JurisWay - Sistema Educacional Online
 
Kit com 30 mil modelos de petições
 
Cursos
Certificados
Concursos
OAB
ENEM
Vídeos
Modelos
Perguntas
Eventos
Artigos
Fale Conosco
Mais...
 
Email
Senha
powered by
Google  
 

Análise da Constitucionalidade dos municípios criados após a EC 15/96: O caso dos "municípios inconstitucionais"


Autoria:

Kedley Souza Jorge


Bancário. Graduando na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Maranhão.

envie um e-mail para este autor

Resumo:

O presente artigo objetiva realizar uma análise da situação jurídica dos municípios criados a partir da Emenda Constitucional 15, de 12 de Setembro de 1996, que deu nova redação ao §4º do artigo 18 da Constituição Federal.

Texto enviado ao JurisWay em 13/11/2010.

Última edição/atualização em 07/12/2010.



Indique este texto a seus amigos indique esta página a um amigo



Quer disponibilizar seu artigo no JurisWay?

ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DOS MUNICÍPIOS CRIADOS APÓS A EC 15/1996: O CASO "DOS MUNICÍPIOS INCONSTITUCIONAIS"
Kedley Souza Jorge


RESUMO


O presente artigo objetiva realizar uma análise da situação jurídica dos municípios criados a partir da Emenda Constitucional 15, de 12 de Setembro de 1996, que deu nova redação ao §4º do artigo 18 da Constituição Federal, tornando inconstitucionais os municípios criados após essa emenda, em razão de omissão do Legislativo em criação de Lei Complementar regulamentadora. Pretende o presente trabalho estudar a posição jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal no julgamento de ADIs impetradas tanto contra a omissão legislativa quanto contra a criação de novos municípios em razão da omissão, e a eficácia da solução jurídica encontrada pelo Congresso Nacional para o problema, com a edição da Emenda Constitucional 57, de 18 de Dezembro de 2008.

Palavras-chave: Direito Municipal. Criação de Municípios. EC 15/1996. Inconstitucionalidade por omissão. EC 57/2008. Análise de constitucionalidade.


1 INTRODUÇÃO

                    A argumentação aqui trazida vem tentar demonstrar, através de uma perspectiva histórica da criação de municípios no Brasil, a forma como se deram as últimas alterações constitucionais na matéria referente a esse assunto, que acabaram por criar situações jurídicas desconfortáveis para o Legislativo e o Judiciário Federal e, principalmente, para os municípios e distritos emancipados.
                   O trabalho de pesquisa direcionado à produção deste artigo tem como base as declarações de inconstitucionalidade proferidas pela Suprema Corte tanto em relação à omissão legislativa em regulamentar a norma disposta pelo §4º do art. 18 da Constituição Federal, quanto em relação às normas estaduais criadoras de novas municipalidades, mesmo diante da omissão do legislador complementar em elaborar a referida regulamentação. Baseado nos princípios da unidade federativa e da segurança jurídica, e na intenção legislativa do constituinte, em trazer ao processo emancipatório mais liberdade, mas ainda assim dentro de certos limites, usamos de elementos históricos e atuais para a elaboração desse artigo, na tentativa de apresentá-lo do modo mais claro possível.


2 ASPECTOS HISTÓRICOS

                      A partir da década de 1990, foram criados milhares de municípios no Brasil, em virtude da flexibilização decorrente da promulgação da Constituição Federal de 1988. A intensa criação de municípios não é um fenômeno recente. Nos últimos cinquenta anos a quantidade de municípios foi praticamente quadruplicada. No entanto, apesar de constante, as emancipações não aconteceram no mesmo ritmo em todas as décadas. Percebe-se que, como aponta Fabrício Ricardo de Limas Tomio,
"períodos democráticos, como a república populista (1945-1964), a nova república (anos de 1980) e o período atual, seriam caracterizados por uma descentralização política, institucional e fiscal que favoreceriam a maior intensidade de emancipações municipais. Ao contrário, períodos ditatoriais, como o regime militar (1964-1985), devido a suas características centralizadoras, inibiriam a criação de um grande número de municípios." (TOMIO, 2002)
                    Era de se esperar que, após o longo período de mais de duas décadas de governo militar centralizador, pudesse nascer, após a nova Constituição, uma chamada onda emancipacionista, consequência direta do novo viés de descentralização política. Na vigência da Carta de 1967, o art. 14 estabelecia que lei complementar federal fixasse os requisitos mínimos de população e renda pública e a forma de consulta prévia às populações locais, para criação de novos municípios.
                     A Lei Complementar nº 1/67, que regulamentava o assunto, dispunha que nenhum município seria criado sem a verificação dos requisitos seguintes: população estimada superior a dez mil habitantes ou não inferior a cinco milésimos da existente no Estado; eleitorado não inferior a dez por cento da população; centro urbano constituído previamente com no mínimo duzentas casas; e arrecadação de cinco milésimos da receita estadual em impostos.
                   Ato regulamentar advindo em 1969 tornou ainda mais rígido o quadro territorial do Estado, determinado que quaisquer alterações somente poderiam ser feitas com autorização prévia do Presidente da República, ouvido o Ministério da Justiça. Tal medida praticamente inviabilizou por completo a criação de novos municípios no período ditatorial.
                    De modo a tornar esse processo mais democrático, a nova Constituição, na redação original, determinou que aos Estados coubesse fixar os requisitos mínimos para a criação de municípios, por meio de lei complementar.
"Art. 18 [...] [...] § 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios preservarão a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano, far-se-ão por lei estadual, obedecidos os requisitos previstos em Lei Complementar estadual, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas." (BRASIL, 1988)
                    Com essa determinação, cada unidade federativa editava os próprios requisitos, à revelia dos dispostos na Lei Complementar 01/1967, que perdia sua eficácia até então. No Maranhão, por exemplo, era requisito para a criação de novos municípios, de acordo com a Lei Complementar Estadual 17/93, apenas que o novo município tivesse um mínimo de mil eleitores.
                    Mas isso acabou gerando preocupação com a cada vez mais frequente fragmentação territorial da federação em municipalidades mínimas, carentes de estruturas básicas para seu pleno funcionamento, sem condições de sobrevivência autônoma, desvirtuando a intenção primariamente democratizante do legislador constituinte.
                   Essa preocupação acabou levando o poder constituinte derivado reformador a editar emenda à Constituição, alterando a norma citada, de modo a tornar o processo emancipatório mais dificultoso, impondo restrições à criação de novos municípios. Os motivos para essa mudança constitucional aparecem bem explicitados na Justificação apresentada na Proposta de Emenda à Constituição nº 22, de 1996, no Senado Federal:
"O aparecimento de um número elevado de municípios novos, no País, tem chamado atenção para o caráter essencialmente eleitoreiro que envolve suas criações, fato este lamentável. Ao determinar a responsabilidade da criação de municípios aos Estados, a Constituição Federal considerou corretamente as particularidades regionais a que devem obedecer os requisitos para a criação dos municípios.
Contudo, o texto do §4º do art. 18 não apresentou as restrições necessárias ao consentimento dos abusos, hoje observado, e que não levam em conta os aspectos mais relevantes para a criação ou não de novos municípios. A determinação, no mesmo parágrafo, de que ficarão preservadas a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano deixa muito a desejar, por constituir uma condição nem precisa, nem objetiva.
Aceitamos que, para dispor mais objetivamente sobre a questão, a Constituição Federal deveria ser mais incisiva na determinação de condições capazes de evitar, ao máximo, distorções que ameacem a transparência e o amadurecimento da decisão técnica e política.
Assim, nesta proposta de emenda à Constituição, estamos incluindo dois elementos, a nosso ver, muito importantes. Primeiro, o período em que poderão ser criados os municípios, que deverá ser limitado com relação à época das eleições municipais. Este período será determinado por lei complementar federal. Segundo, a apresentação e publicação, na forma da lei, dos Estudos de Viabilidade Municipal, os quais deverão dar o necessário embasamento, sob diferentes perspectivas, à decisão da população, manifesta em plebiscito." (SENADO, 2003)

                    Seguindo essa orientação, a partir da Emenda Constitucional 15, de 12 de Setembro de 2006, a criação de municípios no Brasil passou a ser regida pelo §4º do art. 18 da Constituição Federal, que, na nova redação dada pela emenda, assim dispõe:
"Art. 18 [...] [...] § 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal [grifo nosso], e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei." (BRASIL, 2006)
                   A nova norma traz, portanto, imposição no sentido de que, para a criação de novos municípios, os Estados observassem, além do plebiscito de consulta às populações dos municípios diretamente envolvidos, também a divulgação de Estudo de Viabilidade Municipal que observaria a forma prevista em lei, e o período estabelecido por Lei Complementar Federal.


3 A OMISSÃO LEGISLATIVA REGULAMENTAR E A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL

                    Ocorre, porém, que até o presente momento, tal Lei Complementar Federal regulamentadora não foi editada pelo Congresso Nacional, regulamentando o dispositivo acima mencionado. Por tratar de norma de eficácia limitada, tal dispositivo constitucional que autoriza a criação de municípios fica sem aplicação até que tal lei complementar seja aprovada pelo Congresso e sancionada pelo Executivo.
                 O Congresso Nacional chegou a aprovar na forma do PLP-41/2003, a regulamentação necessária para tornar eficaz a norma constitucional, mas foi integralmente vetado pelo Presidente da República, sob a alegação de inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público. Da mensagem de veto nº 289/2003, destacamos os brilhantes apontamentos feitos pelo Ministério das Cidades, chamado pelo Presidente da República a se manifestar:
"A Constituição Federal de 1988 elevou os municípios à condição de componentes da estrutura federativa (arts. 1o e 18). A sua autonomia, nos campos político (auto-organização e governo próprio), normativo, administrativo e financeiro, passou a ser reconhecida pela própria Lei Fundamental. Se antes eles eram organizados pelos Estados-membros, hoje são as normas constitucionais que lhes outorgam a autonomia. E as linhas básicas de instituição dos Municípios, como proclamado pela nossa Corte Constitucional, seu regime jurídico e as normas regentes de sua criação interessam não apenas ao Estado-membro, mas à estrutura do Estado Federal. Tais normas regentes, por conseguinte, não podem se limitar à definição do período próprio para o processamento. Se assim se fizer, estará frustrada a razão de ser da Emenda Constitucional no 15, de 12 de setembro de 1996, pois que a primitiva redação do § 4o, do art. 18 da Constituição Federal, já outorgava aos Estados-membros que por Leis Complementares estabelecessem os requisitos para a criação de novos municípios.
Assim o que se deseja é que a Lei Complementar Federal, no interesse da Federação, defina o período e os critérios mínimos reclamados pelo dispositivo constitucional conforme o magistério da nossa Corte Suprema. Não nos parece suficiente, nesse ponto, a necessária observância pelos demais entes federativos, por simetria, dos princípios constitucionais maiores. A criação de municípios diz respeito à dimensão populacional e territorial e à sustentabilidade financeira das novas unidades, entre outros critérios. Se não é adequado que se mantenha congelado o processo de criação de municípios, também não é salutar que se prive a Federação de regramentos mínimos que devem orientar tal processo de criação." (MINISTÉRIO DAS CIDADES apud PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2003)

                    Nesse sentido, vem se consolidando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de inviabilidade de criação de novos municípios, enquanto não promulgada a lei complementar federal de que trata o art. 18, §4º, da Constituição. À mercê da modificação constitucional referida acima, e mesmo sem o devido amparo legal, foram criados diversos municípios no Brasil no período pós-reforma constitucional, o que tem sido objeto de diversos questionamentos de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
                      A posição do Supremo Tribunal Federal até 09 de Maio de 2007 era de decretação de nulidade de todas as leis criadoras de municípios, em razão da ausência de edição da referida lei complementar regulamentadora do dispositivo constitucional de eficácia limitada, conforme se depreende do julgamento da ADI 2.702/PR, julgada em 05 de Novembro de 2003:
"Afronta ao artigo 18, § 4o, da Constituição Federal. Precedentes. Emenda Constitucional 15/96. Criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios, nos termos da lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar e após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal. Inexistência da lei complementar exigida pela Constituição Federal. Desmembramento de município com base somente em lei estadual. Impossibilidade. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente para declarar inconstitucional a Lei 12949, de 25 de setembro de 2000, do Estado do Paraná." (STF, 2003. ADI 2.702/PR)
                    Porém, em 09 de Maio de 2007, após o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.682-3 Mato Grosso, que buscava declarar a inconstitucionalidade por omissão do Congresso Nacional, em razão da "inatividade do legislador quanto ao dever de elaborar a Lei Complementar de que trata o art. 18, §4º da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 15/1996", o STF, reconhecendo a mora do Congresso Nacional, julgou procedente o pedido, estabelecendo ao Legislativo um prazo de dezoito meses para que este adote os procedimentos legislativos necessários ao cumprimento da norma constitucional questionada.
                      Em relação a esse julgamento, destaca-se o brilhante parecer do Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, que configura a omissão inconstitucional, por considerar que, ao paralisar os Estados na sua atuação organizadora do espaço territorial, e, privando a população de ver realizado o seu desejo de emancipar-se, tal omissão ofende ao princípio federativo e da soberania popular, conforme segue:
"[...]
24. Observemos ainda que o silêncio do legislador federal termina por comprometer a autonomia das entidades federativas estaduais e municipais, incapacitadas que ficam de organizar adequada e convenientemente a distribuição do poder político-administrativo nos respectivos territórios.
[...]
29. Adicionalmente, devemos lembrar que a inércia legislativa está a impedir que a soberania popular, base de todo poder (art. 1º, parágrafo único, CF), se expresse pelos canais plebiscitários num sentido ou noutro da reorganização municipal.
30. Soma-se, portanto, a ausência de lei constitucionalmente exigida para desenvolvimento jusnormativo por tempo mais do que razoável para o adimplemento, com a desconsideração do princípio federativo e da soberania popular para definir a gravidade do quadro da inconstitucionalidade retratado nos autos." (SOUZA apud STF, 2007. ADI 3.682-3/MT)
                     Antes que se pretenda mencionar que a fixação de prazo para tomada de medidas legislativas por parte do STF consistiria em ofensa ao princípio da separação dos poderes, ressalte-se que o prazo fixado para a supressão da omissão por parte do Congresso Nacional somente se deu em razão de fixação de prazo para permanência em vigor das leis estaduais declaradas inconstitucionais, nessa mesma data, pelo STF.
                     A esse respeito, transcrevemos o voto do relator do processo, ministro Gilmar Mendes:
"não se trata de impor um prazo para a atuação legislativa do Congresso Nacional, mas apenas da fixação de um parâmetro temporal razoável, tendo em vista o prazo de 24 meses determinado pelo Tribunal nas ADI nºs. 2.240, 3.316, 3.489 e 3.689 para que as leis estaduais que criam municípios ou alteram seus limites territoriais continuem vigendo, até que a lei complementar federal seja promulgada contemplando as realidades desses municípios." (MENDES, apud STF, 2007. ADI 3682/MT)
                    As ADIs referidas pelo eminente relator, que foram julgadas no mesmo 09 de Maio de 2007, tratavam-se de questionamento de constitucionalidade de leis estaduais que criavam municípios, em razão de ausência de verificação do requisito de cumprimento de prazos a serem previstos por lei complementar federal.
                    A referida inconstitucionalidade, no entanto, não advém especificamente da lei estadual criadora dos municípios, mas em razão da omissão legislativa federal em legislar regulamentando a matéria disposta no art. 18, §4º, da Constituição Federal.
                    Em razão da declaração da inconstitucionalidade acarretar em prejuízo aos Estados, estes mesmos impossibilitados de regularizar a omissão, o STF adotou a técnica da modulação dos efeitos da pronúncia de inconstitucionalidade, declarando a inconstitucionalidade das leis estaduais, mas mantendo a sua vigência pelo prazo de 24 meses, tempo considerado suficiente para que o legislador estadual suprimisse as irregularidades, com base nos prazos fixados pela Lei Complementar a ser formulada pelo legislativo federal em até 18 meses.
                    Essa decisão, de manter a vigência de ato inconstitucional, foi tomada com base nos princípios da segurança jurídica e do interesse social, de acordo com o art. 27 da Lei 9.868/99:
"Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado." (BRASIL, 1999)
                    Uma das decisões tomadas nessa data, que foi a que mereceu maior destaque na comunidade acadêmica, foi a ADI 2.240-7/BA, por ter utilizado, pela primeira vez, a terminologia município putativo, que, a exemplo do casamento putativo, é um ente criado por ato nulo, mas que produz efeitos e deve continuar a existir, como se tivesse sido criado com base na norma constitucional, para que se vejam respeitados os princípios da reserva do impossível, da continuidade do Estado, federativo, segurança jurídica, confiança, força normativa dos fatos e situação excepcional consolidada.
                   O grande defensor dessa tese inovadora, que logo foi aclamada por acadêmicos e juristas mais modernos, foi o Ministro Eros Graus, relator do processo, conforme o trecho do voto transcrito abaixo:
"31. Por isso teria sentido, sim, falarmos em 'Município putativo', essa putatividade operando, mercê de conferência fictícia de validade à sua criação, como um obstáculo aos efeitos da inconstitucionalidade da lei que a operou [...].
[...]
35. Criado o Município, passou a existir e agir como ente da federação. Trata-se de um fato. Não se anulam fatos. Um ente da federação assumiu existência e dessa existência resultaram efeitos jurídicos, tal como ocorre no casamento putativo e com as 'sociedades em comum'. Impossível retornarmos no tempo, para anular essa existência, sem agressão à autonomia desse Município e, pois, ao princípio federativo." (GRAU apud STF, 2007)
                     O STF passou, então, desde 2007 e até que o Legislativo regulamentasse, dentro do prazo de 18 meses, a norma constitucional disposta no art. 18, §4º da Constituição, a considerar inconstitucionais todas as normas estaduais que criassem municípios, em razão de necessário descumprimento da referida norma, decorrente de omissão legislativa, sem, contudo, decretar nulidade dessas normas estaduais, em razão dos princípios já citados.


4 A SOLUÇÃO LEGISLATIVA ADOTADA PELO CONGRESSO E A CONTÍNUA INDEFINIÇÃO DA QUESTÃO

                     Porém, como era de se esperar de um legislativo que em 11 anos ainda não havia regulamentado norma constitucional de eficácia limitada, de importância elevadíssima para a manutenção da ordem federativa, até a atualidade, mesmo após declaração da inconstitucionalidade por omissão no STF, o Congresso Nacional não votou a lei complementar de que trata o §4º do art. 18 da Constituição.
                     Mas o Legislativo, na tentativa de resolver a questão, afastando a inconstitucionalidade por omissão, adotou uma medida um tanto quanto heterodoxa: incluiu, no texto da Emenda Constitucional nº 57, de 18 de Dezembro de 2008, disposição de convalidação de todos os atos de criação de municípios publicados até 31 de Dezembro de 2006, mesmo sem a verificação dos requisitos constitucionais.
"Art. 1º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte art. 96:
'Art. 96. Ficam convalidados os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios, cuja lei tenha sido publicada até 31 de dezembro de 2006, atendidos os requisitos estabelecidos na legislação do respectivo Estado à época de sua criação.'" (BRASIL, 2008)
                    Com a entrada em vigor dessa emenda, na data de sua publicação, o poder constituinte derivado reformador resolveu o problema dos "municípios inconstitucionais", acolhendo-os na ordem constitucional, através da convalidação dos seus atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento. Mas essa norma reformadora pode ser considerada verdadeira "emenda", no sentido popular do termo, na medida em que, apesar de ter resolvido o problema dos municípios já criados, e, principalmente, daqueles que, questionados sobre sua constitucionalidade perante o STF, tinham uma sobrevida determinada de 24 meses, até que fosse sanada a omissão legislativa, acabou não resolvendo o problema da criação, fusão, incorporação e desmembramento de novos municípios.
                    A Constituição permanece exigindo a edição de Lei Complementar Federal, e essa continua não existindo, restando ainda à questão se estabelecer sob a égide da inconstitucionalidade por omissão legislativa. A respeito da imperfeita resolução dada pelo Congresso Nacional, concordamos com COLNAGO, ao manifestar-se no sentido de que
[...] a emenda constitucional n. 57, no que pretendeu convalidar o vício de inconstitucionalidade reconhecido pelo STF é o de uma inconstitucionalidade chapada, como diria o Ministro aposentado Sepúlveda Pertence. Melhor seria que o legislador reformador tivesse editado a lei complementar federal, de forma a sanar o vício para os casos futuros. Da forma como ficou, o problema não foi resolvido, já que o instrumento utilizado pelo Congresso foi manifestamente inadequado." (COLNAGO, 2009)
                    A promulgação da Emenda Constitucional 57/2008 teria contrariado a Lei Maior ao ignorar o requisito da existência de Lei Complementar Federal para criação de Municípios, "que, em rigor, não pode ser preenchida por nenhuma outra espécie normativa, inclusive emenda à Constituição". (BULOS apud CARNEIRO, 2010)
                    Daí nasce uma questão bem mais polêmica, que gira em torno da possibilidade ou não de o poder constituinte derivado reformador convalidar, tornando constitucionais, atos inconstitucionais, pois isso afetaria a segurança jurídica. Com efeito, o Constituinte Reformador não tem poderes para validar uma situação de inconstitucionalidade através de Emenda Constitucional. Ao promulgar emendas à Constituição, o Poder Legislativo deve respeitar os princípios e regras previamente estabelecidos na Constituição já que, neste caso, atua no exercício do poder constituinte derivado reformador.
                   Verifica-se que o Congresso Nacional realizou verdadeira manobra para "constitucionalizar" estados de inconstitucionalidade gerados por leis estaduais que criaram os Municípios indevidamente, ato que deve ser repudiado diante da ordem constitucional vigente. Se havia regra expressa na Constituição estabelecendo as etapas de criação desses entes federativos, não poderia o Legislativo ignorar tal procedimento. Isso seria, nesse caso, "admitir que Emendas Constitucionais tenham, a partir de agora, o poder de transformar leis inconstitucionais em constitucionais, o que é flagrantemente ilegítimo e assustador, diante de um Estado Democrático de Direito" (CARNEIRO, 2008).
                     Como visto, a situação ainda carece de regulamentação, já que o artigo 18, §4º, da Constituição, continua pendente da Lei Complementar Federal. O Congresso Nacional apenas "resolveu" a questão parcialmente, pois ainda hoje Municípios não podem ser criados conforme as regras da Constituição. Vale dizer: O Poder Legislativo continua omisso.
                      Em mais uma tentativa de solucionar a questão, regulamentando o art. 18, §4º, da Carta Política, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar nº 416, de 2008, já aprovado no Senado Federal e que atualmente tramita nas comissões da segunda casa. O projeto estabelece requisitos mínimos para a criação de municípios, a serem comprovados no Estudo de Viabilidade Municipal, bem como o período em que poderão ser criados os novos municípios.


 5 CONCLUSÃO

A criação de municípios, mediante a emancipação de distritos, deve-se dar através de lei estadual, após divulgação de Estudos de Viabilidade Municipal e consulta prévia às populações envolvidas mediante plebiscito, e obedecidos os prazos previstos em lei complementar federal ainda não editada, conforme se depreende do texto do art. 18, §4º da Constituição Federal. Essa criação depende, portanto, da edição de lei complementar que supra a omissão legislativa até agora verificada, para que possam ser válidas as normas estaduais criadoras de novas municipalidades. A edição da EC 57/2008, com a convalidação dos municípios até então inconstitucionais, no entanto, não supre a omissão legislativa, que permanece existente, assombrando cada distrito com intenções de emancipação pelo país. O fato de a emenda ter contemplado aqueles municípios até então indefinidos não pode ser levado como precedente para a criação de novos municípios, a partir de 31 de Dezembro de 2006. Esses entes ainda dependem da promulgação da até então inexistente lei complementar.


REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Constança Sales Varela de Oliveira Martins. Limites do poder constituinte derivado reformador e a Emenda Constitucional nº 57/2008. Teresina: Jus Navigandi, 2010. Disponível em: Acesso em: 08 Nov 2010.

COLNAGO, Cláudio. Os Municípios Inconstitucionais e a tentativa de sua convalidação. Vitória: 2009. Disponível em: Acesso em: 07 Nov 2010.

DIAS, Rodrigo. GARRIDO, Elena. Considerações Jurídicas sobre o tema das emancipações. Porto Alegre: Confederação Nacional de Municípios, 2010. Disponível em Acesso em: 06 Nov 2010

FERNANDES, Marcos Silva. Criação de novos Municípios na Constituição de 1988. Brasília: Recanto das Letras, 2009. Disponível em Acesso em: 07 Nov 2010

FILHO, Darci de Farias Cintra. O caso Luis Eduardo Magalhães e o risco da admissão de uma constitucionalidade superveniente. Caruaru: Revista da Faculdade de Direito de Caruaru/Asces, 2010. Disponível em Acesso em: 08 Nov 2010.

LEITE, Ravênia Márcia de Oliveira. Município Putativo - o Município de Luís Eduardo Magalhães. São Paulo: Revista Jus Vigilantibus, 2009. Disponível em Acesso em: 08 Nov 2010.

LIMA, Victor Galeno Rodrigues. A formação de Municípios e a reserva do impossível. São Paulo: Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes, 2008. Disponível em Acesso em 07 Nov 2010.

TOMIO, Fabrício Ricardo de Limas. A Criação de municípios após a Constituição de 1988. São Paulo: Revista brasileira de Ciências Sociais, 2002. Disponível em Acesso em 06 Nov/2010
Importante:
1 - Conforme lei 9.610/98, que dispõe sobre direitos autorais, a reprodução parcial ou integral desta obra sem autorização prévia e expressa do autor constitui ofensa aos seus direitos autorais (art. 29). Em caso de interesse, use o link localizado na parte superior direita da página para entrar em contato com o autor do texto.
2 - Entretanto, de acordo com a lei 9.610/98, art. 46, não constitui ofensa aos direitos autorais a citação de passagens da obra para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor (Kedley Souza Jorge) e a fonte www.jurisway.org.br.
3 - O JurisWay não interfere nas obras disponibilizadas pelos doutrinadores, razão pela qual refletem exclusivamente as opiniões, ideias e conceitos de seus autores.

Nenhum comentário cadastrado.



Somente usuários cadastrados podem avaliar o conteúdo do JurisWay.

Para comentar este artigo, entre com seu e-mail e senha abaixo ou faço o cadastro no site.

Já sou cadastrado no JurisWay





Esqueceu login/senha?
Lembrete por e-mail

Não sou cadastrado no JurisWay




 
Copyright (c) 2006-2024. JurisWay - Todos os direitos reservados