O Exorcismo de Emily Rose
(The exorcism of Emily Rose) EUA, 2005. Direção: Scott Derrickson. Elenco: Laura Linney, Tom Wilkinson, Campbell Scott. Duração: 119 minutos.
Que o leitor não se assuste ao ver o filme O Exorcismo de Emily Rose sendo indicado em um site cujo foco principal é a área jurídica. Afinal, ao contrário do que parece, não se trata de um filme de terror. Isso mesmo! A maior parte das quase duas horas de projeção enfoca um embate tecnicamente muito bem elaborado entre acusação e defesa perante o Tribunal do Júri norte americano. É claro que existem também cenas fortes de possessão, com corpos se contorcendo e invocação de línguas antigas. Mas tais partes da narrativa são apenas acessórios desse autêntico filme de Tribunal.
O filme narra a história de Emily Rose (e utilizamos o vocábulo com "h" visto que a película se baseia em fatos que teriam ocorrido na Alemanha dos anos 70), uma estudante que, cursando a faculdade longe de seus pais, passa a ostentar um estado de saúde física e mental cada vez mais frágil. Náuseas, vômitos, psicoses, epilepsia, enfim, vários são os males que passam a afligir a pobre estudante.
Os dias se passam e o quadro de Emily continua sem apresentar melhoras. A mesma é, então, mandada de volta ao convívio de sua família. Aí é que as coisas verdadeiramente começam a esquentar.
Como a garota não apresenta qualquer evolução, a família procura ajuda espiritual. O padre Richard Moore é chamado e verifica que o caso de Emily não é de saúde: a mesma estaria sendo possuída por forças demoníacas. Para tanto, aconselha a família a cortar a medicação receitada pelos médicos, e inicia um procedimento de exorcismo.
Não vamos nos ater aos detalhes que se desenvolvem a partir daí. Caso contrário, não haverá graça alguma em assistir ao filme. Mas o fato é que Emily Rose acaba por falecer. Não se assustem: não está sendo revelado o desfecho da história. A narrativa é toda em flashback, de forma que a morte da estudante é a primeira informação a que tem acesso o telespectador.
Feitas essas considerações, podemos entrar em nosso tema. A morte da garota termina sendo imputada ao padre, que determinou fazer cessar a medicação. Pergunta-se: qual a possibilidade jurídica dessa argumentação ser aceita dentro do Direito Brasileiro?
A resposta não é simples. Entendemos que o padre seria acusado por homicídio doloso, praticado com dolo eventual. Não que concordemos com isso. Mas, o Ministério Público, cumprindo sua função institucional, na dúvida quanto ao elemento subjetivo do tipo, denuncia pelo crime mais grave. Logo, temos que o padre seria levado a julgamento pelo Tribunal do Júri, acusado de homicídio doloso.
No Tribunal do Júri, a Defesa levantaria a tese de inexigibilidade de conduta diversa. Argumentaria que se teria um padre, que acredita veementemente na existência de Deus e em manifestações demoníacas, que determinou fosse cessada a medicação à garota para que a mesma pudesse responder melhor ao exorcismo. E que o fez na crença verdadeira de que estava fazendo a única coisa que tornaria possível salvar a vida de Emily Rose. Não haveria, portanto, ao se levar em consideração os valores, as crenças, e as peculiaridades do padre como ser humano, se exigir do mesmo que ele se comportasse de outra forma.
Diante disso, a Defesa argüiria que não se pode reprovar juridicamente a conduta do padre. Sua conduta não seria culpável, o que excluiria a prática do crime (crime é a conduta típica, ilícita e culpável).
A acusação, por sua vez, sustentaria que o Brasil é um Estado laico, em que a religião não pode ser levantada como matéria defensiva. Que o padre, ao determinar o fim do tratamento médico, assumiu o risco de produzir a morte da garota. Portanto, pediria a condenação por homicídio doloso.
A decisão ficaria, então, reservada à íntima convicção dos jurados. E qualquer uma das teses poderia sair vencedora.
Se fossemos jurados, adotaríamos a tese defensiva. Afinal, não há como se exigir comportamento diverso de um padre que, desiludido com a falta de resultado das investidas médicas, diagnostica uma situação de possessão demoníaca e passa a agir de acordo com sua crença. Diga-se, aliás, que já foram proferidas decisões no Brasil, inclusive no Tribunal do Júri, reconhecendo a influência de forças do "além" como forma de retirar a responsabilidade penal do agente. Trazemos, a título de exemplo, casos registrados nos Estados do Rio Grande do Sul e de Goiás:
"O polêmico uso de cartas psicografadas como meio de prova no processo penal vem à tona novamente com a absolvição de Iara Marques Barcelos, 63, na Comarca de Viamão, no Rio Grande do Sul, em maio deste ano. Este não é um caso isolado, pois tal tipo de prova já fora usado anteriormente. Em 1976, na cidade de Goiânia de Campina, Goiás, José Divino Gomes foi absolvido do crime de homicídio praticado contra Maurício Garcez Henriques. Tal Absolvição também se deu com o uso de "provas espíritas". Em Goiânia, nos anos 70, Henrique Emmanuel Gregoris, morto, psicografou cartas dividindo a responsabilidade pela sua morte com seu algoz. Como se nota, diversos são os casos onde foram utilizadas provas dessa natureza". (Fonte: Revista Carta Forense)
Haveria ainda a possibilidade de imputação do homicídio de Emily Rose a título culposo, ou seja, sem a intenção de provocar o resultado morte. Todavia, entendemos que, nesse caso, também não haveria a possibilidade de condenação do padre.
Isso porque o Código Penal prevê a figura do perdão judicial para os homicídios culposos. De acordo com esse instituto, o juiz poderá deixar de aplicar a pena se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária. No caso, tem-se que o padre passou meses se dedicando inteiramente a tentar salvar a vida de Emily Rose, tendo criado laços de amizade e fraternidade tanto com ela quanto com sua família. Cabível seria, então, a aplicação do instituto do perdão judicial.
Não diremos qual foi a decisão tomada pelo Tribunal norte-americano no filme, pois não queremos estragar a surpresa do leitor. E assistam ao filme: vocês não irão se arrepender.