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Vírgula + conjunção e: professor Pasquale


Vírgula + conjunção e: professor Pasquale

“E com tal zelo, e sempre, e tanto…”

Muita gente crê que a vírgula e o e são inimigos mortais. Infelizmente, essa crença – infundada – quase sempre se forma na escola. A vírgula e o e nem de longe são inimigos; em muitos casos, a vírgula antes do e é fundamental para que a mensagem seja clara.

Há algum tempo, um jornal publicou este título:

Corinthians perde atletas, jogo e racha fora de campo.

A vírgula depois de atletas cria a expectativa da enumeração de termos de mesma função (Comprei laranja, maçã, abacate e uva; Sugiro-lhe que leia João Cabral, Murilo Mendes e Cassiano Ricardo; Ela sempre ouve Edu Lobo, Paulinho da Viola e Tom Jobim). No título jornalístico citado no início deste parágrafo, a expectativa de enumeração de substantivos é quebrada pela repentina presença de um verbo (racha), precedido da conjunção aditiva e. O resultado dessa mistura de alhos com bugalhos não é nada bom.
Essa mistura é particularmente agravada pelo fato de que no jargão do futebol racha pode funcionar como substantivo (o racha é um bate-bola, uma pelada, um jogo sem compromisso, um jogo-treino mais leve etc.). Se você reler o título, certamente notará que, num primeiro momento, é difícil resistir à tentação de achar que o Corinthians perdeu as três coisas (atletas, jogo e racha).
Não é difícil tornar mais compreensível esse título jornalístico. Uma das soluções seria o emprego de um e antes de jogo e de uma vírgula antes do e que já estava no título. Teríamos mais ou menos isto:

Corinthians perde atletas e jogo, e racha fora de campo.

A frase continua longe de ser a oitava maravilha do planeta, mas parece mais clara que a original. Convenhamos: nem sempre é agradável o efeito do duplo emprego do e (no caso, o primeiro liga os substantivos atletas e jogo, enquanto o segundo soma as orações formadas pelos verbos perder e rachar).
Na linguagem literária, não é rara a repetição do e, como se vê nestes versos de A um Poeta, de Olavo Bilac:

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, no silêncio e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Convém notar que a seqüência de Bilac é simétrica, já que o poeta usa a conjunção e para somar uma seqüência de orações (que, com exceção da primeira, são formadas por apenas duas palavras: a conjunção e e uma flexão verbal). Um dos efeitos da repetição da conjunção e é o da sensação de que a oração iniciada pelo e encerrará o período, o que não ocorre. Com isso, prolonga-se a expectativa do fim e, conseqüentemente, consegue-se ênfase para cada uma das orações introduzidas pelo e. Essa repetição da conjunção é chamada de polissíndeto (poli, que vem do grego, significa vários, muitos; síndeto, que também vem do grego, prende-se à idéia de união, de ligação).
Convém notar também que, no texto de Bilac, há vírgula antes de todas as ocorrências da conjunção
e, o que é de regra nesses casos, como se vê no memorável Soneto de Fidelidade, de Vinicius de Moraes:

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto….

Permita-me pedir-lhe, caro leitor, que não leia verso por verso. O poema deve ser lido de acordo com a estrutura sintática: De tudo, ao meu amor serei atento antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto que… Na ordem direta, teríamos isto: Serei atento ao meu amor antes de tudo, e com tal zelo, e sempre, e tanto que
Eu não disse que o e e a vírgula nem de longe são inimigos? Bem, os casos em que se emprega a vírgula antes do e não se resumem aos que vimos neste texto. Há outros.

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Contrariou o pai, e a mãe…

Tratamos de alguns dos casos do emprego da vírgula antes da conjunção e.

Vejamos agora outros casos em que pode ocorrer vírgula antes do e. Vamos pensar neste exemplo:

Depois que descarregou toda a mudança, ele ainda conseguiu arrastar os móveis, e o corpo nem deu sinais de cansaço.

O que faz aí a conjunção e? Liga os termos os móveis e o corpo? Não, esse e não liga termos; liga duas orações (ele ainda conseguiu arrastar os móveis, e o corpo nem deu sinais de cansaço). Note, por favor, que essas orações não têm o mesmo sujeito. O sujeito da primeira oração é ele; o da segunda é o corpo. As gramáticas costumam dizer que é necessária a vírgula antes do e quando essa conjunção liga orações de sujeitos diferentes. O motivo é simples: clareza, leitura reta, captação imediata da mensagem.
Se não houvesse vírgula antes da conjunção e (Ele ainda conseguiu arrastar os móveis e o corpo nem deu sinais de cansaço), a primeira leitura do texto talvez fosse feita como se ele tivesse arrastado os móveis e o corpo. Quando chegasse ao que vem depois de o corpo (nem deu sinais de cansaço), o leitor perceberia que a estrutura sintática é outra, mas já seria tarde. Restaria ao leitor a opção de recomeçar a leitura da frase.
Em outras palavras, a vírgula antes da conjunção e impede que, num primeiro momento, o leitor entenda que os móveis e o corpo funcionam como complementos de arrastar, isto é, impede que o leitor passe batido pelo fato de que a conjunção e não encerra uma seqüência de termos, mas une orações que têm sujeitos diferentes. Veja outro exemplo:

Ele contrariou o pai, e a mãe lhe deu razão.

Percebeu o papel da vírgula?
Vejamos agora o que ocorre quando a conjunção e liga orações que têm o mesmo sujeito. Teoricamente, a vírgula é dispensável, desnecessária, o que não significa que seu uso seja proibido ou absurdo, sobretudo quando se quer enfatizar a oração introduzida pela conjunção e. Esse emprego da vírgula antes do e é mais comum em textos literários, filosóficos etc. Em textos jornalísticos, por exemplo, seu emprego não costuma ocorrer. Não existe ênfase que justifique uma vírgula antes do e numa frase como Os bandidos invadiram o prédio e prenderam diversos moradores no salão de jogos.

Por fim, convém lembrar que antes de etc. a vírgula é optativa. Os que se apóiam na etimologia não empregam a vírgula, visto que etc. é a abreviatura da expressão latina et cetera, que significa e as demais coisas. Agem assim o Dicionário Houaiss e alguns jornais, por exemplo. Quem não leva em conta a origem considera o etc. um elemento a mais da enumeração e, por isso, emprega a vírgula. Agem assim o Dicionário Aurélio e o Vocabulário Ortográfico (no texto do Formulário Ortográfico, transcrito na obra). A escolha é sua, caro leitor.




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