica (cujo tráfico foi o principal campo de atuação da máfia, nos tempos da chamada “lei seca” americana), outro fator que contribuiu para que os organismos de segurança obtivessem sucesso no combate a essa organização criminosa foi a aculturação dos italianos à sociedade americana. Dessa maneira, os filhos dos imigrantes originais, já nascidos nos Estados Unidos, embora “herdassem” alguns dos valores e costumes de seus pais, estes se mesclavam com os adquiridos na sociedade onde viviam e, os netos daqueles imigrantes originais, já tinham muito mais identidade com a sociedade americana, na qual já estavam muito mais inseridos.
Numa análise rápida, pode-se observar que no Brasil atual ocorre fenômeno semelhante ao que ocorria com a antiga máfia italiana atuante nos Estados Unidos, quanto aos vínculos que unem os componentes da maioria das organizações criminosas nacionais.
Os integrantes de organizações criminosas, de regra, como já se assinalou antes, são marginalizados sociais que buscam adquirir dinheiro e “status” pela via da prática de atos penalmente ilícitos; atuam buscando bens que os permitam inserir-se na sociedade de consumo, onde, como afirma Eduardo GALEANO, é necessário “ter para ser”[2] (evidentemente que essa condição marginal não justifica as deletérias ações que praticam).
Tendo-se como modelo para esta análise, o crime mais comentado atualmente em todos os meios de comunicação, qual seja, o tráfico de drogas ilícitas, verifica-se que os grandes comandantes da distribuição dessas substâncias proibidas surgem entre a população mais pobre (por todos, lembre-se do paradigmático “Fernandinho Beira-mar”) e, utilizam-se como mão de obra no interior da estrutura criminosa, desde os “gerentes” do tráfico até à entrega à “varejo” (os vulgarmente conhecidos como “aviões”), outras pessoas oriundas dessa mesma classe social; não raro “encastelam-se” em comunidades carentes, formadas por pessoas de mesma condição econômica (basta lembrar-se as favelas nas grandes cidades).
Apenas para destacar a existência de uma cisão social sensível e grave, vale lembrar a obra de Cristovam BUARQUE[3], onde ele constata a existência de um “apartheid social” no Brasil. Afirma ainda esse autor que há mais semelhança na forma de vestir, nos hábitos, preferências, etc, entre um brasileiro rico ou de classe média com um europeu, do que com um brasileiro pobre.
De maneira que a própria identidade de origem social[4], de objetivos e condições de vida, inexoravelmente geram uma maior coesão e fidelidade entre os integrantes dessas organizações criminosas, tornando muito mais difícil a atuação dos órgãos encarregados da repressão. Na realidade nacional, agrava ainda essa atuação, entre outros fatores, a imposição da “lei do silencio”, através da violência, àqueles que, embora pertencendo à mesma comunidade, não façam parte da organização criminosa; a carência de recursos humanos e materiais das polícias e a lamentável, mas notória, corrupção que assola grande parte desses organismos policiais.
Como hipótese de raciocínio, poder-se-ia afirmar que, à semelhança de que ocorreu nos Estados Unidos do início do século passado com a aculturação dos imigrantes italianos à sociedade norte-americana, um programa que buscasse a integração desses excluídos à sociedade brasileira, poderia ensejar uma significativa diminuição da existência de organizações criminosas e, de conseqüência, um decréscimo dos crimes violentos. Seria, talvez, a melhor política criminal, sem a participação de qualquer dos órgãos de repressão. Mas tal discussão refoge aos estreitos limites buscados neste trabalho.
Pois bem, talvez o leitor mais sensível do ponto de vista social, esteja um tanto insatisfeito com a abordagem até aqui levada a efeito pelo autor, quiçá considerando mesmo que se trata o exposto acima, de uma visão maniqueísta que divide à sociedade entre pobres (e com grande número de potenciais criminosos) e classe média e rica (composta aparentemente por “pessoas de bem” em sua maioria).
Exatamente para tentar romper com essa visão maniqueísta, que muitas vezes – até pela forma de exposição na mídia – acaba se impondo à sociedade e, não raro, contaminando o operador do direito (inclusive os membros do Ministério Público), é que se elabora este pequeno trabalho. E é justamente aqui que se faz necessário falar de “crime do colarinho branco”, distinguindo-o do “crime organizado”.
Como já se mencionou antes, ao contrário do nome “crime organizado”, o conceito “crime do colarinho branco” nasceu dentro de uma ciência, mais exatamente, dentro da criminologia. Como é bastante conhecido, esse termo foi originalmente utilizado por Edwin Sutherland, criminólogo norte-americano, que falou do “white collar crime”, pela primeira vez, em 1939.
Vale, num pequeno retrospecto, lembrar que a criminologia, em sua fase inicial, quando passou a ser reconhecida como ciência, nasceu pelas mãos de um médico, o italiano Cesare Lombroso, que tomava o crime como uma patologia e procurava encontrar uma causa “natural” ou física para explicar sua prática. Assim surgiram as descrições dos criminosos típicos, ou a tentativa de determinar “aspectos físicos” que indicassem propensão para o crime (era o início da criminologia positivista, que ainda hoje tem adeptos).
No entanto, evidentemente que o crime não é um dado ontológico, para o qual se possa buscar uma causa natural; em verdade, e como parece por demais óbvio atualmente, trata-se de um comportamento social, comportamento esse considerado como inadequado pela evolução histórica de determinada sociedade, ou pelas forças nela dominantes em determinado momento histórico, sendo, em seguida, desvalorado pelo direito penal, através da tipificação da conduta.
Diante da distorção na análise do crime pela visão positivista, surge no início do século XX, nos Estados Unidos, a criminologia da chamada “escola sociológica”, que se opõe à idéia lombrosiana de causa natural; mas essa escola também procura o “defeito” (social) que leva à delinqüência. A questão continua sendo encarada como um problema vinculado ao delinqüente e o delito como uma realidade de “per si”, ademais, quase sempre vinculando o comportamento criminoso à pobreza.
É quando o já mencionado Edwin Sutherland procura dissociar a idéia de delinqüência da condição de pobreza.
Cunhando o conceito de “crime do colarinho branco”[5], Sutherland procurou mostrar os inúmeros crimes cometidos por pessoas tidas como socialmente respeitáveis, promovendo, pela primeira vez, o cruzamento de classe alta e políticos com o crime. Demonstra em seus estudos, a forma de tratamento legal e social muito mais favorável que era (e é) dispensada aos crimes praticados pelos segmentos superiores da população, os quais ainda, segundo menciona Julio VIRGOLINI[6], despertam medo e admiração. Medo pelo poder que possuem seus autores e admiração por serem pessoas de êxito, ainda que violando as regras estatais, sobretudo no que concerne à economia.
Afirma Sutherland que o crime está difundido por todas as classes da população, não sendo “privilégio” das mais pobres, ao contrário da percepção social ainda hoje dominante. Constata que os “criminosos do colarinho branco” são privilegiados com uma aplicação muito menor da lei e que não aceitam, não reconhecem ou admitem terem cometido um delito quando violam leis penais; antes, encaram como um comportamento normal ou necessário em suas atividades administrativas, financeiras ou empresariais.
Se puder ser apontada alguma falha na teoria de Sutherland, esta é apenas a de aceitar o crime de forma acrítica, como realidade ontológica; vale dizer, sem questionar o porquê da própria existência de determinadas figuras penais, muitas das quais, hoje já resta demonstrado, existem apenas como expressão de interesses dominantes de classes específicas em determinada época.
Dessa maneira, o “crime do colarinho branco”, enquanto dano grave a bens jurídicos penais indispensáveis a uma sociedade, não pode ser buscado apenas nos limites traçados pela lei, vez que seus protagonistas influem na própria criação da lei e na forma de sua aplicação, através da propagação de determinadas ideologias (isto numa análise criminológica, respeitando-se, evidentemente, quando da operação do direito, o princípio da legalidade). Esta, contudo, é uma outra abordagem que desborda dos limites do presente trabalho.
Assim, tem-se como características dos “crimes do colarinho branco” (e em oposição às organizações criminosas), uma estrutura organizacional amplamente conhecida e de fins considerados socialmente lícitos (v.g., industrias de cigarros, bebidas alcoólicas, instituições financeiras, etc); no seu comando, pessoas possuidoras de privilegiadas condições sociais e econômicas, com grande influência sobre as instâncias formais e materiais de poder, ou componentes da própria elite política; ausência de violência imediata nas práticas criminosas (embora possam causar conseqüências terríveis na sociedade, de maneira difusa), que são intelectualmente elaboradas e, como já se mencionou antes, consideradas pela sociedade e por seus protagonistas como “práticas necessárias” no mundo dos negócios ou da política (p. ex., o empresário que alega que não paga impostos porque isso é necessário para a sobrevivência da empresa).
Imagina-se que, com a breve exposição acima, fica demonstrada a brutal diferença[7] entre a expressão “crime organizado” e o conceito “crime do colarinho branco”, muitas vezes, tomados de forma completamente equivocada como sinônimos, pelos meios de comunicação e, mesmo, pelos operadores do direito.
Se para os meios de comunicação esse equívoco pode ser inclusive intencional e desejado, vez que não se ignora que no interior da estrutura de alguns grandes conglomerados de comunicação (como redes de televisão, grandes jornais ou revistas) podem estar criminosos do colarinho branco, bem como seguramente são clientes dessas empresas de comunicação e lhes aportam recursos, outros inúmeros desses criminosos, ao operador do direito a confusão é totalmente indesejável e prejudicial a uma mais eficaz busca da justiça e de uma eficiente atuação.
Assim se concluí posto que, desviando a atenção para os “crimes organizados”, como ocorre atualmente, pode-se levar à falha de, involuntariamente, enfraquecer-se a perseguição dos “crimes do colarinho branco”, chegando-se mesmo a tomar os primeiros pelos segundos.
Isso é ainda mais provável de ocorrer, sabendo-se que a confusão conceitual cada vez mais passa a permear as agências encarregadas de combate à criminalidade. Como exemplo, pode-se mencionar que nos Estados Unidos são catalogados (erroneamente) como “crime do colarinho branco” qualquer atuação contra o patrimônio sem a prática de violência. Essa concepção equivale a dizer nada, de tão ampla que se torna.
Aliada a tal generalização do importante conceito, vale lembrar, como um fator a mais a desviar a atenção da opinião pública e do operador de direito de tal fenômeno, que o real “crime do colarinho branco” não aparece nas pesquisas de criminalidade (seja com números de sua prática ou das vítimas dele).
Contudo, até como uma forma de defesa das estruturas formais onde se pratica normalmente essa criminalidade de elite, ocorre, ocasionalmente, de aparecer o “invisível”. Tal se dá quando um indivíduo, de regra de escalões intermediários, componente de uma estrutura (empresa, instituição financeira, administração pública), acaba se expondo ou sendo exposto, de maneira que não mais se pode esconder sua atuação da opinião pública.
Nesses casos, então, há uma “cabeça visível para se descarregar o peso da lei”; como é impossível criminalizar toda uma estrutura, um sistema inteiro, somente nesses casos excepcionais se pune um “crime do colarinho branco”. São os casos que Eugênio R. ZAFFARONI[8] chama de “retirada de cobertura”, o indivíduo exposto é criminalizado, ficando a impressão que a empresa, o sistema e todos os demais indivíduos são inocentes.
Entende-se importante lembrar essa diferença, para não centrar o combate do Ministério Público apenas contra as “organizações criminosas” e olvidar as organizações estruturadas aparentemente segundo as regras do direito, mas que abrigam em seu interior práticas delitivas sofisticadas, que são imperceptíveis ao senso comum, mas que merecem ser combatidas pelo seu alto potencial de dano social. Se a própria aceitação social de tais “crimes do colarinho branco”, o prestígio de seus autores e a pouca divulgação por meios de comunicação favorecem o pequeno interesse dos operadores do sistema penal por eles (pequeno se comparado ao efetivo número de delitos praticados), é indispensável que, especialmente, os membros do Ministério Público mantenham-se atentos e busquem sempre punir tais atos.
Finalmente, é importante ressaltar que, embora exista, como se pretendeu demonstrar acima, uma diferença total entre “crime organizado” e “crime do colarinho branco”, isso não significa que não ocorra entre tais organizações (a organização criminosa e a organização “lícita”) uma interpenetração de interesses, operações e vantagens recíprocas.
São campos de incidência de criminalidade que, em verdade, se superpõe, se identificam e se articulam um com o outro. Ambos podem ser definidos – e isso tem em comum – como criminalidade não convencional. Imaginar de forma diferente, seria, uma vez mais, cair na visão bipartida, maniqueísta, de “bons” e “maus”.
Para lembrar quão profunda é essa concepção da sociedade formada por uma parte respeitadora de lei e, outra, arredia a tais princípios (vale dizer, “bons” e “maus”), basta lembrar que um dos mais influentes filósofos e sociólogos dos séculos XIX e XX, Max WEBER[9], já falava em “tipo ideal” de capitalismo, o “capitalismo organizado e racional”, composto por trabalhadores honestos e abnegados, que poderia ser exemplificado, na atualidade, por qualquer grande empresa (p. ex., um grande banco); e de outro lado, mencionava o “capitalismo aventureiro”, representado por aqueles que buscavam enriquecer a qualquer custo. Embora sendo um exemplo um tanto forte, pode-se mencionar como paradigmático, nos dias atuais, em relação ao “capitalismo aventureiro” do qual falou WEBER, uma “organização” de tráfico de drogas.
Assim, todo o conceito ideológico das sociedades capitalistas modernas, que sofrem influência do pensamento de WEBER, fundamenta-se na separação total dessas duas formas de capitalismo: uma que só atua na esfera da ordem (o racional) e a outra, anárquica (o “aventureiro”), que opera na transgressão. Essa visão converte o delito, idealisticamente, em um corpo estranho à sociedade que trabalha com o “capitalismo racional”, o tipo ideal que está no campo do licito. Dessa forma, mesmo o “crime do colarinho branco” seria uma atuação do capitalismo anárquico, que atacaria o capitalismo honesto.
Essa distinção de Max WEBER é altamente discutível; mais coerente com as investigações atuais da criminologia, é a concepção de que as sociedades capitalistas são sistemas de relações sociais, onde não é possível manterem-se estanques essas diferenças de posições, havendo, na realidade – e como já se mencionou rapidamente antes – uma interdependência entre ambos.
Exemplificativamente, pode-se lembrar que o narcotráfico (praticado por “criminosos organizados” ou “capitalistas aventureiros”) está intimamente vinculado ao sistema financeiro internacional, aportando neste bilhões de dólares todos os anos, que são “devidamente lavados”, dando lucros astronômicos, enormes, às instituições financeiras legais e, concomitantemente, permitindo a utilização do dinheiro pelos narcotraficantes.
De maneira que o esquema dicotômico tradicional da sociedade, com uma grande parcela que vive sob a ordem legal, e é atacada por aqueles que não se submetem a essa mesma ordem, sendo elementos a ela externos e, portanto, direcionando referido ataque desde um ponto “externo” a essa fronteira, não se sustenta diante das pesquisas criminológicas mais rigorosas, especialmente a partir das investigações da criminologia crítica. Bem demonstra a falsidade das idéias tradicionais a obra “A Criminologia Radical” de Juarez Cirino dos SANTOS.[10]
Serve tal dicotomia entre “internos” às fronteiras legais e “externos” a esses limites (e, portanto, agressores dos primeiros), apenas para legitimar a concepção que o direito protegeria, através de sanções, os interesses de manutenção da ordem social ou, internos ao sistema de interesses sociais. As coisas que não interessam a esse sistema seriam retiradas para fora de seus limites e penalizadas, de forma justa, pois que nocivas e estranhas a esses limites internos.
Em verdade, com a menção acima feita ao “crime do colarinho branco”, bem como ao intercambio e a interdependência dos sistemas de capitalismo, observa-se que o funcionamento da sociedade não é assim tão em “branco e preto”; ao contrário, é composta de toda uma gama de cores e matizes, sendo muito difícil delimitar onde está uma atividade ilícita e, tanto mais, quanto mais sofisticadas e mais poderosas são as pessoas que as praticam ou as estruturas organizacionais no interior das quais são levadas a efeito.
Somente-se pode identificar com facilidade a prática de um crime, quando este é cometido por pessoas com menor capacidade intelectual, sem o abrigo de poder e prestigio, ou de forma passional, onde não há oportunidade para se elaborar planos de dissimulação. Como este último tipo de crime é de muito menor incidência, restam como evidentes, presentes nas estatísticas e nos noticiários, aqueles praticados pelas parcelas com menor acesso aos fatores que permitem a imunização do direito penal, vale dizer, as pessoas mais pobres e com menos cultura, que são a esmagadora maioria da população carcerária em qualquer país capitalista.
Dessa maneira, o direito penal acaba sendo funcional para exercer uma seletividade perversa retirando da sociedade aquilo que é considerado formalmente como “estranho” a esse sistema, que não lhe interessa. Mas esse “estranho” é considerado assim apenas quando é fácil de demarcar. Nas sociedades capitalistas modernas o estranho é o pobre, o excluído, o imigrante (este último nos países do chamado Primeiro Mundo). Para confirmar essa assertiva, basta ver os alvos da política de “tolerância zero” implementada em Nova York: os latinos, os mendigos, os pedintes do trânsito, os pequenos traficantes de bairros pobres, entre outros marginalizados.
De sorte que, o crime é o “estranho”, externo e indesejável à sociedade, apenas quando crime comum, praticado nas ruas ou com violência, sendo facilmente identificável e reprimível. Já o “crime organizado”, embora seja também tomado como comportamento externo à sociedade e facilmente identificável, é mais difícil de se reprimir, exigindo maior atenção e empenho do sistema penal; e, por sua vez, o “crime do colarinho branco”, dificilmente é identificável e rarissimamente reprimido, estando no interior do sistema social.
Não há como cataloga-lo como aquele “estranho” e indesejável à sociedade, vez que praticado pelos próprios (assim considerados pela opinião pública) homens de bem, capitalistas racionais. Como já mencionado, não vem de fora dos limites da “sociedade ordeira” para atacá-la, ao contrário, faz parte daquilo que é assim considerado pela opinião pública.
 
2. Conclusão
Dessa forma, conclui-se este trabalho, propondo-se uma maior atenção aos conceitos de cada tipo de crime, como caminho para uma maior equidade e eficiência na persecução penal.
Se a busca de uma “paz social” efetiva, passa pela transformação social e radical de toda a sociedade, com a mudança dos paradigmas de valores e forma de convivência entre as pessoas; vale dizer, com a superação do atual modelo neoliberal de sociedade, tal mudança ainda se encontra muito distante da realidade atual, sequer podendo ser vista no horizonte.
Dessa maneira, incumbe aos membros do Ministério Público uma atuação atenta para, dentro dos limites permitidos pelo sistema social e penal existente, diferenciar as diversas manifestações criminosas e procurar dar combate igual a todas elas, tanto quanto igual sejam os danos sociais causados; vale dizer, persegui-las proporcionalmente à lesividade social delas resultantes.
Tal atuação, seria uma verdadeira superação do que se fez ao longo de todo o século passado, onde não há como se esconder a atuação seletiva e direcionada apenas aos crimes comuns que ocorreu por parte do sistema penal, aí incluído o Ministério Público.
É certo que nenhum Promotor ou Procurador de Justiça agia ou age preferencialmente contra as camadas mais débeis da população de forma deliberada ou por torpeza; em verdade, a formação acadêmica dos operadores do direito nunca favoreceu uma visão crítica, antes impelindo a uma atuação de mera aplicação irrefletida do direito positivado.
Com a expressiva conquista de prerrogativas por parte do Ministério Público a partir da Constituição de 1988, contudo, onde essa Instituição deixou de ser somente o órgão incumbido de exercer a acusação como o representante do Estado para, antes de mais nada, ser o verdadeiro defensor da sociedade – ainda que contra o próprio Estado – urge que seus agentes possam buscar a mais clara visão da realidade social e atuar, efetivamente, visando o bem estar do maior número de indivíduos dessa sociedade.
Um ponto pequeno nessa busca, mas necessário, passa pela lúcida distinção entre “crime organizado” e “crime do colarinho branco”; e pela constatação da importância que tem não confundi-los para, ao atuar contra o crime comum e, com severidade contra as organizações criminosas, não se esquecer também, que nos mais altos estratos sociais encontram-se encastelados criminosos que provocam danos gravíssimos que, amiúde, ensejam a pratica de outros pequenos crimes, por desespero ou necessidade física, dos menos afortunados.
Combater os dois comportamentos comuns às classes mais débeis (crime organizado e criminalidade comum de rua), em prejuízo do eficaz combate ao real crime do colarinho branco, seria um comportamento que somente favoreceria a continuação da desigualdade de tratamento pelo direito penal, abarrotando as cadeias de pessoas que, conquanto sejam autores de crimes comuns, em grande parte são vítimas dos criminosos do colarinho branco. E isso, sabe-se, nenhum membro do Ministério Público deseja.  
 
 


[1] SANTOS, Juarez Cirino dos. Crime organizado. Disponível em: http://www.cirino.com.br/principal.htm, acesso em: 10.06.2003.
[2] GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Tradução: Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999.
[3] BUARQUE, Cristovam. Apartação, o apartheid social no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1996.
[4] Não se está pretendendo dizer que a condição social desfavorável leve necessariamente à delinqüência; apenas constata-se que, quando delinqüem, indivíduos que tem algo mais em comum (p. ex. condições sociais e expectativas), que apenas os crimes praticados ou planejados, tendem a apresentar maior fidelidade recíproca, por possuírem uma mesma pauta de valores.
[5] Vale registrar, como curiosidade, que Sutherland utilizou-se esse nome, “crime do colarinho branco”, para diferenciar tais comportamentos ilícitos das elites dos crimes praticados pelos pobres, vez que os operários, na época, utilizavam uniformes azuis; portanto, os que usavam camisas brancas eram os mais bem aquinhoados financeiramente.
[6] VIRGOLINI, Julio E. S. Delitos de cuello blanco: punto de inflexión en la teoría criminológica. In: Doctrina Penal, Depalma, Año 12, 1989.
 
[7] Registre-se que, em alguns casos, pode ocorrer de componentes de organizações criminosas, obtendo um grande patrimônio com as atividades que desempenham, estruturarem uma empresa de atividade lícita e, no interior desta, praticarem, então, “crime do colarinho branco”. Bem como, e freqüentemente, pode ocorrer das duas atividades (lícita e ilícita) passarem a funcionar em paralelo.
[8] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Derecho penal: parte general. P. 12, 2º ed., Buenos Aires: Ediar, 2002.
[9] WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 11ª ed., São Paulo: Pioneira, 1996.
[10] SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981


 
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1 - Todos os artigos podem ser citados na íntegra ou parcialmente, desde que seja citada a fonte, no caso o site www.jurisway.org.br, e a autoria (Silvio Couto Neto).
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Comentários e Opiniões

1) Hewellyn (13/10/2011 às 19:20:24) IP: 187.54.40.112
acho importante para a população brasileira se informar mais


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