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O AFRO-BRASILEIRO E OS DIREITOS CULTURAIS FACE À GLOBALIZAÇÃO


Autoria:

Sérgio Luiz Da Silva De Abreu


Advogado, Graduação - UFRJ, Mestre em Ciências Jurídicas- PUC-Rio, Especialista em Advocacia Trabalhista - OAB/UFRJ, e em Direito Processual Civil - UNESA, Membro Efetivo do IAB, Associação dos Constitucionalistas Democratas, Prêmio Jubileu de Roma.

Endereço: R. Cel.josé Justino , 229
Bairro: Centro

São Lourenço - MG
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Resumo:

O artigo versa sobre os direitos culturais da comunidade afro-brasileira protegidos constitucionalmente e os intrumentos internacionais de proteção a diversidade etnico-cultural.

Texto enviado ao JurisWay em 16/11/2010.



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O AFRO-BRASILEIRO E OS DIREITOS CULTURAIS FACE À GLOBALIZAÇÃO

                                                                                                                                                                                                                                                      

Sérgio Abreu

 

 

"É que Narciso acha feio o que não é espelho".

Caetano Veloso

                                                                                                         

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

 

 

O agitado debate que envolve a problemática da garantia jurídica dos direitos culturais dos afro-brasileiros, situa a questão no âmbito da transjuridicidade, merecendo uma reflexão crítica acerca da aplicação das normas constitucionais e dos instrumentos jurídicos internacionais.

As questões étnico-raciais  a partir dos instrumentos jurídicos internacionais , tais como a Convenção Sobre Eliminação Todas as Formas de Discriminação Racial, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos ,Sociais e Culturais e demais instrumentos que integram o arsenal de direitos humanos, propiciaram o transbordo das questões raciais para além do positivismo jurídico (transpositivismo) , insuficiente para atender as demandas das ditas comunidades insurgentes que buscam a afirmação dos seus direitos culturais. Com efeito, as questões jurídico-étnico-raciais,  exigem um foco de análise mais amplo, sobretudo no ano da III Conferência Mundial da ONU contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância (Assembléia Geral das Nações Unidas – Resolução de número 52/111, de 12 de dezembro de 1997). Tal evento tem como principal objetivo a análise dos fatores políticos ,históricos, econômicos, sociais, culturais entre outros que conduzem ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia  e às formas conexas de intolerância.

A  globalização e seus efeitos, tem sido a fonte de preocupações daqueles que lutam contra as agudas desigualdades sociais que afligem os descendentes da afro-diáspora. Segundo Paulo Bonavides ,"A globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração, que aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social. São direitos de quarta geração o direito à democracia , o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência"

O esforço acadêmico para garantir a justiciabilidade dos diretos culturais no âmbito do direito constitucional e internacional dos direitos humanos , visa dar maior eficácia social aos instrumentos jurídicos , e in casu , aqueles protetores da diversidade étnico-cultural.

Os efeitos da globalização no âmbito da cultura, foi tratado no Seminário Rio Roma Americana (23 a 25 de novembro de 2000). Universalismo come resistenza, evento realizado pela ASSLA – Associazione di Studi Sociali Latinoamericani e L' Assessoratto alle Politiche Culturali del Comune di Roma com a colaboração da Secretaria de Cultura  do Estado do Rio de Janeiro. Naquela ocasião apresentei na Casa delle Letterature , no Painel Cittadinanza e Culture. "Latinidade e Africanidade" a comunicação o "O afro-brasileiro e a proteção Constitucional à diversidade étnico-cultural", com a qual fui agraciado com o prêmio "Jubileu de Roma".  A seguir o conteúdo da comunicação. 

 

 

 

"O AFRO-BRASILEIRO E A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À DIVERSIDADE ÉTNICO-CULTURAL"

 

 

O propósito nuclear dessa comunicação não se limita, tout-court , a apresentar um painel expositivo acerca da problemática da proteção constitucional brasileira à diversidade étnico-cultural, especialmente dos afro-brasileiros, nem tampouco enveredar por todas as disciplinas das ciências sociais com as quais tangencia a problemática da resistência cultural dos descendentes da afro-diáspora.  Gizamos o trabalho a partir da perspectiva interdisciplinar, exigida pelo tema, conjugando reflexões de natureza social, ideológica e jurídica. A comunicação é importante, na medida em que é minguada a experiência jurídica brasileira no campo da doutrina e da jurisprudência no que pertine a defesa dos direitos culturais das populações afro-brasileiras.  Nesse sentido a comunicação abordará a proteção constitucional à diversidade étnico-cultural e os mecanismos jurídico-constitucionais de proteção ao patrimônio histórico-cultural pertencentes a esses grupamentos étnicos formadores da identidade nacional.  Enfim, trata-se metodologicamente da recensão do item seis do capítulo II do livro  do comunicante sob o título "Os Descaminhos da Tolerância – O afro-brasileiro e o princípio da Igualdade e da Isonomia  no Direito Constitucional", publicado pela Editora Lumen Juris. Ano 1999.

   Prefacialmente,  destacamos que a preservação e proteção da cultura afro-brasileira, pertencente ao grupamento integrante do processo civilizatório nacional, foi fruto das incansáveis reivindicações dessa comunidade. O agitado debate acerca do pluralismo cultural ensejou severas críticas sobre o papel ideológico dos Estados, que procuram uma justificativa para suas políticas de aculturação, que freqüentemente realizam políticas de assimilação ou de folclorização das culturas minoritárias[2].

Nesse passo, tem assento constitucional a garantia ao pleno exercício dos direitos culturais e a acessibilidade às fontes da cultura nacional. O apoio e o incentivo à valorização e a difusão das manifestações culturais(art.215 da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB)  têm no Estado a garantia constitucional da proteção às manifestações da cultura afro-brasileira, enquanto  grupo participante do processo civilizatório nacional(art.215, parágrafo 1º da CRFB) .

O direito a cultura se articula com os direitos fundamentais, na medida em que cada pessoa deve ser  compreendida com as demais, com o seu passado, com suas referências étnico-culturais, "decorrentes da inserção numa comunidade determinada". Nesse sentido a constituição brasileira define patrimônio cultural como sendo constituído dos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, desde que portadores de referência à identidade(art.216, CRFB).

A cultura, como valor indissociável às prestações existenciais, deve ser protegida e garantida pelo Estado.

Assim leciona J.J.Gomes Canotilho:

"O princípio da democracia econômica e social não se limita, unilateralmente, a uma simples dimensão econômica: quando se fala de prestações existenciais para "assegurar uma existência humana digna" pretende-se também aludir à indissociabilidade da "existência digna de uma expressão cultural e ao mesmo tempo, à inseparabilidade da "democracia cultural" de um Daseinsvorge  material".

É insofismável a articulação do princípio da igualdade, ou seja com a igual fruição do direito a proteção étnico-cultural, com o princípio da dignidade da pessoa humana, "por seu significado emblemático e catalizador da interminável série de direitos individuais e coletivos sublimados pelas constituições abertas e democráticas da atualidade, acabou por exercer um papel de núcleo filosófico do constitucionalismo pós-moderno, comunitário e societário.(...). Nesse contexto de novas ordens e novas desordens, os princípios e valores ético-sociais sublimados na Constituição, com a proeminência do princípio da dignidade de homens e mulheres, assumiram o papel de faróis de neblina a orientar o convívio e os embates humanos no nevoeiro civilizatório neste prólogo do novo milênio e de uma nova era".

Afivelados estão os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, enquanto elementos de "utopia concreta, que atendem as "perspectivas constitucionais-humanitárias".  Assim é que , a dignidade da pessoa humana(art.1º inc. II da CRFB) consta do rol dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

A proteção dos valores culturais de um dado grupamento étnico,  assegura  o direito a diferença , e in casu, o direito a diversidade cultural. " Las diferencias culturales son expression de la resistencia de ciertas manifestaciones culturales a homogeneizarse – la resistencia de las diversas lenguas a la estructura del inglés o, sencillamente, a ir desapareciendo, la resistencia de ciertas etnias a una mimesis alinadora, la resistencia a abandonar unas costumbres o a olvidar un pasado simplesmente porque es minoritario".

Com efeito, a expansão do termo patrimônio cultural acolhe as diversas formas de manifestações culturais pertencentes ao acervo remanescente dos diversos grupos formadores do processo civilizatório nacional[8], eliminando as restrições à terminologia tradicional, que se limitava a patrimônio histórico, artístico e paisagístico.

A Constituição brasileira, ao defender o patrimônio cultural e as manifestações das culturas populares(art.215, parágrafo 1º), indígenas e afro-brasileiras e outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, garante os direitos culturais como direitos inerentes à pessoa humana. Defender a cultura, significa defender a si próprio, sua família, seu grupo social, sua comunidade; daí sua articulação com os direitos fundamentais.

Portanto, defender a cultura é responsabilidade do Estado. A acessibilidade dos direitos culturais é decorrente do dever do Estado. A garantia do acesso aos bens culturais, materiais e imateriais, possibilita a preservação identitária dos grupos formadores da sociedade brasileira. Assim é que, a cultura é um valor filosófico, político,  e mais, um valor jurídico protegido pela ordem constitucional brasileira .  Nesse sentido, o Estado não pode se abster, deve adotar uma ação positiva a fim de assegurar a eficácia desse direito, que in casu,  pertence a comunidade afro-brasileira.

As formas de expressão, os modos de criar ,fazer, viver, deverão ser apoiados, incentivados , valorizados e difundidos pelo poder público.

A eficácia social dos direitos culturais deve ser entendida como instrumento de conservação dos grupos formadores da sociedade, bem como instrumento de transformação social. A concretização dos  direitos culturais é direito de todos e dever do Estado.

Consoante está o texto constitucional com os diversos instrumentos internacionais: a)A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo 22, afirma que qualquer pessoa como membro da sociedade tem direito à satisfação dos direitos culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional; b) O Pacto Internacional de  Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu artigo 15, assegura que é direito de toda pessoa participar  na vida cultural, gozar de benefícios do progresso científico de suas aplicações e beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais que lhes correspondam em virtude das produções científicas, literárias  ou artísticas de que seja autora.

Para tanto, afirma o aludido Pacto que deverão ser adotadas medidas para o exercício desse direito, necessárias à conservação, desenvolvimento e difusão da cultura e da ciência.

A República Federativa do Brasil "rege-se nas suas relações internacionais pelos princípios da prevalência dos direitos humanos e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade"(art.4º, inciso II e IX ,CRFB).

Ficam de igual sorte protegidas as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais, bem como os "conjuntos urbanos e sítios de valor histórico", bem como às "obras", "objetos", "documentos" e "edificações  destinados às manifestações artístico-culturais",  preservou a identidade, a ação, a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, trazendo inclusive a comunidade para o processo de preservação do patrimônio cultural, em conjunto com o poder público, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação e demais formas de acautelamento e preservação(art. 216, IV e V da CRFB).

Constitui também exercício de direito cultural, garantido pelo Estado, e cabendo à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental, criando mecanismos e providências para o franqueamento da consulta a todos que dela necessitem(art.216, parágrafos 1°e 2º).

A determinação constitucional referente aos incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais encontra-se regulamentada pela Lei n.º 8.313 de 23/12/91, D.O.U. 24/12/91, "Lei Rouanet"(Dec. 1.493 de 17/5/95, D.O.U. 18/5/95, Dec. 1.494 de 17/5/95, D.O.U. 18/5/95, Instrução normativa Conjunta n° 1/95 SE/MNC, SRF/MS de 13/6/95, D.O.U. 14/6/95).

Objetiva a Ação Civil Pública(Lei n.º 7.347 de 24.7.1985) disciplinar a responsabilidade civil por danos causados aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, além de outros danos causados previstos na referida lei.

O artigo 1º da Lei n° 7347/85, que disciplina a tutela jurisdicional de direitos difusos e coletivos, no artigo 1º, inciso III, dispõe que os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico serão por ela disciplinados, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais.

Presta-se também a ação civil pública para que seja aferido em ação judicial bem de valor histórico-cultural  não tombado pelo poder público.

O Decreto n.º 1.306 de 9 de novembro de 1994 trata de outra norma regulamentadora  do art.216, parágrafos 3° e 4° da Constituição brasileira.

O artigo 13 da lei da Ação Civil Pública determina que as indenizações resultantes de condenações em dinheiro, por danos causados, serão revertidas em fundo gerido pelo Conselho Federal ou Conselhos Estaduais, que participarão necessariamente o ministério Público e representantes da comunidade. Os recursos serão destinados à reconstituição dos bens lesados.

O propósito do Fundo de Defesa de Direitos Difusos, regulamentado pelo Decreto n° 1.306, de 9 de novembro de 1994, é a "reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômico e outros interesses difusos e coletivos"(Art.1°).

A Lei n° 9.008, de 21 de março de 1995, regulamenta o Conselho Gestor do Fundo Federal de Direitos Difusos, integrando-o na estrutura organizacional do Ministério da Justiça.

A Ação Popular (Lei n° 4.717 de 29 de junho de 1965 – LAP), em seu artigo 1°, legitima ativamente qualquer cidadão para propor anulação ou declaração de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas e demais entes públicos, considerando como patrimônio público os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico(parágrafo 1° do artigo 1°, da Lei 4.717/65).

O Código Penal Brasileiro tipifica como crime "destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade competente, em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico"(art.165). A penalização pela destruição ou mutilação de monumentos está disciplinada pela Lei n° 3.924, de 26 de julho de 1961, bem como pelo artigo 166 do Código Penal Brasileiro(alteração de local especialmente protegido). O artigo 1°, parágrafo 2° ,combinado com os aludidos diplomas protetivos do patrimônio histórico-cultural, servem de fundamentação à incriminação de ambas as condutas acima tipificadas pelo Código Penal.

Outra modalidade de proteção , a diversidade étnico-cultural, adotada pelo legislador constituinte, foi o tombamento de todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos (art.216, 5°), garantindo aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, o reconhecimento da propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos (art.68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Ultimamente a Fundação Cultural Palmares tem destinado títulos de propriedade aos remanescentes de quilombos.

Os quilombos, segundo Alaôr Eduardo Scisínio,  Dicionário da escravidão, conceitua-o como valhacouto de escravos fugidos. Unidade básica da resistência negra. Povoado ou aldeia escondida na mata onde moravam os negros fugidos dos cativeiro. Deriva da língua bunda kilomba, povoação em quibundo.

A resistência negra à opressão colonial se manifestou mais ativamente através dos quilombos. Os quilombos se espalharam por todo o país, se constituindo em verdadeira hidra para o colonialismo. A escravidão de africanos nas Américas consumiu cerca de 15 milhões ou mais de homens e mulheres arrancados de suas terras. No Brasil, vieram cerca de 40% dos escravos africanos durante o período de 300 anos de escravidão. Ainda  que submetido, o escravo negociava espaços de autonomia. Na luta contra a opressão, os escravos quebravam ferramentas, incendiavam plantações, rebelavam-se individual e coletivamente. O tipo de resistência coletiva que ganhou importância na luta contra o colonialismo foi a formação dos quilombos.

A resistência coletiva ao colonialismo na América espanhola chamou-se palenque, cumbe; na inglesa, maroons;  na francesa grand marronage(o que diferenciava de petit marronage, fuga individual, em geral temporária. No Brasil, chamaram-se quilombos, mocambos(seus integrantes eram os quilombolas, calhambolas ou mocambeiros).

O mais conhecido foi o Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, no Estado de Alagoas.(1624 – 1695). Fonte de reflexão, sobretudo como um mais significativos episódios da luta de classes no Brasil. Edson Carneiro, estudioso de Palmares, ligado ao Partido Comunista Brasileiro, e Aderbal Jurema, ambos intelectuais marxistas, viram em Palmares uma das primeiras e mais originais organizações contra a exploração colonial no Brasil.

Palmares foi considerado o maior e o mais importante e duradouro mocambo da América no desafio direto ao sistema patrimonial e autocrático. A importância da preservação da história de palmares, bem como o investimento nas investigações científicas, se tornam necessárias para o resgate da história, não só dos afro-brasileiros, enquanto etnia formadora do processo civilizatório nacional, mas do conjunto de todos os segmentos da nação brasileira.

Zumbi dos Palmares(sobrinho de Ganga Zumba) é símbolo da resistência negra no brasil a toda sorte de opressão.

Edison Carneiro reconhece que os quilombos "foram um fenômeno contra-aculturativo, de rebeldia contra os padrões de vida impostos pela sociedade oficial e de restauração dos antigos valores".  Prossegue, "O quilombo foi , portanto, um acontecimento singular na vida nacional, seja qual for o ângulo por que o encaremos" .

Por todas essas razões, o tombamento, enquanto ato administrativo, limitador do direito de propriedade, in casu quilombos, muito embora reconhecidos pelo legislador constitucional como de valor histórico-cultural, depende do ato da autoridade administrativa.

Seguindo o princípio do direito a cultura e a preservação dos valores étnicos-raciais  o dia 20 de novembro é considerado pela comunidade afro-brasileira Dia Nacional da Consciência Negra. Data de alta significação, eis que foi o dia da morte de Zumbi dos Palmares, líder do mais importante quilombo da história do Brasil. Em vista da relevância daquele episódio emblemático da resistência dos afro-brasileiros contra o escravismo , foi promulgada a Lei n° 2.307, de 17/04/95, oriunda do Projeto de lei n° 2.080, de 1992, de autoria do Vereador Edson Santos, da Câmara Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, que assim dispõe: "Art. 1°. Fica instituído como feriado municipal o dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares".

O Supremo Tribunal Federal , em decisão unânime declarou a constitucionalidade da referida lei que foi motivo de grandes controvérsias por parte daqueles que não reconhecem os valores dos heróis afro-brasileiros que contribuiram com a história da luta contra a opressão nesse país.

No campo da Educação, cuidou o legislador constituinte, com base na promoção da "educação humanística "(inciso V do art. 214 da CRFB), do ensino da História do Brasil, levando em conta as contribuições das diferente culturas e etnias para a formação do povo brasileiro ( §  1° do art. 242 da CRFB)  e no campo da cultura a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais (art.215, § 2° da CRFB).

Por essa razão foi sancionada a Lei n° 9.125 de 07/11/95 que instituiu o ano de 1995 como o Ano Zumbi dos Palmares. O artigo 2º da aludida Lei Federal declara data Nacional o dia 20 de novembro de 1996.

Assentada no princípio constitucional do pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, no caput do art.322, garante a todos em nível nacional, estadual e municipal o acesso aos direitos culturais, apoiando e incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais através de (inciso VII): "proteção das expressões culturais, incluindo as indígenas, afro-brasileiras, e de outros grupos participante do processo cultural, bem como o artesanato".

Assegura a Constituição do Estado do Rio de Janeiro a qualquer cidadão o direito de propor ação popular, visando a "anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade na qual o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento das custas judiciais e do ônus da sucumbência".  Em consonância com a Constituição do Estado, a Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro: "criar estímulos e incentivos para a preservação da arte e cultura negras, gerando espaços culturais, tais como museus e instituições para pesquisa de suas origens". (inciso VIII).

Com efeito, tanto o órgão legiferante estadual quanto o municipal cuidaram, em atenção ao preceito constitucional, da preservação, incentivo e estímulo às expressões culturais afro-brasileiras. Integram o elenco de dispositivos protetivos à diversidade étnico-cultural o art. 307, II, da Constituição do Estado do Rio de janeiro e artigo 321, II , da Lei Orgânica do Município.

A Constituição do Estado do Rio de janeiro e a Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro têm nos dispositivos supramencionados a tarefa e o compromisso de concretizar e materializar o igual exercício dos direitos culturais, respeitado o princípio constitucional da pluralidade e diversidade étnico-culturais.

Em defesa da cultura afro-brasileira, em nome do exercício da cidadania coletiva, em 1991 o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela ingressa no Juízo da 7ª Vara da Federal  - Seção Judiciária do Rio de Janeiro com Medida Cautelar Inominada (Proc.n°9100266817), com o fim de reaver os seus ativos financeiros confiscados pela Lei n° 8.024/90. Em decisão inédita, aquele Juízo concedeu liminar determinando a devolução nos seguintes termos: "Ao longo do tempo que lhe é destinado não se vê apenas o desfile de uma associação, com seu enredo, mas a clara demonstração dos esforços desenvolvidos. Por toda uma comunidade e, para que esse momento possa se materializar ante imenso número de pessoas cumpre ver que muitos obstáculos precisam ser transpostos.

Em tais condições , ressai nítido não somente o aspecto cultural da entidade, mas a estes igualmente se aliam conveniências de ordem social, que a Lei Maior protege e disciplina.

Demais, o espetáculo assim proporcionado a cada ano já não se limita ao território brasileiro, tendo repercussão mundial através dos mais diferentes veículos de comunicação de massa". 

Em virtude do êxito da ação proposta ,o comunicante ingressa com a idêntica ação judicial em  favor do Grêmio Recreativo Estação Primeira da Mangueira, tendo obtido igual sucesso com a extensão da liminar que foi proferida  acolhendo a tese da inconstitucionalidade da Lei n°8.024/90 autorizando o desbloqueio de todo ativo financeiro, a fim de não se constituir  em "obstáculo ao mais democrático concurso de sambas, música, fantasia e beleza do carnaval/90".

Aquela experiência jurídica revelou que a defesa dos valores culturais da comunidade afro-brasileira- garantidos constitucionalmente - não estavam tão somente na garantia do direito fundamental de propriedade, mais ainda na exigência constitucional da defesa e promoção dos direitos culturais , enquanto dever Estatal.  Tal tese afinou-se com o denominado "constitucionalismo comunitário brasileiro" derivado do constitucionalismo ibérico (Constituição Portuguesa de 1976 e Espanhola de 1978).  Sob tal perspectiva, é certo que "Recusando o constitucionalismo liberal, marcado pela defesa do individualismo racional, deve-se passar, "(segundo os comunitários) "para um constitucionalismo societário e comunitário, que confere prioridade aos valores da igualdade e da dignidades  humanas".

No mesmo sentido, Charles Taylor  afirma que cabe lembrar que "os seres humanos  querem ser reconhecidos, não apenas como tais, mas também em suas características culturais, que lhes conferem identidade individual e social. Especialmente para aquelas pessoas que integram grupos culturais minoritários expostos a uma pressão assimilatória(...) a manutenção da própria identidade cultural pode tornar-se  aspiração fundamental de liberdade, que também quer ter seu reconhecimento político e jurídico".

 

 

 

À GUISA DE CONCLUSÃO

 

 

A nota imprimida na pauta reivindicatória dos afro-brasileiros é a concretização, a materialização do princípio constitucional igualitário. O pleno exercício da cidadania , pressupõe o direito a ter acesso  aos bens produzidos pela sociedade, inclusive ,a preservação da sua cultura. Nesse sentido, Franz Fannon assevera que na sociedade pós-colonial "a questão política fundamental é a  de reivindicar o mesmo direito que têm os outros de tornarem-se aquilo que se quer ser, e não assumir alguma identidade pré-moldada que é simplesmente reprimida".  Estamos nós, afro-brasileiros, historicamente relegados a uma cidadania inconclusa pela assimilação destrutiva dos valores dominantes – etnocentroculturalistas - próprios das sociedades pós-coloniais. O multiculturalismo e o pluralismo-étnico, são a pedra de toque do respeito à dignidade pessoal e social - preconizados pelo constitucionalismo comunitário da chamada Constituição Cidadã -, cujo figurino, foi adotado das Constituições pós-modernas. Assim é que, os direitos civis , econômicos, políticos , culturais e sociais, por serem direitos inerentes a pessoa humana, são entendidos, a partir da Conferência de Viena , universais, indivisíveis e permeáveis, portanto, exigíveis, obrigatórios quanto ao seu cumprimento – eficácia jurídica e eficácia social -  a todos os Estados Partes,  signatários dos instrumentos internacionais de proteção à dignidade da pessoa humana.

Enfim, fomos desenraizados pela afro-diáspora e pela opressão assimilacionista, pasteurizante, homogeneizante  do pós-colonialismo. Somos aviltados pela globalização,  coveira de todas as culturas que não a aderem, que a resistem. Encarnamos miticamente Sísifo na incansável luta pelo direito a preservação da cultura afro-brasileira que tem em Zumbi dos Palmares o referencial de resistência da comunidade afro-brasileira.

 

 

 

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