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O novo código de ética médica traz norma legitimando e estabelecendo parâmetros para a prática da ortotanásia. Assim, reforça a tendência da sociedade brasileira na construção de um direito social à morte digna
Texto enviado ao JurisWay em 12/08/2010.
Em vigor desde o dia 13 de abril deste ano, o novo Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931/2009) traz normas que, segundo o Presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), “[…] prima pela modernidade no que diz respeito a princípios como o da autonomia, o da beneficência, o da não maleficência, o da justiça, o da veracidade, o da transparência e o da compaixão” além de inserir a classe médica em questões sociais no que se refere à saúde pública[i].
Ao civilista, interessa uma gama de assuntos renovados ou que passaram a ser regulados pela Resolução. Dentre eles, a vedação da eutanásia (Capítulo V, art.41), a regulamentação da ética médica nas doações de órgãos e tecidos (Capítulo VI e art.15, caput, do Capítulo III), a expressa contrariedade à criação de embriões supranumerários ou exclusivamente para estudos, e a proibição da manipulação genética (art.15 e art.16 do Capítulo III).
A maior autonomia do paciente é sensível, inclusive na escolha e utilização dos métodos contraceptivos irreversíveis. Isso pode gerar nova problemática para a responsabilidade civil[1]. Ao que parece, o médico escusa da responsabilidade tão somente cumprindo o dever de informação (art.42 do Capítulo V)[ii], privilegia-se o consentimento informado e a liberdade na disposição do próprio corpo.
Algumas normas, ainda, merecem breves apontamentos, como é o caso do inciso XX do Capítulo I que, em contradição com o Código de Defesa do Consumidor (§4º, art.14)[iii], afirma que “A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo”.
Também a regulamentação acerca da responsabilidade civil (inciso XIX do Capítulo I e no Capítulo III, art.1º) merece cuidados. O código rejeita a responsabilização objetiva e a presunção de culpa, no entanto, o Judiciário deve permanecer invertendo o ônus da prova em favor do paciente (art. 6º, inciso VIII, do CDC), já que é o médico quem tem aparato e conhecimento técnico para a produção qualificada da prova. Ademais, dificilmente a redação trará maior harmonia às questões judiciais acerca da responsabilidade civil do cirurgião plástico e a celeuma sobre a natureza de sua obrigação, se de fim ou de meio.
Dentre tantas alterações ou modernizações, ressalta importância ao civilista a regulamentação da ortotanásia:
“Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente, ou na sua impossibilidade, a de seu representante legal.”[iv]
Vida não é conceito que se contenha em dicionários. Conceituar esse fenômeno, se é que de fenômeno se trata, é cumprir uma jornada aventureira por todos os aspectos da humanidade, deliberando sobre história, sociologia, filosofia, religião, ciência, e também Direito. Mais difícil ainda será encontrar respaldos para delimitar a vida qualificada por digna. Já desacomodados por não se resolver jamais as celeumas acerca da vida, aumenta-se os debates acerca da morte digna, retratada como verdadeiro corolário da dignidade em si:
“Morrer constitui o ato final da biografia pessoal de cada ser humano e não pode ser separada daquela como algo distinto. Portanto o imperativo de uma vida digna alcança também a morte. Uma vida digna requer uma morte digna. O direito a uma vida humana digna não pode ser truncado com uma morte indigna. O ordenamento jurídico está por conseguinte chamado também a concretizar e proteger este ideal da morte digna.”[v]
Nos meandros destes debates, surge então a questão acerca da ortotanásia que é “o direito de pessoas capazes a rechaçar um tratamento médico que mantenha a vida […], ou seja, o direito de morrer naturalmente, quando não há mais condições de a pessoa manter-se viva, segundo os dados atuais da ciência[vi]”.
Não se trata de campo pacífico, no entanto. É preciso lembrar que doutrina relevante considera a prática da ortotanásia crime de homicídio privilegiado (art.121, §1º, CP)[vii] [viii]. Como afirmado, só agora os debates tem se intensificado mais em favor da permissão do adoçamento da morte.
É neste sentido que tem importância o parágrafo único do art.41 da Resolução do CFM, que não só demonstra a opinião da classe médica sobre o assunto, como rotula a ortotanásia como forma de cuidado e humanização. Segundo a publicação oficial do Conselho Federal de Medicina, a previsão tem causado repercussão positiva entre os profissionais, que têm maior respaldo e segurança na utilização de métodos paliativos quando da terminalidade da vida, o que “fortalece a humanização do atendimento, inclusive nos hospitais públicos”[ix].
Deve-se no entanto alertar, a eutanásia é vedada rigidamente pelo Código de Ética Médica. O que é permitido é que em situação doença incurável e terminal não se adote ações heróicas que não tenham eficácia provável, nem o prolongamento da sobrevida, se trouxer mais dor e limitação a pessoa, assim como a utilização de métodos para reduzir as dores e os desconfortos dos momentos finais. Ortotanásia e Eutanásia, portanto, não se confundem. Esta é um procedimento mais ativo, e induz a morte, abrevia a vida. Aquela é deixar morrer, adotando medidas de redução do sofrimento da doença.
O dispositivo traça ainda os cuidados necessários na adoção das medidas paliativas: informar e ouvir são deveres da equipe médica neste delicado momento, devendo compreender as dores e esperanças dos pacientes e familiares e sugerir os meios mais serenos que apontem a um caminho de concórdia entre a vida e a morte. A decisão, portanto, é do paciente que terá ampla autonomia, mas o médico terá o papel proativo de indicar e informar.
O que mais releva, ao nosso ver, na previsão da ortotanásia no Código de Ética Médica é a conotação de direito social que traz ao cuidado da morte.
É uma impressão vívida em toda a Resolução que ela não foi elaborada para simplesmente regular o que já existe, mas para a construção de uma ética, ou melhor, de mecanismos materiais que favoreçam essa ética e o atendimento ao doente e familiares. Como já afirmado, o Código é uma renovação do compromisso da classe na luta pela construção da saúde pública pautada na real atenção á pessoa humana. É nesse contexto a conclusão dos médicos em favor do respeito ao fim da vida: dá a ortotanásia conotação de direito social.
Essa mesma impressão parece-me ter sido sentida também por Tânia da Silva Pereira, quando afirma que “o acesso aos cuidados paliativos deverá representar um direito universal e uma prática comum porque é direito de qualquer pessoa uma vida com qualidade que termine com uma morte digna”[x].
Segundo a publicação oficial do CFM, embora a prática de cuidados paliativos seja regular em alguns locais do país, o número exato de unidades que a adotam não é conhecido, sendo ainda carente a realização de estudos aprofundados sobre o assunto no país. Ainda não são muitos médicos que estudam as terapias de adoçamento da morte e há pouca informação[xi].
Ademais, a ausência de recursos materiais para a efetivação dos direitos sociais não deve servir de desestímulo para o reconhecimento do direito à morte digna como tal. É essencial reconhecer a dignidade da pessoa humana em todas as etapas de sua vida, inclusive no fim, e é sabido, o simples reconhecimento de direito muda posturas, jurídicas e sociais, ao longo do tempo.
Por conclusão, deve-se ressaltar os avanços que a regulamentação da ortotanásia no Código de Ética Médica não abrevia a luta pela humanização no cuidado dos pacientes terminais, mas certamente reforça o direito social à morte digna e o direito subjetivo à vida, que deve ser gozada de forma especial e harmônica respeitando os limites do corpo, dos sentimentos e do tempo. Certo é que sobre os mistérios da vida e da morte, deve ser dado a cada pessoa humana conhecer e se determinar.
[1] Permanence em vigor a Lei 9.263/96 que impões algumas restrições à esterilização de homens e mulheres (mais comumente: vasectomia, no homem, e laqueadura de trompas, na mulher). Conferir.
[i] D’AVILA, Roberto Luiz. Palavra do Presidente. Publicação oficial do conselho federal de medicina. Brasília, Ano XXV, n. 183, p.12, abr., 2010.
[ii] O dever de informação do médico é relevado em diversos dispositivos do novel código, o que retrata o compromisso médico com o diálogo e respeito a autonomia do paciente. No entanto, a realidade brasileira muitas vezes constitui um verdadeiro empecilho à comunicação mais clara e livre, somos um povo iletrado e acostumado a submissão técnica médico-paciente, ademais a agilidade e precariedade que as consultas e intervenções médicas devem obedecer no sistema público por ausência de meios e tempo hábil não permitem um diálogo mais profundo e cuidadoso. Lado outro, tais circunstâncias não devem tirar o brilho da regulamentação, mas sim renovar o compromisso de aprimoramento da saúde no país e acautelar o julgador, nos casos que lhe forem apresentados.
[iii] “Os serviços prestados por médicos, ainda que individualmente, configuram relação de consumo […]” BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 3. ed. p. 79. Salvador: Edições Juspodivm, 2009.
[iv] Capítulo V, art.41.
[v] MOLD, Cristian Fetter. Apontamentos sobre a lei andaluza de direitos e garantias da dignidade da pessoa durante o processo de morte. IBDFAM, Belo Horizonte, 31 maio 2010, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 3 jul. 2010.
[vi] LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. 2. ed. p. 116. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 1.
[vii] GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. 5 ed. Niterói: Impetus, 2008. v.2.
[viii] Deve-se dar atenção ao projeto de Lei do Senado 116/00, atualmente na Câmara dos Deputados (6.715/09). Se aprovado, o Código Penal terá dispositivo que expressamente afastará a tipicidade ao fato de se adotar medicina paliativa ao invés de meios desproporcionais e extraordinários aos pacientes terminais. A ortotanásia, portanto, não poderá ser considerada omissão de socorro nem homicídio privilegiado.
[ix] Novo código muda realidade em hospitais. Publicação oficial do conselho federal de medicina. Brasília, Ano XXV, n. 184, Ética médica, p.6, maio, 2010.
[x] PEREIRA, Tânia da Silva. O direito à morte digna e a validade do testamento vital. Boletim IBDFAM. Belo Horizonte, ano 9, n. 59, p.10, nov./dez. 2009.
[xi] Foco voltado para o bem-estar do paciente. Publicação oficial do conselho federal de medicina. Brasília, Ano XXV, n. 184, Ética médica, p.7, maio, 2010.
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