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DIREITO A IDENTIDADE GENÉTICA VERSUS AO ANONIMATO DO DOADOR


Autoria:

Ernane Alves Corrêa


Ernane Alves Corrêa, Acadêmico do Curso de Direito, 10º Período Concluído.

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Resumo:

Este trabalho tem como objetivo analisar a eficácia dos métodos legais utilizados para resguardar o direito ao reconhecimento da origem genética em função da preservação do anonimato do doador e material genético.

Texto enviado ao JurisWay em 27/06/2016.



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DIREITO A IDENTIDADE GENÉTICA VERSUS O DIREITO AO ANONIMATO DO DOADOR

Ernane Alves Corrêa 


RESUMO

 

Este trabalho tem como objetivo analisar a eficácia dos métodos legais utilizados para resguardar o direito ao reconhecimento da origem genética em função da preservação do anonimato do doador e material genético. O locus deste estudo será a reprodução assistida. Ressalta-se que ao longo da história, o nascimento de um filho só se dava origem a partir da união de duas pessoas de sexos opostos pelo matrimônio, cabendo à responsabilidade sobre a criança aos pais biológicos. A escassez de recursos limitava o desejo maternal ou paternal das pessoas que, por alguma deficiência genética ou fisiológica, não dispunham de condições de gerarem seus filhos. Com os avanços tecnológicos e o surgimento das técnicas de reprodução humana assistida, as pessoas puderam concretizar as suas vontades em exercer a função paternal e maternal. Visando contemplar os elementos propostos neste estudo, optou-se por uma metodologia que abordará os contrapontos dessa reprodução, o direito da preservação do anonimato, e o direito do reconhecimento à paternidade, analisando até onde um fere o outro.

 

Palavras-chave: Reprodução Assistida. Direito ao anonimato. Reconhecimento da paternidade. 

 

ABSTRACT

 

This work aims to analyze the effectiveness of legal methods to protect the right to recognition of genetic origin due to the preservation of donor anonymity and genetic material. The locus of this study will be assisted reproduction. It is noteworthy that throughout history, the birth of a child only gave rise to the union of two people of the opposite sex for marriage, while the responsibility for the child to biological parents. The lack of resources limited the maternal or paternal desire of the people for some genetic or physiological disability, did not have conditions to generate their children. With technological advances and the emergence of assisted human reproduction techniques, people could realize their wishes to exercise the paternal and maternal function. Seeks to include the elements proposed in this study, we chose a methodology that will address the counterpoints such reproduction, the right of preserving the anonymity and the right to recognition of paternity, analyzing how far one hurts the other.

 

Keywords: Assisted Reproduction. Right to anonymity. Recognition of paternity.

 

INTRODUÇÃO

 

Ao longo da história, o nascimento de um filho só se dava origem a partir da união de duas pessoas de sexos opostos pelo matrimônio, cabendo a responsabilidade sobre a criança aos pais biológicos. A escassez de recursos limitava o desejo maternal ou paternal das pessoas que, por alguma deficiência genética ou fisiológica, não dispunham de condições de gerarem seus filhos.

Com os avanços tecnológicos e o surgimento das técnicas de reprodução humana assistida, as pessoas puderam concretizar as suas vontades em exercer a função paternal e maternal. Segundo Gama (2003, p. 72), as técnicas de reprodução assistida “podem ser adotadas nos casos em que ambos os cônjuges ou companheiros não tenham condições de contribuir com o material genético para a fecundação”. Opina-se heteróloga quando o espermatozoide ou o óvulo utilizado na fecundação tem procedência de um terceiro que não aquele que será o pai socioafetivo da pessoa gerada. Esta prática de doação de gametas é lícita e válida desde que não tenha um fim lucrativo ou comercial.

No entendimento de Séguin a reprodução assistida configura-se como:

 

A reprodução assistida é um mundo novo, onde os portais do Direito tradicional foram ultrapassados, sem esquecer que o planejamento familiar é livre decisão do casal e deve estar fundamentado nos princípios da dignidade humana e da paternidade responsável (art. 226,§ , CRFB/88). (SÉGUIN, 2005, p. 117)

 

E, para aqueles que afastam a vontade de ser “pai” poderem contribuir de alguma forma com a sociedade, doam seu material genético para originar uma criança, sendo a ele atribuída a garantia do anonimato. Do outro extremo, tem-se a privação da pessoa concebida pelo procedimento de reconhecer sua identidade genética, ferindo o Princípio da Dignidade Humana.

Sarlet sobre o Princípio da Dignidade Humana discorre:

 

temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2007, p. 62)

A Dignidade da Pessoa Humana abrange todos os direitos e garantias que são inerentes à pessoa humana. A dignidade revela-se através da autodeterminação consciente do indivíduo sobre sua vida, impondo o respeito por parte das demais pessoas. O ordenamento jurídico deve garantir ao indivíduo o exercício dos seus direitos fundamentais. Há entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais uma relação de dependência recíproca.

Nesta linha de entendimento o Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais assim decidiu:

 

EMENTA: AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - VÍNCULO BIOLÓGICO - DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA E AO RECONHECIMENTO DO ESTADO DE FILIAÇÃO. PEDIDO JULGADO PROCEDENTE.

- O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, imprescritível, indisponível, que pode ser exercido sem qualquer espécie de restrição em face dos pais biológicos, tudo com base no princípio da dignidade da pessoa humana, estabelecido no artigo 1º, III, da Constituição Federal, e que traz em seu bojo o direito à identidade biológica. Dessa forma, caracteriza violação ao princípio da dignidade da pessoa humana o cerceamento do direito ao reconhecimento da identidade genética, notadamente quando não há oposição do pai que registrou o investigante. (TJMG, Autos nº 1.0236.03.001949-1/001, Rel. Des. Eduardo Andrade, j. 11/02/2014).

 

Pode-se observar também, que o anonimato do doador na reprodução heteróloga assistida se dá no Princípio da Inviolabilidade da Intimidade previsto na CRFB de 1988 em seu art. 5º, X, que dispõe ser inviolável "a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" e é determinado na Resolução nº 1.957/2010 do Conselho Federal de Medicina (BRASIL, 2011), sendo que este prevê que os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa mantendo-se o sigilo sobre todos os envolvidos. Esta Resolução, no entanto, permite que, em situações especiais, por motivos médicos, informações sobre o doador sejam repassadas a médicos, preservando a sua origem.

Brauner em análise do tema afirma:

 

a identidade do doador só pode ser revelada em casos de critérios médicos emergenciais, como, por exemplo, nas situações em que a pessoa tenha necessidade de obter informações genéticas indispensáveis à sua saúde, ou quando da utilização de gametas com carga genética defeituosa. (BRAUNER, 2003, p. 88)

 

Discorre Gama (2003) que o anonimato das pessoas envolvidas no processo de reprodução assistida deve ser mantido, mas quanto à pessoa concebida por meio da técnica heteróloga deve ser possibilitado o acesso às informações sobre toda a sua história sob o prisma biológico para o resguardo de sua existência, sendo o único interessado legítimo para descobrir suas origens. Conclui-se que, embora o direito ao anonimato do doador seja capaz de afastar a responsabilidade do genitor quanto ao sustento material e afetivo do concebido, que não tem o condão de afastar o direito da pessoa gerada de, sempre que possuir interesse, obter informações acerca da sua descendência genética. Restringindo o direito de conhecer sua origem genética, nega-se a uma pessoa a possibilidade de ter acesso a informações que possam auxiliar na descoberta de fatores que compõem a sua personalidade e que influenciam na sua autodeterminação.

Dentro do âmbito da isonomia, a CRFB/88 consagrou o princípio da igualdade entre os filhos, inviabilizando que seja feita qualquer distinção entre eles, sejam naturais, adotivos ou advindos das técnicas de reprodução humana assistida, ao dispor em seu artigo 227, § 6º que: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Há que se destacar que não existe legislação específica no que concerne às técnicas de reprodução humana assistida.

Chinelatto in Nanni elucidam ao tratar do tema:

 

O Código Civil não cuida, senão genericamente, das diversas questões de reprodução humana assistida, pouco tratada na literatura jurídica brasileira. Foi opção do legislador não cuidar de temas ainda não suficientemente madurecidos. (CHINELATTO IN NANNI, 2008, p. 220)

 

Portanto, o a problemática consiste em demonstrar a urgente necessidade de discutir e se regular essas novas relações materno-paterno-filiais em futuras legislações, defendendo-se a criação de uma forma para tornar eficaz a garantia aos direitos como para atender aos interesses dos envolvidos e as peculiaridades dessas relações, que possuem aspectos predominantemente éticos, garantindo acima de tudo, a proteção do princípio da dignidade da pessoa humana.

O objetivo geral do presente estudo é analisar a eficácia dos métodos legais utilizados para resguardar o direito ao reconhecimento da origem genética em função da preservação do anonimato do doador de material genético. Já os objetivos específicos consistem em identificar os efeitos produzidos pelo procedimento da reprodução assistida nas pessoas envolvidas, correlacionar um possível marco onde o direito do anonimato do doador não viole o direito a identidade genética, por fim, investigar as possíveis soluções do conflito entre o anonimato do doador e a origem do material genético criando legislação para regulamentar as técnicas utilizadas na reprodução assistida.

O tema proposto é a análise do direito à identidade genética frente ao Direito ao anonimato do doador, com enfoque aos problemas causados pela escassa regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro, haja vista o emocional dos envolvidos.

Nesta trajetória metodológica julga-se primordial a realização de uma pesquisa bibliográfica, objetivando o reforço dos alicerces teóricos desta pesquisa, apropriando-se dos instrumentos clássicos de investigação, como observação direta, manuseio de documentos de referência, e autores tais como: Maria Helena Diniz (2002), Carlos Roberto Gonçalves (2015), Guilherme Calmon Nogueira Gama (2008), além de outras doutrinas na área de Direito de Família, Código Civil (2002), Estatuto da Criança e do Adolescente (‎Lei 8.069 - ‎Lei nº 13.010, de 26.6.2014), Constituição da República Federativa do Brasil promulgado em 05 de outubro de 1988.

Na seção primaria deste trabalhou fez-se um traçado na evolução histórica da inseminação artificial, fazendo um comparativo até os dias atuais. Na seção secundária falou-se na reprodução assistida de forma abrangente, explicitando conceitos e entendimentos doutrinários. Na terceira seção, de forma sistêmica falou-se dos princípios constitucionais adotados na matéria em comento e na última seção fazendo um traçado de todo o conteúdo anteriormente abordado falou-se da descendência genética do filho concebido na reprodução humana assistida. 

 

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

           

Segundo MOURA (2009, p. 28) As diversas formas de conhecimento tentam explicar o que é o ser humano: “de onde ele veio” e “para onde vai, isto é, a origem e a finitude humanas. Cita-se, entre outras, a mitologia, a religião e a ciência, que tentam, cada uma dentre sua ideologia, encontrar respostas para o que é desconhecido para o ser humano, tentativa de explicar e dar sentido à vida.

Nesta perspectiva, a fim de entendermos mais profundamente, o objeto de análise deste estudo reprodução assistida heteróloga necessário se faz analisar o processo de evolução do pensamento humano e as suas diversas alternativas para desvendar os fenômenos da natureza.

Inicialmente, os mitos buscam explicar os mistérios por meio de entidades, na tentativa de alcançar o conhecimento do que é desconhecido do homem – seu próprio mundo. As entidades são tanto forças, energias, quanto podem ser criaturas e personagens, as quais transcendem o mundo natural, isto é, são sobrenaturais. Muitos desses mitos explicam o nascimento e a origem do mundo. (MOURA, 2009)

Ainda MOURA (2009, P. 26) estabelece que as religiões também apresentam uma explicação para o mundo. A fé, os ritos, os sacramentos e as orações também oferecem ao homem uma explicação para aquilo que ele desconhece e não encontra respostas.

A filosofia implica a posse ou a aquisição de um conhecimento que seja, ao mesmo tempo, o mais válido e o mais amplo possível. Ela se propõe a debater ou especular sobre problemas que ainda não estão acessíveis aos outros saberes, como o bem e o mal, e belo e o feio, a ordem e a liberdade, a vida e a morte.

Por sua vez, a ciência, ao procurar saber como a natureza funciona, considera, principalmente, as relações de causa e efeito. Assim, busca o conhecimento objetivo, o qual se baseia nas características do objeto, com interferência mínima do sujeito, ou seja, significa aceitar que uma proposição é válida independentemente de quem a formulou. Umas das consequências desta forma de busca do conhecimento é o grande desenvolvimento da tecnologia, parceira desse funcionamento quase sem sujeito.

A partir de 1078, com o nascimento de Louise Brown[1], ou após a rápida disseminação da técnica da injeção intracitoplasmática de espermatozoides pelo mundo desde 1992, o potencial da reprodução assistida tem se mostrado aparentemente ilimitado, pois testemunha se avanços fantásticos no campo da reprodução assistida.

A mitologia Greco-romana, conjunto de mitos e lendas das tradições gregas e romanas da Antiguidade, os quais se fundiram com a conquista da Grécia pelo Império Romano, menciona alguns relatos sobre a reprodução assistida dos deuses. As três deusas gregas Juno, Minerva e Diana são conhecidas como deusas de origem partenogenética. Juno e Minerva tiveram muitos filhos.

Marte, deus da guerra, segundo Hesíodo, era filho de Júpiter e de Juno, que, invejosa por ter Júpiter tirado Minerva de seu cérebro, quis imitar a façanha e produzir um filho sem a ajuda de seu esposo ou de qualquer outro homem. Resolveu encontrar os meios propícios a tal realização; sentou-se ao pé do templo da deusa Flora, que lhe perguntou a causa da sua busca. A deusa, ouvindo seu desejo, mostrou-lhe uma flor maravilhosa que pelo simples toque a engravidou, e assim, nasceu Marte. (MOURA, 2009)

Na Bíblia[2], também se encontra uma riqueza de relatos sobre o nascimento de homens e mulheres inférteis. Infertilidades que foram milagrosamente curadas por Deus e de mulheres que engravidaram com idade avançada.

           

Reprodução assistida

 

Durante décadas da História o conceito de início e fim da vida humana esteve presente nos campos das ciências médicas, biológicas, filosóficas e religiosas, apresentando peculiaridades e noções fundamentais para a construção do conceito de pessoa.

Quanto à reprodução assistida, a primeira inseminação artificial de que se tem registro, foi realizada no século XIV, pelos árabes, precisamente no ano de 1332, em éguas, utilizadas como técnica de guerra.

Em 1776, foi registrada a primeira inseminação artificial pelo conhecimento científico, quando um naturalista italiano chamado Lazzaro Spallanzani realizou a primeira inseminação artificial em uma cadela, a qual pariu três crias.

As investigações sobre inseminação artificial na espécie humana tiveram início em torno de 1790, baseadas nas formas utilizadas para a reprodução bovina. Atualmente, a reprodução humana assistida ganha relevante papel na sociedade, devido ao fato de o direito de procriar ser inerente a todos os seres humanos, contudo esse direito encontra barreiras, devido à inexistência de legislação que regulamente o tema.         

O anseio de ter filhos é inerente ao ser humano desde os tempos mais antigos. Contudo, devido a problemas de diversas origens, a vontade de se ter um filho nem sempre pode ser concretizada de forma natural e foi devido à inclusão dos direitos reprodutivos no rol de direitos fundamentais que o tratamento para os casos de infertilidade passou a ser função também do Estado, conforme o artigo 226, § 7ª da Constituição Federal, mas, as técnicas de reprodução assistida apenas serão utilizadas quando ocorrer o insucesso das técnicas naturais.

Com o advento do rápido desenvolvimento da ciência, os casais inférteis dispõem de várias técnicas para resolverem o problema de esterilidade, sendo as mais comuns a Inseminação Artificial e Fertilização in vitro.

 

A REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA HETERÓLOGA  

    

Ao longo da história, o nascimento de um filho só se dava a partir da  união de duas pessoas de sexos opostos, essencialmente formando o núcleo pelo matrimônio, entendido como família, base dos indivíduos e da sociedade em geral.  Nesse enlace faziam parte o pai, considerado o chefe da família; a mãe, responsável pela casa e educação dos filhos, e esses, dependentes dos pais. O Código Civil de 1916 (CC/16) abrangia o tema família sob esse prisma. 

Elucida Dias (2009) que esse código trazia uma estreita e discriminatória  versão da família, limitando-a ao grupo originário do casamento. Impedia sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações. As referências feitas aos vínculos extramatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam primordialmente para excluir direitos.

O modelo de família brasileiro encontra sua origem na família romana. No Direito Romano a família era organizada sob o princípio da autoridade (GOMES, 2000). Organizava-se em torno da figura masculina, muito diferente da contemporaneidade. Em Roma, reinava o autoritarismo e a falta de direitos aos componentes da família, principalmente no que diz respeito aos filhos e à mulher. Assim Gomes (2000, p.33) define a família romana, como sendo um “conjunto de pessoas sujeitas ao poder do pater familias, ora grupo de parentes unidos pelo vínculo de cognição, ora o patrimônio, ora a herança”. Gonçalves complementa:  

 

 

pater famílias exercia sobre os filhos direito de vida e de morte (ius vitae ac necis). Podia desse modo, vendê-lo, imporlhes castigos e penas corporais e até mesmo tirar-lhes a vida. A mulher era totalmente subordinada à autoridade marital e podia ser repudiada por ato unilateral do marido.  (GONÇALVES, 2011, p. 31)

     

Segundo Rodrigues (2010), o Código Civil de 2016  apresentava distinções entre os  filhos legítimos, os concebidos na constância do casamento em seu art. 338 e os filhos ilegítimos, aqueles concebidos em relação extramatrimonial, estes desdobrados em duas subespécies: a) filhos naturais, nascidos de pessoas sem impedimento para casar (pessoas solteiras, sem vínculo de parentesco); b) filhos espúrios, nascidos de pessoas com impedimento para casar.  

        Com o passar do tempo houve mudanças significativas no que tange ao  conceito de família, sendo protegida por lei a relação não advinda do matrimônio. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), em seu Capítulo VII, artigo 226, estabelece e põe fim a séculos de exclusão e preconceito:      

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.  

§ 3º- Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.   

§ 4º- Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.  

§ 5º- Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.  

§ 7º- Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.  (CRFB, 1988)

  

  

O Código Civil de 2002 veio somar-se com a CRFB/88, trazendo em seu corpo aspectos já observados por esta, pois já não era mais imaginável a diferenciação de direitos entre homens e mulheres. Assim como na CRFB/88, o CC/02 equiparou os deveres e responsabilidades entre os cônjuges conforme disposto no artigo 1.511 “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”.  (BRASIL, 2002)

Pode-se verificar no artigo 227, § 6º da CRFB/88 que as mudanças também aconteceram em relação aos filhos que, posteriormente foram repetidas no art. 20 da Lei 8069/90 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) ao consagrar o princípio da igualdade jurídica para todos os filhos, independentemente de suas origens, igualando-os em seus direitos e deveres, proibindo qualquer adjetivação preconceituosa. Boscaro diz que:      

  

  

(...) a liberalidade dos costumes, ao menos nas sociedades de países ocidentais, fez com que o conceito de família fosse sendo gradativamente ampliado, para alcançar praticamente todos os tipos de uniões englobadas nas chamadas "entidades familiares". Destarte, foi completa a ruptura operada com relação aos antigos dogmas em que se assentavam esses clássicos institutos do direito de família, o que contribuiu decisivamente para que a igualdade entre os filhos oriundos ou não de justas núpcias fosse plenamente aceita pela sociedade. (BOSCARO, 2002, p.78) 

  

  

  Diante desses comandos legais, percebe-se que hoje está garantida a igualdade entre os filhos, independentemente se havidos na constância e ou fora do casamento.  Dispõe o art. 1.596 do CC/02:    Art. 1.596. Os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.  

Quando o processo natural de filiação (em que há o encontro de um espermatozoide com o óvulo, nas Trompas de Falópio, situadas no aparelho reprodutor feminino) não se completa, surgem os problemas relacionados à fertilização. Fatores de ordem biológica, médica ou psíquica podem impedir que as células germinativas masculina e feminina se unam, ocasionando por vezes a incapacidade de procriar. Atualmente, o avanço da tecnologia possibilitou outro tipo de filiação que se dá através das técnicas de Reprodução Humana Assistida, nas quais as pessoas podem concretizar suas vontades de exercer a função paternal e maternal provocando a gestação por meio da facilitação ou da substituição de alguma das etapas do ciclo reprodutivo natural, possibilitando que casais estéreis ou inférteis venham a ter filhos. Lembra Leite (1995, p.22) que “[...] a esterilidade não coloca em cheque só a organização psíquica do indivíduo, mas atinge também o casal. Se a esterilidade é difícil de viver individualmente para o homem solteiro, ela é mais ofensiva para o homem casado”.  

    

  

Reprodução Humana Assistida e suas particularidades  

  

No Brasil, o número de casais que procuram clínicas especializadas em reprodução assistida vem aumentando consideravelmente, uma vez que as técnicas utilizadas por médicos especializados têm como principal objetivo tentar viabilizar a gestação em mulheres com dificuldades de engravidar ou até mesmo a infertilidade do casal ou um de seus membros. A Reprodução Humana Assistida, no entanto, tem como finalidade auxiliar a fertilização, unindo de forma artificial, os gametas femininos e masculinos, dando origem a um ser humano. Neste ínterim Diniz destaca que a reprodução assistida:  

    

(...) tem o papel de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação, quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes para a solução da situação atual da infertilidade (...), devolvendo ao homem e à mulher o direito à descendência. (...) essa nova técnica para criação do ser humano em laboratório, mediante a manipulação dos componentes genéticos da fecundação, com o escopo de satisfazer o direito à descendência, o desejo de procriar de determinados casais estéreis e a vontade de fazer nascer homens no momento em que se quiser (...) (DINIZ, 2007, p.498)  

  

  

A Reprodução Humana Assistida pode ser homóloga, quando o material genético utilizado no procedimento é fornecido pelo próprio casal que se submete à reprodução assistida, ou seja, espermatozoide e óvulo são do próprio casal. Explica Fernandes (2000, p.57), “o óvulo utilizado na fecundação é originário da mulher que irá gestar e será a mãe socioafetiva da criança concebida, e o espermatozoide é do esposo ou companheiro dessa mulher. ”  

                Enquanto a Reprodução Humana Assistida Heteróloga, que é efetivamente, objeto desse trabalho, ocorre quando o material genético, espermatozoide ou o óvulo, utilizado na fecundação, tem procedência de um terceiro que não aquele que será o pai ou mãe socioafetivo da pessoa gerada. Nessa modalidade de reprodução, o mais comum é encontrar o homem como doador. 

De tal modo, Fernandes conceitua: 

  

  

Por fecundação heteróloga entende-se o processo pelo qual a criança que vier a ser gerada por qualquer das técnicas de reprodução assistida for fecundada com a utilização de gametas de doadores, dividindo-se a fecundação heteróloga “a matre”, quando o gameta doador for o feminino, “a patre”, quando se tratar de doação de gameta masculino, ou total, quando os gametas utilizados na fecundação, tanto os masculinos quanto os femininos, são de doadores. (FERNANDES, 2000, p.58)

       Essa prática de doação de gametas é lícita e válida desde que não tenha um fim lucrativo ou comercial, mas mesmo sendo lícita, gera dúvidas, polêmica no que tange à filiação, visto que a criança gerada através dessa técnica possuirá um pai biológico diverso daquele que irá lhe registrar e lhe acolher.   

       É fato que, na concepção mais moderna, ser pai ou mãe, não é apenas ser a pessoa que gera ou a que tem vínculo genético com a criança, é, antes disso, a pessoa que cria, que ampara, que dá amor, carinho, educação, dignidade, ou seja, a pessoa que realmente exerce as funções de pai ou de mãe em atendimento ao melhor interesse da criança.   

       A inclusão do inciso V do art. 1.597 do CC/02, em que “Presumem-se  concebidos na constância do casamento os filhos: V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”, foi extremamente importante na geração de filho pela técnica da reprodução assistida heteróloga, porque reforça o entendimento de que ao dar o consentimento, o marido assume a paternidade, não podendo, após, impugnar a filiação.  Tem como objetivo também, fazer com que o princípio de segurança das relações jurídicas prevalecesse diante do compromisso entre os cônjuges de assumir a maternidade e a paternidade, mesmo com a utilização de material genético de terceiro, dando-se prevalência ao elemento afetivo e não ao biológico.  

Diniz comenta o Enunciado nº 104 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal:  

  

 No âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiro, o pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou eventualmente pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo da manifestação expressa (ou implícita) de vontade no curso do casamento. (DINIZ, 2006, p. 446) 

  

  

O consentimento informado é fundamental para inseminação de mulheres casadas ou vivendo em união estável, conforme estabelece a Resolução nº 1957/2010 do Conselho Federal de Medicina (CFM):4  

     

O consentimento informado será obrigatório a todos os pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida, inclusive aos doadores. Os aspectos médicos envolvendo as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será expresso em formulário especial e estará completo com a concordância, por escrito, das pessoas submetidas às técnicas de reprodução assistida. (CFM, Resolução nº 1957/2010)  

  

  

 Não havendo consentimento livre pelo parceiro na inseminação heteróloga ou se ela for feita sob fraude, erro ou coação, o vínculo de filiação estabelecido pode ser contestado ou repelido, não mais se observando o interesse da criança.  

Mesmo a técnica de reprodução assistida já sendo aceita no Brasil, antes mesmo da vigência do CC/02, esse ainda deixou a desejar no regramento da reprodução assistida, pois há abertos vácuos no corpo do texto acerca do tema, sendo omisso, portanto, na questão. Assim, Venosa esclarece:   

  

  

Advirta-se, de plano, que o Código de 2002 não autoriza nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata lacunosamente a existência da problemática e procura dar solução ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por um estatuto ou microssistema.  (VENOSA, 2006, p. 240)

  

  

As únicas normas que regulamentam a Reprodução Humana Assistida Heteróloga restringem-se às Resoluções do CFM, que estabelecem normas éticas, com dispositivos deontológicos, no que diz respeito à regulamentação e procedimentos a serem observados pelas clínicas e médicos que lidam com a reprodução humana assistida.      

 

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICADOS À REPRODUÇÃO ASSISTIDA  

  

Direito à identidade genética e o princípio da dignidade humana  

  

  

Na atualidade, o número de crianças concebidas por meio das técnicas de Reprodução Humana Assistida é cada vez maior. A utilização dessas novas técnicas dá origem ao polêmico conflito entre o direito à identidade genética e o direito ao anonimato do doador de material genético. Dessa forma, surge no ordenamento jurídico, a necessidade de solucionar o referido conflito, o qual será tratado ao longo desse capítulo. 

Inicialmente, é necessário conceituar o termo a “vida”, como um bem  fundamental do ser humano, pois sem a vida, não há que se falar em outros direitos, nem mesmo os de personalidade. Com base nesse entendimento, pode-se afirmar que todo o homem tem direito à vida, mas além do direito de viver, tem também o direito a uma vida plena e digna, respeito aos seus valores e necessidades.

Neste sentido o Legislador, com finalidade de garantir a todos, como elucida José Afonso da Silva:

  

A Vida, no texto constitucional, não será considerada apenas no sentido biológico de incessante auto atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se incessantemente sem perder sua própria identidade (SILVA, 1998, p.194)

 

 

De acordo com Bessa (2006, p.16) “os direitos fundamentais são direitos  humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder de editar normas”.  

Embora os direitos fundamentais não sejam princípios, são direitos  destinados a preservar a vida humana dentro dos valores de liberdade e dignidade, não sendo possível a exclusão de nenhum desses direitos, em caso de colisão, uma vez que inexiste qualquer espécie de hierarquia entre eles. 

Deve-se sobressaltar que o direito de personalidade não é apenas um  conjunto de direitos subjetivos, que tutelam a integridade física e moral da pessoa humana. É um direito fundamental que se baseia no princípio da dignidade humana. 

Vários questionamentos surgem com fato de uma pessoa poder ser  concebida por técnicas de Reprodução Humana Assistida, dentre eles se tem ou não o direito de conhecer a sua ascendência genética, para Oliveira:    

  

O direito à intimidade e o direito ao conhecimento da ascendência genética são direitos fundamentais de personalidade garantidos pelo nosso ordenamento jurídico. São fundamentais porque são direitos humanos que o legislador recepcionou no ordenamento, e são de personalidade porque são direitos subjetivos atribuídos ao homem despido do seu tipo social. (OLIVEIRA, 2004, p.115)  

  

  

A discussão jurídica que se apresenta, então, é definir se uma criança, fruto da reprodução assistida pode quebrar o anonimato da identidade genética, fazendo valer o direito da personalidade, direito inerente à pessoa e à sua dignidade. Welter afirma:  

    

[...] em qualquer caso, o filho, o pai e a mãe têm o direito de investigar e/ou de negar a paternidade ou a maternidade biológica, como parte integrante de seus direitos de cidadania e de dignidade de pessoa humana. No entanto, o direito ao anonimato do doador também é protegido pelo princípio, uma vez que o direito à intimidade é um desdobramento dos direitos fundamentais que existe justamente para garantir a dignidade da pessoa humana. (WELTER, 2003, p.229) 

  

  

Nesse sentido, o direito à identidade genética apresenta-se como reflexo  do direito de, além de ser concebido, conhecer sua ascendência biológica, Sarlet discorre sobre o Princípio da Dignidade Humana:    

  

[...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2007, p.62) 

      

A Dignidade da Pessoa Humana abrange todos os direitos e garantias  que são inerentes à pessoa humana e revela-se através da autodeterminação consciente do indivíduo sobre sua vida, impondo o respeito por parte das demais pessoas. O ordenamento jurídico deve garantir ao indivíduo o exercício dos seus direitos fundamentais.  

Há entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais uma  relação de dependência recíproca. Neste diapasão, Camargo descreve:   

    

Ao mesmo tempo em que os direitos fundamentais surgiram como uma exigência da dignidade de proporcionar um pleno desenvolvimento da pessoa humana é certo também que somente através da exigência desses direitos a dignidade poderá ser respeitada, protegida e promovida. Por essa razão, a exigência de cumprimento e promoção dos direitos fundamentais, encontra-se estreitamente vinculada ao respeito à dignidade da pessoa humana. (CAMARGO, 2007, p.116) 

    

O direito ao reconhecimento da origem genética é direito personalíssimo  da criança, não sendo passível de obstaculização, renúncia ou disponibilidade por parte da mãe ou do pai. Os principais motivos que poderiam levar a criança a desejar conhecer a sua ascendência genética seriam: a necessidade psicológica de conhecer a origem genética, o conhecimento de possíveis impedimentos do casamento e a preservação da sua saúde e vida nas graves doenças genéticas. Leciona Fernandes:  

  

Ao se negar a possibilidade do aforamento de ação investigatória por criança concebida por meio de uma das técnicas de reprodução assistida, em inaceitável discriminação se estará negando a ela o direito que é reconhecido a outra criança, nascida de relações sexuais. (FERNANDES, 2000, p. 85)  

  

    

Ademais, diante do texto constitucional, não há mais que se restringir os  casos em que a investigatória de paternidade é admissível, mesmo que seja simplesmente para que o filho possa pleitear o reconhecimento de sua paternidade.  

O artigo 27 da Lei 8.069/90  (Estatuto da Criança e do Adolescente) estabelece que, mesmo que os pais  tenham firmado documento de consentimento informado que se comprometiam a não demandar a paternidade, o termo não vincula o filho nascido, pois o direito do reconhecimento do estado de filiação e, por consequência, do reconhecimento da origem genética, é indisponível e personalíssimo e pode ser exercido sem qualquer restrição, não podendo constituir objeto de renúncia por parte de quem não os possui.  

Ao possibilitar ao filho o conhecimento de sua verdadeira ascendência  genética, estará o doador, dando àquela criança o exercício pleno de seu direito de personalidade e a oportunidade de encontrar no “pai” biológico, as explicações para os questionamentos acerca de suas características fenotípicas, da índole e do comportamento social.  

Neste sentido, Lôbo Netto posiciona-se quanto à utilização da Ação de Investigação de Paternidade:  

 

  

Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica [...] Uma coisa é vindicar a origem genética, outra a investigação de paternidade. A paternidade deriva do estado de filiação, independente de origem (biológica ou não). O avanço da biotecnologia permite, por exemplo, a inseminação artificial heteróloga, autorizada pelo marido [...]. Nesse caso, o filho pode vindicar os dados genéticos do doador anônimo de sêmen que conste nos arquivos da instituição que o armazenou, para fins de direito da personalidade, mas não poderá fazê-lo com escopo de atribuição de paternidade. Consequentemente, é inadequado o uso da ação de investigação de paternidade, para tal fim. (NETTO, 2004, p.54) 

  

 

Investigar a origem genética, nada mais é do que buscar pelo seu genitor, biológico. O objetivo de conhecer a origem genética é assegurar o direito de personalidade, enquanto conhecer a paternidade é um estado de filiação. Na investigação de paternidade, julgado procedente o pedido, já estará o pai vinculado a direitos e obrigações decorrente deste estado de filiação, até com a consequente alteração do registro civil. Já na investigação da origem genética, não se tem tais efeitos, pois aqui apenas se declara a origem biológica a alguém, não tendo o fim de gerar obrigações pessoais, como a alteração do registro civil, e obrigações patrimoniais, como o direito a alimentos e herança.  

Faz-se necessário demonstrar uma distinção entre estado de filiação e direito de filiação, decorrentes da inseminação artificial heteróloga. Pelo estado de filiação entende-se aquele estabelecido no art. 1.597, inc. V do Código Civil, no qual o marido ou companheiro da mãe, que pratica a inseminação, confere o seu consentimento para a prática de tal ato, tornando pai da criança gerada desde a sua gestação. Busca-se pela origem genética quanto à ligação biológica entre a criança e o doador, sendo descartada pela doutrina brasileira direitos e deveres.  

Discorre Gama (2003) que à pessoa concebida por meio da técnica heteróloga deve ser possibilitada o acesso às informações sobre toda a sua história sob o prisma biológico para o resguardo de sua existência, uma vez que é o único interessado legítimo para descobrir suas origens. Conclui-se que, embora o direito ao anonimato do doador seja capaz de afastar a responsabilidade do genitor quanto ao sustento material e afetivo do concebido, tal não tem o condão de afastar o direito da pessoa gerada de, sempre que possuir interesse, obter informações acerca da sua descendência genética. Restringindo o direito de conhecer sua origem genética, nega-se a uma pessoa a possibilidade de ter acesso a informações que possam auxiliar na descoberta de fatores que compõem a sua personalidade e que influenciam na sua autodeterminação. Assim, Ferraz explica o conhecimento da identidade:  

  

Consiste em saber sua origem, sua ancestralidade, suas raízes, de entender seus traços (aptidões, doenças, raça, etnia) socioculturais, conhecer a bagagem genético-cultural básica. Conhecer sua ascendência é um anseio natural do homem, que busca saber, por suas origens, suas justificativas e seus possíveis destinos. Não há como negar o direito a conhecer a verdade biológica, pela importância enquanto direito de personalidade. Portanto, a identificação desta é um direito de cada ser humano, uma vez que conhecer sua origem genética se faz necessário para uma construção sociocultural do indivíduo. (FERRAZ, 2011, p.133) 

  

  

Se for da vontade do filho, ele poderá, a qualquer tempo, em face da  imprescritibilidade de seu direito, investigar a sua origem genética sem que isto constitua diminuição, discriminação ou desconsideração da filiação socioafetiva, porventura formada, e sem que implique quaisquer outros direitos inerentes à filiação que não o do reconhecimento genético, devendo funcionar somente, como um instrumento que garanta ao ser gerado através das técnicas de reprodução assistida heteróloga, a certeza de sua ancestralidade.  

  

Direito ao anonimato do doador e o princípio da intimidade  

 

  

A ausência de uma legislação específica que regulamente as técnicas de Reprodução Humana Assistida dá origem a um cenário de grande instabilidade, em virtude dos problemas jurídicos que se erguem com a utilização dessas técnicas, merecendo destaque especial, quanto ao direito do anonimato do doador e a defesa do princípio da intimidade.  

A intimidade é a autonomia inerente ao ser humano de preservar os aspectos íntimos de sua vida, e tanto o direito à intimidade, quanto à vida privada, referem-se à liberdade de que deve gozar o indivíduo.   

O anonimato do doador é assunto de relevantes controvérsias, pois não se definiu ainda até que ponto sua identidade deverá ser preservada e se esse anonimato vai de encontro ao interesse do filho concebido artificialmente. São muitas as posições favoráveis ao anonimato do doador, principalmente no que se refere à possibilidade de vínculo jurídico paterno-filial.  Leite justifica o anonimato do doador:  

  

  

[...] a doação de gametas não gera ao seu autor nenhuma consequência parental relativamente à criança daí advinda. (...) É medida de generosidade, medida filantrópica. Essa consideração é o fundamento da exclusão de qualquer vínculo de filiação entre doador e a criança oriunda da procriação. É, igualmente, a justificação do princípio do anonimato. (LEITE, 1995, p.45) 

 

O anonimato do doador, na reprodução heteróloga assistida, se  fundamenta no Princípio da Inviolabilidade da Intimidade previsto na CRFB/88 em seu art. 5º, X, que dispõe ser inviolável "a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".  

Reside o direito à intimidade na subtração do conhecimento alheio e visa impedir qualquer forma de divulgação dos dados da existência de uma pessoa sem a devida autorização, pois todos têm o direito à reserva sobre o conhecimento de sua vida íntima. Também na Reprodução Assistida Heteróloga, o doador tem o direito de manter em segredo sua identidade, de forma a não tornar público o seu ato.  

É determinado pela Resolução nº 1.957/2010 do CFM que os doadores  não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, mantendo-se o sigilo sobre todos os envolvidos. Essa Resolução, no entanto, permite que, em situações especiais, por motivos médicos, informações sobre o doador sejam repassadas a médicos. Nesse ínterim, Brauner também afirma que:  

 

 

[...] a identidade do doador só pode ser revelada em casos de critérios médicos emergenciais, como, por exemplo, nas situações em que a pessoa tenha necessidade de obter informações genéticas indispensáveis à sua saúde, ou quando da utilização de gametas com carga genética defeituosa. (BRAUNER, 2003, p.88) 

  

  

O anonimato do doador é importante para que a família possa ter garantido um desenvolvimento normal, além do mais saber a origem genética do sêmen doado, pouco importa para efeito de se estabelecer uma filiação.   

Destaca-se que a doação anônima estimula os doadores, pois lhes dá a segurança de saber que o seu altruísmo não implicará em um vínculo de parentesco, nem na possibilidade de futuramente vir assumir obrigações afetivas, morais ou até patrimoniais. Outro fator a ser considerado é que a origem biológica deve ser desconhecida, para que seja assegurada a inserção total da criança em sua família, objetivando resguardar o melhor interesse da criança, sobressaindo o vínculo afetivo e a busca pela felicidade recíproca entre seus membros.  

Importante frisar também que, recentemente, no dia 9 de maio de 2013, foi publicado no Diário Oficial da União, uma nova Resolução do CFM de nº 2.013/13, a qual garante o direito de casais homoafetivos e pessoas solteiras se submeterem a tratamentos de fertilização, além de permitir o descarte dos embriões depois de cinco anos, o que era proibido anteriormente.  

Apesar de introduzidas várias alterações na resolução nada muda quanto  ao sigilo do doador de material genético. Sendo assim, mantêm as regras da Resolução nº 1957/2010 que tange o presente estudo. 

 

DESCENDÊNCIA GENÉTICA DO FILHO CONCEBIDO NA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

 

Filiação Socioafetiva na Reprodução Assistida: desbiologização do conceito de filiação

 

   A família, tida como alicerce central da sociedade, sobrepujou a barreiras da ciência e hoje pode ser constituída através de técnicas de Reprodução Humana Assistida nas quais muitos casais concretizam seu objetivo ao gerarem uma criança, passando a ser vista sob uma ótica insólita.

                    Respeitada, independentemente do modo de sua constituição, a entidade familiar aparece no contexto jurídico incitando, cada vez mais, a consagração do direito à filiação ou o dever da filiação, portanto, deve-se ter em mente que hoje a doutrina e a jurisprudência definem, além da filiação biológica, a filiação afetiva, também chamada de socioafetiva, em que se cria o fenômeno da “desbiologização”[3], ou seja, a substituição do elemento carnal pelo elemento afetivo.

Assim, Fachin apud Leite, enfatiza:

 

É tempo de encontrar na tese biologista e na sócio-afetiva espaço de convivência, isso porque a sociedade não tem o interesse de decretar o fim da biologização, clara e estampada na superação do modelo patriarcal codificado e nas estruturações de novos paradigmas para a família na constitucionalização. Devendo haver, dessa forma, harmonia e integração para melhor amparar os interessados. ( LEITE,2000, p.172)

 

A Paternidade Socioafetiva, em destaque nos dias atuais, é decorrente das mudanças sociais que foram também acompanhadas pelo pensamento jurídico. Essa paternidade é estabelecida com base em outros fatores além do vínculo biológico, tais como a afetividade, a relação de convivência entre o pai e o filho. É a partir dessa relação familiar é que surge o parentesco da socioafetividade, sendo ele conduzido pela afeição, dedicação e carinho, que elevam os valores éticos e morais, gerando o bem estar e a boa convivência.

Na Reprodução Assistida, os pais, receptores do material genético de um terceiro, assumem as responsabilidades decorrentes da paternidade a partir da vontade, sendo esta previamente manifestada no momento do consentimento do ato. Nesse sentido, discorre Gama:

 

É fundamental considerar, no âmbito da parentalidade-filiação decorrente das técnicas de reprodução assistida, a vontade como elemento essencial para o fim de se admitir o estabelecimento do vínculo de paternidade-filiação e de maternidade-filiação. (GAMA, 2003, p.693)

 

 

É pertinente ver que a relação de paternidade já não mais depende da restrita relação biológica entre pai e filho. Toda paternidade deve ser, necessariamente, socioafetiva, independente da origem do filho biológica ou não-biológica.

Por mais que se insista que a revelação da identidade civil não abalaria o vínculo de parentesco estabelecido entre a pessoa gerada artificialmente e seus pais, o fato é que a temática não se encerra na simples avaliação jurídica, muito pelo contrário, requer ponderações éticas, psicológicas e sociais acerca da responsabilidade em se causar qualquer tipo de agressão à saúde mental de outrem.

Enfatizando o posicionamento, Almeida (2004, p. 66 e 63) afirma, com propriedade, que "paternidade não é roupa que se veste e se desveste, (...) ser pai não pode ser aceito como estado variável, segundo seu animus e/ou segundo o estágio ou estádio de relacionamento com a mãe". Entretanto, o Codigo civil (2002) traz diversos artigos em que aloja a nítida opção de paternidade socioafetiva pelo legislador, como nos artigos 1.593, 1596 e 1597, V.

Ademais, a autêntica filiação nem sempre é a biológica. A verdade realda filiação surge nos dizeres de Lôbo Netto (2004, p. 12, “na dimensão cultural, social e afetiva, donde emerge o estado de filiação efetivamente constituído” e concluídas por Lôbo Netto (2003, p.144) em que "o filho biológico é também adotado pelos pais, no cotidiano de suas vidas". De acordo com Ferraz a atual família brasileira:

 

Passa a priorizar os laços afetivos. A troca de afeto, de cuidado e a solidariedade entre os membros como meio de se realizarem como pessoa humana adquire mais relevância do que o tipo de entidade familiar no qual tal realização se concretizará. Portanto, seja qual for a espécie de entidade familiar, o indivíduo é o centro em torno do qual gravitam todos os direitos, a fim de que a pessoa se realize sentimentalmente no grupo familiar em que está inserida. (FERRAZ, 2011, p.96)

 

Pode-se, então, dizer que o estado de filiação é algo construído no decorrer da convivência familiar sustentada em laços de afeto, independente de origem biológica. .

 

O direito à busca da origem da genética X direito ao anonimato do doador

 

Várias são as indagações a respeito se há o direito à busca da origem genética. Tal busca se fundamenta na simples identificação do ser humano como um indivíduo singular, através de sua história genética. Por não ser resguardado expressamente na CRFB/88 e nem sequer no CC/02, no direito à identidade genética está o direito à personalidade e ainda o princípio da dignidade humana.

O conhecimento da identidade se faz relevante para esclarecer conflitos diversos advindos da Reprodução Assistida Heteróloga como o fato de se evitar os enlaces matrimoniais entre irmãos ou até mesmo entre ascendentes e descendentes. Existe, ainda, a necessidade de cada indivíduo, saber sobre sua história de saúde, de seus parentes biológicos, para prevenir e tratar problemas de saúde de origem genética. Há também casos de doenças em que somente são solucionáveis através de compatibilidade consanguínea.

Nesse contexto, Ferraz (2011, p. 133) explica sobre o reconhecimento da origem genética:

 

Consiste em saber sua origem, sua ancestralidade, suas raízes, de entender seus traços (aptidões, doenças, raça, etnia) socioculturais, conhecer a bagagem genético-cultural básica. Conhecer sua ascendência é um anseio natural do homem, que busca saber, por suas origens, suas justificativas e seus possíveis destinos. Não há como negar o direito a conhecer a verdade biológica, pela importância enquanto direito de personalidade. (...) Na maioria das vezes, pretende-se ter acesso à origem genética por questões psicológicas, pela necessidade de se conhecer. Em certos casos concretos, o fato de não se saber de onde veio do ponto de vista biológico, pode comprometer a integração psíquica da pessoa.

 

 

Inúmeros são os posicionamentos favoráveis no ordenamento jurídico brasileiro acerca desse reconhecimento fundamentado, em sua maioria, no princípio da dignidade humana, considerado como o ápice de todos os princípios. Os motivos para a busca da origem genética podem ser vários, dependendo particularmente de cada indivíduo, uma vez que a identidade genética é sinônimo de individualidade humana.

Ao promover ao filho o seu direito de conhecer a sua verdadeira identidade genética, reconhece-se o exercício pleno de seu direito de personalidade e a possibilidade de buscar nos pais biológicos as explicações para as mais variadas dúvidas e questionamentos que surgem em sua vida.

Desse modo, Fernandes (2000, p.85) defende que “o filho concebido através de uma das técnicas de reprodução assistida poderá, a qualquer tempo, investigar sua paternidade, esclarecendo ainda, que os responsáveis pela guarda dos dados do doador de sêmen deverão fornecê-los, em segredo de justiça.” Complementa o autor dizendo que "ao se negar a possibilidade do aforamento de ação investigatória por criança concebida por meio de uma das técnicas de reprodução assistida, em inaceitável discriminação se estará negando a ela o direito que é reconhecido à outra criança, nascida de relações sexuais". Além do mais, estar-se-ia impedindo o seu direito à ação, garantidos pelos art. 75 do CC/02: “A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura" e pelo art. 5º da CRFB/88 ao afirmar: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)” e pelo art. 27 do ECA: “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.” Ademais, a possibilidade de o filho socioafetivo conhecer os dados de seus pais biológicos não implica na mudança em seu estado de filiação civil. Conforme explica Queiroz:

Assim, o novo comportamento cultural, no tocante à paternidade, insere o mundo moderno em outro contexto social, em que a função de pai deve ser exercida no maior interesse da criança, sem que se atenha à própria pessoa em exercício da referida função. (...) Por isso, atribui-se que o verdadeiro vínculo que se trava com os pais é o afetivo e, portanto, pais podem perfeitamente não ser os biológicos. (...) Assim, em questões que envolvam conflitos de paternidade biológica e social, o interesse melhor e maior da criança deverá nortear a decisão. (QUEIROZ, 2001, p.52, 55, 59)

 

 

Entretanto, o direito à identidade genética não está expressamente ratificado no texto constitucional da CRFB/88, mas mesmo assim é constituído como um direito fundamental que deixa aberta a possibilidade de identificação e construção de outras posições jurídicas fundamentais que não as positivadas, pois a filiação socioafetiva contrai a identidade do ser humano que é apontado como filho e nestes termos se desenvolve.

O Projeto de Lei Nº 115/2015, de autoria do Deputado Federal Juscelino Rezende Filho sugere que seja instituído o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis e sociais, onde foi apensado ao mesmo o Projeto de Lei 4892/2012 de autoria do Deputado Federal Eleuser Paiva, projeto este que reconhece a necessidade de se garantir o sigilo do doador e salvaguarda o direito da pessoa nascida com utilização de material genético:.

 

 

PROJETO DE LEI Nº ,                      DE 2015

(Do Sr.Juscelino Rezende Filho)

Institui o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais. O Congresso Nacional decreta:

Título I

Disposições Gerais Capítulo I –

Do Objeto

Art. 1º - Esta Lei institui o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais.

Art. 2º ...

(...)

Art. 19. O sigilo é garantido ao doador de gametas, salvaguardado o direito da pessoa nascida com utilização de material genético de doador de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial, em caso de interesse relevante para garantir a preservação de sua vida, manutenção de sua saúde física ou higidez psicológica e em outros casos graves que, a critério do juiz, assim o sejam reconhecidos por sentença judicial.

Parágrafo único. O mesmo direito é garantido ao doador em caso de risco para sua vida, saúde ou, a critério do juiz, por outro motivo relevante.

 

Saber quem são seus pais, assim como conhecer a sua origem genética são aspectos que moldam e formatam a personalidade do indivíduo. Nesse contexto, disserta Petterle:

 

Em que pese o direito fundamental à identidade genética não estar expressamente consagrado na atual Constituição Federal de 1988, seu reconhecimento e proteção podem ser deduzidos, ao menos de modo implícito, do sistema constitucional, notadamente a partir do direito à vida e, de modo especial, com base no princípio fundamental da dignidade humana, no âmbito de um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais. De tal sorte, o fio condutor aponta o norte da continuidade dessa investigação: a cláusula geral implícita de tutela das todas as manifestações essenciais da personalidade humana. (PETTERLE, 2003, p.16)

 

A única forma que a pessoa concebida a partir da Reprodução Assistida Heteróloga tem de conhecer sua origem genética é através do banco genético, uma vez que não é possível a investigação de paternidade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O presente trabalho destacou, em suas reflexões, que a concepção atual de filiação é a socioafetiva, ou seja, de que pai é quem cria, educa, dá amor e não apenas quem forneceu seu material genético.

É indiscutível que o valor dos laços de afinidade entre pai e filho supera, em muito, a relação advinda meramente da consanguinidade, mas não se pode desconsiderar também que o filho advindo de inseminação heteróloga tem direito de conhecer sua origem genética, pois se trata de um direito personalíssimo.

A investigação da identidade genética está tutelada pelo direito da personalidade que inclui o direito à identidade pessoal, que pode ser verificada durante toda a vida do interessado, e a proteção legal dos direitos da personalidade, por sua vez, está expressamente prevista nos arts. 11 e 12 do CC/02.

Portanto, deve-se reconhecer o direito de toda pessoa exercitar plenamente o direito da personalidade de buscar, no pai biológico, as explicações acerca de sua característica fenotípica, da índole, do comportamento social ou de qualquer outra influência que a carga genética possa exercer em um indivíduo.

Outro aspecto que deve ser observado também é que não se pode omitir de uma pessoa informações relevantes de sua carga genética quando sua saúde física ou mental está em risco. Nessa situação, é indiscutível a sobreposição do direito fundamental à vida em detrimento do direito do anonimato do doador do material genético.

Importante ressaltar que o conhecimento da origem genética, consequentemente, saber quem é o pai biológico, não implica qualquer dos efeitos naturais da paternidade, como reconhecimento de paternidade, dever de prestar alimentos, sucessão, dentre outros.

Evidente também que o temor dos pais socioafetivos de que a possibilidade de o filho buscar a sua origem genética possa implicar na desconstituição da paternidade a eles atribuída, não deve ser impedimento para que o filho queira exercitar seu direito de investigar sua origem. Nesse sentido, o Conselho da Justiça Federal na Jornada de Direito Civil, STJ, no período de 11 a 13 de setembro de 2002, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal - CJF, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ, aprovou diversos enunciados, dentre os quais se destaca o de nº 104, concluindo que o conhecimento da origem genética não se traduz na desconstituição da filiação jurídica ou socioafetiva.

Aos pais socioafetivos deve restar a confiança de que amor dedicado aos filhos gerados pela reprodução assistida heteróloga, assim como na adoção, é que dará o tom da convivência e a certeza de que a relação paterno-filial está verdadeiramente instituída.

 

REFERÊNCIAS

 

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ARRAIS SOBRINHO, Aurimar de Andrade. Publicada na 1ª edição da Revista Brasileira de Direito de Família O exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana. LÔBO NETTO, Paulo Luiz Netto. Relação socioafetiva: desbiologização do conceito de filiação. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2495, 1 maio 2010. Disponível em: www.jus.com.br. Acesso em: 31 mar. 2016.

 

BARBOZA, Heloisa Helena. Bioética, Biodireito e o novo Código Civil de 2002. In: NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de, Coordenadores.– Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

 

BESSA, Leandro Sousa. Colisões de direitos fundamentais: propostas de solução. Disponível em www.buscalegis.ufsc.br. Acesso em 12 de nov de 2012.

 

BOSCARO, Márcio Antônio. Direito de filiação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

 

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______. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em:. Acesso em 18 de mar. 2016.

 

______, Código Civil (2002). Código Civil de 2002. 12ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

 

BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

 

CAMARGO, Marcelo Novelino. Leituras complementares de direito constitucional. 2.ed. Salvador: Podivm, 2007.

 

Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.957 de 15 de Dezembro de 2010. Normas éticas para utilização das técnicas de reprodução assistida, Brasília, DF, 15 Dez. 2010. Seção I, p. 79. Disponível em www.portalmedico.org.br. Acesso em: 25 mar. 2016.

 

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[1] Primeiro bebê de proveta do mundo

[2] Livro considerado escrituras sagradas, aqui fala-se no livro de GÊNESIS, 17:17, 21:2

[3] A relação de paternidade em que prepondera a relação afetiva e não a biológica

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