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DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS QUILOMBOLAS: UMA INTERPRETAÇÃO COERENTE COM O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO


Autoria:

Waldicleide De França Santos Gonçalves


Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil pela UGF/RJ. Advogada.

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Resumo:

O presente artigo objetiva apresentar a relevância da Constituição do Brasil de 1988, que preceitua em seu artigo 68 do ADCT, o direito à titulação das terras das comunidades quilombolas e dos demais direitos fundamentais excluídos historicamente.

Texto enviado ao JurisWay em 16/03/2010.



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DIREItos fundamentais dos Quilombolas: UMA INTERPRETAÇÃO COERENTE COM O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO  

                                                                        Waldicleide de França Santos Gonçalves1

 

O presente artigo objetiva apresentar a relevância da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que preceitua em seu artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o direito à titulação das terras das comunidades dos remanescentes de quilombos. Nesse sentido, a partir da doutrina dos direitos fundamentais e da hermenêutica constitucional busca-se explorar a necessidade, bem como as possibilidades de implementação dos direitos dessas comunidades historicamente excluídas.

Palavras-chave: Comunidades remanescentes quilombos.   Constituição Federal.  Direitos fundamentais.

1. INTRODUÇÃO

 

A partir da Constituição da República de 1988, inaugura-se um paradigma onde todos os parâmetros de construção da sociedade culminam na dignidade da pessoa humana. Dignidade esta constitucionalmente assegurada a todos, conforme dispõe o art. 1º, III da Constituição Federal, que é fundamento do Estado Democrático de Direito Brasileiro, bem como, segundo as demais garantias individuais e coletivas textificadas nesta Constituição, a cada sujeito de direito que compartilha com os demais sua vontade, sua identidade, sua história de vida, enfim, sua cultura em um dado momento histórico.

Ao Estado de Direito resta apenas assegurar a todos os cidadãos, sem distinção, o direito ao pleno exercício de sua identidade e sua dignidade, que só concretiza-se através da implementação dos direitos fundamentais: direitos resguardados pela Constituição Democrática que, por sua vez, é criada por um poder constituinte que não poderia ser outro, mas tão somente do povo que constitui a sociedade.

 No entanto, como definir quem é o povo desta Constituição Democrática se, ao longo da história das constituições, o povo tem sido iconizado para alcançar os fins da classe dominante?

Friedrich Müller (2004) parte do pressuposto de que o povo das Constituições deve ser todo o povo, considerado enquanto sujeitos de direitos fundamentais. Portanto, todo o povo contemplado pelas normas jurídicas positivadas em um texto constitucional, pela “família constitucional”. Aqueles que ajudaram a construir a sociedade, a partir das diferentes formas de vida e que devem legitimar a Constituição, pois “constituir” a Constituição é uma tarefa para o poder constituinte que, no “pleno sentido do termo, maciço e real, não mais metafísico, seria o poder do povo de constituir-se.” (MÜLLER, 2004, p.26, grifo nosso)

Dessa forma, observa-se que enquanto o povo for utilizado como massa de manobra pelas Constituições, como forma de legitimar as estruturas dominantes, não há que se falar em Constituição Democrática e, por conseguinte, não há possibilidades de “constituir” e muito menos de se concretizar os comandos normativos da Constituição. Por tal ângulo, faz-se notória a predominância da manipulação e iconização do “poder constituinte” por uma minoria dominante.

As dificuldades enfrentadas pelo povo brasileiro e, no que tange à especificidade deste trabalho, pelos remanescentes de quilombos na atualidade, refletem o tratamento excludente dispensado a eles: práticas racistas, discriminatórias e manipuladoras que exemplificam a iconização[2] produzida pelos “donos do poder”. Poder este legitimado por discursos autoritários e preconceituosos através dos textos constitucionais.

Diante desta realidade, quais seriam os parâmetros legais para a garantia e concretização dos direitos fundamentais de tal grupo identitário? Como a hermenêutica jurídico-constitucional contemporânea pode assegurar às comunidades remanescentes de quilombos o seu direito fundamental à identidade, e, por conseguinte, ao próprio desenvolvimento étnico e cultural deste grupo expressamente contemplado pela Constituição Democrática?

 

2. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Levando em consideração que o povo brasileiro sofreu influências das mais diversas na sua formação e tornou-se um povo plural por excelência, construindo sua história a partir da diversidade cultural, da pluralidade étnica, enfim, de uma multiplicidade de conhecimentos e de tradições, a Constituição da República Federativa Brasileira de 1988 não fez distinção entre os agrupamentos que compõem a sociedade brasileira. Pelo contrário, dispõe em diversos dispositivos a necessidade de resguardar e proteger o patrimônio cultural brasileiro, bem como as manifestações culturais participantes do processo civilizatório nacional. Portanto, iguala-os enquanto sujeitos de direitos, enquanto “povo brasileiro”, portadores de referência à identidade, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade.

Desta forma, dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu art. 5° que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” [...] (BRASIL, 1988, p.9, grifo nosso)

Além de garantir a todos, a igualdade e a liberdade, a Constituição Federal elenca outros inúmeros direitos e garantias fundamentais nos incisos do supramencionado artigo. Trata-se da estrutura principiológica garantidora dos direitos fundamentais de todos os cidadãos no Estado Democrático de Direito Brasileiro.

 Os direitos fundamentais de todos os cidadãos estão dispostos na Constituição Federal. Convêm destacar, o § 1° do art. 5° da C.F, que dispõe: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” (BRASIL, 1988, p.10)

Ressalta-se que, os direitos subjetivos assegurados aos remanescentes de quilombos - o direito fundamental à terra e, conseqüentemente, à livre afirmação da identidade, encontra-se fulcrado no art. 5º, inciso, XXII (direito fundamental a propriedade), art. 215, § 1°, 216 § 1° e § 4°, (direito fundamental à cultura), todos da Constituição Federal de 1988,  sendo especificados pelo art. 68 do ADCT  e por leis esparsas.

Importante se faz apresentar, o texto do artigo que pode implementar os direitos fundamentais dos remanescentes de quilombos.  Neste sentido, destaca-se o art.68 do ADCT:Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos.” (BRASIL, 1988, p. 75, grifo nosso)

Diante do texto normativo, Rios afirma: “evidentemente, não se deve pensar isoladamente o art. 68 do ADCT, se imaginando que a obrigação do Estado com relação a essas comunidades se finda com a mera expedição dos títulos de domínio sobre as terras que ocupam.” (RIOS, 2008, p.191)

A relevância do dispositivo mencionado ultrapassa a expedição de títulos de terra, encontrando-se na consagração dos direitos fundamentais dessa minoria, como se depreende dos dispositivos mencionados e pode-se verificar no trecho a seguir:

Além do relevante valor simbólico da consagração textual, há conseqüências jurídicas relevantes, decorrentes do caráter constitucional, que confere, além da evidência, supremacia e rigidez ao respectivo dispositivo. O aspecto jurídico mais importante de referência constitucional aos quilombolas, contudo, é a vinculação com direitos fundamentais. (ROTHENBURG, 2008, p.445)

O respeito e a preservação das culturas dos grupos minoritários convertem-se numa das dimensões fundamentais do princípio da igualdade. No entanto, “parte-se da premissa de que a igualdade é um objetivo a ser perseguido através de ações e políticas públicas, e que, portanto, ela demanda iniciativas concretas em proveito dos grupos desfavorecidos.” (SARMENTO, 2006, p. 66, grifo nosso)

Por outro lado, Daniel Sarmento (2006) ao afirmar que a igualdade não é uma homogeneização forçada, destaca que todos têm a igual liberdade ao reconhecimento de suas diferenças e de viverem de acordo com elas. O autor explica que, nestes termos, a liberdade e a igualdade deixam de ser antíteses, tornando-se valores complementares. Portanto, o direito à igualdade pressupõe o respeito às diferenças.

Friedrich Müller (2005) entende que a “concretização das normas” deve ser a preocupação central de um Estado de Direito que vise efetivar as normas jurídicas positivadas. No entanto, elas dependem de métodos de interpretação, de uma hermenêutica que não se prenda a métodos exegéticos, nem tão pouco a positivismos legalistas, pois estes se mostram insuficientes na práxis.

Müller explica porque estes métodos são insuficientes:

Os procedimentos propostos adicional ou substantivamente por eles contrapõem-se em grau considerável aos imperativos de clareza dos métodos jurídicos, próprios do Estado de Direito, e à objetividade jurídica, que assegura a medida possível da segurança jurídica. À medida que eles contradizem diretamente enunciados nítidos de teores literais de normas constitucionais ou da sistemática do direito constitucional, são inadmissíveis não só no seu resultado, mas também como procedimentos.    (MÜLLER, 2005, p.22).

Válido ressaltar que a importância da hermenêutica se encontra na possibilidade de concretização destas normas jurídicas e, por conseguinte, dos direitos fundamentais.

 A concretização da norma é a interpretação do texto da norma, que por sua vez não é nada mais do que a reelaboração da vontade da norma do seu dador, que se manifesta no texto da norma, na sua história legislativa, no nexo sistemático com outros textos de normas, na história dos textos de correspondentes regulamentações anteriores e no sentido e na finalidade da prescrição a serem extraídos desses indícios. (MÜLLER, 2005, p.6)

Partindo do pressuposto de que todos são iguais perante a lei, ou seja, de que todos são igualmente sujeitos de direitos, percebe-se que a dificuldade de concretização das normas positivadas evidencia a supressão de direitos fundamentais, e por sua vez, deslegitima um Estado que se concebe como um Estado de Direito.

Neste sentido, a relevância de uma interpretação comprometida com a concretização da norma deve ser o parâmetro de um Estado de Direito comprometido com seus sujeitos de direitos. Portanto, a Constituição da República de 1988, quando garante às comunidades remanescentes de quilombos o seu direito à terra, visa assegurar não apenas a titulação das terras ocupadas por estas comunidades. Visa, acima de tudo, garantir-lhes outros direitos fundamentais intrínsecos à sua condição de proprietários, além da preservação da sua cultura, da identidade étnica e, conseqüentemente, de sua dignidade.

Daniel Sarmento, citado por Rothenburg, explica:

Para comunidades tradicionais, a terra possui um significado completamente diferente da que ele apresenta para a cultura ocidental de massas. Não se trata apenas de moradia, que pode ser trocada pelo indivíduo sem maiores traumas, mas sim do elo que mantém a união do grupo, e que permite a sua continuidade no tempo através de sucessivas gerações, possibilitando a preservação da cultura, dos valores e do modo peculiar de vida da comunidade étnica.Privado da terra, o grupo tende a se dispersar e a desaparecer, absorvido pela sociedade envolvente. Portanto, não é só a terra que se perde, pois a identidade coletiva também periga sucumbir. Dessa forma, não é exagero afirmar que quando se retira a terra de uma comunidade quilombola, não se está apenas violando o direito à moradia dos seus membros. Muito mais que isso, se atenta contra a própria identidade étnica destas pessoas. Daí porque, o direito à terra dos remanescentes de quilombo é também um direito fundamental cultural. (Sarmento apud Rothenburg, 2008, p. 468).

Conforme Sarmento (2006), a relevância em diferenciar esse grupo a fim de beneficiá-lo é inegável, posto que historicamente estigmatizado e vítima de discriminações das mais diversas. Segundo o autor, a Nação tem uma dívida histórica para com os remanescentes de quilombos que deve ser reparada, já que os efeitos perversos de muitos séculos da dominação são refletidos de maneira perigosa nos dias atuais, percebida através da discriminação e da exclusão.

Neste sentido, o dispositivo trazido pela Constituição Federal de 1988 em seu art. 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, além das leis infraconstitucionais editadas posteriormente para dar eficácia ao mencionado artigo, devem ser considerados como um marco inquestionável na história dos quilombolas. Marco porque, a partir do texto constitucional, esse povo historicamente excluído vê a possibilidade de ter seus direitos concretizados, posto que formalmente reconhecidos como sujeitos de direitos fundamentais resguardados pela Lei Maior [3].

Não se pode conceber um Estado sem povo, muito menos um Estado de Direito sem as garantias fundamentais dos direitos subjetivos de seu povo. Assim, a construção da cidadania se dá a partir da afirmação da identidade de um povo, o que não se confunde com um processo de iconização, massificação e, conseqüentemente, de supressão da subjetividade/identidade de um agrupamento específico. Os direitos subjetivos que conformam a cidadania e a dignidade de qualquer pessoa e grupo devem, antes, servir de parâmetro para toda atuação estatal.

Desta forma, o trecho a seguir destaca os parâmetros para a construção de um Estado que se pretenda Estado de Direito:

Em 1988, o Brasil promulgou uma nova Constituição, depois de mais de duas décadas de um regime autoritário. Em reação à experiência do governo arbitrário e a um passado de injustiças e desigualdades sociais, a nova Constituição foi tecida sob os princípios do devido processo legal, da democracia e dos direitos fundamentais. Sua carta de direitos garante direitos civis, políticos, sociais e econômicos, incluindo os direitos de grupos vulneráveis como os indígenas, os negros, os idosos e as crianças. Esses direitos recebem uma proteção especial e não podem ser abolidos nem por intermédio de emendas constitucionais. O Brasil é hoje parte das principais convenções internacionais de direitos humanos, e essas têm um efeito direto sobre o sistema jurídico brasileiro. Portanto, todas as garantias substantivas e procedimentos da Carta Internacional de Direitos Humanos são parte do sistema jurídico brasileiro. (VIEIRA, 2008, p.205, grifo nosso)

A cidadania e a dignidade da pessoa humana, enquanto fundamentos do Estado Democrático de Direito Brasileiro, Constituição da República, art. 1º, II e III, indicam que um Estado que não garante os direitos subjetivos não pode ser considerado como um Estado de Direito.  É neste contexto que Müller sustenta:

Só se pode falar enfaticamente de povo ativo quando vigem, se praticam e são respeitados os direitos fundamentais individuais e, por igual, também os direitos fundamentais políticos de todo o povo brasileiro. Assim, sem a prática dos direitos do homem e do cidadão, “o povo” permanece uma metáfora ideologicamente abstrata de má qualidade. (MÜLLER, 2003, p.63)  

Segundo Gama (2005), apesar de o art. 68 do ADCT ter sido um marco na história de garantias dos remanescentes de quilombos, seria muito mais técnico se a Constituição Federal previsse a garantia “de suas terras”, na Seção II do Capítulo III do Título VIII, mais precisamente nos artigos 215 e 216, já que a Carta Magna considera como formadores do processo civilizatório nacional os grupos afro-brasileiros, impondo ainda o tombamento de todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

Convêm apresentar alguns dispositivos da Seção II- Da Cultura:

Art.215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1° O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

[...]

§ 3° A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do país e à integração das ações do poder público que conduzem à:

I-                    defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

II-                 produção, promoção e difusão de bens culturais;

III-               formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;

IV-               democratização do acesso aos bens de cultura;

V-                  valorização da diversidade étnica e regional.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I-              as formas de expressão;

II-            os modos de criar, fazer e viver;

III-         as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV-          as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V-            os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§1° O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação;

[...]

§5° Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. (BRASIL, 1988, p. 58-59)

 

Ressalta-se que a cultura pode ser entendida como forma de vida intersubjetivamente compartilhada pelas pessoas, que está implícita na sua organização em um dado momento histórico. Nesse sentido, a cultura representa um conjunto de significados que todos compartilham sobre práticas e ações individuais e coletivas. A ordem constitucional ao proteger a cultura, protege simultaneamente estas normas que são compartilhadas intersubjetivamente pelos indivíduos, uma vez que sem este elemento cultual pretere-se a própria identidade individual e coletiva de uma sociedade.

Importante frisar o pensamento de Norbert Elias na passagem a seguir:

Tal como acontece com a tribo, algo que possui extremo valor para muitas das pessoas implicadas, algo com que elas se identificam, esmaece na transição para o nível superior. A identidade de sua imagem-do-nós fica ameaçada. Essa identidade-do-nós [...] não tem apenas uma função individual, mas também uma importante função social. Ela dá a cada indivíduo um passado que se estende muito além de seu passado pessoal e permite que alguma coisa das pessoas de outrora continue a viver no presente. Unidades, como tribos e Estados, não têm apenas a função de sobrevivência no sentido mais óbvio da palavra. Não são unidades de sobrevivência unicamente porque as pessoas que fazem parte delas costumam gozar de um nível relativamente elevado de segurança física, proteção contra a violência e amparo na doença e na velhice. Também porque, pela continuidade da tradição, a filiação a esses grupos-nós concede ao indivíduo uma oportunidade de sobrevivência que transcende a existência física real, uma sobrevivência na cadeia de gerações. A continuidade de um grupo de sobrevivência, expressa na continuidade de sua língua, na transmissão das lendas, da história, da música e de muitos outros valores culturais, é em si uma das funções de sobrevivência desse grupo. Na memória de um grupo atual, a sobrevivência de um grupo passado tem uma função de memória coletiva [...]. Enquanto nenhum sentimento de identidade pessoal, nenhum sentimento-nós for associado à unidade de ordem superior, o desvanecimento ou desaparecimento do grupo-nós de ordem inferior há de se afigurar como uma ameaça de morte, uma destruição coletiva, como uma perda de sentido no mais alto grau. (ELIAS, 1994, p.182)

 

Desta forma, a valorização da diversidade étnica e as medidas protetivas do patrimônio cultural brasileiro, bem como da preservação da identidade do povo formador do processo civilizatório, surgem como medidas de legitimação do Estado Constitucional a fim de dar oportunidades de afirmação e perpetuação da “identidade-nós”, valorizando-os enquanto sujeitos de direitos culturais/fundamentais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Pelo o exposto, a possibilidade interpretativa apresentada coaduna com toda a construção do Estado Democrático de Direito, que visa assegurar a identidade, bem como os direitos fundamentais e a dignidade de todo o povo formador da “família constitucional”, atribuindo especial atenção àqueles em condições de vulnerabilidade e exclusão social, como é o caso das comunidades remanescentes de quilombos.

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 27ª Ed. Brasília: Câmara dos Deputados, 2007.

 

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

 

GAMA, Alcides Moreira da. O direito de propriedade das terras ocupadas pelas comunidades descendentes de quilombos . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 825, 6 out. 2005. Disponível em: . Acesso em: 04/02/2009.

 

MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.

 

MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

 

MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

 

NORMATIZAÇÃO. Padrão PUC Minas de. Normas da ABNT para apresentação de trabalhos científicos, teses, dissertações e monografias/Elaboração Helenice Rêgo dos Santos Cunha. Belo Horizonte. Atualização agosto 2008.

 

RIOS, Aurélio Virgílio. Quilombos e igualdade étnico-racial. “In”: Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial.  Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR). PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de. (coord.). Brasília: SEPPIR, 2006.

 

ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos dos Descendentes de Escravos (Remanescentes das Comunidades de Quilombos. “In”: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia. Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

 

SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico- Racial. “In”: Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial.  Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR). PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de. (coord.). Brasília: SEPPIR, 2006.

 

 


Notas

[1]Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós Graduanda em Direitos Humanos pela Fundação Getúlio Vargas/RJ. Advogada .

[2] A expressão referida será aqui utilizada quando se tratar de povo enquanto coisa, “colonizados a imagem e semelhança dos atores dominantes.” (conforme Friedrich Müller, em Quem é o povo? A questão fundamental da democracia, 2003, p.68.)

 

 

[3] Lei Maior corresponde a Constituição da República Federal.

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