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A pena: dos primórdios a Beccaria


Autoria:

Marcos Fonseca Da Silva


Bacharel em Direito pela FADOM (Faculdades Integradas do Oeste de Minas), pós-graduado em Direito Público Municipal pela Faculdade Pitágoras, servidor público concursado do Poder Legislativo Municipal, advogado (OAB/MG 125752).

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Resumo:

O presente trabalho trata-se do estudo das penas sobre a óptica histórica com o fito de apresentar os precedentes relativos à conceituação, determinação e aplicação da pena.

Texto enviado ao JurisWay em 23/10/2009.

Última edição/atualização em 17/11/2009.



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            Inicialmente, cabe apresentar algumas considerações sobre a estrutura do presente trabalho, com o intuito de trazer a lume os métodos e formas aplicadas para a produção da presente pesquisa.

            Dessa monta, pelo tema a ser exposto constituir de assuntos relativos, mormente, à seara da história do direito, o modelo de pesquisa empregado na produção estabeleceu-se de caráter teórico bibliográfico, assim, utilizou-se de documentos históricos, livros e artigos relacionados ao tema proposto.

            Utilizou-se, outrossim, como procedimento metodológico a via dedutiva, tendo em vista a análise, inicial, geral do tema referente à pena, como estudo histórico relacionado às questões de aplicabilidade e fundamentos, e, posteriormente, a óptica apresentada por Beccaria pelo mesmo enfoque penal e sua aplicação.

            Por esse caminho, as análises serão temáticas, tendo em vista a utilização da abordagem das áreas de conhecimento pertinentes ao tema, se remontando a teoria, pois discutirá o tema adendo a concepções e entendimentos ideologicamente formados, com estabelecimento comparativo, porque estudará o tema-problema com relações a diferentes visões, histórica, tendo em vista a busca de dados não contemporâneos, e crítica, uma vez que analisará a possibilidade de quebra do paradigma estabelecido no decorrer do tempo quando da aplicação da pena e seus limites.

            De forma geral, pretende-se analisar a relação entre princípios, que está diretamente relacionado ao desenvolvimento histórico, tomado como tempo decorrido. E é nesse sentido que se desenvolve o presente estudo, vale dizer, qual a relação histórica relativa aos princípios, especificamente tomados pelo viés penal, tomando como marco o pensamento de Cesare Beccaria.

            Tem se muito a relacionar a questão quando da aplicação do Direito Penal no caso concreto, aplicando a Lei, tida como instrumento da Ciência Jurídica, co-relacionando-a com os princípios. Dessa forma, a questão se desenvolve a partir da analise de documentos antecessores a Beccaria até o momento de sua obra intitulada Dos Delitos e das Penas, apresentando os princípios e analises ali elencados.

            Ao se analisar tal tema, tomou-se como limite as próprias obras relativas ao período em que Beccaria faz-se inserido, historicamente. Destarte, está correlacionado á maneira como se aplicava o que hoje denominamos de Direito Penal, ou até mesmo, quais eram os limites (ou não) para busca da solução (verdade / justiça) quando em um conflito tido como penal / crime. Pela questão, o homem sempre foi objeto de análise quando da aplicação de uma norma.          

Dessa forma, perceber-se-á a importância do pensamento de Cesare Beccaria, não só pela atemporalidade, mas, principalmente, com relação à influência que exerce em vários ramos do estudo jurídico. A aplicação devida, sem detrimento do indivíduo ao qual faz parte da relação legitimado e investigando, não como objeto, mas como sujeito de direitos e garantias.

            Ao se levantar tais inquirições, é importante delimitar o espaço em que se questiona, nesse sentido, o presente trabalho se apresenta na medida em que se torna possível o estudo da questão histórica relativa aos princípios penais expressos, presentes em Dos delitos e das Penas, comparando-a, também, a clássicos como Código de Hamurabi, Código de Manu, Martelo das Bruxas, entre outros.

 

            A análise dos estudos históricos, mormente jurídicos, estão diretamente relacionados ao desenvolvimento da aplicação da ciência que o corresponde, qual seja o próprio Direito. E é nesse viés que se objetiva o presente estudo, o levantamento dos procedimentos pela busca e aplicação das penas enquanto limites e respeitos a dignidade da pessoa inserida no âmbito inquisitorial.

            O estudo dos princípios se demonstra nesta mesma fase em que se aproxima a estrutura do judiciário quando da aplicação da norma. A pena tomada como resposta a uma sociedade, a forma tomada como meio ao apenado, o pecado tomado como castigo aos hereges. Seria impossível termos o que se apresenta se não fosse o estudo contínuo do que teve como legítimo em determinado momento histórico.

            Destarte, objetiva-se a análise de documentos marcantes na estrutura e desenvolvimento da aplicação penal antecedentes a Beccaria, e a posteriori, o estudo apresentando em Dos Delitos e Das Penas como marco na aplicação e determinação ao limite imposto ao Estado quando da punição.

            Assim, se tratará, a partir da análise de estudos histórico-bibliográficos, a abordagem da obra de Beccaria, no que diz respeito à aplicação da pena, em suas entranhas específicas, como a instituição de princípios que levaram (levem) a uma limitação ao poder de punir, bem como se esse instituir é de fato algo novo para a análise cognitiva dos aplicadores em busca de uma verdade não meramente formal, bem como resposta aos fatos correlacionados a prática de atos delituosos.


Aspectos históricos

 

             Os procedimentos e meios com os quais as penas foram aplicadas sempre tiveram relação com o tempo em que o fato efetivamente ocorreu, vale dizer, o estudo da aplicação está diretamente relacionado à forma pela qual se via o fato em determinada época.

Assim, percebe-se por uma análise, até mesmo singela, que a pena como conjunto jurídico foi determinada em vários momentos não por uma simples relação de proporcionalidade ou mesmo reciprocidade ao crime, fator também inserido nesse raciocínio, mas principalmente a uma questão relativa à estrutura social.

            E como fator histórico a pena tem se (res)tabelecido e determinada por varias normas legitimadas, por muitas vezes, como controladoras de um determinado grupo social. Assim a pena apresenta um caráter sociológico, com intuito não somente repressivo, mas, mormente, controlador.

            Dito isso, passar-se-á a análise de alguns determinados institutos mantenedores e aplicadores de certas penas, para que se possa estudar sua aplicabilidade e compará-la ao proposto, qual seja se existe mesmo uma quebra no estudo e na aplicação da pena quando do surgimento da doutrina de Beccaria.

 

Código de Hamurabi

 

            Considerado como uma das leis mais antigas, datada do ano 1692 a.C., não poderia o presente estudo deixar de perpassar, mesmo que sucintamente, alguns dispositivos que erigem ao objetivado neste trabalho.

            O Código apresenta sua organização disposta em 21 colunas, contendo 282 cláusulas, que versam particularmente sobre preços relativos a honorários, responsabilidade profissional, casamento, compra e venda, e também, ao que nos é referente, a leis criminais.

            Com relação às leis criminais, o Código de Hamurábi apresentava a lex talionis. A pena de morte neste contexto era amplamente aplicada. Sua aplicação se dava pelos métodos, também empregados, a posteriori, nos Sistemas Inquisitoriais, da fogueira, forca, afogamento ou empalação. A mutilação era infligida tendo como base a natureza da ofensa. Demonstrando de certa forma seu caráter correspondente.

            Em relação à lex talionis cabe apresentar um pequeno conceito apresentado por Francesco Carnelutti, que para o presente trabalho, é no mínimo esclarecedor, in verbis:

 

À primeira vista, dir-se-ía que os dos males em que, respectivamente, delito e pena consistem devem se resolver em um sofrimento do ofensor idêntico ao sofrimento do ofendido. A esta solução primitiva do problema da pena já se viu que corresponde o problema do talião.

 

            No tocante a disposição topológica, apresenta o Capítulo 12 o tema “Delitos e Penas” tratando de questões referentes a lesões corporais, talião, indenização e composição.

            Os delitos ali tipificados são da ordem de lesões corporais que possuem como pena a mesma conduta matéria da infração. Assim, por exemplo, se uma pessoa arranca o olho da outro, daquela deverá ser arrancado, também, um.

            No entanto, a regra contida não possui caráter geral, ou seja, não é dirigida a todos da mesma forma. Assim, in verbis:

 

Art. 200. Se alguém parte os dentes de um outro, de igual condição, deverá ter partidos os seus dentes. Art. 201. Se ele partiu os dentes de um liberto deverá pagar um terço de mina. 

 

            Não obstante a presente tipificação, durante toda a estrutura do Código de Hamurabi deparam se com penas de lesão corporal a penas de morte. Nesse sentido, embora exista capítulo específico para tratar do tema, restou por inserido a pena em caracteres de solução, de resposta de controvérsias em âmbitos diferentes, como por exemplo, no civil.

A aplicação da pena possuía um caráter divino. As penas infligidas apresentavam uma excessiva e brutal pena corporal. A própria codificação propunha a implantação da justiça na Terra, a destruição do mal, a prevenção da opressão do fraco pelo forte.

            A pena de morte é apresentada não menos do que 21 (vinte e uma) vezes, como forma de castigo. Muito embora se vinculasse a anteriores procedimentos de suplicio corporal.

            O Código de Hamurábi apresenta, ainda, algo de interessante relevância quando demonstra que a pena tem um caráter nitidamente de sofrimento, mas que permanece o indivíduo com vida.

            O procedimento que se estabelece na busca de uma resposta a um ato é notadamente relativo à busca da imposição de uma pena. Dessa monta, não se vê uma distinção entre um âmbito civil e um criminal, por exemplo. Todos os delitos representam uma seara comum.

            Percebe-se assim um avanço topológico com relação à estrutura do Código de Hamurábi, não obstante, o mesmo não apresentava limites ao poder de punir, não consignando elementos principiológicos dotados de capacidade humanística.

            Pela acepção e leitura do texto positivado, o Código de Hamurabi se apresenta como forma de vingança privada cuja característica principal se mantém no bojo da finalidade retributiva.

 

Código de Manu

 

            Pode ser considerado como o mais antigo código do mundo, alguns estudiosos calculam que seja aproximadamente entre os anos 1300 e 800 a.C. não sendo mais antigo, porém ao Código de Hamurábi.

            A exposição referente ao Código de Manu preceitua através de versos, que, pelas edições conhecidas, constam 2.685 dísticos distribuídos em 12 livros.

            As idéias contidas em tais livros podem ser apresentadas como uma projeção do próprio Código de Hamurabi, com algumas características próprias. Nesse sentido, o Livro Primeiro apresenta no prisma de preâmbulo, demonstrando um caráter de inspiração divina, já no Segundo são apresentados os deveres e as obrigações que os homens devem seguir. No Terceiro Livro se enquadram as ordens de fonte familiar, como casamento, o pátrio poder entre outros comportamentos. No Quarto Livro encontram-se os fundamentos para o meio de subsistência, estipulando que será bom quando não prejudicar, ou quando ocorrer, de forma menos prejudicial aos outros seres humanos. O Quinto Livro prescreve idéias referentes a alimentos que devem ser preferencialmente consumidos. Em se tratando do Sexto está o regulamento para os anacoretas e dos ascetas, que podem ser comparados àqueles que decidem por uma vida de dedicação religiosa. Quando das atividades e funções dos reis, encontram-se dispostas no Livro Sétimo, ditando, inclusive, regras de diplomacia.

            Para o presente trabalho, vamos nos ater aos Livros Oitavo e Nono, por guardarem maior relação com o estudo jurídico. Ambos descrevem temas de ordem normativa quanto a direito substancial e processual, bem como normas de organização judiciária.

            Mais diretamente ao Livro Oitavo fazem-se presentes os crimes relativos à injúria, ofensas físicas. Em se tratando de crime de injúria apresenta penas diferenciadas de acordo com a classe em que o indivíduo estava inserido. Assim, tanto a vítima como o sujeito ativo da relação se fazem distintos, considerando sua destinação advinda dos deuses. In verbis: “art. 264º Um Ksatriya, por ter injuriado um Brâmane, merece uma multa de cem penas; um Vaisya, uma multa de cento e cinqüenta ou duzentos, um Sudra, uma pena corporal”.

            Pela leitura do art. 110°, percebe-se um avanço com relação ao Código de Hamurábi.           A diferenciação consiste na presença de elementos procedimentais relativos ao caso e ao criminoso. Se antes estabelecia-se tão somente uma relação de ato, aqui se apresentam os elementos das circunstâncias agravantes, e, outrossim, o merecimento.

            No contexto em que se insere este dispositivo é importante ressaltar a presença da palavra merecimento tendo em vista que se exprime a partir daí a questão referente ao exame do caso concreto.

 

Lei das XII Tábuas

 

            Um dos mais importantes documentos legislativos históricos, a também chamada Lex, ou, ainda, Legis XII Tabumarum, representa um marco de estudo legislativo, na busca de se efetivar o controle social e, outrossim, ser fonte tanto do direito público quanto privado.

            A inovação se trata inicialmente do desaparecimento da diferenciação quando do tratamento das pessoas. A visão estrutural classista passa a se amoldar ao sistema de República. Sua importância se da principalmente nos campos do Direito Civil.

            No entanto como todo conjunto de lei, que é, a Lei das XII Tábuas também possui capítulo reservado ao tratamento de delitos, que serão matéria de análise, assim, passemos, pois a análise do texto, em especial a “tábua sétima – dos delitos” e “tábua VIII”.

            Em uma primeira análise, os delitos abarcam uma série de fatos, não tipificados como do âmbito civil ou penal, da forma em que conhecemos. O ilícito civil, por assim dizer, torna-se emaranhado a prática de ilícitos penais.

            Fator inovador surge com uma pena menos intuitiva a pena corporal, vale dizer, surge neste momento a institucionalização do fenômeno da indenização. Esse fenômeno começa a tomar proporções em que a pena corporal passa a não mais corresponder o sistema de solução de conflitos.

            Crimes que seriam repelidos pelo instituto da prisão celular se solucionam a partir da instituição do ressarcimento pecuniário. À guisa de exemplo cite-se o item 12 da Tábua Sétima:

 

12. Aquele que arrancar ou quebrar um osso a outrem deve ser condenado a uma multa de 800 asses, se o ofendido é um homem livre; e de 150 asses, se o ofendido é um escravo.

 

            A leitura dos dispositivos permitem-nos uma importante observação, até o presente estudo, o que se via era uma preocupação voltada a quem praticou o ato delituoso, qual seja o criminoso. Agora a óptica se volta a quem foi vítima da relação, avanço que deve ser considerado, pois o molde interpretativo até então era totalmente distinto, a pena como forma de instituto repressivo, dotada de caráter retributivo, passa agora a se amoldar a um outro viés, qual seja a preocupação com quem tenha uma importância primeira quando do ocorrência de um dano.

            Em alguns fragmentos não classificados, apresenta-se um texto de nome Ortolan, em sua Tábua VIII – Dos Delitos, apresenta o mesmo raciocínio, qual seja o instituto da indenização, o que hoje se demonstraria pela pena de multa.

            Não obstante, manteve-se, ainda, para alguns casos o instituto da pena de talião, que consiste mesmo em uma reciprocidade entre o crime e a pena, comumente (re)denominada como “olho por olho, dente por dente”. Essa pena só será aplicada quando não ocorrido acordo devido entre os litigantes.

             O valor histórico presente neste texto é de suma importância para compreensão do caráter punitivo inserido como meio de resposta a interesses de controle social. Inserido no século XIII, época marcada pelo poder religioso e, mormente, pela miscelânea com o poder real.

            Nos idos de 1233 o Papa Gregório IX promoveu a edição de duas bulas que promoveram o marco da Inquisição, propriamente dita. Sendo instituída pela Igreja Católica Romana com o fito de perseguir os hereges.

            O grande marco deste notável texto se da pela proposta que se faz na medida em que se promove a denúncia de um herege. Vale dizer, no contexto em que foi promovido a denúncia era prova cabal de culpabilidade. Não sendo do acusador o ônus probante, e sim, cabendo ao acusado a prova de sua inocência.

            Nesse mesmo viés a custódia do acusado era inserida de forma a mantê-lo incomunicável, tendo acesso ao mesmo somente os inquisidores. Acrescente-se que as custas eram remetidas ao próprio acusado, assim este era quem arcaria com o custeio de sua própria prisão.

            Os julgamentos que eram promovidos não possuíam caráter público. Eram promovidos por vias secretas, tendo o acusado que jurar nunca revelar qualquer fato, ou descrição do que ali fora realizado, caso fosse sentenciado inocente.

            A simples possibilidade de crime era tida como suficiente para a prática de tortura. No entanto, com um intuito psicológico tendente ao medo, a tortura poderia ser adiada com o fito de promover uma confissão.

            A confissão propiciava uma pena mais branda, e no caso de ser condenado a morte poderia receber o benefício da absolvição de um padre para desvia-lo do caminho do inferno.

            A tortura não tinha o caráter somente de confissão. Seu intuito ia além desse interesse. Ela também prestava-se a indicação de outros supostos hereges, bem como à busca da verdade quando da contradição de testemunhas.

            As penas, propriamente ditas, impostas por este instituto perpassavam a reclusão, seja temporária ou perpétua, a trabalhos forçados, excomunhão e morte. Podendo ser acompanhados de suplícios, confiscação de bens e flagelação, até mesmo morte por fogueira.

            A forma, o meio de aplicação, os conceitos, termos e exemplos de sentença podem ser encontrados no próprio Directorium Inquisitorum, escrito pelo inquisidor Nicolau Eymerich, em 1376, que passa-se agora, a ser demonstrado, sucintamente.

            A classificação do que seja herege se demonstra em três aspectos, os impenitentes, penitentes e relapsos. Quanto ao hereges impenitentes, in verbis:

 

Chamam-se hereges pertinazes e impenitentes aqueles que interpelados pelos juízes, convencidos de erro contra a fé, intimados a confessar e abjurar, mesmo assim não querem aceitar e preferem se agarrar obstinadamente aos seus erros. Estes devem ser entregues ao braço secular para serem executados. 

 

            Nesta esteia, apresenta-se, outrossim, o conceito de hereges penitentes:

 

Chamam-se hereges penitentes os que, depois de aderirem intelectual e efetivamente à heresia, caíram em si, tiveram piedade de si próprios, ouviram a voz da sabedoria e abjurando dos seus erros e procedimento, aceitaram as penas aplicadas pelo bispo ou pelo inquisidor. 

 

            Definindo aqueles que sejam relapsos:

 

Denominam-se hereges relapsos os que, abjurando da heresia e tornando-se por isso penitentes, reincidem na heresia. Estes, a partir do momento em que a recaída fica plena e claramente estabelecida, são entregues ao braço secular para serem executados, sem novo julgamento. Entretanto, se se arrependem e confessam a fé católica, a Igreja lhes concede os sacramentos da penitência e da Eucaristia.

 

            Essas distinções são importantes para compreender a quem eram dirigidas tais normas. Tais classificações determinaram qual era o objetivo daqueles que exerciam os atos inquisitoriais. Assim, determinava que deveria ser inserida nas capacidades dos inquisidores reconhecerem tais peculiaridades, formas de se comportar para futura classificação e condenação dos hereges.

            Em um sentido amplo, também fazia-se inserido como herege qualquer um que disser algo que se opunha a verdade essencial da fé, obviamente estabelecida pela autoridade religiosa.

            A forma de procedimental para busca da verdade era normalmente o interrogatório. Aqui se apresenta a tortura como forma de busca da confissão, como já foi exposto.

            O nível de suspeita se designava sobre as formas leve, grave e violenta. A abjuração era uma forma de suspeita em que o acusado figurava como objeto. Assim de acordo com a classificação da suspeita o mesmo deveria, agora, publicamente, prometer não cometer determinada conduta, e caso ocorra, comprometer-se-á aderir aos castigos que por ventura sejam lhe impostos.

            A forma de finalizar o processo será de acordo com o réu em questão. Aquele que depois de responder a um processo e, depois de serem ouvidos os especialistas, ficará livre de qualquer crime de heresia. É o caso do acusado que não foi indicado como herege, nem pela confissão pessoal nem pelo testemunho dos fatos. Interessante citar o modelo que implica na sentença inquisitorial a parte da absolvição, in verbis:

 

Investigamos tudo de que te acusavam para sabermos a verdade e, por essa razão, recebemos e analisamos testemunhas, concedemos-te a assistência de um defensor, fizemos tudo o que era preciso fazer segundo as disposições canônicas:

Invocando o nome de Cristo, não encontrando – em tudo o que vimos e ouvimos, no que foi proposto nesta causa – nada que tenha legitimamente provocado por que foste “denunciado”, dizemos, declaramos e sentenciamos que não há e não houve nada contra ti que possa considerar-te herege ou suspeito de heresia.

Eis a razão por que te liberamos, através desta sentença do julgamento inquisitorial.

Dado em tal lugar etc.

 

            Quando não puder provar de forma suficiente e cabal o crime cometido, mas apresentando indícios, será proferida a expiação ou purgação canônica. Encontra-se aqui a situação intermediária entre a absolvição e a condenação. Nessa ocorrência não pode pronunciar uma sentença definitiva, muito menos de absolvição.

            A expiação é procedida mediante a presença de outros “co-expiadores”, dependendo de cada classe, se religioso por outros religiosos, se soldado por outros e assim em diante.

            Caso não possa cumprir a expiação será excomungado. Sendo essa forma temporária, caso se torne permanente será convertido como herege, e consequentemente condenado.

             Outra forma de declaração se dá quando alguém que foi denunciado confessa o crime, mas, no entanto, não considera o ato como heresia. Esse, como visto, é considerado herege impenitente, e não relapso. Ao mesmo será infligida pena de prisão, donde terá seus pés algemados, não tendo acesso a ninguém. Essa medida asseguraria a não corrupção de outros.

            Essa forma de aplicação possui outro motivo, qual seja o de redimir o acusado de continuar naquele entendimento e de ao final compreender o caráter herético de suas ações.

            Essa espécie de “prisão preventiva” se justifica in verbis:

 

Se o réu se recusar, ainda, a se converter, não se terá pressa em entregá-lo ao braço secular, mesmo se o herege pedir para ser entregue: porque, com freqüência, este tipo de herege pede a fogueira, convencido de que, se for condenado à fogueira, morrerá como mártir e subirá logo aos céus. Trata-se de hereges fervorosíssimos, profundamente convictos da sua verdade. Então, não se deve ter pressa com eles. Não se trata, é claro de ceder à sua insensata vontade. Ao contrário, serão trancafiados durante seis meses ou um ano, numa prisão horrível e escura, pois o flagelo da cadeia e as humilhações constantes costumam acordar a inteligência. 

 

            Em que pese a não configuração de crime, propriamente dito, o Manual dos Inquisidores demonstra como a pena está inserida em uma visão história de interesses, de diferentes conceitos. Esses que nem sempre se desvinculam do próprio conceito de classe. As formas e procedimentos para considerar o que é errado, bem como a conseqüência desse ato não pode ser compreendida fora do contexto em que foi promovida, nesse sentido, passar-se-á análise de outro documento.

           

            O Malleus Maleficarum, ou Martelo das Bruxas, ou ainda, Martelo das Feiticeiras, foi escrito em 1484 e publicado em 1486, por dois monges alemães dominicanos, Heinrich Kramer e James Sprenger. Este livro foi amplamente utilizado pelos inquisidores por aproximadamente duzentos e cinqüenta anos, até o fim da Santa Inquisição.

            Seu objetivo era, precipuamente, identificar mulheres como bruxas, bem como os malefícios causados por elas. O livro é dividido em três grandes partes distintas, cada parte tem sua subdivisão em capítulos denominados de Questões.

            Em sua primeira parte é descrito como reconhecer bruxas e seus disfarces, bem como atitudes. Na segunda, expões com grande riqueza de detalhes os tipos de malefícios, descrevendo toda sua classificação e demonstrando como desfaze-los. A parte final apresenta um modelo de procedimento legal contra as pessoas intituladas bruxas, apresentando a forma de inquiri-las, bem como a forma de condena-las. Apresentando distinções para os tribunais civis e eclesiásticos.

            A confusão entre crença e crime era praticamente inevitável, mergulhados em um verdadeiro caldeirão de dificuldades, a segunda metade do século X é marcada pelas penas severas, mormente para aqueles que fossem intitulados “companheiros do demônio”. E para classificar as pessoas, na busca de exterminar os “amigos do mal”, passa, então, a Igreja autorizar a Inquisição com o fito de investigar as práticas de bruxaria e seus envolvidos.

            À guisa de exemplo dessa miscelânea cita-se trecho em que estabelece o fim de um processo de investigação inquisitorial, in verbis:

 

Tendo pela graça de Deus examinado os meios próprios de chegarmos a um conhecimento da heresia dos malefícios, e tendo demonstrado como o processo em prol da fé deve ser iniciado e conduzido, resta por discutir como tal processo é levado a bom termo com uma sentença apropriada. 

            A sociedade era mesmo interligada sob as formas religiosas, políticas e sexuais, sendo de domínio da Igreja. Desobedecer qualquer norma de conduta era o mesmo que assinar um pedido de morte, qualquer transgressão, mesmo que não ligada diretamente a religião, era uma transgressão genérica, isto porque, ao final, era mesmo a Igreja à responsável pela aplicação punitiva.

            Da mesma forma com que se cria uma nova lei, em virtude de um “anseio social”, a Igreja se via diante desta situação, sendo necessário a criação de um documento expresso aprovado pelos próprios eclesiásticos, que pudesse ser aplicado, dotado de legalidade, um verdadeiro instrumento positivo para aplicação das penas e identificação dos autores.

            Dessa necessidade, Heinrich Kramer e James Sprenger, investigaram as práticas de bruxaria com o intuito de catalogá-las, produzindo-se, assim, ao final uma obra que instrumentaliza-se e que legitimaria a ação da Igreja.

            A partir desse momento a instrumentalização promove o processo de demonização da mulher. Antes vista e adorada como fonte da vida, símbolo da fertilidade, passa-se a se (re)apresentar como herética e infame contra o Criador, assim, a mulher torna-se símbolo do mal:

 

A razão natural para isto é que ela é mais carnal que o homem, como fica claro pelas inúmeras abominações carnais que pratica. Deve-se notar que houve um defeito na fabricação da primeira mulher, pois ela foi formada por uma costela de peito de homem, que é torta. Devido a esse defeito, ela é um animal imperfeito que engana sempre.

 

            Quando da aplicação da pena a tortura era a mais comum. Era através da tortura que se inquiria as bruxas, e só por meio da tortura que se poderia, evidentemente, conseguir uma confissão a respeito de suas práticas. O fundamento talvez se assente na idéia de que se a mulher é mesmo bruxa, então de certa forma não seriam inconvenientes as torturas a ela aplicadas, tendo em vista que a dor não lhe seria sentida, sendo vinculada ao demônio seria isenta disto.

            A tortura era marcada por ações de suplício, cite-se por exemplo a aplicação dos instrumentos como A dama de ferro, cadeira das bruxas, entre outros processos menos “industrializados”, como introdução de ferro nas unhas ou mesmo aquecimento dos pés.

            As formas como eram descritas as ações identificadoras e suas seguidas penas para o livramento da alma possuem uma instrumentalidade formal, dotada de características eclesiásticas.

            A pena imposta se fazia quase sempre seguida de um verdadeiro espetáculo público, o que demonstrava um caráter repressivo contra qualquer pessoa que poderia ser “identificada” como herege, ou mesmo bruxa. Exemplo disso se fazia quando do momento da decapitação, considerada como entretenimento público para época. Fato curioso é que esse meio de punibilidade não era aplicado a todos, mas sim, tão somente aos condenados nobres e importantes, pois quando bem manejada a decapitação era aplicada de forma suave, o que para os plebeus não poderia ser aceito, a eles eram garantidos agonias que se prolongassem.

            Ao final de todo o espetáculo, o caberia ao juiz, como já foi dito, proferir uma sentença, mas cabe ressaltar a intervenção religiosa nesta prática, quando a acusada indicasse que apelar seria válido, no entanto, se fosse em relação a causas de não seria admitido tal recurso, in verbis:

 

Mas se o juiz perceber que a acusada está determinada a obter recurso ou apelação, deverá observar que, por vezes, tais recursos são válidos e legítimos, enquanto noutras são inteiramente frívolos. Ora, já explicamos que as causas a respeito da Fé devem ser conduzidas de forma simples e sumária e que não se admite apelação em tais casos.

            Interessante ressaltar que em os “Dez Mandamentos”, a lei de Deus, preceitua em seu sexto mandamento “não matarás”, parece que aqui a lógica se inverte, sendo que depende de quem mata, e, outrossim, depende de quem deve morrer. Em uma análise apertada, percebe-se que o presente documento inseriu profunda regulamentação na órbita social da época, demonstrando o quanto a vida em sociedade pode ser determinada por interesses de manutenção do poder. Perpassando este documento, passar-se-á ao estudo de um outro momento, qual seja a inserção do pensamento de Beccaria na obra Dos Delitos e das penas.

            Como forma de analisar o produto legislativo de séculos considerados mais bárbaros, Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, apresenta uma visão diferenciada, das até então apresentadas, formas de controle social, por meio da pena.

            Beccaria nasceu nos idos de 1738, em Milão. Sua formação educacional se deu por intermédio dos jesuítas, em Paris, vindo a falecer em 1794. Viveu em um tempo de profundas modificações no campo do conhecimento jurídico. O momento que se fazia presente era caracterizado pelo direito desmedido, julgamentos arbitrários, desprovidos de análises humanitárias.

            Caracterizando a corrente iluminista as críticas surgiram de forma áspera aos excessos que faziam se presente. Não foi diferente com relação a legislação penal, donde se observava, historicamente, uma profusão de barbáries, de aplicações de penas, se não piores, iguais aos crimes cometidos, impulsionadas por um sistema que não observava limites, princípios e formas de aplicação da lei penal.

            Nesse viés, Beccaria desenvolve com maestria, nessas singelas linhas, a aplicação de princípios que (de)limitem a aplicação por parte do Estado quando da determinação da pena, e, outrossim, e ainda, à guisa de exemplo, a forma com a qual deve se proceder quando da investigação, seus sistemas de valoração, sempre se atendo à questão voltada ao homem como sujeito de direitos.

            Pela mesma necessidade precípua com que nascem regimentos e normas regulamentadores de determinadas ações, Beccaria expõe:

 

Abramos a história e veremos que as leis, que são ou deveriam ser pactos entre homens livres, não têm sido, em geral, mais do que o instrumento das paixões de poucos, ou que nasceram de uma necessidade fortuita e passageira; não têm sido ditadas por um frio observador da natureza humana, que concentrasse num só ponto as ações da multidão de homens e as considerasse deste ponto de vista : “a máxima felicidade repartida por um maior número.

 

            De forma relacionada Thomas Hobbes diz que “onde não há lei civil não há crime.

            É consentâneo que quando da aplicação da pena pode ser incorrer em erro, o que de fato é admitido em qualquer estudo que se enverede. Beccaria inicia sua exposição aproximando o discurso da imposição da pena a pressão psicológica em que se insere o magistrado quando da aplicação da pena.

            A pena que outrora tinha o caráter punitivo puro e simples, que era orientada por interesses de classes, passa, agora, a ser questionada sobre o ponto de vista efetivo de sua aplicação, nesse sentido Beccaria inquiriu:

 

Mas, quais serão as penas conveniente a esses delitos? É a morte pena verdadeiramente útil e necessária para a segurança e os tormentos, e atinge o fim que as leis se propõem? Quais os melhores meios de prevenir os delitos? São as mesmas penas igualmente úteis em todos os tempos? Qual a influência que exercem sobre os costumes?

 

            Ao levantar essas questões, Beccaria inaugura a real legitimidade com a qual o Estado aplica a pena, vale dizer, a vida em sociedade promove desacertos que podem consubstanciar-se em fatos que acarretem prejuízos, sejam na ordem material ou moral. E é pela lei que se promove o ressarcimento do dano causado. Mas será mesmo a melhor maneira de se reaver o que foi perdido? É nesse caminho que prossegue o doutrinador.

            Partindo do estado natural, o homem se viu em uma situação em que deveria entregar parte da própria liberdade para que pudesse continuar sua sobrevida de maneira menos tortuosa. Não seria de fato uma escolha, alias sempre é questionável a escolha quando do surgimento de alternativas, e sim uma necessidade.

            E é nesse gênero que surgem as leis, como forma de contrato de homens para homens. Surgindo desse contrato a espécie Estado, que se faz responsável pela garantia da liberdade de todos. Para garantir esse conjunto forma-se, então, o direito de punir do Estado, que deve estar limitado a esse quadro, ocorrendo algo fora disso nada mais é do que abuso e não há que se falar em justiça, que por conseqüência não se pode falar em direito.

            E para garantir que esse contrato não seja rompido por outros interesses que não a garantia de liberdade dos próprios homens é que a lei se demonstra eficaz a instituir penas aos delitos. Aqui Beccaria apresenta o que se denomina como princípio da legalidade, e ainda expõe que essa legalidade não basta ser pura e simplesmente um texto dotado de características jurídicas, deve provir de um legislador.

            Dessa fato, acaba por limitar a atuação do magistrado, ou seja, cabe ao magistrado a aplicação do texto legal, não podendo inflingir penas a outras pessoas da sociedade.

            Essa mesma lei deve ser dotada de isonomia, diferentemente do que se viu, pelo estudo de outros textos legais, vale dizer, as leis devem ter caráter geral, e que seja um terceiro o julgador do fato. No caso o magistrado. No entanto, Beccaria, por decorrer de fenômenos positivistas, apresenta certo prejuízo, quando caracteriza que dessa sentença não poderia ocorrer apelação, não obstante, é compreensível que pelo momento em que vive a segurança na decisão torne-se como efeito absoluta.

            Esses mesmos julgadores, quando da aplicação da pena, não podem fazer uso da interpretação, porque não foram eles os promulgadores desses preceitos e sim os próprios legisladores. Provavelmente temia-se o subjetivismo tão determinado por ordenamentos anteriores quando da aplicação da pena.

            Ao juiz cabe instituir um silogismo que consista da premissa maior, necessariamente a lei, a ação, se está ou não em conformidade com que preceitua a lei, e a conseqüência que pode ser a liberdade ou a pena. Essa seria a tela em que o magistrado deve visualizar e aplicar sua função.

            A interpretação seria perigosa, pois estaria diretamente vinculada a vivência do julgador, que possui seu ponto peculiar a respeito de determinada matéria, essa é mesmo uma característica do positivismo, que em linhas gerais pode ser considera como uma tentativa de exprimir através da lei toda a solução para os conflitos.

            Beccaria apresenta, com outro nome, o princípio da publicidade, tão importante hoje em vários ramos do direito, seja pelo viés público ou privado. Expõe que a lei deve ser levada ao conhecimento de um maior número de pessoas possíveis, dessa forma, no âmbito penal, levaria a diminuição do cometimento de delitos, in verbis:

 

Quanto maior for o número dos que entendam e tenham nas mãos o sagrado código das leis, menos freqüentes serão os delitos, por não haver dúvida de que o desconhecimento e a incerteza das penas favorecem a eloqüência das paixões.

 

Nesse sentido, a função da imprensa é primordial, pois leva ao público a disseminação do conteúdo legal.

            Quando da ocorrência de um crime, cabe sempre ao magistrado a análise do silogismo para a aplicabilidade da pena. E pelo instituo da prisão, somente a lei poderá determinar quando deve ser aplicada.

            Não se discute aqui os meios com os quais se justificam a perpetração da prisão, no entanto Beccaria estabelece mais uma vez a necessidade de ser a lei o real caminho para que se torne legítimo e efetivo a imposição da pena de prisão a alguma pessoa. Que essa imposição não deve ser vinculada ao poder de decisão do juiz.

            A prisão deve ser aplicada tão somente quando preenchidos os requisitos impostos em lei, contrariamente do que via diretamente no passado, quando as penas eram impostas segundo o interesse de quem detinha o poder, e não por se amoldar algum parâmetro pré-estabelecido.

            Quando da absolvição de um acusado deve se tomar essa decisão com a mesma propagação com que se condena uma outra, vale dizer, o valor daquela deve ser tão importante para a sociedade quanto uma condenação. Ao final, não é objetivo de um procedimento penal a imposição de uma pena, e sim, a investigação do caso para uma resposta ou não relativa ao ato.

            Para esse procedimento não se tornar verdadeira perseguição privada por meios públicos, cabe se analisar as proposições que estão dispostas na obra de Beccaria.

            Quanto à aplicação não restam dúvidas, Beccaria compreende mesmo que deve estar o juiz vinculado ao prescrito em lei, sendo justificativa o fato das distinções, vale dizer, é o responsável pela criação não o magistrado e sim o legislador, portanto ao juiz cabe a aplicação.

            Quando do procedimento de adequação do fato ao tipo penal, Beccaria expõe que as provas devem estar vinculadas a probabilidade de se relacionar ao fato. Assim, as provas se subdividem em dois grupos, as que dependem de uma única, ou aquelas que independem uma das outras. E é essa última modalidade que implica em um maior grau de probabilidade ao fato criminoso, quanto maior o número de provas colhidas, por serem independentes, maior será considerada a veracidade do fato. O que antes se via era tão somente uma vontade em se provar o que se queria ver, e não uma necessidade da prova na tentativa de se alcançar uma verdade real.

            Na busca desta verdade real, a testemunha se apresenta em um grau de valoração, devendo ser considerada de acordo com a relação em que se estabelece com o réu. Assim, sua credibilidade está diretamente relacionada ao vínculo, seja afetivo, que pode se dar por ódio ou amizade, citando-o:

 

A credibilidade de uma testemunha, pois, deve diminuir na proporção do ódio, ou da amizade, ou das íntimas relações que existam entre ele o réu. É necessário mais de uma testemunha, porque, enquanto uma afirma e a outra nega, nada há de certo, e prevalece o direito que tem cada homem de ser crido inocente.

 

Quando duvidosa a relação entre duas ou mais testemunhas, deve se prevalecer a qualidade intrínseca que cada homem possui, qual seja que cada homem deve ser considerado crido inocente, até que aquele procedimento os comprove contrários. Indubitavelmente estabelece o que até o momento histórico se via o contrário, aqui se apresenta diretamente o princípio in dúbio pro réu.

 

            Quando da inquirição, as perguntas, para se buscar a verdade relativa à acusação, devem se apresentar de forma direta. Beccaria institui preceitos de atividade criminal, o que se distancia, evidentemente, do processo com que se era obtido informações nos momentos de interrogatórios, por exemplo, em que o sujeito era levado a verdadeiras antecipações de pena.

            Mais uma vez estabelece o respeito da busca da verdade diante ao princípio de que não pode ser tomado como culpado antes da sentença que assim o declare.

            Dessa maneira a tortura não pode ser imposta, pois a pena só surgirá em virtude de lei, e após analise textual do magistrado, que identifique o silogismo que leve a imposição de uma sentença condenatória. Pois a tortura nada mais é do que um tormento a um inocente, tendo em vista que esse quadro só será alterado após a interpretação legal que implique em condenação, in verbis:

 

Um homem não pode ser tido como culpado antes da sentença do juiz, nem a sociedade pode retirar-lhe a proteção pública, a não ser quando se tenha decidido que violou os pactos com os quais aquela lhe foi outorgada.

 

            A relação da tortura, segundo Beccaria, não sem um porque, haja vista que ela está ligada não a busca da verdade real, pois a dor externa pode ser menos aceitável a um culpado resistente, ao passo que poderia ser insuportável ao um inocente fraco, e por essa qualidade, o fim da tortura seria mesmo uma relação de resistência, o que se chegaria uma confissão completamente descabida.

 

            A tortura ainda impõe ao inocente uma pior situação do que a do culpado, no sentido de que ao inocente nada deveria ser infligido ao passo que ao culpado caberia uma pena.

            Fundamento importante a ser analisado é a relação temporal da perseguição da verdade real. Nesse sentido, a obra de Beccaria apresenta outra inovação importante, demonstrando sua atemporalidade em relação a outros pensamentos que o antecederam.

Tomada as provas, bem como a investigação ou até mesmo a certeza com que se vincula o acusado ao crime, deve ser garantido o direito a um tempo que lhe proporcione meios para se defender. Estabelecendo assim uma forma de princípio do contraditório.

            Não obstante, esse princípio se demonstra mitigado em razão da característica estabelecida a esse direito. Compreende-se que o efeito principal ao crime é a rapidez com que se aplica a pena. Por tanto, o tempo a ser dado ao acusado deve ser curto para que não prejudique essa especificidade.

            Mais uma vez, esse tempo dado não pode ser vinculado à vontade do juiz. Deve estar vinculado a uma disposição legal, para que não caia no subjetivismo decisório do magistrado.

            Ao balancear os efeitos do crime, apresenta-se como necessária uma adequação temporal. Quando um crime causar um maior repúdio a sociedade, não será concedido ao réu um tempo favorável, contrariamente a um crime de menores proporções. A concessão de tempo para defesa deve ser diretamente desproporcional à gravidade do crime cometido, assim:

 

Estes prazos, contudo, não aumentarão na proporção exata a atrocidade dos crimes, porque a sua probabilidade está na razão inversa as sua atrocidade. Dever-se-á, pois, diminuir o tempo da investigação e aumentar o da prescrição.

 

            Na busca de limitar o poder de punir e garantir uma necessária punibilidade, a lei não deve estar vinculada à intenção, pois incorreria nos mesmos erros do passado. No entanto, Beccaria compreende que a prevenção, função característica da pena, autoriza a punibilidade da tentativa.

            O sistema apresentado é evidentemente passível de comparação, no sentido de igualdade, com o nosso atual, tendo em vista que a tênue linha que separa a consumação do crime tentado leva a uma aplicação de uma pena em menor potencialidade ou maior, dependendo da aproximação do desfecho do iter criminis.

            Da mesma forma, incorre nesse raciocínio a relação dos sujeitos que se inserem na prática delituosa em conjunto. Mormente no que tange a sua efetiva atividade. Podendo surgir o fenômeno denominado delação. Para Beccaria essa medida apresenta certa dualidade, o que incorreria em um incentivo a imoralidade, apresentando vantagens àquele que incorresse em desonestidade com o outro, trazendo ao processo informações que levem a condenação de outrem. Ocorrendo um prós quando da resposta para a sociedade em crimes que se não conhece do autor, ou seja, de difícil e importante busca de provas.

            Para que não se incorra em penas passadas, a aplicação dessas deve ser vinculada ao principio da proporcionalidade, como se observa pela leitura do trecho:

 

Devem ser, portanto, escolhidas aquelas penas e aqueles métodos de aplicá-las que, guardando a proporção, exerçam impressão mais eficaz e duradoura sobre os ânimos dos homens, e menos tormentosa sobre o corpo do réu

 

            A pena não pode ser um espetáculo de horrores em que se apresente o estado que se evitava, qual seja o próprio estado natural. Ocorrendo isto será mesmo um retrocesso evidente.

            À medida que se deve adequar, segundo Beccaria, está ligada ao mal que o próprio crime produziu, tudo o que ultrapassar essa linha não é justo, portanto, não pode ser admitido.

            Com esse intuito de adequar a relação crime e pena, faz-se necessário o estudo da pena de morte, capítulo que configura e se apresenta em vários institutos legais pelos quais tem se detido a regulamentar a vida em sociedade.

            A pena de morte, como forma de suplício, é rechaçada por Beccaria, ao ponto de que, na presente instituição do contrato, em que a mínima liberdade de cada um institui um todo garantidor, não poderia ser levado ao arbítrio de alguns a decisão da morte de outros.

            Sendo a vida um direito máximo, em virtude de que sem ela não se faria necessário qualquer outro direito, a pena de morte para Beccaria não é um direito, pois a mesma não apresentar utilidade, nem mesmo é necessária para o controle social.

            Não obstante, ressalva duas possibilidades: a primeira é, pois aquela em que o sujeito, mesmo não possuindo sua liberdade, tenha uma relação de poder capaz de tornar perigosa a segurança de uma nação. Dessa forma o caráter retributivo se demonstra pela possibilidade em se controlar, ou mesmo deter os ânimos de uma sociedade, com a morte do indivíduo.

            Ressalva Beccaria uma importante relação de espaço que se refere ao cometimento do crime e sua pena:

 

Não é a intensidade da pena que produz efeito sobre o espírito do homem, ma a sua duração; porque a nossa sensibilidade é mais fácil e firmemente acionada por mínimas e repetidas impressões, do que por um forte, mas passageiro, impulso.

 

            Talvez esse seja o grande trunfo que obteve aqueles que defendem a pena perpétua, tendo em vista seu caráter permanente.

            No plano subjetivo e psicológico Beccaria estabelece uma regra geral com relação a negativa a pena de morte, sendo que “as paixões violentas surpreendem os homens, mas não por muito tempo”, in Dos delitos e das penas. A presente afirmativa se demonstra de fato diferente com relação a justificativa da pena de morte em outros momentos históricos, como se viu no estudo outrora apresentado.

            Em uma sociedade que está vinculada a controles religiosos em que não se consegue distinguir com precisão em que momento se está falando de pecado e quando se está falando em crime, tendo em vista que são gritantemente distintas, ao tempo de Beccaria está distância torna-se maior em razão do próprio positivismo que se inicia. A instituição de penas, ou seja, de regras limitadoras da ação humana, não é mais advinda de Deus, e sim, produto da razão humana.

            Torna-se, assim, a liberdade a grande responsável pelo controle do crime. Para Beccaria, a liberdade se demonstra como refúgio de desejo de quem seja apenado. Diante de uma fase de pensamento a prática de um crime se veria em situação de depreciação por ter sua liberdade tolhida, algo que jamais poderia lhe ser devolvido.

            Outro fator impeditivo a pena de morte seria o próprio resultado advindo dela, qual seja a morte, à guisa de exemplo, não poderia um crime de homicídio ter uma pena de morte, tendo em vista que o que se procura evitar é que as pessoas não matem, como pode o próprio castigo ser a morte. Ao final, chegaria a ser uma verdadeira contradição.

            Caminhando para estradas menos tortuosas, Beccaria apresenta outros modelos de penas que da mesma forma devem ser repensadas e limitadas, qual seja de banimento e penas de confisco.

            Pela existência de normas que promovem a tranqüilidade pública, segundo Beccaria, aqueles homens que não obedecem as leis devem ser apenados, sendo excluídos da sociedade. Para isso, deve-se observar, mais uma vez, as relações dispostas em um código, para que seja garantido o direito de defesa com o fito de não cometer injustiças pela questão da aparência, ou seja, deve-se aplicá-la quando uma grande probabilidade estiver configurada.                     Tratando da relação patrimônio e banido, quais seriam os efeitos relativos aos bens daquele que foi aplicado a pena de banimento. Ora, se o mesmo foi excluído da sociedade, deve ele ser, também, privado dos bens que adquiriu? Para Beccaria, deve ser atentar a proporcionalidade. Dessa forma, em alguns casos, deve-se determinar a perda de todos, em outros, somente de alguns.

            Quando o crime é de grande monta, de forma que implique uma quebra na relação entre o indivíduo e a própria sociedade, deve o apenado perder todos os bens. E de forma sucessória, os bens devem ficar aos legítimos sucessores e não ao Príncipe, pois caso se infligisse, outrossim, o confisco ocorreria um desequilíbrio maior, tendo em vista que a família do condenado já se encontra em situação de desonra e retirar-lhes o  patrimônio e colocá-los em situação de miséria, seria infligir e provocar a ocorrência de outros crimes.

            Em um caminho dito processual, estabelece o cônscio, que a pena terá maior eficácia quanto mais próxima estiver do tempo do crime. Essa relação se justifica pela extensão temporal que promove um número maior de incertezas, que podem promover injustiças.

            Assim, inaugura a necessidade de um procedimento célere, buscando um equilíbrio a aplicação da pena privativa da liberdade. Essa não pode anteceder a condenação, salvo caso em que exigir a necessidade. De forma prognóstica, apresenta as idéias básicas para configurar a prisão preventiva, tão discutida nos tempos hodiernos. Determina que a imposição ao cárcere deve ter sua duração o menor tempo possível e que exista para impedir fuga ou a ocultação de provas.

            A razoável duração do processo também se faz inserida na persecução da verdade e da resposta, pois a relação que se estabelece promove angústias ao indivíduo e, caso não ocorra, perde-se para a sociedade o nexo existente entre o crime e a pena promovendo uma situação de impunidade. Dessa forma, a certeza do castigo produz resultado mais eficiente do que a aplicação de penas severas.

            Nesse caminho, teria o indivíduo direito de se livrar da pena quando da ocorrência de um pequeno crime? Analisando a questão pelos conceitos de Beccaria não. A relação que existe entre a pena e o crime não é matéria simplesmente privada, mesmo que o resultado se apresente na esfera individual. In verbis: “O direito de impor castigo não pertence a um só, mas a todos os cidadãos ou ao soberano.”

 

 . Essa relação se justifica pelo princípio da legalidade exposto por Beccaria, pois o perdão deve ser advindo da lei não do executor, pois se ocorrer o contrário seria verdadeira configuração de injustiça e de desvirtuamento de funções, ao executor da leis não é dado essa função.

            Pela relação de interesse, se torna comum o não cometimento de crimes, e quando não possível, que ao menos sejam raros. Dessa forma, deve existir uma relação de proporção entre o próprio crime cometido e a respectiva pena.

            As penas devem guardar uma proporcionalidade lógica para que seja possível identificar a diferença que configura e proporciona estímulo para não ocorrência da atividade delitiva. In verbis:

 

Quem ver imposta a pena de morte, por exemplo, a quem mate um faisão e ao assassino de um homem ou a um falsificador de documento importante, não fará qualquer distinção entre estes crimes; destruir-se-ão, deste modo, os sentimentos morais, obra de muitos séculos e de muito sangue, morosos e difíceis de serem produzidos no espírito humano, para cujo aparecimento se acreditou necessário o auxílio dos mais sublimes motivos, e um tanto revestido de aparatosas formalidades graves. [23]

 

            Beccaria apresenta uma distinta divisão de crimes e suas penas correspondentes, analisando, por exemplo, o crime de furto, estabelece que o autor, quando não o pratica com violência, deve ser castigado com pena pecuniária. Ocorre que, geralmente, a iniciativa dessa prática se dá a partir da miséria, e apenar um indivíduo com uma pena pecuniária estaria a resposta fadada ao insucesso, além de promover o incentivo delituoso do furto. A partir dessa idéia, propôs, então, que a pessoa que pratica o delito deve ser posta em condição de escravo. A situação seria temporária. A pena teria a finalidade exclusiva de reaver, através do trabalho, o prejuízo que a vítima sofreu.

            Cabe ressaltar um pequeno detalhe que promove certo aparato semelhante aos antigos códigos. Beccaria, na sua investida intelectual, faz distinção em furto / roubo sem o emprego da violência, conforme foi exposto, e furto / roubo com o emprego de violência. A última forma não pode ser tão somente infligida à pena pecuniária, essa deve ser acrescida de pena corporal.

            Adentrando uma esfera de crime contra uma possível configuração do Estado, Beccaria exemplifica o caso do crime de contrabando. Estabelecendo, mais uma vez, a importância de se compatibilizar o ato ao resultado, ou seja, o crime a sanção. Para ele, é justo a perda da mercadoria, objeto do contrabando, bem como os gêneros que o acompanham. Apresenta, neste momento, também, uma questão interessante no que diz respeito a conceituação do Direito enquanto investido do manto político. Não seria o crime uma construção, uma conseqüência da atuação própria do legislador? Assevera:

 

É justíssima a pena de perder a mercadoria proibida e os demais gêneros que a acompanham; mas, será tanto mais eficaz quanto menor sejam os impostos aduaneiros, porque os homens só se arriscam na proporção do benefício que produziria o resultado feliz da empresa.

 

Residindo no âmago da teoria da culpabilidade, apresenta a obra oportuna divisão entre o dolo da culpa grave, leve e a questão de inocência. Se até então não se apresentava interesse dentre as legislações propostas no presente trabalho, em Beccaria elas se demonstram formas de compreender a própria aplicação da pena, no que tange a proporcionalidade em etc.

Assim, os limites para definir as configurações de determinada conduta/intenção devem ser apresentados pela lei de forma precisa para que não caia na escolha, perigosa e arbitrária, segundo Beccaria, dos juízes.

Caminhando para a finalidade da pena, Beccaria trabalha a idéia da prevenção. A pena não pode ser apresentada por si mesma, mas sim como forma de prevenir crimes. Essa função é primordial da própria legislação.

Consciente da posição dos homens, Beccaria, assevera que não é possível uma relação de ordem perfeita e geométrica. A lei não pode impedir a desordem ou a oposição. Proporcionar a criminalização de inúmeros atos não é forma de solução.

Para que os previna é necessário que o produto, o resultado da interação humana, a lei, se apresente de forma clara e simples, promovendo a concentração da defesa e empenho para mantê-las.

Beccaria incide em outro ponto que não fora apresentado e relacionado a questão crime, a sua prevenção pelo viés da educação. Compreende como forma mais complexa, mas salienta como forma mais segura no tratamento da prevenção ao crime.

Finalizando, apresenta sua forma de conclusão, pelo que foi aqui sintetizado, in verbis:

 

Para que cada pena não seja uma violência de um ou de muitos contra um cidadão privado, deve ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima das possíveis em dadas circunstâncias, proporcionada aos crimes, ditada pelas leis.

 

Em síntese apertada, esses são os grandes pontos ressaltados por Beccaria em sua grande obra. No entanto, o estudo não estaria completo se findasse sem apresentar um outro lado do objeto, ora em estudo.

            Com esse fito, Cezar Roberto Bitencourt   assevera que, pelo momento cultural que se fazia presente, qual seja, a Revolução Francesa, não há, por parte das idéias de Beccaria, originalidade.

            Para Bitencourt há um mérito louvável por parte de Beccaria quando o mesmo consegue associar as idéias do contratualismo e do utilitarismo, e principalmente, demonstrando de forma lógica e clara os idéias de reforma do sistema punitivo a um grande público, in verbis:

 

Seu êxito deve-se ao fato de constituir o primeiro delineamento consistente e lógico sobre uma bem elaborada teoria, englobando importantes aspectos penológicos. Beccaria constrói um sistema criminal que substituirá o desumano, impreciso, confuso e abusivo sistema criminal anterior.

            Ressalta, de forma indubitável, que Voltaire impulsionou muitas das idéias de Beccaria.

            As idéias principais que possibilitaram a investida de Beccaria, segundo Bitencourt, são a contratualista e a utilitarista. Pela instituição do contrato entre cidadãos a pena se justifica pela liberdade do individuo que violou a convenção. E é seguindo essa linha que a pena toma um caráter utilitário, ou seja, a pena seria uma forma de exemplo para reprimir ações futuras. Pode se apontar como fundamento para esta questão o seguinte:

 

Para que cada pena não seja uma violência de um ou de muitos contra um cidadão privado, deve ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima das possíveis em dadas circunstâncias, proporcionada aos crimes, ditada pelas leis.  

 

            Em que pese à afirmação apresentada por Bitencourt, o mesmo assevera que Beccaria, embora inserido nas idéias utilitaristas, apresentou grande marco quando da finalidade da pena, assim disse:

É importante levar em consideração que Beccaria não admite a vingança como fundamento do jus puniendi. Nesse sentindo coincide com os objetivos ressocializadores da pena de prisão.

            Outro ponto que Bitencourt assinala diz respeito ao interesse de Beccaria pelo processo de humanização das sanções criminais e os meios de se obter a verdade, conforme foi exposto. Principalmente no tocante a estrutura prisional, pois o que se observava à época de Beccaria era uma indústria do medo e do desrespeito ao ser humano.

            De toda monta, mesmo existindo a relação apresentada por Bitencourt, segundo a qual Beccaria não inaugurou um novo modo de pensar, somos de compreender que de fato não existe uma relação separada quando da construção do pensamento. A palavra “nova”, nesse viés, deve ser compreendida como uma forma de re-construção do pensamento. E nesse sentido, com o devido respeito, Beccaria inaugura sim novos paradigmas, novas formas de apresentar ao seu tempo e ao prolongamento das atividades pensantes os limites e formas de se aplicar a pena.  


            A história demonstra de várias formas a necessidade, bem como as dificuldades em que o homem se viu inserido quando do momento do controle social. Atribuir valores, normas permissivas ou proibitivas esteve entre aquelas tarefas mais importantes que guardam respaldo com o Direito Penal e principalmente com a evolução da sociedade.

            Inicialmente encontra-se um conjunto de valores em que a ação que fosse de encontro aos propósitos daquela sociedade deveriam ser combatidas com sanções em igual e real sentido. Apresentando o que se prolongou durante vasto tempo, qual seja a lei do talião.

            Fez-se presente com o decorrer do tempo outros institutos que ora amoldaram conceitos abertos em moldes punitivos, ora regras que se confundiam com regras religiosas que ao final se tornavam verdadeiras normas incriminadoras.

            O conceito de crime, bem como o conceito de criminoso, também se alteram na medida em que o conjunto de valores foi se tornando ora mais abstrato, ora mais detido.

            Dessa monta, caminhou-se (caminha-se) por uma necessidade de controle mais efetivo e criterioso quando da aplicação da norma penal.

            Estudar a história da pena é compreender as falhas de estrutura de Estado, é compreender, também, os de conceitos firmados nas garantias dos direitos humanos.

            César Beccaria promoveu nesse sentido grande reflexão sobre a aplicação da pena, suas formas, controles. Traçou verdadeiramente uma teia de conceitos que possuíam e possuem aplicação na vida em sociedade.

            É fato que o investimento teórico perpassa por grandes estudos de obras anteriores ao tempo de um pensador. Assim é fato também que o produto de uma pesquisa insere-se como fator inovador, assim foi com Beccaria.

            Os estudos do mesmo não foram mera repetição de conceitos prontos, mas sim uma nova óptica sobre fatos que há muito promoviam injustiças, abusos e suplícios. E fora além, foi analisado novas possibilidades, princípios, meios processuais na obtenção da verdade real, e, mormente formas de aplicação da pena cuja estrutura apontou para o respeito à dignidade humana, apontando também para formas de se evitar a aplicação da pena, a evitar o cometimento de crimes.

            Dessa forma, conclui-se pela inovação do pensamento de Beccaria, pela grandeza de sua obra, Dos delitos e das Penas, como fruto de um investimento teórico voltado para evolução da aplicação da pena, bem como de outros institutos, como a processualística, e, ainda, princípios que podem (devem) ser aplicados quando da interferência estatal no controle social por meio de sanções aos particulares.

 


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[1] CARNELUTTI, Francesco. O problema da pena, p. 23.

[2] PRADO, Antônio Orlando de Almeida Prado. Código de Hamurabi, Lei das XII Tábuas, Manual dos Inquisidores, Lei do Talião, p. 42.

[3] Disponível em http://www.infojur.ccj.ufsc.br/aires/arquivos/CODIGo_%20MANU.pdf

[4] Código de Hamurabi, Código de Manu, Lei das XII Tábuas, p. 142.

[5] PRADO, Antônio Orlando de Almeida Prado. Código de Hamurabi, Lei das XII Tábuas, Manual dos Inquisidores, Lei do Talião, p. 83.

[6] Idem

[7] PRADO, Antônio Orlando de Almeida Prado. Código de Hamurabi, Lei das XII Tábuas, Manual dos Inquisidores, Lei do Talião, p. 84.

[8] PRADO, Antônio Orlando de Almeida. Código de Hamurabi, Lei das XII Tábuas, Manual dos Inquisidores, Lei do Talião, p. 96.

[9] KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras, p. 444.

 

[10] KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras, p. 34.

[11] KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras, p. 511.

[12] Disponível em http://www.culturabrasil.pro.br/beccaria.htm#2

[13] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 15.

[14] HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 214.

[15] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 17.

[16] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 27.

[17] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 36.

[18] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 45.

[19] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 54.

[20] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 59.

[21] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 64.

[22] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 78.

[23] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 87.

[24] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 110.

[25] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 143.

[26] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão – Causa e alternativas.

[27] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão – Causa e alternativas, p. 33.

[28] Marco do produto da reflexão de Hobbes, a teoria contratualista se refere ao pacto estabelecido entre os homens com o fito de amenizar as incertas, as inseguras advindas do convívio social sem um controle pré-estabelecido, já a teoria utilitarista sustenta sobre as bases das conseqüências das ações que devem ser otimizadas com o fito da utilidade, bem como da felicidade, pode se citar como representante dessa teoria Jeremy Bentham.

[29] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 143.

[30] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão – Causa e alternativas, p. 37.

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Comentários e Opiniões

1) Romilson (29/08/2015 às 06:51:02) IP: 189.71.161.24
Ao Sr. Marcos Fonseca, quero por meio dessa mensagem expressar a minha gratidão por ter me permitido ter acesso a um texto tão amplo e tão bem estruturado consoante ao texto raiz, parabéns, que Deus abençoe a tua carreira ...


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