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A Relação Sexual Consentida com a Adolescente Menor de 14 Anos


Autoria:

Fábio José Pereira Ribeiro


possui graduação em Direito pela Universidade Candido Mendes (2005) e especialização em Pós-Graduação pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (2010) . Atualmente é Advogado/ Sócio Administrador do Fernando e Fabio Com. de Roupas Ltda EPP e Advogado autônomo. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Privado.

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Resumo:

Esse trabalho trata da hipótese em que a relação sexual é consentida e o faz em três etapas. Apresenta a antiga divergência quanto à natureza da presunção de violência; analisa o fim da presunção; e aborda eventual incompatibilidade legislativa.

Texto enviado ao JurisWay em 15/08/2016.

Última edição/atualização em 19/08/2016.



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INTRODUÇÃO 

 

O presente trabalho pretende analisar as mudanças trazidas pela Lei n° 12.015/09 ao Código Penal, especificamente no que tange à prática de atos sexuais envolvendo a adolescente menor de 14 anos de idade, tratada como crime, agora, no art. 217-A, sob a rubrica “estupro de vulnerável”.

O referido artigo traz mudanças significativas para o Código Penal e uma série de questionamentos para os juristas. Ei-los alguns: quais as consequências do fim da presunção de violência? Qual será a repercussão da Lei n° 12.015/09 na jurisprudência dos tribunais que defendiam a presunção relativa? Como é possível tratar, no mesmo tipo penal, o estupro de vulnerável com e sem violência? A Lei n° 12.015/09 resolveu as alegadas incompatibilidades entre os dispositivos do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente? Como adequar a Lei n° 12.015/09 à realidade social?

Para respondê-los, nada mais lógico do que iniciar esse estudo pela presunção de violência, hoje já revogada, averiguando, em especial, seu fundamento, sua natureza jurídica, os embates travados na doutrina e na jurisprudência acerca dela ser absoluta ou relativa e os princípios constitucionais violados por ela.

A seguir, este artigo jurídico analisa o delito do estupro de vulnerável, verificando suas características primordiais, as possibilidades do acusado por tal crime ser absolvido e os princípios constitucionais violados por esse novo tipo penal.

No tocante à atipicidade, insta salientar que o princípio da adequação social ganha lugar de destaque no presente trabalho, uma vez que, por meio dele, o magistrado pode (e deve) absolver o agente quando inexistir violência ou abuso sexual, mormente se este se encontrar na condição de namorado ou circunstância análoga.

Após ter traçado um quadro comparativo entre os dois tipos penais (art. 224, “a” e o art. 217-A), cumpre apresentar as incompatibilidades entre alguns dispositivos do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, de modo a esclarecer se após a Lei n° 12.015/09 o conflito permanece.

Por fim, resta se debruçar sobre as repercussões sociais trazidas pela Lei n° 12.015/09, de forma a tecer reflexões acerca dos problemas criados por ela. Isso porque o presente trabalho – haja vista o papel do jurista na sociedade moderna – não pretende limitar sua utilidade ao campo científico. Seu escopo é listar soluções viáveis para o legislador adequar a referida lei à realidade social.

 

1. O ESTUPRO DA ADOLESCENTE NÃO MAIOR DE 14 ANOS 

1.1 PREVISÃO LEGAL ANTES DA LEI N° 12.015/09 

 

Antes de entrar em vigor a Lei n° 12.015/09, o agente que estuprasse uma adolescente que não fosse maior de 14 anos de idade poderia ter realizado o tipo penal previsto no art. 213 do Código Penal ou a sua combinação com o art. 224, “a”. Enquanto neste a violência contra a adolescente era presumida em razão da sua “inexperiência sexual”, inocentia consilii; naquele realmente ocorria a violência, vis corporalis, ou a grave ameaça, vis compulsiva.

Diante disso, vê-se que não havia um tipo penal, propriamente dito, de estupro praticado contra a adolescente não maior de 14 anos. Quando havia a violência real ou a grave ameaça, o legislador tratava o estupro no art. 213 do Código Penal, sem fazer distinção quanto à idade da vítima, senão vejamos a letra da lei:

Estupro Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

Já no estupro praticado com violência presumida, para incriminar o agente que praticava a conjunção carnal, o legislador se valia de uma norma de adequação típica mediata, disposta da seguinte maneira:

Presunção de violência Art. 224. Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 (quatorze) anos.

Assim, vê-se claramente que o tipo penal do art. 224, “a” estava intrinsecamente ligado ao art. 213, eis que a tipicidade, que também é chamada de adequação típica, dava-se, no caso daquele dispositivo, por subordinação mediata.

 

1.2 A “PRESUNÇÃO”DE VIOLÊNCIA 

A presunção de violência nos crimes sexuais, pela menoridade da vítima, foi estabelecida por Carpsovio, fundado em duas passagens do Digesto. A primeira, afirmava que os dementes e interditos têm vontade nula. A segunda, dispunha que o pupilo nem quer, nem deixa de querer. Com base nisso, o prático formulou o raciocínio, sem dúvida, sofístico de que “qui velle no potuit, ergo noluit”, isto é, quem não podia consentir, dissentiu.

O legislador pátrio inseriu o sofisma no já revogado art. 224, “a” do Código Penal, com o fim de tutelar a liberdade sexual das adolescentes não maiores de 14 anos de idade. O critério utilizado para conferir tal proteção, como será visto no fim deste estudo, fora o biológico, embora o item 70 da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal disponha sobre “a inocentia consilii do sujeito passivo, ou seja, sua completa insciência em relação aos fatos sexuais de modo que não se pode dar valor algum a seu consentimento”.

Desde que passou a viger, em 1° de janeiro de 1942, o referido dispositivo foi motivo para inúmeras discussões envolvendo a natureza jurídica dessa “presunção”. Doutrina e jurisprudência nunca chegaram a um acordo sobre se a presunção de violência era absoluta, iuris et de iure, ou relativa, iuris tantum.

Na doutrina, prevalecia o entendimento de que a presunção era relativa, já que as demais alíneas (art. 224, “b” e “c”) também relativizavam essa presunção.

De acordo com Flávio Gomes (2001), essa corrente doutrinária, na qual se inseria Noronha, Hungria, Damásio e Mirabete, sustentava que defender a posição contrária seria o mesmo que conferir menor proteção ao possuidor de retardo mental, que tem menos ou nenhuma capacidade de autodeterminação.

Por fim, acrescentava Hungria (1978) que embora a lei nunca tivesse mencionado a natureza de tal presunção, a expressão “não se admitindo prova em contrário” fora eliminada propositadamente do art. 293 (posteriormente 275) do Projeto Alcântara Machado (1938), o que derrubaria a tese da presunção absoluta.

Na jurisprudência, muitos tribunais estaduais afastavam a presunção de violência nas hipóteses em que a não maior de 14 anos se prostituía em logradouros públicos; já havia mantido relações sexuais com outros indivíduos; era corrompida; se mostrava experiente em matéria sexual etc.

Nesse passo, o entendimento predominante na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, conforme se infere de inúmeros julgados. Como exemplo, na Apelação Criminal n° 0001210-91.2005.8.19.0039 (DJ 18/12/2008), a relatora, a Des. Maria Helena Salcedo, da 5ª Câmara Criminal, asseverou que a evolução dos costumes, bem como os dados constantes dos autos a indicar o consentimento e a consciência dos atos sexuais praticados pela adolescente, caracterizam a presunção de violência estabelecida pelo art. 224, "a" do Código Penal, como relativa. Afirmou ainda que só se justifica a punição quando apurado que a menor era completamente ignorante em matéria sexual.

Igualmente, no julgamento da Apelação Criminal n° 0005990-02.2005.8.19.0063 (DJ 11/04/2006), o relator, o Des. Marco Aurélio Bellizze, da 3ª Câmara Criminal, votou pela absolvição do réu, acusado de estuprar vítimas menores de 14 anos. Diante da inocorrência de qualquer tipo de violência real ou grave ameaça, constatou-se que se tratava da chamada violência presumida, e sendo esta relativa – como restou assentado na ementa – foi decisivo para a absolvição do réu o fato de que as menores já não eram mais virgens, se prostituíam e faziam uso de entorpecentes.

Todavia, se por um lado, os tribunais estaduais defendiam que a presunção era relativa; por outro, o Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, e o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, sustentavam que ela era absoluta. 

Na apreciação do EREsp n° 688.211/SC (DJ 08/10/2008), a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, decidira que a presunção de violência (art. 224, “a” do CP) tinha caráter absoluto. Entendeu-se que a liberdade sexual da adolescente não maior de 14 anos, justamente em função de sua vontade não estar aperfeiçoada, merecia proteção legal. Assim, seu consentimento não integrava os elementos do tipo penal do estupro ou do atentado violento ao pudor, pois o que se coibia era qualquer prática sexual envolvendo pessoas nessa faixa etária. Tal entendimento também restou consignado no Informativo n° 371.

Vale destacar que nesse julgamento, o Min. Nilson Naves, capitaneando os votos vencidos, defendeu, diante do amadurecimento precoce dos jovens de hoje, ser relativa essa presunção, sob à luz da doutrina de juristas como Nelson Hungria, Heleno Cláudio Fragoso e Zaffaroni.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência fora firmada no sentido de ser absoluta a presunção de violência prevista no art. 224, “a” do CP. No julgamento do HC n° 81.268/DF (DJ 16/11/2001), de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence, os Ministros do Pretório Excelso entenderam que o consentimento da vítima não maior de 14 anos era inválido e, por conseguinte, irrelevante para tipificar o estupro presumido. Como consequência disso, a 1ª Turma indeferiu habeas corpus impetrado pelo namorado de vítima que consentira com a prática da conjunção carnal (vide Informativo n° 246).

Insta salientar que embora o Min. Marco Aurélio, no julgamento do HC 73.662/MG, tenha sustentado que a presunção de violência é relativa, em verdade, a absolvição do agente deu-se por erro de tipo quanto a elementar idade da vítima, de modo que é correto afirmar que todos os Ministros do STF defendiam ser absoluta tal presunção.

Ademais, no HC 92.263, o insuperável Ministro confirma ser adepto da presunção absoluta, pois concede a ordem apenas para afastar a hediondez do estupro presumido, mantendo a prisão mesmo em caso em que se sabe que foi a própria vítima quem quis a prática do ato sexual. 

Na doutrina, houve quem defendesse a tese da presunção absoluta. Para esses autores, dentre eles, Faria (1959), a idade da vítima era elementar do tipo e mesmo que a menor tivesse experiência sexual, o seu consentimento era sempre inválido.

Rogério Greco (2009) também defendia ser absoluta essa presunção. Segundo o autor, não há dado mais objetivo do que a idade da vítima.

Com o devido respeito, nenhuma dessas correntes doutrinárias tinha razão. Isso porque a presunção nunca foi relativa nem absoluta. Aliás, a verdade é que nunca houve presunção alguma. O que o legislador introduziu, por meio do art. 224, “a” do CP, foi uma técnica indireta de incriminação. Assim, por meio de uma ficção, a lei equiparava o ato praticado pelo agente a uma conduta violenta. Nesse sentido, as doutrinas de Soler (1970), Manzini (1950/52), Carrara (1944) e, ainda, de Fragoso (1980), apesar de este defender a presunção relativa em algumas passagens.

Vale notar que enquanto a presunção mais se identifica com uma suposição que, até prova em contrário, deve ser tida por verdadeira, a ficção é o termo usado para designar uma narrativa imaginária, irreal.

Como a classificação absoluta versus relativa só se aplica às presunções, e não às ficções – porque não se pode fazer prova em contrário contra algo que, por sua própria natureza, contraria a realidade –, o embate travado há décadas pela doutrina e jurisprudência nunca fez sentido.

Dessa forma, os casos tratados pela jurisprudência como sendo de presunção relativa, em verdade, eram hipóteses de erro de tipo ou de inaplicabilidade da presunção.

Na primeira hipótese, o dolo era excluído, porque o agente errava sobre a idade da vítima. Com isso, os exemplos citados por Hungria (1978) e Noronha (1963), segundo os quais a presunção não favorece a “prostituta de porta aberta”, eram hipóteses de erro de tipo, o que fora percebido até mesmo pelos tribunais (vide RT 646/368).

No segundo caso, não se discutia se a presunção era relativa, mas sim se ela devia ou não ser aplicada. Com efeito, ninguém jamais apresentou "prova em contrário" da ocorrência da violência por uma simples razão: todos sabiam não haver violência. Logo, o que o agente tentava provar é que, no caso concreto, não era razoável supor-se ficticiamente a violência, porque a vítima não era insciente das coisas do sexo.

Daí, concluir-se que a ficção, uma vez feita, era irrebatível, mas a norma que a previa, dada as circunstâncias, poderia não ser aplicada. Isso porque o que faziam os defensores da presunção relativa era complementar os pressupostos do art. 224 do CP com outros, tais como: ser a vítima inocente e imatura; não ser a vítima virgem; ter o agente tentado tirar proveito da vítima etc. Isso obviamente não significava fazer prova em contrário da presunção, embora resultasse na inaplicabilidade da norma que previa a ficção nos crimes contra os costumes.

Assim, quando se dizia que a adolescente já era corrompida, a rigor, significava que a ficção não devia favorecê-la. Portanto, a prova em contrário que se fazia era quanto à existência do crime, e não quanto à prática da violência, já que esta ninguém nunca viu e jamais verá, pois a Lei n° 12.015/09 sepultou a sua ficção.

Ademais, é possível afirmar que, como a discussão era travada sob a ótica errada, nenhum autor jamais conseguiu sistematizar as hipóteses de "violência relativa", ou de "prova em contrário".

Tanto é assim, que nos manuais de Direito Penal - e nem mesmo os de Hungria (1978) escaparam disso - imperava um casuísmo desencontrado, com soluções improvisadas e sem um instituto em comum a uni-las. Criticar a vítima, mostrar sua maturidade sexual, sua aparência desenvolvida, a sinceridade de sentimentos do acusado, enfim admitia-se todo tipo de argumento que, sempre intitulado de “prova em contrário”, combatesse à ficção de violência.

Em última análise, cumpre dizer que a tentativa de provar-se que a violência existiu restaria sempre frustrada, e por um motivo ainda mais simples do que os apresentados acima. Como dito no início deste trabalho, em havendo violência, não se aplicava a ficção do art. 224, “a” do CP, mas tão-somente o art. 213, sem a necessidade da adequação típica mediata.

 

1.3 O ART. 224, “a” DO CÓDIGO PENAL E A VIOLAÇÃO A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

 

Durante sua vigência, muito se discutiu acerca da constitucionalidade do art. 224 do CP, uma vez que parte da doutrina, por exemplo, Flávio Gomes (2001), sempre sustentou que esse dispositivo violava o princípio constitucional da presunção de inocência, previsto no art. 5°, LVII da CRFB e, ainda, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8°, n. 2) e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14.2).

Ressalte-se que a violação a tal princípio persistia fosse a presunção de violência absoluta ou relativa.

Sendo absoluta e, obviamente, provada a prática da conjunção carnal com a adolescente não maior de 14 anos, o acusado não tinha sequer a possibilidade de provar que aquela presunção não se aplicava ao caso concreto, buscando sua absolvição, salvo se alegasse o error aetatis, isto é, o erro de tipo (art. 20 do CP) quanto à idade da vítima, afastando a adequação típica.

Assim, inegável a violação à presunção constitucional de inocência, pois além de o acusado deixar de ser presumidamente inocente, a lei ainda vedava que ele fizesse prova da inexistência do crime.

Por outro lado, sendo relativa a presunção, a prova de alguns fatos (a vítima já havia mantido relações sexuais com outros indivíduos; era corrompida; se mostrava experiente em matéria sexual; se prostituía em logradouros públicos etc.) era exigida do acusado para que este não fosse condenado.

Contudo, a inconstitucionalidade mantinha-se firme. Isso porque o órgão Ministerial, por força do art. 224 do CP, desobrigava-se de evidenciar a parcela dos fatos relativa à violência, que já era dada pelo legislador, sendo necessário provar-se apenas que a vítima se encontrava numa das hipóteses previstas nas alíneas daquele dispositivo.

Nesse passo, ao isentar o Ministério Público de uma parte das atribuições, o legislador ignorou a regra probatória inerente ao princípio da presunção de inocência, que requer do acusador a prova dos fatos em sua totalidade.

Por causa disso é que Flávio Gomes (2001)argutamente sustentava que enquanto o agente concretizava uma parte do tipo penal, a outra era realizada pelo legislador. Segundo o renomado autor, o agente respondia por algo que fora feito pelo legislador, e não por ele, ensejando sua responsabilidade penal objetiva.

Outro princípio, violado pelo art. 224, “a” do CP, era o da ofensividade ou da lesividade, que se traduz na máxima nullum crimen sine iniuria, ou seja, não há crime sem resultado (art. 13 do CP).

Explica-se: como a suposta violência sofrida pela vítima não decorria da conduta do agente, mas sim de uma ficção legal, não havia que se falar em lesão ou ameaça a direito (art. 5°, XXXV da CRFB). Contudo, por causa da idade da vítima, a lei – mesmo sabendo que inexistia ofensa ao bem jurídico tutelado – punia o agente, admitindo a lesão à liberdade sexual da menor.

Assim, se não havia um resultado lesivo à vitima, o agente não era punido com base no Direito penal do fato, mas na abjeta ficção criada pelo legislador.

Por fim, não se pode olvidar o princípio da culpabilidade, que também era repudiado pelo art. 224, “a” do CP. Segundo o referido princípio, não há pena sem culpabilidade. Disso decorre que: a) não há responsabilidade penal objetiva pelo simples resultado; b) a responsabilidade penal é pelo fato e não pelo autor; c) a culpabilidade é a medida da pena.

Ora, se o fato de o agente ser punido por um mero resultado,  em nítida hipótese de responsabilidade penal objetiva, já é abominável, quanto mais ser condenado pela ausência desse resultado, que era substituído por uma ficção legal. 

 

2. O ESTUPRO DA ADOLESCENTE MENOR DE 14 ANOS  

2.1 PREVISÃO LEGAL APÓS A LEI N° 12.015/09 

 

A Lei n° 12.015 foi editada em 7 de agosto de 2009 e entrou em vigência a partir de sua publicação, no dia 10 desse mesmo mês, trazendo inúmeras mudanças no que diz respeito aos crimes sexuais, a começar pela rubrica do Título VI, que deixou de ser “Dos Crimes contra os Costumes” para se chamar “Dos Crimes contra a Dignidade Sexual”. 

Cumpre observar que a alteração dessa rubrica traz reflexos de suma importância para o estudo dos crimes sexuais no Código Penal, muito embora, numa leitura rasa e apressada, essas implicações não sejam perceptíveis sob a ótica de que se valeu o legislador ao elaborar a lei.

A nomeação de um Título ou de um Capítulo do Código Penal está atrelada ao bem jurídico que ali se quer tutelar. Por isso é que, diante da redação truncada de determinado artigo, pode o operador do Direito, mediante uma interpretação teleológica ou até mesmo sistemática, se valer do nome dado àquele Título ou Capítulo para aplicar a lei (a um caso concreto) no exato sentido para a qual foi editada.

Não há como se esquivar desse raciocínio, sendo certo que os Títulos e os Capítulos exercem influência sobre os dispositivos neles contidos. Como ilustração disso, nota-se que o estupro de vulnerável (art. 217-A), inserto no Capítulo “Dos Crimes Sexuais contra Vulnerável”, visa proteger a dignidade sexual de todos os indivíduos que estejam nessa condição, transitória ou permanentemente.

Nesse passo, a Lei n° 12.015/09 introduziu, no Código Penal, verdadeira reforma no tocante aos crimes sexuais, tal qual o Decreto-lei n° 2.848 de 1940 (atual Código Penal) havia feito em relação ao Código Penal Republicano (Decreto n° 847 de 11.10.1890).

Essa reforma redireciona a proteção do Estado. Em vez de tutelarem-se os costumes – que representavam os hábitos e os falsos moralismos que eram impostos à sociedade por sua parcela mais conservadora – agora se protege a dignidade sexual. Esta sim merecedora da tutela estatal, porquanto atrelada a valores como a honra, a respeitabilidade, a moral e, obviamente, ao princípio da dignidade da pessoa humana, princípio constitucional que norteia todos os demais.

O art. 217-A dispõe sobre o estupro de vulnerável nos seguintes termos:

Estupro de vulnerável Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

Como se verá mais adiante, o constrangimento deixou de ser elemento do tipo, uma vez que a tipicidade se conforma com a mera prática da conjunção carnal ou outro ato libidinoso com a menor de 14 anos.

Também foram alterados os limites mínimo e máximo da pena privativa de liberdade, que foi majorada de 6 a 10 anos para 8 a 15 anos de reclusão. Nesse aspecto, é inegável que a Lei n° 12.015/09 é mais gravosa.

 

2.2 O FIM DA VIOLÊNCIA FICTA 

 

O art. 7° da Lei n° 12.015/09 revogou o art. 224 (e suas alíneas) do Código Penal, o que fez com que doutrinadores, por exemplo, Rogério Greco (2009), anunciassem que a presunção de violência, que em verdade nunca existiu, havia sido banida do ordenamento pátrio.

De qualquer forma, presunção ou ficção, como quer que se rotule o art. 224, este já não existe mais, o que não significa que o art. 217-A esteja a salvo das críticas doutrinárias.

Apesar de a Lei n° 12.015/09 ainda estar recente, já é possível apontar-se inúmeras falhas do legislador. Dentre elas, é bem provável que a maior esteja na redação do art. 217-A, já que o legislador, ignorando a realidade brasileira, proibiu a prática de sexo aos menores de 14 anos de idade, tipificando como estupro de vulnerável a conduta daqueles que desobedecerem ao comando do dispositivo legal.

Ora, não é crível que os Deputados Federais e Senadores, durante os debates na CPMI da Exploração Sexual, não vislumbraram que o projeto que resultou na Lei n° 12.015/09 ia de encontro ao comportamento sexual dos adolescentes brasileiros.

Segundo o psicólogo Virgílio do Nascimento (2007), os jovens de hoje representam a geração mais bem informada sobre sexo de todos os tempos. Eles têm aulas de educação sexual na escola, lêem a respeito nas revistas, vêem os reality shows da televisão e, se restar algum vestígio de dúvida, há sites na internet que respondem a qualquer questão sobre o tema. Os adolescentes não apenas sabem muito, como também não estão impedidos, por amarras sociais ou familiares, de passar da teoria à prática no momento escolhido por eles próprios.

É bem verdade que a intenção desse projeto de lei foi louvável, haja vista que a exploração sexual assola o cotidiano de muitas crianças e adolescentes no Brasil e a impunidade quase sempre livra os agentes de uma condenação. Veja-se o caso do ex-atleta Zequinha Barbosa, acusado de submeter à prostituição (art. 244-A do ECA) três meninas, de 13, 14 e 15 anos, mas inocentado pelo Superior Tribunal de Justiça em junho de 2009 (REsp n° 820.018).

Ocorre que o art. 217-A alberga tanto o ato sexual mantido entre namorados, quanto aquele praticado mediante violência real. Assim, o namorado e o eventual estuprador de uma menor de 14 anos de idade são, até a dosimetria da pena, tratados da mesma forma, o que é uma aberração jurídica!

E como não seria uma lei que mudaria o comportamento sexual dos adolescentes, as notícias de prisão dos namorados dessas jovens “vulneráveis” já começam a povoar os sites da internet e as manchetes dos rádios e dos jornais.

De acordo comHomem (2009), recentemente, ficou famoso o caso de um sujeito de 27 anos que beijava sua namorada, de 13 anos, em um clube na área rural de Rondonópolis, no Mato Grosso do Sul.

Os dois foram levados ao Centro Integrado de Segurança e Cidadania e, mesmo com o consentimento dos pais da menor, devido à nova lei publicada em agosto de 2009, o homem deverá responder pelo crime de estupro de vulnerável e, se for condenado, poderá ser aplicada uma pena de 8 a 15 anos de reclusão.

Com a ressalva da atenuante do art. 65, I do CP, tal situação não se alteraria se, em vez de 27 anos, o namorado da vítima tivesse seus 18 ou 19 anos. Com isso, convém indagar:quantos jovens serão presos em função do despreparo do legislador brasileiro ao redigir normas em matéria penal? Quantos serão condenados até que a jurisprudência dos tribunais corrija as injustiças advindas da Lei n° 12.015/09?

Tudo isso por uma questão de ordem técnica, pois com a retirada do verbo constranger das elementares do tipo penal, a subsunção do fato delituoso ao tipo descrito no art. 217-A já se dá com a simples prática do ato sexual, desde que praticado com menor de 14 anos.

Disso, conclui-se que a violência real e a grave ameaça, outrora descritas como circunstâncias elementares (art. 30 do CP) do art. 213, passaram a ser desnecessárias para a caracterização do crime de estupro de vulnerável, o que engessa a aplicação da lei.

Assim, se antes da Lei n° 12.015/09 era possível aos juízes e aos desembargadores tratar desigualmente os agentes, conforme o amplo leque de situações que podiam ocorrer em relação ao crime de estupro com violência presumida, agora essa possibilidade, como será visto adiante, quase desapareceu.

Essa imposição da Lei n° 12.015/09 a todo custo e sem medir consequências, tal como sugerido por Flávio Gomes (2001) em relação àquela ficção do revogado art. 224 do CP, faz lembrar a narrativa do leito de Procusto, cuja origem vem da Mitologia Grega.

Segundo o historiador Fernando Dannemann (2006), Procusto, sendo sanguinário ao extremo, não se contentava em assaltar os viajantes que transitavam pelas estradas onde ele exercia sua atividade criminosa, mas também os submetia a um suplício desumano: os prisioneiros eram colocados em uma cama, e os de pequena estatura, que não ocupavam toda a extensão do leito, sofriam um processo de estiramento com cordas ligadas a roldanas, para que se adaptassem perfeitamente a ele; já os de tamanho maior, simplesmente tinham o que sobrasse dos membros cortado a machado.

Para pôr um fim a tais atrocidades, o herói Teseu foi chamado pelos moradores do lugar. Durante sua viagem, o guerreiro foi exterminando os ladrões que encontrou pelo caminho, entre os quais estava o facínora Procusto, submetido à mesma tortura que infligia às suas vítimas.

Essa passagem mitológica é que deu origem à expressão leito de Procusto, aplicada às situações em que a utilização da força atropela as diferenças existentes entre os indivíduos, ou desrespeita as circunstâncias especiais que caracterizam os sistemas de vida adotados pelas pessoas.

No Direito, a figura mitológica é comparada a certos aspectos da atividade jurídica, considerando-se semelhante a Procusto aqueles que tentam enquadrar, de modo inadequado, determinada situação em um conceito que não se ajusta a ela, equívoco que sempre resulta em consequências negativas para aqueles que são submetidos ao comando da norma inapropriada.

Ora, se até os adeptos do art. 224, “a” do CP, por causa da violência ficta, foram comparados a Procusto, com muito mais propriedade seriam os defensores do estupro de vulnerável para as hipóteses de relação sexual consentida, uma vez que, ao contrário da violência ficta, não há como relativizar a aplicação do art. 217-A.

Por isso, a admissão do leito de Procusto é exatamente o que se tem aqui: por meio da Lei n° 12.015/09, o legislador dispôs sobre o estupro de vulnerável, sem qualquer preocupação com o fato de que os namorados das adolescentes menores de 14 anos passariam a ser tidos como estupradores.

 

2.3 AS ALTERNATIVAS PARA UMA EVENTUAL ABSOLVIÇÃO 

 

Como dito acima, a Lei n° 12.015/09 tornou o art. 217-A quase inflexível, de modo que, tendo o agente mantido conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos, é pouco provável que o juiz absolva o agente por atipicidade da conduta.

Todavia, dentre as possíveis alegações em defesa do acusado, figura o erro de tipo (art. 20 do CP) quanto à idade da vítima, isto é, o error aetatis, afastando a tipicidade da conduta.

Ocorre que essa alegação – por um motivo bastante óbvio –, não poderá ser utilizada nos casos em que o agente for o próprio namorado da vítima, a menos que ele prove que era mantido em erro quanto à idade dela.

Vale ressaltar que a absolvição só será possível se o acusado, realmente, acreditou que a adolescente tinha ao menos 14 anos. Isso porque em caso de dúvida quanto à idade dela, a jurisprudência tem entendido que é possível a condenação do agente, pois haveria dolo eventual. Exemplo disso é o Agravo de Instrumento n° 1.141.258/ RS do STJ, cujo relator foi o Min. Felix Fischer, que, em decisão monocrática (DJ 04/09/2009), entendeu ser o dolo eventual suficiente para a condenação.

Nesse mesmo sentido, a Apelação Criminal n° 0036222-02.1999.8.19.0000 do TJRJ, cujo relator foi o Des. Paulo Ventura (DJ 05/10/1999). Aqui, entendeu-se que a ignorância ou dúvida quanto à idade da vitima tornam-se irrelevantes, por subsistir, no atuar injusto do agente, o dolo eventual, apto, por si, a testificar a violência ficta e a afastar a possibilidade da aplicação de erro do tipo, perfeitamente vencível neste caso.

Ante o exposto, a percepção do acusado quanto à idade da vítima é aferida pelo conceito de homem médio, do contrário todo agente alegaria que desconhecia o fato de a adolescente ser menor de 14 anos. As alegações do agente serão analisadas pelo juiz, que tomará, como parâmetro para verificar a verossimilhança delas, a compleição física da adolescente, o seu comportamento, o vocabulário empregado em sua fala, os seus hábitos etc.

Com isso, atacar a tipicidade da conduta é, sem sombra de dúvidas, o iter mais fácil para se obter uma sentença de absolvição, pois é o único argumento que não sofreu alterações pela Lei n° 12.015/09, razão pela qual deve continuar a ser aceito pelos tribunais, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal (vide o HC 73.662/MG).

Embora seja o mais seguro, o erro de tipo não é o único caminho a ser trilhado caso se pretenda uma sentença absolutória. Merece destaque mais outro.

O princípio da adequação social, embora também exclua a tipicidade, constitui-se como uma causa supralegal de exclusão.

 Segundo Bitencourt (2007), a adequação social, princípio arquitetado por Welzel, informa que não obstante uma conduta se subsuma ao tipo penal, é possível deixar de considerá-la típica quando socialmente adequada, ou seja, quando estiver de acordo com a ordem social.

Por esse viés, a teoria da adequação social se revela como um princípio geral de interpretação dos tipos penais, uma vez que exclui deles os comportamentos compreendidos como toleráveis pela própria sociedade.

Nesse passo, tem-se que, em razão da sua aplicação, não são consideradas típicas as condutas que são praticadas dentro dos limites estabelecidos pela ordem social, haja vista serem, assim, consideradas socialmente adequadas (aceitas).

Vale observar que o objeto dessa teoria não é a tipicidade formal da conduta. Portanto, o comportamento continua sendo formalmente típico, haja vista que se subsume perfeitamente à norma penal incriminadora. Em verdade, o que se atinge com a sua aplicação é a tipicidade material.

Como exemplo, vê-se que no crime de estupro de vulnerável, quando o agente é o próprio namorado da vítima, a conduta dele ainda é formalmente típica (art. 217-A). Porém, como a sociedade tolera – ou, pelo menos, deveria tolerar – a relação sexual entre eles, um imputável e uma adolescente menor de 14 anos de idade, exclui-se a tipicidade material.

Como a Lei 12.015/09 entrou em vigor há poucos meses, ainda não há jurisprudência aplicando a teoria da adequação social ao crime do art. 217-A do CP, quando praticado com o consentimento da menor, mas a tendência é que as Cortes Estaduais sigam esse raciocínio, sob pena de se perpetrar as mesmas medidas de Procusto.

É bem verdade que, até o presente momento, a jurisprudência ainda é bastante tímida no tocante à aplicação do princípio da adequação social, mormente, se comparada ao emprego do princípio da insignificância.

Contudo, ela não é inexistente, já que é possível localizar sentenças e acórdãos em que a adequação social foi usada para excluir a tipicidade material em crimes, tais como, o de manter casa de prostituição (art. 229 do CP), violar direito imaterial (art. 184, § 2° do CP), furtar coisas de pouca monta (art. 155, § 2° do CP) e em contravenções penais como a de explorar jogos de azar (art. 50 da LCP).

A título de ilustração, vê-se a sentença proferida pelo MM. Dr. Narciso Alvarenga Monteiro de Castro, no Processo n° 0024.04.327.596-5 da 8ª Vara Criminal de Belo Horizonte/MG. Nela, o juiz decidiu por bem absolver o agente, denunciado pelo crime do art. 184, § 2º do CP. O magistrado entendeu que o fato praticado pelo acusado deveria ser coibido por outros meios de atuação do órgão estatal. Afinal, é sabido que onde bastam os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se.

Verifica-se, então, que o erro aetatis e a adequação social são as únicas formas de se buscar uma sentença absolutória no crime de estupro de vulnerável. Pergunta-se: mas e o erro de proibição?

Primeiramente, recorde-se que enquanto o erro de tipo está relacionado com a tipicidade, o erro de proibição está relacionado com a culpabilidade (mais precisamente, com a potencial consciência da ilicitude). A ausência de qualquer uma delas implicaria a improcedência da pretensão punitiva estatal.

De acordo com Nucci (2009), não é aconselhável que uma lei, criando novos tipos penais incriminadores, tenha vigência imediata, uma vez que a sociedade não teria o grau de informação necessário para tomar conhecimento dos novos ilícitos e ter ciência efetiva da proibição. Daí, poderia ter algum sentido o acolhimento da tese que indica o erro de proibição (art. 21 do CP) como forma de se obter a absolvição.

Todavia, interessante notar que o erro de proibição poderia ser alegado como tese defensiva apenas quanto aos novos tipos penais incriminadores, o que não é o caso do art. 217-A do CP, pois, aqui, ocorre tão-somente o que o Superior Tribunal de Justiça (vide HC 41.619/ MG, DJ 17/05/2005) e Flávio Gomes (2001) chamam de princípio da continuidade normativa típica, isto é, o que já era proibido pela legislação (art. 213 c/c 224, “a”) continua sendo crime na nova lei, porém previsto em outro tipo penal (art. 217-A).

 

2.4 O ART. 217-A DO CÓDIGO PENAL E A CONTINUIDADE NA VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS  

 

O art. 217-A fora criado para acabar com a discussão a respeito da natureza da presunção de violência: se absoluta ou relativa. Contudo, o novo dispositivo parece desafiar uma gama de princípios.

Em primeiro lugar, merecem destaque os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A violação a tais princípios é cristalina, pois se já é inaceitável que o namorado de uma adolescente de 13 anos seja denunciado por estupro de vulnerável, pelo simples fato dessa jovem possuir menos de 14 anos, imagine-se o quão desproporcional seria a condenação dele a uma pena mínima de 8 anos de reclusão.

Em segundo lugar, impende incluir a igualdade ou isonomia. Há violação a esse princípio porque num só tipo penal, o legislador puniu agentes com condutas distintas. O agente que realiza o tipo penal do estupro de vulnerável sem violência ou grave ameaça é tratado no mesmo dispositivo – e consequentemente com o mesmo preceito secundário – que aquele que pratica o ato com violência ou grave ameaça.

A distinção entre ambos os agentes até é feita pelo Judiciário. Porém, tarde demais para se evitar a violação à isonomia, porquanto viria apenas na primeira fase da dosimetria da pena, momento em que o juiz observaria as circunstâncias judiciais, tais como a maior reprovabilidade da conduta (culpabilidade) do agente que realiza o tipo penal com violência ou grave ameaça, o comportamento da vítima etc.

Vislumbram-se ainda transgressões aos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade. De ambos se infere a não aplicação do direito penal para hipóteses como aquela em que o denunciado é o namorado da vítima. O primeiro, porque o direito penal deve ser acionado apenas em último caso, isto é, depois de tentados todos os outros direitos, pois o direito penal não soluciona conflitos, mas sim os reprime. O segundo, porque o direito penal não deve tratar de todas as condutas lesivas a bens jurídicos, mas apenas daquelas mais graves e praticadas contra bens mais relevantes.

Por conseguinte, violando-se os dois princípios acima, atingido também estaria o princípio da última ratio ou da intervenção mínima, visto que parte da doutrina, como exemplo, Bianchini (2002) e Roberti (2001), considera este como o somatório daqueles dois primeiros.

Igualmente, não se pode olvidar o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, pois não compete ao direito penal tutelar valores puramente morais, éticos ou religiosos, fato bastante comum no processo e julgamento dos crimes sexuais.

Ainda poderia se cogitar o princípio da lesividade (ou da ofensividade), já que somente se admite a configuração da infração penal quando o bem jurídico penalmente protegido (reserva legal) sofrer efetivo, real e concreto perigo de lesão. Afinal, é evidente que nenhum bem é ameaçado por meio da relação sexual entre namorados.

Por fim, acrescenta-se a essa vasta lista o princípio da adequação social, pelos motivos já elucidados no item anterior. 

 

3. AS INCOMPATIBILIDADES ENTRE O CÓDIGO PENAL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 

Primeiramente, vale esclarecer que é um grande equívoco interpretar o art. 27 do CP no sentido de que o sistema penal brasileiro se baseou na capacidade de entendimento para definir a maioridade penal. Isso porque a legislação brasileira seguiu o critério puramente biológico, ou seja, fundado apenas na idade. E por motivos de política criminal, o legislador optou por conferir a inimputabilidade como proteção especial aos menores de 18 anos, afastando-os dos malefícios do cárcere.

E essa proteção ganhou alicerce constitucional na atual Magna Carta (art. 228), pois o Constituinte de 1988, acolhendo o entendimento da Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, ignorou o desenvolvimento mental do menor de 18 anos, considerando-o inimputável, independentemente de possuir a plena capacidade de entender a ilicitude do fato ou de determinar-se segundo esse entendimento.

Como o critério biológico também foi adotado para conferir direitos políticos aos cidadãos brasileiros, é possível concluir o seguinte: se é verdade que o fato de um adolescente saber votar, por si só, não o legitima a fazê-lo caso ainda não possua 16 anos; então, ainda que esse adolescente entenda o caráter ilícito de sua conduta, ele continuará sendo inimputável.

Todavia, o fato de o menor de 18 anos não praticar crimes não significa que ele não possa responder por seus atos. Isso porque sua responsabilização dar-se-á nos termos do art. 171 e seguintes da Lei n° 8.069/90. Assim, caso a criança ou adolescente pratique um ato típico, ilícito e culpável, não terá ele praticado infração penal, mas ato infracional análogo ao crime. Além disso, o menor não é preso, mas apreendido, e a ele não se aplica pena, mas medidas protetivas e/ou sócioeducativas.

Estabelecidas tais premissas, cumpre informar que, até a vigência da Lei n° 12.015/09, houve doutrinadores, dentre eles o insigne Flávio Gomes (2001), a sustentar que se a adolescente podia entender o caráter ilícito de um fato criminoso, também deveria compreender o caráter sexual de certos comportamentos, sob pena de se criar uma “anomalia aporética” no ordenamento jurídico.

No entanto, o Código Penal jamais dispôs em seus dispositivos que a adolescente não compreendia o caráter sexual de certos comportamentos. Ademais, tanto entendia que, para protegê-la, o legislador precisou tornar inválido seu consentimento para a prática de atos sexuais. Logo, não se aplica aqui o critério psicológico.

Para proteger a adolescente, o legislador do Código Penal de 1940 se valeu, outra vez, do critério biológico, e por motivos de política criminal utilizou o limite de 14 anos, faixa etária mantida no art. 217-A. Vale lembrar que no art. 272 do Código Penal Republicano, o limite era de 16 anos.

A violação à igualdade dos sexos não estava, portanto, no fato de a adolescente não entender o caráter sexual de certos comportamentos, mas sim em ter sido a única a ser protegida pela norma do art. 213 c/c 224, “a” do CP. Assim, tomando-se como exemplo uma relação sexual consentida, tinha-se que enquanto o rapaz era punido em razão do art. 105 do ECA dispor que a criança e o adolescente podem praticar ato infracional, a moça era tida somente como vítima pela impossibilidade de ser o sujeito ativo do crime de estupro.

Com a vigência do art. 217-A, não há mais que se falar nessa incompatibilidade. Isso porque, para atender as críticas da doutrina e da jurisprudência, o legislador editou a Lei n° 12.015/09. Contudo, ao menos no tocante à revogação do art. 224, “a”, a emenda saiu pior que o soneto. Agora, o adolescente de qualquer sexo pode ser sujeito ativo (ou também passivo) do crime de estupro.

Isso significa que o legislador também negou aos rapazes menores de 14 anos o direito de escolher como viver a sua liberdade sexual. É a máxima dura lex, sed lex, como se infere do art. 227, § 4° da própria Constituição da República, ao dispor que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.

 

CONCLUSÃO 

 

No presente trabalho, ficou demonstrado que embora a violência ficta do art. 224 do CP também gerasse seus problemas, com ela, ao menos, era dada ao juiz uma maior possibilidade de flexibilizar aquele dispositivo legal, absolvendo o agente sempre que entendesse que não era justo fingir-se a violência.

Com a edição da Lei n° 12.015/09, foi visto que, no tocante ao art. 217-A, muitos equívocos foram cometidos, violando-se uma série de princípios e restringindo-se ainda mais a liberdade sexual dos adolescentes.

É bem verdade que a Lei n° 12.015/09, por meio da criação de inúmeros tipos penais e da alteração de vários outros, apenas tenta cumprir o comando do art. 227, §4° da Constituição da República, combatendo o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

Contudo, nem a melhor das intenções afasta a incoerência deixada pela reforma dos crimes sexuais. De um lado, o legislador pune severamente quem, mesmo de forma consentida, mantém relação sexual com menor de 14 anos; mas do outro, permite que uma adolescente de 16 anos se case e constitua família (art. 1.517 do Código Civil). Parte-se de um extremo a outro: da proibição absoluta à liberdade total.

Além do mais, ainda que ao legislador parecesse imoral a conduta daquele que adere à vontade da adolescente e com ela pratica ato sexual,  tal comportamento deveria, com base no princípio da última ratio, ser atípico, ou, ao menos, não ter sido combatido com sanção tão gravosa (reclusão, de 8 a 15 anos).

No entanto, os despautérios legislativos não param por aí. Isso porque ao agente aplicar-se-á ainda a regra prevista no art. 2°, §1° da Lei n° 8.072/90, de modo a iniciar o cumprimento da pena que lhe for imposta, obrigatoriamente, no regime fechado, uma vez que a relação sexual com a adolescente menor de 14 anos, mesmo quando consentida, foi incluída pelo art. 4° da Lei n° 12.015/09 no rol de crimes hediondos (art. 1°, VI da Lei n° 8.072/90).

Portanto, seria mais sensato não só que o legislador retirasse a carga de hediondez sobre o caput do art. 217-A, como também que cominasse ao núcleo desse dispositivo uma pena mais branda, para só então, num de seus parágrafos, criar uma modalidade qualificada pela violência ou grave ameaça, estabelecendo, aí sim, sanção elevada.

A distinção é relevante, pois a agressão sexual não se confunde com o abuso. Enquanto aquela dá-se com o emprego de violência ou grave ameaça para aniquilar a resistência da vítima, o abuso ocorre quando o consentimento da vítima não é válido.

Outra opção pode ainda ser encontrada na doutrina de Carrara. Segundo Fragoso (1980), das lições do grande mestre italiano se infere que deveria reconhecer-se, na hipótese de ausência de violência ou grave ameaça, não o estupro, mas sim a sedução, que era crime menos grave.

Enquanto nada for feito, é previsível o que vai acontecer. No momento de registrar seus filhos, as adolescentes menores de 14 anos – que engravidaram de seus namorados maiores – darão azo a uma comunicação de estupro de vulnerável ao Ministério Público, o que, por sua vez, ensejará, em face do pai, necessariamente, a instauração de uma ação penal pública, porquanto incondicionada, nos termos do art. 225, parágrafo único do CP.

Como explicar, nesses casos, ao pai, geralmente com 18 ou 19 anos, que o fato de ter mantido relações sexuais com sua namorada mais jovem o levará a ser condenado a uma pena absurdamente elevada, porque tal fato é considerado pela lei mais grave que o furto, o roubo e até o homicídio?

Para evitar esse paradoxo, a menor omitirá, ao órgão de registro civil, o nome do seu namorado. Assim, a criança permanecerá longos anos sem ter o vínculo de paternidade reconhecido, e tudo porque uma lei irracional, com o lema de combater a prostituição infantil acabou por unir no mesmo tipo penal hipóteses bastante distintas entre si, atribuindo a todas elas o mesmo insano e desproporcional preceito secundário.

 

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